Pagwagaya

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PAGWAGAYA


Ficha Técnica Edição: Vírgula (Chancela Sítio do Livro) Título: Pagwagaya Autor: Armando Frazão Revisão, paginação e design da capa: Armando Frazão Fotografia da capa ©Armando Frazão 1ª Edição Lisboa, 2012 Impressão e acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-8413-57-4 Depósito Legal: 341452/12 © Armando Frazão Publicação e Comercialização: Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, Porta C – 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt

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PAGWAGAYA

Armando Frazão

Vírgula



Vemos pouco e apenas o que queremos



Prólogo Numa atitude cada vez mais destrutiva e insustentável, o Homem pressionou a Terra até ao limite. Ainda que sem consciência, o universo actuou e, vindo do exterior, um ciclo de destruição muito mais poderoso e repentino, atingiu a Terra. Muitos pereceram e a Humanidade, forçada a recuar perante a catástrofe, tomou refúgio debaixo do chão, em cidades subterrâneas. Cedo a escassez de recursos os fez procurar novamente a superfície. As condições não eram as melhores e, colocando a tecnologia ao seu serviço, criaram escudos de protecção contra a radiação que penetrava a atmosfera, ainda em recuperação. A Terra, e a sua atmosfera, recuperaram mas, quando o Homem ousou sair das suas protecções, uma nova ordem estava em vigor. Outrora dóceis e sempre dispostas a ceder aos seus caprichos, a Terra e a Natureza constituíam agora uma ameaça constante às actividades humanas. Durante séculos os animais e as plantas reclamaram o espaço perdido, a Terra floresceu e cresceu, mas o Homem foi forçado a permanecer dentro dos seus escudos, agora alterados para o proteger da Natureza e das suas forças imperscrutáveis. A falta de energia e de meios de subsistência coloca em causa a sobrevivência humana e força-os a medidas desesperadas, a submeterem-se à condição de presas da Natureza. Ou assim o pensam...

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Lição

Lição A atmosfera era calma mas, a intervalos, interrompida por sequências rápidas dos dois oponentes. A luz que entrava pelas clarabóias semi-abertas traçava linhas largas, paralelas e oblongas no chão e nas paredes de madeira. O silêncio, quase absoluto enquanto ambos se olhavam e estudavam, transformava-se em som de tecidos ondulantes em deslocação rápida como se de bandeiras ao vento se tratasse. Quase de imediato os silvos das lâminas dominavam o espaço no curto lapso de tempo até se tocarem num impacto metálico, por vezes abrupto e rápido, por vezes rasgado e demorado. Os raios de luz, imateriais, ganhavam vida própria quando as espadas os cortavam e reflectiam em direcções naturalmente improváveis. E, em poucos segundos, o silêncio reinava novamente. A sequência de sons repetiu-se várias vezes até a respiração ofegante dos dois impedir o domínio do silêncio a cada pausa. Os movimentos, esses raramente se repetiam. O ligeiro sorriso nunca saiu dos lábios do mais velho e agora, igualmente cansado, Gwinion deixou-se contagiar e mostrava também o seu sorriso, com um tom de astúcia e confiança que o diferenciava claramente. Mais algumas sequências de movimentos agitaram o ar e novamente tudo ficou na mesma com as partículas de pó em suspensão a caírem lentamente através dos raios de luz. A espada atravessou um raio de luz e, na sequência de um movimento de pulso quase imperceptível, o reflexo atingiu os olhos de Gwinion. O movimento iniciou-se agora sem que este o tivesse previsto e, apesar da reacção rápida, ficou claramente em desvantagem. Um segundo depois o seu braço estava bloqueado com a espada a apontar inofensivamente na direcção errada enquanto a do seu mestre estava livre e sem nada que a impedisse de o atingir. O sorriso desapareceu. Um momento depois o mestre largou uma gargalhada e sentaram-se os dois no chão, frente a frente. Os ligeiros traços da ancestralidade oriental de Gwinion conseguiam perceber-se só agora, quando sorriu de novo, desta vez num tom mais humilde. 11


