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INSULA A LBERTO BRAVO

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FICHA TÉCNICA edição: edições Vírgula (Chancela Sítio do Livro) título: INSULA autor: Alberto Bravo revisão: Sílvia Lobo paginação: Alda Teixeira capa: Patrícia Andrade

1.ª Edição Lisboa, Novembro 2015 isbn: 978-989-8821-14-0 depósito legal: 400347/15 © Alberto Bravo

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

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Desaparecido

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CAPÍTULO 1

O Tio Coki era sensível ao lado teatral da vida. Por isso, o volumoso caderno que o sobrinho comprimia debaixo do braço não lhe passou despercebido. Slam, instintivamente, tentou dissimulá-lo, cobrindo-o com o casaco. O tio Coki sorriu e disse qualquer coisa que Slam não ouviu, ou que ouviu mas não entendeu ou esqueceu no mesmo instante. E, como não entendera, também não respondeu. Em vez de repetir o que dissera, o tio Coki manteve-se calado, prolongando um silêncio pesado e embaraçoso. A dada altura, o tio Coki levantou-se e deu uma larga volta pela sala. Slam seguiu com ansiedade o ruído das chinelas do tio, deslizando no soalho encerado, e o roçagar suave do seu roupão aveludado. – O que queres tu saber? disse Coki, parando bruscamente. A emoção de Slam devia ser intensa porque agarrou o caderno com tanto nervosismo que o fez cair no chão. Quando se baixava para o apanhar, a sala foi bruscamente invadida por uma luminosidade ondulante, acolhedora e 7

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rosada, como um jorro de subjectividade alegre com incrustações suaves de melancolia, fenómeno do espírito que o acometia em momentos que até hoje não lograra justificar, tal como sucedia com o actual, tão injustificável como a sua presença em casa do tio. Coki continuava a dar voltas na sala. Slam abriu o caderno, pegou na caneta Parker e escreveu com a sua caligrafia cuidada, elegante e algo gótica: “Estou desolado, como estou desolado, estou desoladíssimo. Como descrever o que sinto?” Fechou o caderno sobre esta pergunta e volteou a Parker nos dedos trémulos e agitados pelos sentimentos do momento. Os sentimentos eram tantos e de tal modo confusos que se tornavam saborosamente indefinidos como os taninos de alguns vinhos efémeros. O tio estava de pé à sua frente, gigantesco. Slam fechou rapidamente o caderno, sentiu que corava porque as orelhas lhe ardiam, e a Parker tombou-lhe das mãos, por felicidade em cima do tapete, e por maior felicidade ainda, sem despejar tinta. “É isso, comentou o tio Coki, aprende a controlar os advérbios.” Eu gosto dos advérbios, disse Slam, gosto perdidamente, embora considere a sua intervenção despropositada. Levantou a Parker do tapete e verificou o seu estado. Enfiou-a no bolso interior do casaco. Ouviu o tio resmungar: “Quem se ocupou bem deles foram os surrealistas. Mais uma meia dúzia de anos e tê-los-iam exterminado.” Estaria a referir os advérbios? – Mas já não há surrealistas, disse, como poderia ter dito outra coisa qualquer. 8

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– Ainda sobram alguns, respondeu o tio, sombriamente. Eu cá me entendo. E sobram ainda mais os advérbios. Um dia, havemos de falar de tudo isto com mais tempo. – Tio, explicou Slam com humildade, eu não vim aqui para falar de literatura. – Pois então para que vieste? O tio deslocou-se para o lado e ficou quase à beira do pequeno sofá, onde voltara a sentar-se, numa posição de alerta. – Na verdade, não sei, disse Slam. Aliás, sei. Sei que venho porque gosto de ver o tio, venho para ver o tio porque gosto de ver o tio, cumulativamente, se assim se pode dizer, e talvez compulsivamente porque, além do que digo, sou instado a visitá-lo como aos outros meus tios e seus amados irmãos, a intervalos mais ou menos irregulares, de modo que a minha liberdade é tão irregular como a obrigação, se as medirmos em intervalos. Agora, se existe outra coisa… Sim, há-de haver a questão da minha liberdade ou da minha obrigação livremente assumida. Qualquer um daria por isso. Porque não eu? Supunha que estava a dizer a verdade. Mas o tio Coki voltara a levantar-se e percorria outra vez a sala como um tigre lento e a pergunta que Slam pretendia fazer engastou na garganta embargada. Não podia evitar de pensar que os repentinos passeios do tio estavam relacionados com a famigerada pergunta. Destinavam-se a dissuadi-lo de perguntar pela pergunta. Mas que pergunta 9

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seria? Na verdade, era mais o pressentimento duma pergunta ou o sentimento duma pergunta pressentida. Slam observava a circulação felina do tio Coki com a mesma imobilidade espectral dos móveis da sala. Era exactamente como se sentia: um móvel da sala, e durante alguns segundos imaginou que móvel ele poderia bem ser, ideia extravagante que exemplificava o carácter anómalo da situação. Assim, levantou-se com uma resolução tão impetuosa que o impediu de voltar a sentar-se, naquele instante probatório em que o tio parou e o fixou nos olhos. Sorriu-lhe e fez um gesto vago. O tio Coki viu-o partir sem dizer uma palavra. Slam não se decide, de pé no passeio enlameado. Chovera com abundância enquanto estivera em casa do tio. Entretanto, parece cada vez mais evidente que Slam espera uma opinião. Sabemos que uma das vantagens da retórica literária é adiar um problema, seja de que ordem for, tecendo rendilhados que o ornamentem com mais ou menos habilidade enquanto a solução não chega. Por vezes, não há solução porque não há problema: ficam as rendas e os tricôs. Outras vezes, a solução é o problema. Slam, confessadamente, não se interessa por literatura. E como sabemos nós todas estas coisas? É precisamente por esta coincidência nas ideias essenciais que tanto apreciamos a presença de Slam. Saber sem saber mas sabendo… Mas é preciso fazermo-nos ao mar. Embarcar ignorando, porém sem ignorância.

