Paixão, Servidão, Cancro

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ISABEL ANTUNES

PAIXテグ SERVIDテグ CANCRO ROMANCE

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FICHA TÉCNICA edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro) título: Paixão, Servidão, Cancro autora: Isabel Antunes arranjo da capa: Patrícia Andrade imagem de capa: Óleo da autora intitulado «O Tempo acabou» paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, Março 2016 isbn: 978-989-8821-8 depósito legal: 405043/16 © Isabel Antunes

publicação e comercialização:

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Dedicat贸ria Para ti que amas algu茅m, de mais e te amas a ti, de menos

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ÍNDICE

I PARTE – PAIXÃO 1. Maria das Dores – O encontro e a conquista . . . . . . . . . . . . . . . .

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2. Humberto – O encontro e a conquista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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3. Os amigos – As máscaras sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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4. Joaquina – Uma vida dura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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II PARTE – SERVIDÃO 5. A noite da mudança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 6. Queixas do corpo e da alma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 7. Fantasmas da infância . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 8. A sede de vingança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165 III PARTE – CANCRO 9. A verdade nua e crua . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 10. Humberto – Vida ou Morte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 11. Maria das Dores – Vida ou Morte? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221 12. A única certeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239 IV PARTE – AGRADECIMENTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253

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I PARTE

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1. Maria das Dores – O encontro e a conquista Quem tem bastante no seu interior pouco precisa de fora johann goethe

A

tarde já vai longa quando, de repente, o telefone toca na casa de Maria das Dores. Um som estridente e peculiar no silêncio de uma vida solitária. Adivinha o nome do homem que estará do outro lado da linha. O toque inesperado faz-lhe correr, célere, pelo corpo todo, um calor agradável que lhe inunda a cabeça, abre-lhe um sorriso nos lábios finos, enche-lhe a vida de sol. Uma luz brilhante incendeia-lhe a noite de fogo. Antegoza a alegria de uma saída nocturna. Talvez um jantar. Talvez um concerto. Talvez a ida a um lugar desconhecido. Talvez um pedaço de noite vivido dentro de um vulcão louco de prazer. Acaba de chegar um dos raros e desejados telefonemas de Humberto para lhe trazer uma surpresa. Uma novidade que se vai desvendando em cada dia que passa, sem que sejam conhecidos ou antecipados quaisquer pormenores.

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Do outro lado da linha, ele murmura, unicamente: – Está pronta às sete e meia. A voz daquele homem penetra-lhe o ouvido, incisiva, autoritária, grave, mesclada da tosse típica do tabaco que ele absorve, os cigarros que, gulosamente, chupa de dia e de noite. O maço, o isqueiro e o cinzeiro a repousarem, quietos, só durante as horas em que Humberto dorme. Espantosa e bendita seja esta tecnologia, contida dentro de uma pequena caixa que lhe permite ouvir a voz de Humberto. Para a aldeã apaixonada é um privilégio quando a caixinha toca, um salto repentino para dentro do imenso tempo durante o qual Humberto, o homem que adora, se mantém ausente. Talvez propositadamente ausente para lhe estimular o desejo da sua presença. Uma enorme ausência com os monstros do desejo tórrido de lhe sentir as mãos no corpo, da ansiedade excitante de o adorar, do pânico gelado de o perder, da dúvida corrosiva de uma paixão sentida como totalmente avassaladora, um profundo orgasmo cósmico, a angústia de uma adoração faminta de fusão. Maria das Dores não consegue imaginar como poderia namorar com o Humberto se não existisse e se não possuísse o «telemóvel» para lhe enviar muitas mensagens diárias, declarações do seu amor incondicional. Descarrega sobre Humberto a dimensão da paixão que sente como devoradora de toda a sua energia. Uma paixão que lhe deixa, no corpo, um buraco imenso por preencher. Palavras apaixonadas, a expressão de uma obsessão que lhe tira a força nas pernas, lhe dobra os joelhos, baixando-lhe a cabeça, mergulhando-a em culpa, em humildade, em receio de não ser suficientemente capaz