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– Tecnicamente és muito bom, tanto ou mais que muitos mestres, tanto ou mais que eu. – Mas acabei por perder na mesma. – Quando estás em frente a um oponente em combate, quanto menos ele souber de ti maior a tua vantagem. O teu sorriso pode ser a tua melhor máscara, mas se o usas como um espelho do que te vai por dentro, estás a dar-te a conhecer e o efeito é exactamente o oposto. – Foi por isso que perdi, Mestre? – Não, eu já te conheço bem suficiente para saber o que pensas mesmo com uma máscara perfeita. Gwinion acenou positivamente e interrogou-se sobre as razões da derrota. – Por exemplo, sei que agora estás a tentar perceber. Perdeste porque não esperas o inesperado. Dentro da tua técnica perfeita cabe pouco mais do que conheces, do que já experimentaste. Mas há sempre coisas novas a aprender, novos horizontes a explorar, novas aproximações que não viveste. O Mestre fez uma pausa enquanto acalmava a respiração e Gwinion reflectia em silêncio sobre as suas palavras. Continuou: – Tens de tornar a criatividade parte de ti, parte da tua técnica, para poderes surpreender os outros com acções inesperadas, e para conseguires enfrentar as situações inesperadas que os outros te apresentem. Doutro modo não poderás ser muito melhor que um robot que consegue guardar uma quantidade enorme de experiências, mas não consegue criar experiências novas. Fez-se uma breve pausa e Gwinion levantou o olhar. – Obrigado Mestre. – Damos o treino por terminado? – Sim. Hoje nem vim cá a pensar em treinar, foi um privilégio que me deu. – Eu sei, mas apetecia-me treinar um pouco. – respondeu o Mestre a sorrir. – Agora temos é que limpar o dojo porque ninguém mais o fará hoje. Levantaram-se, foram arrumar o equipamento de treino e buscar o equipamento de limpeza. – Vim cá para me despedir. – Desta vez não é uma missão igual? – Vou fazer parte de uma escolta exterior. Vamos levar mais duzentas pessoas até Lisboa para serem distribuídas por mar. O mestre olhou para Gwinion enquanto limpavam o chão. 12


Lição

– São missões arriscadas, e tu fazes parte da segurança interna. Porque te mandam agora numa missão dessas? – Não me mandaram, alguém decidiu que o meu perfil era adequado e, depois de ponderar, acabei por aceitar. O Mestre franziu o sobrolho e Gwinion continuou. – As forças exteriores, especialmente as militares, têm tido muito pouco êxito nas missões de escolta e distribuição em terra. A nível global os números são claros, as missões que são lideradas por segurança civil são geral mente mais bem sucedidas. A probabilidade de serem atacadas é igual, mas apesar de terem menos meios de protecção muitas acabam por conseguir chegar ao destino. Bastante mais de metade dos civis sobrevive nessas missões. – Arrepio-me só de pensar ao que chegámos. Consideramos bom a sobrevivência de mais de metade das pessoas que tentamos tirar daqui! – Não temos alternativa se não tentar. Madrid não tem fontes de energia naturais nem pontos de distribuição, a energia que conseguimos gerar é pouco mais que suficiente para manter o escudo e, se cá ficarmos todos, morremos todos... à fome. – Isso não é certo. – Mas é o mais provável. – Alguma vez estiveste no exterior? – Apenas uma vez, numa missão de resgate em linha de vista. – Gwinion fez uma pausa, pensativo. – E quando perdi a minha família num ataque, mas era pequeno demais para me lembrar. – Eu cresci no exterior e arrependo-me frequentemente de me ter escondido aqui dentro. Não fosse ensinar e perpetuar algum do saber do passado através deste dojo, e das aulas com os miúdos, e não faria absolutamente sentido nenhum para mim estar aqui. Preferia arriscar lá fora. E agora há cada vez menos crianças, cada vez menos sentido. De cabeça baixa, continuaram a limpar meticulosamente o soalho. – Não acredites em tudo o que te dizem do exterior. Para além dos perigos há muitas outras coisas, muitas boas. Há liberdade, de escolha, de espaço. Liberdade é um conceito que poucos agora entendem, mas é um bem inestimável. Fonte de criatividade e de evolução. – Mas a natureza tem sido impiedosa com a humanidade. – Não sei se será bem assim. E ainda que seja, durante séculos nós fomos impiedosos com a natureza. Talvez de um modo pervertido, mas parece haver algum sentido de justiça. 13