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Um cheiro a maresia invadiu então o lugar dos nossos desencontros, enviado por um ventinho frio que amenizava nas faces de Slam a febre das desilusões futuras. Possivelmente, um pouco mais longe, o mar fora sensível ao apelo. Mas o ventinho frio de que falamos não ameniza apenas no rosto de Slam a febre das desventuras, mas também no nosso. Sentimos, porventura com mais intensidade, o frescor da brisa contra o rosto porque mais intenso é o calor da nossa febre, que une confabulação e vergonha. As ilusões que vamos semeando no ingénuo terreno propício duma alma são pagas com doloroso preço, que mais nos devia penalizar a nós do que à vítima confundida das nossas manipulações sem pejo. É evidente, apressa-se a dizer alguém – o argumentista – que não queremos retomar o processo da imoralidade que subjaz à prosápia romanesca. Livre-nos Deus. O senhor argumentista pode ter toda a razão, responderam-lhe, mas a culpa é sua! O produtor cofia permanentemente a barba sem tomar uma decisão produtiva, o realizador ainda não entendeu que a sua função é incompatível com as intenções irrealizáveis, e o operador, o único sujeito pragmático desta história, faz o que lhe mandam, ou seja, nada, e teme pelo seu salário. Venham agora aborrecer-me com literatura! Os minutos somam-se aos minutos e, matematicamente, o tempo passa com aquela sua displicência agramatical com a qual nada aprendemos até hoje, ou muito pouco. Entrementes, Slam sofre em silêncio porque é bem-educado como mais ninguém. E onde se coloca o senhor? Qual a sua natu11

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reza? A sua função? A função da sua natureza? O argumentista apontava um lápis muito longo e fino. A atmosfera era eléctrica e um transeunte parou junto de Slam, visivelmente inquieto. “Eis uma vírgula indispensável porque eu também estou inquieto. Como eu a procurava, a essa vírgula, como a um ser humano,” disse Slam numa voz inaudível, que o transeunte conseguiu todavia captar. Talvez eu possa ajudá-lo em qualquer coisa, disponibilizou-se o desconhecido. Era quase meio-dia. O problema, disse Slam, é que entre tantas coisas a necessitar de ajuda não sou capaz de eleger uma. Deste modo, ficaria o senhor embaraçado. Qu’à cela ne tienne, apressou-se a dizer o prestável desconhecido. O meu nome é Bond, James Bond. Está a meter-se comigo, reagiu Slam. Como se não bastasse a minha desgraça. Por favor! Ora bem, transforme essa desgraça num poema ou numa patente. O sorriso de Bond era contido e misterioso. O senhor está a meter-se comigo, reafirmou Slam. Sentou-se no banco que um prestimoso acaso lhe proporcionara e rompeu em soluços. James ficou sem saber o que fazer. Decidi então intervir, assumindo uma das minhas múltiplas identidades. Pus a mão no ombro de Slam, instintivamente, sem querer saber de que mão se tratava e para que ombro ela se dirigia. Com um grande atraso, o relógio do campanário começou a rouquejar as doze badaladas do meio-dia. O inesperado James Bond desaparecera. Sentei-me ao lado de Slam, invadido por um profundo sentimento de responsabilidade e empatia quanto baste. 12

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“O senhor quem é?” perguntou Slam, limpando as lágrimas, “Outro James Bond?” Eu respondi: – Um amigo. – Obrigado, disse Slam. Muito sinceramente, obrigado. – Não tem de quê, respondi. Não tem mesmo de quê. Tudo isto é culpa minha. Tinha sido feita uma afirmação de que todos nos arrependeríamos, de uma maneira ou de outra, e sem o entender claramente, até ao fim dos nossos dias: estava lançado o princípio da providência à personagem em perigo de extinção, uma espécie de seguro para todos os riscos, assumido pelas boas intenções. Milhares de milhões de corvos luzidios, gordos e milionários, que jamais gastariam um centavo, penetrariam por essa brecha tão estouvadamente aberta em nome de uma boa acção. E não exagero nada. Mas já Slam queria saber como devia chamar-me. – Chame-me o que quiser, apresentei-me. Mas em caso algum me leve a sério ou use de má-educação. Sofro de uma doença benigna. Tenciono partir o mais depressa possível. Sou telegráfico, como já não se diz. Eu não existo propriamente. Slam ficou a vê-los partir. Era um pequeno circo de bairro, que cruzava ocasionalmente a rua: um bonecreiro bêbedo que falava com uma voz tenebrosa, duas ou três marionetes, que deixava sempre cair das mãos, um faquir encarvoado, ossoso e corcovado, e um amolador que se aproveitava do elenco. E um cãozinho sábio, que os seguia 13

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sem compromisso. A solidรฃo envolvia-os como um sudรกrio diรกfano. Indiferente, desfilava o tempo. Retomou a marcha com curtos passos incertos, limpando as lรกgrimas, ou mais exactamente, deixando-as secar ao vento frio.