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de amar com plenitude, uma atitude conformada de escrava, uma adoração de pastora, um silêncio de mulher muda que perdeu a voz de tanto gritar o amor, uma quietude mansa de gente que se anula e se aliena da vida porque ama de mais e se ama de menos. Porque ama de mais e se ama de menos. Humberto avisa que hoje vai haver festa, que hoje é um dos tais dias especiais. O dia em que ele telefona é sempre um dia especial, acontece um acontecimento sentido como justo que a sua gratidão merece, uma atitude magnânima do homem da sua vida, sempre cara e sempre rara, um sonho, o ar quente que faz Maria das Dores subir e voar como um balão colorido sobre as nuvens. Às vezes, sem dia previamente anunciado, por isso mais apetecível, querendo aumentar o impacto do mistério e do prazer, Humberto gosta de a surpreender, disponibilizando-se para ir jantar fora com ela, os dois, em «tête-à-tête». Estes encontros acendem em Maria das Dores labaredas de pleno gozo, de gratidão. Fica alvoroçada, só lhe apetece cantar, rir, andar à roda, saltitar, tornando leves os seus pesados anos, nunca antes tão intensamente vividos. Isto é a prova de que ele reconhece o amor que eu lhe dedico, eu adoro-o, adoro-o, meu Deus. Como vou conseguir mostrar a este homem, ao meu homem, ao Humberto, como lhe vou mostrar eu que o adoro loucamente? Não sei, não sei, mas tenho de saber amá-lo profundamente. E, ao ouvi-lo ao telefone, ela responde, rindo, terna e apaixonada:

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– Meu amor, pelo menos, diz-me como queres que eu me vista, se levo roupa prática, se assim-assim, ou se é mais de cerimónia. E ele, sempre parcimonioso em palavras, a voz baixa e contida, como é seu costume, sem uma vírgula, sem uma exclamação, sem uma interrogação sobre uma possível opinião: – Cerimónia. Aquela voz quente, profunda e grave, bem como a característica de falar pouco e de ouvir tudo com uma atenção absolutamente incrível, tinham sido as qualidades de Humberto que a tinham deslumbrado, desde o primeiro dia em que se tinham conhecido, face a face. Totalmente dominada pela paixão, ferida pelo ciúme, Maria das Dores massacra-se todo o tempo para tentar melhorar o relacionamento. Pela primeira vez na minha vida eu encontro um homem assim, nunca antes eu tinha conhecido um homem que me ouvisse, enfim, entre os homens que conheço, os meus colegas do trabalho, o Humberto tem qualidades maravilhosas que nunca vi, nem ouvi. Que pânico, eu morro de ciúmes, tenho medo que qualquer mulher possa querer roubar-me o meu Humberto, não vou permitir, eu acho que qualquer mulher fica louca com um homem que tenha, como ele tem, um olhar terrivelmente fixo nela, um olhar que qualquer mulher pode sentir que está a desnudá-la totalmente, uma pessoa sente cócegas na barriga, arde dentro da cabeça e no corpo todo, é uma sensação total, e também com um homem assim que fala pouco e que ouve muito, que ouve tudo o que uma mulher diz, as outras mulheres, como eu compreendo, elas podem ficar loucas e eu fico roída de ciúmes, sinto uns ciúmes de morte.

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Eu sempre achei que um homem assim nunca poderia existir sobre a Terra e, se calhar, o Humberto é mesmo único em todo o mundo, ele dá-me tempo para falar, pergunta-me coisas, coisas de mim e da minha vida e escuta-me, deixa-me falar a mim, é fantástico, é um querido, será que ele está eternamente interessado em mim, será que gosta verdadeiramente de mim, isso é o que eu mais anseio. Eu que já não sou nada nova, não sou bonita, sou um bocado gorda, nem consigo cruzar as minhas pernas gordas como eu vejo que as outras mulheres conseguem fazer, não tenho estudos, não sou fina, enfim, isto é que é a verdade verdadeira, tenho de admitir, que foi um verdadeiro achado tê-lo conhecido, assim, de forma tão especial, e eu valho coisa pouca, tenho de me esforçar para fazer tudo o que possa para merecer o amor do Humberto, mas não sei o que é que é o tudo que eu tenho de fazer, mas sei que eu quero fazer tudo, seja o que for esse tudo. Ele põe-me louca de desejo, amarinho pelas paredes. Como é possível que um homem possa dar tanto prazer sexual a uma mulher, que eu também só tinha conhecido um único homem, um só, que era o meu marido, que foi também o meu único namorado e o meu marido, ele já morreu, Deus o tenha no seu eterno descanso, mas nunca imaginei o que um homem pode fazer a uma mulher, eu era uma ignorante na intimidade com um homem, quase pensava que o sexo era uma obrigação, uma coisa que tem de acontecer quando se dorme com um homem na mesma cama, por obrigação de mulher, uma chatice, um frete, a gente sempre a desejar que aquilo acabe depressa, despacha-te, despacha-te, vá lá, depressa, depressinha, pronto, já está, anda bem que acabou, ainda bem que te viraste para o outro lado e já dormes, não me