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– É-me difícil perceber a justiça dos ataques que a Terra nos move a toda a hora. Também eu gostava de poder ir lá fora, mas sei que não há nada mais arriscado, ainda que me deixassem sair quando quisesse. – Deixa-me divagar um pouco, mesmo que não entendas, pode ser? – Claro Mestre, neste momento qualquer coisa que me consiga dar algum sentido ou direcção é importante. – Eu não sei tudo, ninguém sabe. – disse o Mestre a sorrir. Tinham terminado a limpeza e saíram do dojo em direcção a um jardim de purificação. As plantas ajudavam na renovação da atmosfera interior, mas neste espaço contido a sua acção não era de todo suficiente e ventiladores enormes expeliam ar purificado artificialmente. Aos olhos de todos a luz parecia branca. Só os mais velhos e os que tinham conseguido visitar o exterior durante algum tempo sabiam como era a luz limpa e como as cores eram muito mais vivas no exterior, sem a filtragem do escudo amarelado, omnipresente sobre toda a comunidade. – Temo que iremos acordar tarde demais. – começou o Mestre. – Já todos temos consciência do mal que fizemos à Terra, todos sabemos que não podemos seguir o rumo que seguíamos há uns séculos atrás. Mas a nossa herança é pesada, e o nosso egoísmo não nos permitiu mudar o curso das nossas acções em tempo útil. » Sabes... as pessoas pensam que acordaram, que sabem o caminho a seguir, que sabem o que é bom e o que é mau e que, agora, simplesmente não estão a ter a oportunidade de seguir esse caminho. Mas não é assim, tragicamente não é assim. – Não estamos conscientes dos nossos erros do passado? – A humanidade já passou por fases destas, fases de reconhecimento dos erros, mas nem por isso seguimos no caminho certo depois dessas fases. Reconhecer um problema, mesmo reconhecer a raiz do problema, não quer dizer que automaticamente atingimos a solução para esse problema. É um passo necessário, mas não é o único. Depois é preciso agir para o resolver, e agir na direcção certa. » Com raras excepções, a humanidade tem crescido sempre no mesmo sentido, no sentido de se desligar da natureza, de se desligar da Terra. Se pensarmos nisto um pouco chega a ser ridículo o curso da nossa evolução. Nós não podemos viver sem a Terra, é ela que nos sustenta. Bem ou mal, somos parte integrante da natureza e contudo crescemos a afastar-nos cada 14


Lição

vez mais dela. Como se pensássemos que somos auto-suficientes, seres completos em todos os aspectos. » E quando nos sentimos ameaçados pela natureza o que fazemos? Isolamo-nos dentro destes escudos para consumar ainda mais o afastamento. Como é que vamos resolver o nosso problema com a Terra se nos afastamos cada vez mais dela e se a conhecemos cada vez menos? – Na sua opinião estes escudos não nos estão a ajudar? – São um paliativo, um tratamento sintomático de recurso. Infelizmente acho que estes escudos, feitos para preservar a vida das pessoas, estão a afastar-nos cada vez mais da verdadeira solução. A impedir-nos cada vez mais de seguir o caminho certo, mesmo sabendo que o caminho anterior era errado. – E o que acha que devia ser feito? – Não sei Gwinion, não tenho todas as respostas, mas este é definitivamente outro caminho errado. – fez uma pausa. – Fui dos últimos a entrar para os escudos, e só o fiz com o intuito de tentar manter os horizontes em aberto daqueles com quem tenho lidado. Mas esta é uma prisão dolorosa que eu nunca quis. Sei que alguns ainda continuam a sobreviver lá fora. Caminharam em silêncio durante algum tempo. – E afinal conseguiram descobrir alguma razão para as forças civis se rem mais bem sucedidas? – Flexibilidade, improvisação e entreajuda. Parecem ser os factores primordiais. Os militares seguem regras rígidas e perante um ataque só reagem como aprenderam a reagir e só fazem exactamente o que lhes diz o comando. Assim que a cadeia de comando é destruída os militares têm tendência a protegerem-se a si próprios, esquecem os civis. Uns e outros acabam dispersos, sem liderança e à mercê de tudo o que andar por aí fora. » Em todos os casos os ataques costumam resultar na quebra completa da segurança planeada, e a partir daí os grupos pequenos de civis organizados, mesmo sem escolta armada, têm um sucesso razoável se souberem para onde se dirigem e não se perderem. – Vais liderar um desses grupos? Gwinion acenou positivamente. – Encara isso deste modo: para além da responsabilidade vai ser uma oportunidade única de aprendizagem. Aproveita para ver e sentir tudo o que te rodeia. Estou certo que vais entender de outro modo todas as coisas que te tenho dito. 15