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CAPÍTULO 2

A impoluta e branca toalha, magnificamente bordada, lançada pela tia Amil, aterrou sobre a mesa com a mesma perfeição com que fora arremessada. Nem uma ruga sobrou para ser corrigida. Dos quatro cantos da mesa pendia simétrica, sem um centímetro relutante a confirmar que a perfeição não é deste mundo. Mas, ao menos neste caso, parecia ser; e foi assim que Slam – com toda a nossa simpatia – deu consigo numa grande tristeza, por comparar inevitavelmente o excelente conseguimento da tia com o lançamento cada vez mais descabido da sua vida de mundo. Viu-se, como a maior parte de nós, perante a pobreza dos resultados. “Impõe-se uma reflexão”, pensou. E a tia Amil sorriu, depois de rodar três vezes. E Slam disse: – Porque rodou três vezes à volta da mesa, tia Amil? – Foi para te ver melhor. Um desânimo sem alma à altura instalara-se. Não disse mais uma única palavra. Duas horas mais tarde, o visitante abandonara a casa da tia Amil, sem ter abordado a questão que o torturava. Tê-lo-ia feito numa das anteriores visitas 15

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natalícias? É mais do que improvável. Tivesse ele sido capaz de interpelar um dos hipotéticos envolvidos e não estaria em semelhantes apuros, arrastando como uma sombra um bando de perfeitos inúteis no seu rasto. Mas o seu narrativo avançava na imprecisão e alimentava-se dela. Daí nós evocarmos a futilidade dos factos, que não servem absolutamente de nada nas pálidas indagações duma memória inquieta. O que haveria a dizer, se assim não fosse! Sobram os relatórios a propósito de acontecimentos intensos e tudo deve ser tentado para dissuadir os incautos de os lerem. Mas uma buzina de automóvel, muito macia e de recolhido e melodioso som anunciou-se. Era o famoso agente especial, que lhe acenava da janela do veículo invulgar onde se alojava, uma síntese das melhores versões das melhores marcas, todo em cores de amarelo prosaico e rosa poética, e quatro imensos faróis acendidos como olhos de felino pronto a saltar sobre a presa. Slam recuou instintivamente. Gente subia e descia pelos passeios estreitos e veículos de uso comum enchiam a rua, mas ninguém parecia notar a presença da espantosa máquina. James Bond impacientava-se. Buzinou de novo. Com uma confiança fatal, Slam dirige-se, com aquela marcha do contemplativo que consiste em tropeçar nos seus próprios passos, para a viatura deslumbrante de James. Mas porquê complicar tanto as coisas? Vendo bem, posso aproveitar a boleia, pensou. Obrigava-se deste modo a fornecer a Bond um endereço preciso, o que só poderia ajudá-lo 16

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porque o obrigaria a encontrar um. Sentou-se ao lado do célebre agente. O interior do Dodge 0013 Sucsex banhava num calor agradável e um perfume macio irmanava-se com ele, numa convivência sabedora. Slam sentiu uma perturbação de ordem sensual e uma vertigem, breve mas intensa, que nos escusamos a aprofundar, entonteceu-o um instante. A fonte do perfume podia estar em James. A dúvida instalou-se e a pergunta seria manifestamente inconveniente. O agente especial fez soar a sua voz viril e aveludada: – Onde vou poder deixá-lo, Mr. Slam? – Se quer que lhe diga, ainda não me decidi, Mr. Bond, balbuciou Slam. – Trate-me por James. Estou a ver que é como eu: prefere improvisar no decorrer da acção. O Dodge arrancou, espantando os pombos magros que escavavam sem êxito na imundície da calçada, mas passou despercebido entre os raros humanos que cruzavam a rua, inclusivamente e sem moléstia visível por dentro de uma senhora filiforme. E tudo isto no meio da rua! Slam ficou escandalizado. – Não acha que as pessoas andam neste mundo sem a devida atenção, James? Bond concordou. Os seus dentes brancos e regulares reluziram na gargalhada que soltou logo a seguir. Slam estremeceu. O famoso agente disse depois, numa voz pausada e paciente:

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– Informo-o de que já cruzámos quatro vezes a porta da sua casa, cinco a do seu tio Coki, seis a da sua tia Amil, e que nos aproximamos pela sétima vez, e a toda a velocidade, da porta do seu tio Off. O que decide? – O que pretende de facto? Bond travou o carro com um vagar estudado e o Dodge imobilizou-se na suavidade revoltante de um silêncio de feltro. A constatação deste feito, conseguido pela união perfeita entre um homem, que não era um homem qualquer, e uma máquina de excepção, mergulhou Slam num estado de espírito onde a irritação, a impotência e o desalento se misturavam em partes desiguais na líquida fluidez da consciência esférica em cujo interior girava com os acontecimentos. O que o surpreendia era aquele sentimento de normalidade aborrecedora de tudo, que não o abandonava desde que saíra de casa. Depois dum longo combate, onde foram muitas e leais as concessões recíprocas, o chinelo oriental caiu e o tio Coki teve uma intuição grave e premonitória da relação entre a força da gravidade e a força das coisas. “Slam está em perigo”, pensou. Sem tempo para reflectir nas contradições, o tio Coki desembaraçou-se do faustoso roupão turco e precipitou-se para o roupeiro, donde retirou um tweed cinzento, ligeiro mas muito aconchegado para a época. Seguiram-se o par de peúgos cor de chumbo e os sapatos de coiro verdadeiro, pretos, largos, confortáveis, americanos. Já perto da porta, em frente do espelho alto, hesitou entre o jivago preto 18