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chateies mais, não me vais chatear outra vez durante pelo menos uma ou duas semanas, mas o Humberto gosta de me dar prazer, faz-me subir montanhas e chegar ao céu, é de loucura, gosta de ficar a olhar para mim, gosta que haja luz no quarto, que vergonha, sempre fiz isto às escuras, sempre com metade da roupa vestida, mas ele quer-me sem roupa e quer ver-me e zanga-se se fica tudo muito escuro, tenho de lhe fazer a vontade, tenho andado a comprar uma «lingerie» lindíssima de renda em conjuntos de fazer qualquer homem perder a cabeça, tudo escolhido, de gosto erótico, dinheiro não me falta, comprei um conjunto vermelho, outro cor-de-rosa vivo e outro preto que são os mais «sexy», depois também achei um branco muito bonito e outro em azul espectacular que acabei também por trazer, e no outro dia, escolhi umas camisas de dormir arrendadas e transparentes em cores a condizer com todos os conjuntos de lingerie, ou seja uma camisa para cada cor, uns «robes de chambre» compridos em cetim e em sedas ousadas muito macias, mas a grande surpresa é que ele disse para eu despir tudo, gosta que eu não use nada, ele, de repente, faz-me estalar a cabeça, cá dentro, e eu vejo luzes e estrelas no céu do quarto, não é egoísta, ele até às vezes se esquece dele próprio, parece que não quer nada para ele, parece que nem fica excitado, parece que o prazer dele é ver-me ter prazer, parece que só eu interesso, parece que, de nós os dois, sou eu a pessoa mais importante para ele, o Humberto põe-me louca, vou ao céu vezes sem conta, é tão bom ficar totalmente esgotada, em paz, apaziguada, embora esteja sempre pronta se ele quiser. Desde o dia em que o convidou a subir até sua casa que o corpo lhe arde em labaredas de felicidade, de paixão.

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Nunca antes a sua esquecida e apagada intimidade experimentara tão profundas sensações. É um amor de cegueira total, uma paixão de fusão com Humberto em que Maria das Dores se deixa anular. Um amor escondido dos outros. Encontros sem datas marcadas, de disponibilidades difíceis de ultrapassar, de segredos entre os dois. Ninguém, do lado de fora das paredes em que se fecham, poderá imaginar o que se passa lá dentro. Encontros apimentados de dois adultos. Humberto, o seu homem, o homem vivido que viera dos Estados Unidos da América, onde diz que tirara uma coisa chamada MBA que ela acha que deve ser uma coisa especial e muito importante. Mas não sabe bem o que é. Um homem totalmente conhecedor e perito no toque do corpo desta mulher, um homem que sabe dedilhar o instrumento corporal da música do prazer. Inexperiente e submissa, Maria das Dores mostra-se sempre temerosa de não conseguir corresponder à necessidade de fusão que a esmaga até à total subjugação de fêmea ao macho, à anulação de si própria. A felicidade espelha-se-lhe no rosto. A própria amiga Luísa fica perplexa com aquele exagero, com o brilho que irradia dos seus olhos castanhos, anteriormente baços e mortiços: – Ouve lá, tu o que é que andas a fazer, ou o que é que o Humberto te faz, enfim, para andares assim a flutuar em felicidade? Desculpa, não quero ser indiscreta, mas tu mudaste, deixaste de ser a viuvinha triste e esquecida da vida, que filmes andas tu a ver?