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– Vou tentar manter a mente aberta. – fez uma pausa – Agora tenho de ir, ainda vou estar um pouco com a Gabriela antes de ir para a academia. Obrigado por tudo Mestre. – Obrigado eu. – respondeu a sorrir – Quando volto a ver-te? – Se tudo correr bem, daqui a mais ou menos um mês devo estar de volta. Deram um abraço e separaram-se sem mais demoras. O Mestre pousou o seu saco e sentou-se num banco enquanto Gwinion se afastou num passo resoluto. Às costas a sua mochila com a espada presa lateralmente, enrolada num pano branco cru.

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Ruptura

Ruptura A água parou de correr assim que Gwinion entrou e fechou a porta. – Estava à espera que voltasses mais cedo! – O Mestre resolveu fazer-me uma surpresa e, mesmo antes de conversar com ele, fizemos um pequeno treino de combate. – Gwinion tirou a mochila das costas e pousou-a cuidadosamente no sofá com a espada à frente. – Sempre que penso que estou quase a conseguir superá-lo ele provoca uma situação qualquer que lhe dá vantagem... perdi mais uma vez. – Não é por isso que ele é o Mestre? Gwinion sentou-se enquanto Gabriela saía do banho e se enxugava com a porta da casa de banho semi-aberta. – E conseguiu meter-te algum juízo na cabeça? – Não falámos muito, não é feitio dele tentar convencer seja quem for. Falou-me do exterior, é das pessoas que conheço que mais tempo lá viveu. Gabriela saiu da casa de banho e a porta, agora completamente aberta, deixou escapar o vapor para a sala. – Estás muito bonita! – observou Gwinion com um sorriso. – Estou enrolada numa toalha! – Ainda assim estás muito bonita. Levantou-se, deu-lhe um beijo e abraçou-a, demoradamente e em silêncio. – Que se passa? Agora andas sempre triste! Gwinion afastou-se um pouco sem responder. Acabou por se tornar a sentar quando Gabriela viu a espada, enrolada no pano, em cima do sofá. – Porque trouxeste a espada? Pensei que preferias deixá-la no dojo. Sabes que não gosto muito de a ver aqui em casa. – Não devo voltar ao dojo tão cedo, e afinal é a minha espada, deve estar comigo. – Não consigo convencer-te a não aceitar essa missão? – Já não podes, antes de me ir despedir do Mestre passei pela academia e confirmei a minha disponibilidade. Tenho de voltar para lá brevemente, temos muito trabalho de planeamento se queremos sair já amanhã. 17


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Gabriela levantou-se e foi para o quarto com a cabeça baixa enquanto Gwinion respirou fundo por um momento antes de se levantar e seguir atrás dela. Ficou encostado à ombreira da porta enquanto Gabriela se vestia. – Quanto tempo vais estar fora? Queres que espere por ti quanto tempo? – perguntou Gabriela com a voz trémula. – Se tudo correr bem estou de volta em cerca de um mês, talvez menos, nada é certo. – Estou farta de esperar por ti mesmo quando estás aqui ao pé de mim, agora queres que espere por ti durante um mês enquanto estás longe, noutro sítio qualquer? – fez uma pausa para controlar a respiração. – Eu sei o risco que representam essa missões, nem sequer podes dizer se voltas mesmo. – Não te posso pedir nada, não vou pedir nada, não tenho esse direito. – Não tens mesmo. – disse Gabriela enquanto levantava a cabeça. Tinha os olhos húmidos e Gwinion sentiu um nó na garganta com a situação, com a sensação de impotência, por não conseguir fazer nada para a melhorar. – Eu sei que não estamos bem... – Não consigo esperar mais por ti! – interrompeu Gabriela – Não vou fazer nenhum esforço nesse sentido. Gwinion sabia que mais tarde ou mais cedo isto teria de acontecer. Era injusto para os dois continuar assim. Sem direcções para seguir, sentia-se desorientado e não estava disposto a comprometer-se mais por uma situação que, cada vez mais, sentia que não era a que queria. Ficaram em silêncio enquanto Gabriela se acabou de vestir. Não conseguiu dizer nada. Ela sempre fizera força para que tomassem uma decisão, num ou noutro sentido, mas ele não conseguia comprometer-se nem libertar-se, e isso fazia-o sentir-se mal, responsável pelo sofrimento. Dirigiu-se ao guarda-fatos e retirou um pequeno saco de viagem. Sem a encarar finalmente conseguiu força para falar. – Não faças por esperar, não quero causar-te mais sofrimento do que já causei. Não é justo. Uma das razões por que decidi aceitar esta missão foi para me afastar um pouco. Para ter tempo de olhar para a nossa relação de uma perspectiva mais distante. Como estamos não consigo entender o que estamos a fazer. – E vais colocar a tua vida em perigo por causa disso? – exclamou Gabriela, já sem conseguir conter as lágrimas. 18