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de lã aveludada e o chapéu clássico, também preto. Releu-se e sorriu. Substituiu então, antes de sair, a palavra preto pela palavra negro, no texto; hesitou entre desligar ou não o computador. Desligou, isso sim, o candeeiro. Sorriu de novo, agora misteriosamente. Slam agitava-se ao longe dentro da sua esfera agoniada. Recapitulemos então: o Dodge 0013 Sucsex de James Bond acabara de parar silenciosamente e com uma suavidade de leite-creme a derramar-se, mergulhando Slam numa aquosidade atormentada de sentimentos embaraçosos. Já na rua, o tio Coki consultou sem qualquer utilidade o relógio suíço, e considerou apanhar um táxi amarelo. Mas, perante a evidência de não possuir uma morada para fornecer ao motorista, encarou a possibilidade de montar a sua velha e robusta bicicleta, uma alternativa operária ao hipismo de classe, e lançar-se pela cidade fora em busca do sobrinho perdido. Assim o fez, mas um pouco mais tarde que o previsto: o operariado, na sua derradeira fornada, terminava sem ilusões programáticas a última ciclovia. O tio Coki observou, comovido, as derradeiras pazadas de alcatrão lançadas para o incerto futuro pela inevitabilidade histórica. Entretanto, predispôs-se mentalmente a receber uma segunda mensagem, que Slam não deixaria de lhe enviar, indicando o lugar exacto. Slam, quanto a ele, via com inquietação o agente especial sair do carro, fechar a porta sem ruído, e dirigir-se na sua direcção. Iniciou uma intenção de fuga, que James interceptou: 19

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– Não tente escapar. – Quem efectivamente é o senhor? Slam pôs-se em posição de defesa e olhou em volta. O público habitual evaporara-se. O duelo, a ser travado, sê-lo-ia sem testemunhas. O tio Coki iniciou o circuito prospectivo pela cidade branca, que parecia desabitada e singularmente desembaraçada dos mendigos habituais. “Algo se passa”, vaticinou. Desta feita, ficamos a saber que Slam bem pode esperar pelo tio Coki. De facto, este decidira-se pelo circuito turístico do ecologista de fim-de-semana, e pedalava devagar, sorriso aberto, na direcção oposta ao lugar dos acontecimentos. Minutos mais tarde, Bond e Slam caminham lado a lado energicamente, estimulados pela noite fria. O mal-entendido fora esclarecido. Nunca saberemos por que meio. Por vezes, basta um simples olhar. “Mes pas dans la rue dévorent des verstes”, murmurou Slam. – Maiakovsky? propôs James Bond. – Ele mesmo, respondeu Slam. Numa versão francesa, que roubei em Paris. – A última vez que vi Paris, disse Bond, chovia como em Londres. – A última vez que vi Londres, disse Slam, não nevava como teria nevado em Paris. – Não, Slam. Você não viu nada em Londres, disse James.

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– Não, James. Você é que não viu nada em Paris, disse Slam. – Ao contrário: vi tudo o que havia para ver em Paris, disse James. Neve. – Não, você, James, não viu neve em Paris se chovia como em Londres, disse Slam. – Foi você, Slam, quem não viu neve em Londres, onde não nevava como neva em Paris, disse James. E neste tom prosseguiram, rindo como dois velhos amigos que se voltam a ver depois de muitos anos e falam das suas viagens, das recordações climáticas associadas às grandes emoções, e de literatura moderna. Mais tarde, temas mais pessoais serão inevitavelmente abordados. Devidamente mais tarde. Nesse mesmo instante, o tio Coki está de regresso a casa, onde o espera o romance de toda uma vida: Os Buddenbrook em Addis-Abeba, uma crítica violenta do idealismo burguês. ✳

Irresolução e Sentimento, seria esse o título, confessou Slam. Convirá na alusão a Jane Austen. Será apenas uma alusão. Nunca escreverei nada. Encontravam-se num café acolhedor, na outra margem da cidade sem rio, com aquelas mesas colocadas em nichos (lembram-se?) sobre as quais brilham sobriamente peque-

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nos candeeiros arte nova, cheios de mistério e de meiguices triviais. – Por vezes, sinto-me noutro texto, confessou, depois de uma curta pausa. – É normal. Quem não se sente, nos dias de hoje? Basta ser devidamente honesto. Bond estilizara uma voz macia, que se pretendia tranquilizadora. – Por outro lado, agrada-me este estilo convencional e ligeiro, quase exportável, por que optámos sem nos darmos conta. O que acha, James? – Está de época, como eu devo estar fora dela, respondeu o agente especial, com azedume na voz. – Porquê esse azedume na sua voz? James mexeu-se no assento, denunciando desconforto. Talvez pudéssemos encomendar mais dois conhaques, propôs. Proposta que Slam recusou, evocando a sua próxima visita. Você, Slam, nunca há-de visitar ninguém da maneira que pretende, disse James, com a voz alterada. O seu manual de visitações é tão inutilizável como uma bússola nas mãos dum cego ou um dicionário de rimas. Você, por definição, põe o norte em todo o lado para onde não se vira. Para onde quer que se volte, lá está um norte perdido. Não entendo o que quer dizer, respondeu Slam, num tom ligeiramente agressivo. O tio Coki aproximou-se: – Slam, esse homem é perigoso, avisou.