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– Não ando a ver filmes, Luísa, tu tens muita graça, lembras-te de cada uma. Pela primeira vez na sua vida, ria-se com gosto, feliz, lá dentro. – Luísa, eu não ando a ver filmes, porque eu ando a viver «os meus próprios filmes», percebes? Não sei se compreendes. Ando a viver uma vida maravilhosa, podes ter a certeza. Orgulhosa, sente-se agora uma mulher plena dentro da sua pele. Uma mulher na verdadeira acepção da palavra. Uma fêmea anteriormente distraída da sua condição, despertada actualmente por um homem que ela considera especial. Gostaria de ter a aprovação da amiga. Sabe que Luísa não é uma pessoa fácil de ser convencida. Conta-lhe alguns pormenores do amor que está a viver. Cuidadosamente, para não chocar a amiga que é casada mas não se deixa «embalar em cantigas». Luísa nunca abdica dos seus direitos, mesmo perante todo o amor que o marido e os filhos mostrem e provem que sentem por ela. Luísa, avisa-a, mais uma vez: – Maria das Dores, já sabes que não alinho muito em determinadas situações que não me pareçam ser justas para as partes envolvidas. Mas, já que me pedes, eu dou-te a minha opinião. Sabes que sou tua amiga, não é necessário estar a repetir, sabes que eu quero o teu bem e, por isso mesmo, eu vou dizer-te o que é que eu penso sobre o teu Humberto. Luísa agarra na mão de Maria das Dores e pousa-lhe a outra mão em cima, em jeito protector. – Tu és muito bem-intencionada, Maria das Dores, mas tens pouca experiência dos homens. É uma pena que não tenhas

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namorado mais homens. Não namoraste mais rapazes quando eras mais nova, percebes o que eu quero dizer. Porque todas as mulheres deviam namorar muito desde jovens para conhecer melhor os homens, porque eles são um pouco diferentes de nós, entendes? Mas isto não quer dizer que os homens sejam maus e que nós, as mulheres sejamos as boas, compreende isto, não é isso que eu quero dizer, todos nós, homens e mulheres temos defeitos e qualidades. Mas o que eu quero dizer é que tu devias era ter tido mais experiência, é só isto, para te precaveres. Mas isso é o passado. E o passado não se pode emendar. Se tivesses mais experiência, estarias mais preparada para perceberes certos pormenores que te escapam e que te impediriam de caíres nessa paixão assolapada que tens pelo Humberto e que dura há quase um ano, essa paixão que te põe completamente cega, tu não consegues ver mais nada à frente do nariz, estás demasiado envolvida, encantada com ele, estás deslumbrada, tu achas que tudo nele é uma maravilha. Mas tens de tentar ver, e perceber melhor, tudo o que se está a passar contigo e com ele, sem perderes a cabeça nem o norte da tua vida. A Luísa que se fique com as opiniões dela, eu agradeço, mas estou noutra, ela não consegue imaginar nem nunca viveu esta felicidade imensa que eu estou a viver. Quem não gosta de adorar e de ser adorado? Meu Deus, eu quero que o meu Humberto se sinta adorado, mas preciso também de o conquistar totalmente, não consigo fazer com que ele me diga em voz alta que me ama para eu poder ouvir essa confissão de amor, dita em palavras. Porquê é que ele não me diz que me ama? Se calhar ainda não me ama, ou não me ama como eu o amo a ele. Adorando-o eu, como eu adoro este homem,