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Gwinion também já tinha os olhos húmidos. Acabou por pousar o saco, antes de colocar fosse o que fosse lá dentro e, aproximando-se, deu-lhe um beijo na testa e pegou-lhe nas mãos. – Não, claro que não! Não sou suicida. Sabes que estar dentro deste escudo desde sempre me fez alguma confusão. De um modo paradoxal receio ir lá para fora, mas não quero ficar cá dentro. Esta é uma oportunidade ex celente para tentar resolver isso e ao mesmo tempo dar um contributo importante para todos nós, para toda a comunidade. Esse foi o meu grande factor de decisão. – E não ficavas se eu te pedisse? Gwinion largou as mãos de Gabriela. – Não faças isso. – fez uma pausa. – Não sei se sabes como me sinto mal, mas sinto-me cada vez menos preso aqui, menos preso a tudo, incluindo a ti. Gabriela sentou-se na cama com algum desalento. – Lamento Gabriela, mas também não consigo deixar-te aqui sem ser completamente honesto contigo. Acho que te devo isso. – Se calhar precisas disso mais para ti próprio do que o deves a mim, – fez uma pausa enquanto enxugava os olhos – mas bem, de qualquer modo é bom que tenhas tido a coragem para o dizer. Gwinion reflectiu sobre esta resposta, era bem capaz de ser verdadeira e nunca o tinha pensado desse modo. Mas a atmosfera acabou por ficar mais leve. – Queres que te ajude a fazer as malas? – perguntou Gabriela num tom muito mais ligeiro. – Não é preciso, a academia dá-me praticamente tudo o que preciso de roupa e equipamento para a missão, só vou levar mesmo algumas coisas pessoais. E começou a retirar algumas coisas das gavetas e a arrumar no saco. – E o resto? Tens muitas coisas tuas aqui em casa. Mesmo tudo correndo bem, o mais provável era que quando voltasse não continuasse a viver ali. – Desculpa, isso nem me tinha passado pela cabeça. Pousou novamente o saco e acabou por se sentar no chão virado para Gabriela. – Se não te for incómodo, posso deixar ficar aqui as minhas coisas e quando voltar levo-as. Posso aproveitar para deixar já tudo arrumado, mas 19


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agora não tenho tempo de as ir levar a minha casa. De qualquer modo tens as minhas chaves, se achares melhor, podes ir lá levar as malas. Pode ser assim? – Pode, depois vejo como faço. – Desculpa... – Não peças desculpa, não faz mal. – Tenho um carinho especial por ti, acho que sabes isso. Quero que sejas feliz. – Sim... sei, não te preocupes. Também não te quero mal. Acabou de arrumar o pequeno saco e foi buscar duas malas maiores onde começou a colocar as suas coisas. Gabriela não o ajudou mais do que a facilitar-lhe o acesso a uma ou outra gaveta ou cómoda e acabou por sair dali deixando-o sozinho. Foi melhor assim. À porta despediram-se apenas com um abraço breve e, do lado de fora, ficou breves instantes a olhar para a porta já fechada. Finalmente seguiu. Tinha andado poucos metros quando ouviu algo a partir-se, por dentro, contra a porta. Virou-se, deu um passo atrás e tornou a parar. Não ouviu qualquer outro som. Retomou o seu caminho sem olhar novamente para trás e sem mais perturbações. Talvez não do melhor modo, mas as coisas tinham finalmente chegado a um ponto de resolução e em pouco tempo tinha a certeza que Gabriela ia ficar melhor. Quanto a ele próprio, sentia-se algo aliviado, não só pela resolução em si, mas porque assim sentia que ia ficar mais disponível para se focar por completo na missão que o aguardava. Como iria sentir-se depois... agora não tinha tempo para reflectir sobre isso.