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– Veio para ficar? Pois fique com o seu desnorteado sobrinho. James saiu pausadamente, enfiando as luvas claras. Uma desilusão, comentou Slam. Um mito oco, ajuntou Coki. Volto para o meu romance. Ficas com a bicicleta? Deus te guie. O riso do tio Coki coincidiu bizarramente com o riso de James na inatenção de Slam. Subiu para a sela da bicicleta do tio Coki, que viu a entrar num táxi e lhe fez um aceno. Que um raio os parta! A bicicleta guinchava assustadoramente no silêncio da rua. Duas janelas abriram-se quase no mesmo momento. Slam abandonou a bicicleta e pôs-se a correr pela rua fora como um ladrão de bicicletas. Um cão minúsculo e decidido largou atrás dele, soltando saudosos latidos. Em breve o alcançou e seguiu a seu lado, com saltos festivos e canis ademanes. Slam encontrara um amigo. E não era um amigo qualquer, mas um cão falante, cuja pequenez impedia, em boa hora, a formação de grandes frases. O telefone soou em casa da Senhora Dona Mãe. – Porque não chega o Slam? – O Slam ainda não chegou? – Nem nada que se pareça. Seguiu-se um profundo silêncio. O autocarro descerrou uma porta artrítica e Slam entrou. Disse boa tarde ao motorista (ou seria mais exacto dizer boa noite?) e constatou que era o mesmo da manhã. Ainda o senhor?! Passo o dia a ir e vir, respondeu o condutor. Compreendi, encerrou Slam. Compreendi em toda a sua abrangência. E a sua Esposa continua 23

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bem? Deve haver engano, porque eu não sou casado, respondeu Slam. Tomei-o por outrem. Por quem? Por alguém que se parece consigo, mas casado. Esse outrem, se fosse casado, seria eu? Apenas se o senhor, sendo casado, fosse esse outrem. Parece-me perfeito, disse Slam, que se sentara num assento perto do condutor e junto à porta. O veículo avançava como lho permitiam as agruras senis do motor. Este carro está bom para o ferro velho, comentou Slam, numa crítica indirecta à política dos transportes. O autocarro seguia vazio. É a sua última viagem. É você e mais um passageiro, foi o que me disseram. É tudo. Depois, é o leilão ou o abate. De manhã, ia quase cheio, observou Slam. De manhã, não era a sua última viagem, replicou o motorista. Tem toda a razão. Muito obrigado. Todavia, uma última viagem, mesmo a de um autocarro, não soa nada bem. O meu nome é Slam. O condutor ia apresentar-se, quando um cão minúsculo atravessou em frente do veículo, o condutor travou, a porta abriu-se, e Slam foi ejectado com uma ligeireza e uma graça tais que o salvaram duma queda vulgar. Ademais, ficara em frente da porta do tio Off, estatelado entre as duas enormes vírgulas de ferro que formavam o portão, resignado e sem fracturas, e sem poder culpar pelo ocorrido senão aquele cão minúsculo, inocente pela sua condição de inimputável, que se lançara em frente do veículo, como a procurar a morte. Enquanto se levantava e verificava rapidamente o estado das roupas, lembrou-se de já ter visto um cãozinho semelhante, quem sabe se o mesmo, correndo-lhe atrás, quando ele próprio 24

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corria pela rua fora como um ladrão de bicicletas. A porta da mansão do tio Off estava aberta. – Chegaste, disse o tio Off. Vai telefonar à tua mãe. – Porquê? – Porque ela está inquieta. – Como sabe? – Porque lhe telefonei a dizer que ainda não tinhas chegado e ela ficou inquieta. – Continuam a considerar-me uma criança. – Terás alguma coisa a ver com isso… Mas é uma inquietação compreensível. – Quanta compreensão… Saiba que não vou telefonar. De qualquer modo, ela vai acabar por fazê-lo. Poupo-lhe uma chamada. O tio Off considerou Slam com curiosidade e algum espanto. – A minha profissão é compreender, disse com lentidão estudada e um tom de ironia. Sabes disso. A Slam pareceu-lhe a voz de James Bond naquele café arte nova. – Quer saiba ou não, tudo tende a assemelhar-se, querido tio. Por outro lado, não vim consultar o profissional, disse, com voz branca e confidencial. Eu nem sequer aqui estou. Posso sentar-me? O tio Off não respondeu, e Slam foi sentar-se num dos confortáveis sofás da sala de estar. A repetição é psicanalítica, pensou. Começava a integrar-se. Como em qualquer encon25

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tro, mesmo não sendo o primeiro, tio e sobrinho enfrentavam o medo do desconhecido, do inimigo possível, do perseguidor invisível e subjacente. Precisamente. É a transcendência paranóica dos encontros humanos. Nunca deram por isso, estimados leitores? Então, anotem: porquê então esses meneios disfarçados e absurdos, esses sorrisinhos inadequados, esses pés que se tocam sem uma razão aceitável, essas vozes roucas que arrancam com fífias de coristas mal agasalhados, esses narizes fungando como nas grandes gripes sem haver gripe nenhuma? Ainda não estão convencidos? Da próxima vez, façam um esforço de introspecção, esgravatem fundo, e vão ver. Mãos à obra, senhores! Slam contemplava o tio Off, quase estendido no vasto sofá cor de cinza espalhada, como um charuto lançado com negligência. Fingia ler. Era uma maneira de dar a entender ao sobrinho que estava à espera de o ouvir. Levantou-se quando o telefone entoou a melodia cosmopolita de um aeroporto internacional. – Ele ainda não chegou? interrogou a voz do outro lado do fio. – Ainda não, respondeu Off. – Tive uma informação, mas será verdadeira? Dizem tê-lo visto com um grupo bizarro, uma espécie de troupe de circo, com chapéus de palha e uma máquina de filmar. Ia no meio deles, aos saltinhos, numa imitação perfeita de qualquer coisa que não souberam descrever-me. Aparentemente feliz. 26