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gostava que ele me adorasse, eu queria ter essa certeza, a certeza de que este homem que eu adoro que fosse para sempre «o meu homem», o meu marido, só a eternidade pode ser o tempo certo para conter uma paixão tão grande como a minha. Impressiona-a ver a atitude atenta de Humberto quando ela relata tudo o que lhe acontece diariamente, no escritório, as compras que faz, o que ouve as pessoas a falar nos autocarros, na sua maioria homens que trabalham nas obras e mulheres que trabalham a dias em «casas de senhoras», as conversas que duram meias horas ou três quartos de hora ao telemóvel, a dizerem coisas importantíssimas como repetir mais de cinco vezes que saíram agora da Damaia e estão no autocarro, e, porque do outro lado do telemóvel a outra pessoa não ouve bem o que a pessoa deste lado diz, cada frase é repetida cinco ou seis vezes, sempre na mesma entoação que, obviamente, dificulta a percepção do outro lado da linha em conversas «interessantes» como seja a explicação detalhada de uma roupa que viram na feira de Carcavelos. E, da sua vida, Maria das Dores conta-lhe tudo, inclusive o valor do saldo da sua conta bancária, verba que aparece semi-embrulhada em conversas sobre as outras pessoas que se lhe atravessam no quotidiano e Maria das Dores ouve, como única resposta de Humberto, mais perguntas de Humberto, interessado na importante conversa de Maria das Dores, ou ouve um eco de repetição, ou ouve o silêncio de Humberto, desenhado no fumo branco do tabaco que o envolve. Há silêncios que valem mais do que mil palavras, eu derreto-me toda, mergulho toda inteira no silêncio do Humberto, deixo-me banhar nos olhos dele, fico desvairada de amor e louca de

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desejo quando o vejo a levar à boca o cigarro que ele chupa com deleite, não tirando os olhos grandes de cima de mim, a boca escondida na barba a sugar o balão do «whisky», o «whisky» que ele toma em goles pequenos que duram todos o mesmo intervalo de tempo, goles todos do mesmo tamanho, suga, guloso, o «whisky» do balão e deixa-o ficar dentro da boca, a tomar-lhe o gosto, só o engole depois. Sempre bebe a mesma marca de «whisky», a marca que ele exige que seja sempre a mesma, com esta marca de «whisky» marca ele a marca que pretende e assim marca a sua exigência, marca a sua presença inconfundível, marca a sua forte personalidade perante os outros que lhe ganham respeito e admiração, talvez também inveja. Desde há um ano que eu fico ainda mais louca de paixão quando o Humberto, invariavelmente, impõe a sua vontade perante os empregados de todos os restaurantes onde a gente vai e eles reconhecem-no como um importante cliente. Os empregados ficam orgulhosos de, perante tão notável personagem, uma pessoa importante que até é Professor, é Doutor, e tudo, ficam vaidosos de se recordarem sempre de qual é a marca do «whisky» e do tabaco que o Senhor Professor Doutor exige, qual é a cor do rótulo, quantos anos de envelhecimento tem o «whisky» preferido do Senhor Professor Doutor que nunca abdica desta exigência dele nos sítios onde a gente vai. Até faz gala em assinalar a sua presença com esta característica que o distingue entre todos os outros clientes presentes, característica só do Humberto, todos os seus amigos lhe conhecem de cor os hábitos de forte personalidade, hábitos de que falam alto e fazem piada, riem todos, porque, sem se mexer um milímetro – ele detesta mexer-se – nunca se mexe, mas salta para o centro

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das atenções de todos. Estas coisas fantásticas da personalidade do Humberto que me deslumbram. Eu fico encantada por ver o que ele é, como se fosse um chefe entre todos aqueles amigos. E, eu não posso negar, sou sincera comigo própria, orgulho-me de ser eu a companheira dele. Eu sou a mulher que está ali ao lado dele. Sou eu a mulher que ele escolheu. Vivemos separados, cada um na sua casa. A minha casa, fui eu que a comprei. Felizmente, agora, tenho dinheiro para estas extravagâncias. E parece que ele mora em casa alugada, não tenho a certeza. Eu e ele vivemos separados por enquanto, que até é muito mais giro assim, estou sempre a arder de desejo por ele. Ele é um orgulho fantástico para mim. Nunca, na minha vida, eu tive esta importância enorme. É a primeira vez na vida que isto me acontece. Uma das coisas que ele faz que me fascina é aquele gesto do Humberto, que ele sempre tem, aquele gesto que é só dele, de limpar com o dedo, o dedo que me põe fascinada, os dedos que me tocam, o dedo que toca a gota pequenina e dourada que fica na borda do balão do «whisky», quando, lentamente, ele retira o balão daquela boca dele que eu adoro e, a seguir, ele pousa o balão sobre a mesa, lentamente. O Humberto gosta que eu leia, e, no outro dia, ofereceu-me um livro de contos muito giro que se chama «As Mil e Uma Noites». Há uma história para contar em cada noite e todas as noites nos têm mantido juntos, a viver este amor especial, interessados em saber a continuação das histórias desta paixão das arábias, como aconteceu com Scheherazade e o seu sultão. E, uma noite, fomos a um concerto onde foi tocada, como eu vi que estava escrito no programa, a suite sinfónica da autoria de Nikolai Rimsky-Korsakov de que gostei. Eu estava feliz, tirando os nervos do costume que eu costumo sentir durante o jantar, nervos que me são provocados pela