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Sob Ataque

Sob Ataque Em andamento rápido, e imerso em pensamentos fúteis sobre como poderia ter sido com Gabriela se tivesse feito isto ou aquilo de modo diferente, só reparou que algo estava errado quando a luz à sua volta se modificou para um tom mais brilhante. Algumas pessoas passavam desorientadas a correr à sua frente até se imobilizarem num qualquer canto ou abrigo, encolhidas como se se escondessem de alguma coisa. Ouviu então as sirenes de alerta e foi isso que finalmente o despertou do torpor mental. Este era um som que conhecia bem e tinha treinado para reagir quando o ouvisse. Olhou para cima e, alguns blocos mais à frente, via uma enorme abertura rectangular e brilhante no escudo de protecção. Duas secções inteiras estavam desligadas e o sol agredia os habitantes pouco habituados a esta luz tão pura e forte. “Seria disso que estavam a fugir?”, pensou em tom algo divertido. Gritos de horror, vindos das ruas à sua frente, extinguiram por completo esse tipo de pensamento e, sem largar o saco, correu para a frente. Não estava de serviço, mas era um elemento da segurança e certamente que a sua ajuda era precisa. Quando chegou perto do cruzamento, directamente sob os sectores desligados, encontrou uma situação já familiar. Algumas pessoas corriam desesperadas para aqui e para ali olhando ao mesmo tempo para todos os lados. Chocavam umas com as outras, com as paredes, postes e todo o tipo de equipamento urbano. Outras estavam deitadas no chão e gritavam ou agonizavam enquanto cruzavam os braços como que para se defenderem de algo. À porta de uma igreja um padre segurava bem alto uma enorme cruz de madeira invocando forças divinas de protecção. Uma chama irrompeu no ar em direcção ao padre que se deitou no chão de cabeça para baixo, mantendo a cruz na vertical. Quando levantou o rosto, a cruz ardia, o exterior das suas mãos estava chamuscado e, num esgar de terror, largou a cruz enquanto se impulsionava para trás, gatinhando de 21


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costas até ao interior da igreja e gritando “DEMÓNIOS, DEMÓNIOS”. As chamas começaram agora a irromper em vários pontos. Gwinion observara anteriormente que pareciam surgir numa sequência e, ainda que muito irregulares, por vezes quase que conseguia traçar um percurso a unilas. Raramente faziam mais do que chamuscar as pessoas, mas atingiam com forte poder destrutivo os tubos de purificação, as fachadas dos edifícios, e quaisquer veículos ou equipamentos que estivessem no exterior. O que podia fazer nesta situação era ajudar as pessoas a não reagirem de modo completamente irracional com o pânico. Olhou em volta à procura de um abrigo adequado. Uma fachada com uma passadeira exterior, ao nível do primeiro andar, fornecia um abrigo eficiente para os vidros partidos que começavam a cair como resultado das explosões. Correu nessa direcção chamando tantas pessoas quantas as que o conseguiam ouvir e arrastando consigo as que conseguiu apanhar no caminho. Atirou-as literalmente contra a parede por de baixo da passadeira e espreitou para cima para avaliar as condições de segurança. A queda de vidros era a maior causa directa de mortes durante estes eventos. Alguns metros à sua frente um homem e uma mulher usavam um poste como se de uma protecção se tratasse. Protecção para quê não conseguia entender. Do outro lado do cruzamento uma sequência de chamas começou a irromper em direcção ao edifício onde se abrigavam. Correu em direcção ao casal, gritando para que saíssem dali, mas só quando agarrou na mulher e a puxou para o abrigo é que o ouviram. Sentiu o calor das chamas por cima de si no momento em que estas atingiram a fachada do edifício e fizeram explodir os vidros em todas a direcções. Conseguiram entrar debaixo da passadeira mesmo a tempo de evitar a chuva cortante. O casal abraçou-se enquanto a mulher soluçava sequências ilógicas de palavras onde amiúde surgiam palavras como monstros e dragões. Gwinion observava, de costas para a rua, as pessoas que se abrigavam com ele, tentado recuperar o fôlego ao mesmo tempo que avaliava se al guém necessitava de cuidados especiais. Encolheram-se enquanto sentiu uma rajada de vento a soprar atrás de si. Virou-se e não via nada para além de mais pessoas a gritar, já quase todas em algum tipo de abrigo junto aos edifícios e, apesar das chamas e explosões prosseguirem, as acções motivadas pelo pânico pareciam estar a diminuir. 22