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– Em primeiro lugar, dizerem-te que ele foi visto, não constitui uma informação idónea. Depois, Slam está sempre aparentemente feliz, e passa o tempo a meter-se com toda a espécie de gente. É um feirante inconsequente, que acaba sempre por voltar para casa. Não te inquietes. Ele acabará por chegar. – Sabe-se lá… A voz do outro lado do fio – que todos já terão deduzido pertencer à Senhora Dona Mãe – ia iniciar um soluço. Não te preocupes, ele acabará por chegar, reafirmou Off, precipitadamente, pousando o auscultador do telefone branco. Slam desaparecera e preparava-se para transpor as duas vírgulas esmagadoras do portão entreaberto. O tio Off considerou-o um instante por detrás da cortina da janela e retomou a leitura interrompida. Slam fechou o portão com um alarido propositado e o tio Off não se mexeu. Um cão soltou pequenos ladridos, agudos e insistentes, nas imediações da casa. Off continuava a ler. ✳

Quando não se tem ninguém, e não se tem nada, por uma injustiça que nos transcende ou negligência pessoal, um cão minúsculo e razoavelmente sábio como tu pareces ser é uma autêntica dádiva dos céus. (Notflic, o discreto cãozinho errante que não desistira de perseguir Slam, não deu resposta imediata, preferindo a reflexão ponderada.) É isso que aprecio em ti, Notflic, entre outras coisas que não vou 27

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enunciar, dado o adiantado da hora, mas o facto de guardares tudo o que ouves para o remoer no teu pequeno cérebro brilhante, a fim de nos revelares um dia o seu deslumbrante acabamento cortical, e na hora que menos se espera, quiçá no decorrer duma assembleia onde pontificarão os mais ilustres, essa tua prudência e sabedoria superam o melhor que há nos homens. Entretanto, e com bem maior modéstia, estou contente comigo, continuou Slam. Pois não é verdade, meu jovial amigo, que a companhia daquele bando de comparsas sem tino nem plano de filmagens, que tinha por hábito a deselegância de me chamar à parte quando ocorria o pior deixou de me importar? Vou seguir a minha vida. É um facto que assinala a minha progressiva autonomia, obtida à custa de tantos e tantos sofrimentos, que não abarcariam, todas juntas, as mais volumosas enciclopédias. Um exagero, claro, mas que dá uma ideia, como todos os exageros. Agora, considera, prosseguiu Slam, baixando-se e pegando com ternos cuidados em Notflic, que fitava nele os seus profundos olhos pretos, sensíveis e inteligentes, considera o que foi a minha vida até este ano de graça, que tanto pode ser apenas mais um ano ou, porventura, o derradeiro das minhas modestas aflições. Considera, digo, mas é uma maneira de dizer, porque nada na minha existência até este dia foi suficientemente considerável ou considerado para ser digno de atenção, nem te vou submeter, ao abrigo duma amizade muito especial, o exame atento e moderadamente céptico dos meus cinco volumosos Diários. Decerto, muitas foram as vezes em que 28

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cedi à tentação de os resumir em duas frases, sem mesmo me consultar a mim mesmo. Talvez esse gesto de redução me desse acesso a uma ideia da minha vida que fosse comunicável, em formato tablóide, antes de mais a mim mesmo, e pudesse ler depois do jantar sem por isso perder o sono, evitando-me os comentários malévolos que dedico por hábito aos cometimentos da minha vida. Escolher o bom itinerário, eis a questão. A cada instante, a cada palmo. Notflic agitou-se no colo de Slam e deu três ou quatro latidos bem sonoros para cujo entendimento não seria necessário recorrer às humanas palavras. O tio Off olhava pela janela e o seu rosto vincado dava mostras de preocupação. Impunha-se montar um plano de acção proactivo, com pormenores criativos e atribuição nominal de iniciativas. Para isso, urgia, em primeiro lugar, reconstituir os passos de Slam até ao presumível rapto; seguidamente, ou agir em família ou avisar a polícia – esta, uma hipótese longínqua, dada a reputação de que usufruía entre os colegas, os analisandos e uma meia dúzia de analisados problemáticos, que se preparavam para regressar, mais cedo ou mais tarde, às indolências míticas do divã. A hipótese do seu nome surgir num desses jornais de escândalos, que enxovalham tudo aquilo em que tocam, cobria de suor a testa de Off, mau grado a baixa temperatura da sala, onde o ar condicionado fora desligado. Decidido estava o afastamento da Senhora Dona Mãe, que Off definia como uma histérica freudiana para quem a obtenção do pódio de uma Dora contemporânea 29

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parecia ser o objectivo essencial da sua vida. Apesar disso, e sem temer a enorme concorrência, a Senhora Dona Mãe mantinha intacta a sua pretensão. Off discou um número de telefone e foi na casa de Coki que, transmigrado pela feitiçaria eléctrica, ele estalou como um inesperado coral de grilos. Coki teve um gesto de desagrado e levantou o auscultador do obsoleto aparelho, que se recusava a substituir. A campainha era propriamente intolerável e ficou a ressoar na sala em prolongamentos cheios daquela crueldade gratuita que nasce da frustração das coisas abusadas. Berrou no auscultador: – Estou! Qué cá? – És tu, animal de capoeira? – Olhem-me o galo velho! A que devo a desonra? – Esqueçamos o contencioso, mano. O Slam desapareceu. Raptado, ao que parece. – O Slam? Ele é lá capaz disso! Revê as tuas fontes. – É seguro. Temos de erguer um plano. Discreto, familiar, urgente. Voltarei a contactar. Leve-os o diabo, berrou Coki, desligando a velha máquina e dando uma punhada na mesa, que fez esvoaçar, espavorido, o canário senescente, habituado aos curtos voos, dentro da gaiola com ferrugem e que já tinha sido dourada. Lembrou-se da bicicleta e pensou, com um baque no coração, se não teria sido um cúmplice involuntário na desaparição de Slam. Por outro lado, sem a bicicleta, pedalar para onde? Assim, decidiu esperar que alguém chegasse, com uma proposta para o futuro, que não podia ser outro senão 30