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presença dos amigos do Humberto e como nos sentámos naquelas cadeiras finas com dourados, pois fomos todos a um concerto onde ocupámos dois camarotes, ao lado um do outro, nós éramos muitos e eu fiquei num lugar em que vim de lá com o pescoço todo torcido, até me doeu durante três dias, mas perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe, diz o povo e com razão. Tinha passado um ano desde que se conheceram. Há jantares românticos em locais escolhidos requintados, com rituais gastronómicos, onde Humberto leva Maria das Dores para a sala onde se pode fumar e jantam na maior intimidade, com toda a pompa e circunstância, como ela um dia ouviu ele dizer e gostou da frase. Depois, disfarçadamente, é ela quem paga a conta. Eu gosto de jantar com os vários amigos do Humberto mas, sinceramente, eu prefiro os jantares em que estamos só nós os dois. Um dia o Humberto tinha-me telefonado a dizer que íamos sair nessa noite, eu nunca sei se é para estarmos sozinhos se é para ir ter com os amigos dele, arranjei-me toda, até calcei logo uns sapatos novos que me faziam doer os pés e pus-me à espera e depois estive até às dez horas da noite, e depois comecei a achar estranho que ele quisesse jantar tão tarde. Mas depois telefonou-me a dizer que, afinal, não podia ser nessa noite, sem me dar mais explicações nem acrescentar mais nada, eu própria acabei por lhe dizer, como se diz nestas circunstâncias, que ficaria para outro dia, eu já estava cheia de sono e de fome, queria comer uma buchinha e ir para a cama, estava um bocado desiludida e assim fiquei a zero nessa noite. Mas daí a dois dias ele telefonou novamente e dessa vez fomos mesmo jantar juntos, só nós os dois, e foi uma maravilha. Era um

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sítio muito bom, não me recordo bem onde é que foi. Esta situação já dura há algum tempo. Tudo tem passado depressa, no meio da maior felicidade. Eu ando sobre as nuvens. A conta do restaurante foi exorbitante, mas eu cá tenho disponibilidade de dinheiro e o Humberto encolhe os ombros, fuma e como ele não faz ondas e deixa que seja eu a pagar, sou eu que pago essas despesas, o prazer de pagar é todo meu. Se o Humberto não existisse para que me servia tanto dinheiro? Para que é que eu quero o dinheiro? Sem o Humberto, se calhar, eu já tinha morrido sozinha. E ainda por cima, totalmente estúpida e sem conhecer o que é o verdadeiro amor na cama. A vida corre-me bem, o céu parece-me mais azul, quando vou trabalhar, consigo rir-me com as colegas, dizemos graças, toda a gente que me conhece diz que acha que eu irradio uma luz contagiosa de tanta felicidade. Depois de nos conhecermos, temos ido a espectáculos em que, primeiro, jantamos com os amigos do Humberto. São noites de saídas especiais com uma frequência muito rara, onde eu nunca pago à frente dos amigos dele. Nessas noites o Humberto puxa sempre do cartão dele de crédito, como um autêntico ritual. Estas pessoas que o Humberto me apresentou têm todos cursos superiores e eu sinto-me muito acanhada com eles desde que os conheci. Faço muita cerimónia com estes amigos. Sinto-me muito feliz, mas estou sempre nervosa. Tenho de ser cautelosa para não dizer nenhum disparate que o ponha malvisto perante os amigos. Tenho de ser cautelosa e atenta o tempo todo quando estamos no jantar, o que me cansa imenso. E depois no concerto, tenho de manter-me caladinha, é o melhor que eu devo fazer, é tal e qual o que o Humberto faz. Descobri que o que tenho a fazer é ser como ele. É essa a solução. Na verdade, tenho de aceitar que não con-