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Os minutos passaram e Gwinion mantinha-se no seu abrigo tentando manter as pessoas calmas e chamando os que ainda passavam perdidos, às vezes recolhendo-os mesmo à força. Os veículos militares entraram em força no cruzamento disparando salvas de fogo para o ar, geralmente em direcção às zonas do escudo que estavam desactivadas, mas ocasionalmente atingindo também as zonas mais altas dos edifícios circundantes. As chamas tinham deixado de irromper segundos antes de os militares chegarem dando a impressão, já habitual, de uma actuação completamente ridícula, disparando aleatoriamente para o ar, sem alvos, sem propósito e, sobretudo, sem mais nada pela frente que constituísse ameaça. Esta fase parecia prolongar ainda mais o medo das pessoas, que já ti nham sofrido mais do que suficiente nestes ataques. Mas também era verdade que este tipo de acção dos militares era o que normalmente punha, por antecipação, fim aos ataques, ainda que nem um único tiro atingisse fosse o que fosse para além dos já danificados edifícios. Ninguém conseguia entender completamente esta relação. Alguns minutos mais e os três veículos armados imobilizaram-se estrategicamente nas ruas que ligavam ao cruzamento, as baterias apontadas à luz branca que emanava pelo escudo cessaram e os soldados saíram em corrida ordenada posicionando-se nas esquinas observando e com as armas prontas a disparar. – Fiquem aqui até vos dizerem que podem sair. – disse Gwinion por cima do ombro com os braços semi-abertos e as palmas viradas para trás como que a segurar as pessoas sem lhes tocar. Os veículos de emergência médica já se ouviam. – Alguém está a precisar de cuidados urgentes? Olharam-se e, para além de alguns acenos negativos, ninguém disse uma única palavra. Gwinion certificou-se mais uma vez que o perigo tinha passado e saiu do seu abrigo em direcção ao meio da rua, onde algumas pessoas estavam estendidas no chão. Havia vidros partidos e espalhados por todo o lado, amontoando-se mais junto aos edifícios. Baixou-se junto a um homem que não parecia ter qualquer tipo de ferimento para além de alguns arranhões. Ajudou-o a sentar-se. – Está tudo bem consigo? O olhar do homem perdia-se no ar por cima dos ombros de Gwinion, as 23