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o pedante do Off, com aquela detestável neutralidade helvética de banqueiro das almas. A noite caíra sem perigo para si própria e para os outros. Mais uma vez, triunfara a confiança no curso óptimo das coisas. No entanto, era visível no canário idoso uma profunda atenção inquieta, que lhe alongava o bico e lhe espetava as penas vetustas do craniozinho quase calvo, destapando a carne arroxeada. Notflic libertara-se por fim do abraço carinhoso de Slam e corria à frente dele, farejando os perigos. Slam tinha compreendido que o seu fiel amigo não era apenas de poucas palavras como também de ponderada escuta, pelo que teria de agir em consequência daí para diante, respeitando-lhe a dignidade canina. Enquanto dobrava a esquina que é a eterna esquina, pensava num modo de identificação, que preservasse Notflic de futuros extravios. Mas o pequeno e inteligente animal deu a entender através dum ladrido significativo, cujo entendimento não escapou a Slam, que não desejava tal coisa e que se mantinha fiel à sua condição de cão vadio, livre de compromissos e seguindo apenas o que lhe dizia o coração, o que era mais uma prova a favor da sua contemporaneidade. É verdade que neste momento dava-se pelo nome de Notflic, que Slam inventara para ele, ao qual respondia com prontidão e manifestações de ternura, que só podiam agradar ao seu companheiro humano, um carenciado afectivo já diagnosticado outrora pela clínica artesanal do saudoso médico da família, mas cujos suspiros de desaproveitado prolongavam-se muito para além das fronteiras 31

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familiares, morrendo sem resposta nas infinitas extensões da indiferença cósmica. Notflic, já de si sensível, e com a experiência acumulada de inúmeras vadiagens sentimentais, apercebera-se rapidamente das necessidades de Slam neste campo semeado de atalhos que conduzem a lado nenhum e, aqui e além, de deslumbrantes flores de paixões assassinas, onde divagam, se perdem e murmuram como alucinados mansos os fantasmas lendários das grandes decepções de amor, e decidira por isso, com a modéstia das belas almas, acompanhá-lo num troço da viagem com a esperança de que a sua presença alegre e saltitante trouxesse algum lenitivo a uma tão longa amargura, agravada pelo facto de não poder ser partilhada com a facilidade alcoólica daqueles desinibidos da noite que o seu amigo humano execrava. Ah, o que Notflic observara com os olhinhos brilhantes, quantas vezes de lágrimas, nas suas rondas sagazes pela cidade! Quantas esperanças abandonadas como cartas velhas farejara por debaixo das mesas onde se afastavam bruscamente as pernas dos amantes que tinha visto tocarem-se há instantes. (Que palavra a não dizer fora proferida? Que revelação a não revelar traída por um olhar inseguro?) Quantas ilusões ainda jovens viu, a serem varridas com o lixo da noite olheirenta, e sonhos da idade madura, debatendo-se em vão no vómito enluarado que o bêbedo deixou para trás! Mas o que se pode deixar para trás, que, mais tarde ou mais cedo, não nos venha bater à porta e apresentar-se com um nome onde nos reconhecemos na cara de um outro? Foi esta a pergunta que sur32

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giu no espírito de Slam, dando continuidade às exclamações silenciosas do seu companheiro de quatro patas, que rolava à sua frente como uma bolinha de pelo branco escurecida pela poeira dos anos, enquanto, a muitos metros dali, o tio Off, sentado à sua mesa de trabalho, tentava elaborar o plano de acção com o qual se comprometera implicitamente, o tio Coki esperava ensaiando várias gravatas, e a Senhora Dona Mãe inquietava-se, torcendo as mãos como a Silvana Mangano nalgum filme inesquecível, e enchendo todos os espaços da casa com os seus passos agitados e gemidos de final trágico. Entretanto, no sentido inverso, escoava-se toda a pequena tropa dos criativos, chefiada pelo director provisório, que discutia furiosamente com o argumentista debaixo do olhar impiedoso da câmara do operador: todos eles se teriam apercebido a certa altura (tarde demais, na opinião do director) da desaparição de Slam! Caminhavam com energia, e sem uma única ideia, no sentido contrário ao que tinham vindo a seguir, por intuição pura, em busca de indícios fiáveis. O operador, habituado às grandes alturas, propôs subir aos telhados e, daí, escrutinar as ruas de forma sistemática e profissional. A proposta foi recusada.