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sigo estar ao nível da conversa daquelas pessoas. O pior é quando me fazem perguntas directas, a fingirem-se de pessoas interessadas, porque ali, eu sou a companheira que o Humberto escolheu e que ele levou a jantar com esses casais de respeito. Vim da província, tive uma infância pobre. Esta gente nem consegue imaginar o que foi a minha infância, para perceberem como era a vida das pessoas que viviam na província, em Portugal, antes do vinte e cinco de Abril. Para perceber o que foi a nossa vida nem chega o que vêem nos filmes antigos italianos, tudo negro, tudo pobre, a fome, o choro, a pancada, a roupa esfarrapada, a falta de água, a falta de sanita, a falta de electricidade, para já não falar da ignorância total do que seria um telefone, uma televisão, um frigorífico, uma máquina de lavar roupa, um fogão a gás. Tenho poucos estudos, não pude estudar mais, a vida nunca foi fácil na minha família. A minha irmã, a Joaquina, foi para a profissão de cabeleireira como ajudanta aos doze anos e eu fiquei mais uns anos na escola, mas não deu para mais, pouco mais sei do que ela, poucas oportunidades tive de aprender mais do que a Joaquina. Agora sou uma simples administrativa na secção de contabilidade de uma empresa que também não é conhecida das pessoas, não me proporciona um cartão-de-visita se digo o nome em voz alta, nada tenho que me possa elevar ao nível dos amigos do Humberto, tão cultos e instruídos, gente fina. Eu também, nunca dantes frequentei ambientes com pessoas que tivessem cursos superiores, assim como eles têm. Nem sei o que lhes devo dizer. Nem sei como hei-de dizer. Como hei-de começar. Falar sobre o quê? Como devo continuar? Nem sei como posso acabar as conversas. Tenho de ir aprendendo devagar, sem me espalhar.

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A alegria e o orgulho rugem-lhe no peito, sentada à mesma mesa com pessoas de tão alto gabarito. Vai, a seguir, com esta gente, a um concerto, a um sítio por ela desconhecido, mas conhecido desta gente, uma das catedrais da cultura na capital do país. E tudo isto aumenta o deslumbramento, a paixão de Maria das Dores por aquele homem que a coloca nos píncaros da socialização e da sociedade. Luísa anda um pouco zangada com Maria das Dores. Todos os seus avisos caíram em saco roto. Maria das Dores continua a andar naquela roda-viva dos jantares, ou navega na ansiosa espera de que os jantares aconteçam, sempre dependente, conformada e calada, silenciosa e sem pedir mais respeito pela sua condição. Luísa não se coíbe: – Maria das Dores, desculpa que te diga mas andas mesmo parva de todo, andas p’r’aí feliz que nem uma tontinha. Face à surpresa com que Maria das Dores a contempla, Luísa acrescenta: – Acorda, mulher, faz-te à vida. Completamente chocada com as palavras da amiga, Maria das Dores: – Mas porque é que tu dizes isso? – Porquê? Ainda perguntas porquê? Então tu já te viste ao espelho? Não tens espelhos lá em casa? Estás aqui, não tarda, vais-te deitar no chão para o Humberto te passar por cima e te pisar, como se faz a um tapete. – Credo, Luísa, tu tens cada ideia, até me ofendes. – Tu precisavas era de uma mãe que te castigasse pelas asneiras que andas a fazer, pareces uma miúda pequena.