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mãos viradas para o centro em frente ao peito, estavam involuntariamente contraídas com os dedos curvados e rígidos como garras. – Já foram embora? – perguntou trémulo. – Sim, já foram. Levantou-se deixando o homem sentado no chão, olhou em volta e seguiu em direcção a outra pessoa imóvel, mais à frente, junto ao passeio. Viu sangue a sair debaixo da sua cabeça. Virou-a e afastou o olhar perante o traumatismo craniano de onde o sangue escorria para o chão. Tentou encontrar a pulsação ou sinais de respiração, mas não havia qualquer sinal de vida. Olhou para a esquina do passeio onde certamente tinha embatido com a queda. Algumas ambulâncias já tinham parado e os paramédicos saíam em socorro das vítimas. Seguiu em direcção à próxima pessoa deitada na rua. Uma mulher contorcia-se silenciosamente com dores e com a mão direita apertava fortemente o antebraço esquerdo. Quando Gwinion se aproximou viu que junto ao punho o braço estava inchado, vermelho e deformado pela fractura dos ossos. Gritou para a ambulância mais próxima e logo alguém veio na sua direcção. Tinha alguns golpes pequenos no rosto e nas mãos, mas não lhe pareceu ver ferimentos mais graves. Quando confirmou que tudo estava a ser tratado levantou-se e olhou em volta. Não havia muitos feridos, apenas muitos estragos. O piquete de energia chegou nessa altura, parou junto aos alçapões que protegiam os cabos de alimentação e geradores do escudo. Dirigiu-se nessa direcção enquanto abriam a entrada. Um soldado seguiu de imediato na sua direcção para o interceptar, mas Gwinion retirou do bolso a sua identificação de segurança e foi deixado seguir. Quando chegou junto ao piquete, os técnicos já estavam a trabalhar nas reparações. – Tem alguma explicação para o que aconteceu? – perguntou debruçando-se sobre a entrada. – Já viu isto? – respondeu um deles enquanto limpava as mãos na farda – rebentou a alimentação principal, e ali ao lado o gerador também se avariou ao mesmo tempo! Avariou... parece quase derretido! Aposto que a outra secção teve exactamente a mesma sorte. Gwinion olhava intrigado enquanto os homens trabalhavam para repor o fluxo de energia para o escudo. – Sabe quais as probabilidades de haver um problema no fluxo de energia ao mesmo tempo que falha o gerador local? Em dois sectores contíguos? 24


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Fez uma pausa no discurso, sem deixar de prosseguir o seu trabalho. – Infinitamente pequenas! Quase zero! – gritou lá de baixo – Estas coisas foram feitas para não falhar, quanto mais falhar assim. Ouviu-se uma explosão forte! Gwinion baixou-se instintivamente e, levantando o olhar na direcção do barulho, viu ainda dois soldados das baterias de fogo a serem projectados no ar pela explosão violenta do veículo armado em que estavam. “Esta é nova!”, pensou. Não se lembrava de uma situação em que um carro militar tivesse explodido assim sem confrontos. Os técnicos estavam encolhidos dentro do alçapão e olhavam para cima com ar de interrogação. Gwinion olhou em volta à procura de mais sinais de violência. Não os encontrou. – Depressa, precisamos de reactivar os escudos. Não vejo mais problemas, vou tentar perceber o que se passou. Aproximou-se cautelosamente do veículo a arder, com a sua identificação bem visível para não causar mais problemas, mas mesmo assim foi impedido pelos militares de se aproximar mais. Os dois soldados já eram assistidos quando dois outros acabaram de partir o vidro da frente do veículo e retiraram lá de dentro um terceiro soldado ferido. Foi levado para longe da explosão e Gwinion conseguiu então aproximar-se para ouvi-lo responder ao seu superior: – Estava a sobrecarregar o ionizador, eu vi... – Quem é que viu? – interrompia o oficial perante o gaguejar do soldado. – A mão, a mão carregou o ionizador depois de estrangular a saída... Desta vez Gwinion foi forçado, ainda que sem violência, a afastar-se. – A sua acção foi valorosa, da maior importância e há um grupo que lhe está muito agradecido, – o oficial apontou na direcção do abrigo onde ainda estavam as pessoas que ajudara a protegerem-se, agora escoltadas por militares – mas daqui para a frente nós tratamos do assunto. Uma das secções do escudo foi reactivada nessa ocasião. Acenou positivamente ao oficial, dirigiu-se ao abrigo debaixo da passadeira apanhando pelo caminho o seu saco meio rasgado. No meio de vários agradecimentos foi-lhe entregue a mochila, ainda com a katana enrolada ao lado. Gwinion apenas sorriu, mas não disse uma palavra carregando agora um semblante triste e pensativo. 25


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A outra secção do escudo activou-se e o brilho da luz exterior apagouse repondo a permanente matiz amarelada. Não ajudou o seu estado de espírito. Afastou-se da zona do ataque, olhou para trás e concordou mentalmente que ali não podia fazer mais nada. Ocorreu-lhe então que já estava atrasado para chegar à academia. Já antes destes acontecimentos estava com o tempo curto, mas agora estava definitivamente atrasado. Colocou a mochila nos dois ombros, e acelerou o passo enquanto entrava em contacto com o comandante pelo comunicador móvel. Informou-o dos acontecimentos e que ia chegar atrasado.

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