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– Olha, assim não conversamos, porque eu não percebo o que ‘tás para aí a dizer. – Ouve lá. Tu, pensa comigo: Quem é que paga as contas todas nesses restaurantes onde tu vais com ele, quem é? – Ah, isso. Umas vezes é o Humberto, outras vezes, é justo que seja eu, é como se fosse a meias, percebes? – Não, não percebo. Porque se fizeres melhor as contas, acho que sabes fazer contas, não é esse o teu trabalho cá na empresa? Vê-se logo que o pagamento das despesas não é a meias, tu pagas mais, e se for como tu dizes que ele não se importa, pois claro que não se importa, ele pode ser tudo, mas estúpido não me parece que seja, ele está no bem-bom, encosta-se. – Luísa, tu estás a exagerar, não é assim. – Não é? E aquilo que tu me contaste no mês passado que gostarias de lhe oferecer um carro porque o automóvel dele está podre de velho, como é que isso ficou resolvido? Diz-me lá. Se me quiseres dizer, claro, isto é, se me consideras tua amiga verdadeira, não és obrigada a contar-me tudo. O silêncio de Maria das Dores cai sobre as duas amigas. Luísa inclina-se a espreitar-lhe a expressão do rosto. Maria das Dores, baixinho: – Ainda não está resolvido, eu passei o cheque por quinze mil euros, mas se calhar não chega, o Humberto lá se resolveu a levar o cheque depois da minha insistência, o cheque ficou esquecido, pousado em cima da mesa da minha casa-de-jantar, e lá ficou durante quase duas semanas e eu sempre a insistir para ele levar o cheque, e agora depois de eu lhe ter perguntado, o Humberto disse-me ‘tá à espera de ter tempo para ir a um «stand» ver carros, mas anda muito ocupado, sabes?

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Ele, como te contei, tem um trabalho na Universidade muito importante, como professor e doutor. Espero que ele consiga encontrar o automóvel que lhe agrade antes do verão, mas não sei se é preciso passar outro cheque, temo que aquele valor não chegue, vou ter de me informar dos preços dos carros, mas também não sei qual é o carro que ele prefere. Luísa abre a boca de espanto, não quer acreditar no que os seus ouvidos estão a ouvir. – Maria das Dores, diz-me que não é verdade. Não é possível. – O quê? – Ele não tem tempo para comprar um carro? Eu ouvi bem? – Pois o Humberto tem muito que fazer, é uma pessoa importante. O que é que tu julgas, Luísa? – Tu és doida varrida, Maria das Dores. Estás a passar-te. Ou estás a fazer de mim estúpida? – Luísa, lá ‘tás tu a insultar-me, não esperava isso de uma verdadeira amiga como acho que tu és. As lágrimas assomam aos olhos de Maria das Dores. Luísa contem-se, a vontade de disparatar como é seu costume não irá resolver o problema desta mulher apaixonada, cega de tanta adoração que precisará de mais tempo para acordar deste pesadelo de submissão. – Tens de abrir os olhos, Maria das Dores, tens de enrijecer, tens de ser mais forte. Esta brincadeira vai-te sair muito cara. Maria das Dores sacode a cabeça a enxotar as lágrimas. O coração bate-lhe no peito à força do amor que finalmente encontrou na sua vida, até então vazia de afectos.

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– Este amor vale a pena, Luísa. Eu defendo este meu amor com unhas e dentes, nunca fui tão feliz como sou agora. Sou uma leoa a defender o meu amor. É assim que me sinto por dentro. – Tu não estás a lutar. Tu estás a deixar-te ir. Tu estás a deixar andar, mulher. – Enganas-te se pensas mal do Humberto. Ele é incrível. Só queria que tu visses as coisas boas que ele me faz, os miminhos que ele me faz. Luísa levanta as sobrancelhas, incrédula. Maria das Dores continua: – Quando vamos na rua, ele é um autêntico cavalheiro. Vê lá tu que o Humberto muda sempre de lugar quando atravessamos uma rua. Coloca-se sempre do lado de fora do passeio. Reserva para mim o lado de dentro do passeio e ele põe-se do lado de fora. Disse-me que são princípios de educação que recebeu da família. Como, se calhar, tu não ‘tás habituada, não sabes dar o devido valor a este tipo de coisas finas. – Ora vejam lá o grande feito ou prova de amor, isso custa-lhe dinheiro? Não, não lhe custa um tusto. Ele ganha a tua consideração? Ganha, sim, senhor. E juntamente com a tua consideração por ele, o que é que acontece, o que é que vem juntamente? Isso vai aumentar o teu amor por ele, que é o que ele pretende para continuar a tirar partido da situação. No fundo, espremendo bem, qual é o verdadeiro valor dessa coisa? Pensas que eu fico chateada se o meu marido vai do lado de dentro do passeio? Não, não fico nada aborrecida, nem preocupada com essa ridícula prova de amor, porque não é prova nenhuma de amor. O amor não se resume a palavras lindas,

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