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CAPÍTULO 3

Silêncio na noite fria. O Dodge alado de James Bond atravessava luminosamente as ruas desertas e negras da cidade, deixando atrás de si um rasto de estrelas recentemente apagadas, de que se teria apercebido o operador se lhe tivessem permitido subir aos telhados. Mas não subira. O homem seguia murcho e amuado na cauda do cortejo, cozinhando frases más para servir um dia na mesa da vingança. Director interino e argumentista interpelavam-se aos gritos. Um dos dois assistentes desistira. A menina secretária tomava notas não sabemos de quê. O assistente restante assistia ao que restava. O tio Off levantou-se da mesa de trabalho projectando à sua volta a ventania impetuosa dum helicóptero de combate e aterrou na mesinha ao lado, onde levantou o auscultador do telefone branco e compôs um número já nosso conhecido. O tio Coki arremessou com fúria a última gravata e deixou que soasse a terrível campainha do telefone antigo. Saiu sem gravata, atirando com a porta. O canário piava debaixo do pano negro que cobria a gaiola. Não havia, por mais que 35

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se quisesse, absolutamente mais nada a acrescentar. Apenas mais silêncio na noite mais fria. O tio Coki seguia sem rumo rua fora. Mas, em resultado da situação actual, que criminalizava Slam por ser o causador de mais desordem na família, é verosímil que quisesse encontrar o sobrinho antes de todos os outros, por exemplo, para lhe aplicar uma surra num beco sombrio, a coberto da insegurança urbana, graças à qual, imaginava ele, o seu crime ficaria impune. James Bond aproximou-se sem ruído ao volante do seu Dodge Sucsex e parou ao lado de Slam. – Venha. Pode trazer a criatura. Os seus dentes brancos estendiam-se como o teclado ebúrneo dum piano aberto sob o luar de prata, perfazendo uma imagem ousada que transcendia em muito a vulgaridade do género. – Meu caro James, disse Slam, com bonomia. As suas aparições são sempre impiedosas para a literatura. Devia antes acolhê-lo a música. – Muito obrigado. Suba mais o caniche. Per favore. Notflic entrou a contragosto. O seu coraçãozinho generoso batia como um metrónomo enlouquecido. Aninhou-se no canto direito do assento traseiro, pronto para escapar à primeira ocasião. Os modos timoratos de Notflic surpreenderam Slam e, para dizer a verdade, desiludiram-no. Perguntava a si mesmo se não lhe teria prestado demasiada atenção e atribuído demasiada importância. Dois demasiados para uma tão pequena coisa! É bom que se vão habituando, ros36

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nou Notflic. Aos advérbios. Mas a mensagem silenciosa de aviso, que não deixara de emitir desde a sua entrada relutante no Dodge de James Bond, foi finalmente captada por Slam, que se virou de súbito e surpreendeu no rosto do agente especial uma expressão de maldade, suficientemente cubista para ser visível de perfil. Uma expressão que já lhe surpreendera no rosto quando do episódio do café da outra margem – decerto na memória de todos. O trânsito adensava-se nas ruas da cidade parda e James Bond concluiu que seria melhor dar a volta por cima. Logo a deslumbrante máquina se ergueu como se tivesse asas, transformando-se numa bela ave de metal, luzindo ao sol mas sempre invisível. Movia-se silenciosamente a uma velocidade muito próxima daquela que atinge o pensamento comum – uma pequena imperfeição que James tentava ultrapassar através de aturados estudos e experiências, no intuito de pôr a sua super-nave a mover-se um pouco para além da velocidade do pensamento incomum. Todas estas informações facultara-as o próprio James a um Slam injustificavelmente transido, retirando-lhes o carácter confidencial, facto de que nos aproveitamos para redigir estas breves mas sugestivas notas. Enquanto o agregado crónico dos criativos da imagem & som não desistia, ignorando em absoluto o objecto da sua obstinação, e, a prová-lo, estava o operador pulando de telhado em telhado, depois da sua proposta ter sido finalmente aceite.

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Agora, consideremos a situação de Notflic. Todo o seu corpinho vestido de branco sujo tremia no fundo do assento e a sua actividade hiper-cortical interrompera-se, deixando Slam sem um apoio fundamental nas movimentações alucinantes a que os obrigava o agente especial. James Bond acabara, com efeito, de abordar a terceira galáxia. Notflic tem ganidos roucos e lancinantes que um novo Dante incluiria no seu inferno. E agora? Içada dos fundos da memória adormecida pelos ócios e prazeres desta vida efeminada, entrou de rompão na mente quase exausta de Off a recordação de um outro irmão, também desaparecido: Spam, o surrealista. E anteviu mais complicações. Tanto bastou para que acorresse a banda imagem & som e outro cenário fosse improvisado. Com mais profundidade de campo do que qualquer outro, o operador manteve-se no telhado, esperando ordens. O argumentista fazia-lhe sinal para que descesse. O director, como já pensamos ter insinuado, desaparecera há muito, assolado por concepções irrealizáveis. Off decidiu telefonar para a casa de Coki. Ninguém respondeu. O canário soltara o seu último sopro de vida sob o pano preto que cobria a gaiola, sudário insustentável mau grado a leveza do tecido de algodão. O silêncio era tão pesado que colava as moscas aos móveis e às paredes. Apetecia dizer que a lua ia alta na mansão da morte. Sim senhor, seria uma boa imagem, e ademais uma alusão simbólica aos propósitos 38

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de Coki, cada vez mais inquietantes, porque alguém o vê a carregar um revólver, meio escondido na entrada duma porta, com o chapéu baixado sobre os olhos e um brilho de ferocidade no olhar, visível, apesar de tudo, por baixo das abas do chapéu descaído para a frente, que se aparenta muito com o chapéu baixado sobre os olhos, levando a crer que se trata do mesmo chapéu e, portanto, da mesma pessoa. Porque os testemunhos dos nossos observadores, gente boa mas sem experiência na investigação científica, são esforçados decerto, mas nem sempre condizentes. A dúvida e o aproximativo são legítimos; e agora mais do que nunca quando a noite, instalando-se sem pedir licença, veio pôr tudo às escuras. Neste contexto, o contributo dos nossos colaboradores benévolos é ainda mais inestimável. O que conta é ter uma grande visão; mesmo naquelas alturas em que uma mais pequena bastaria. É a questão com que se debate Slam, ao lado da grande visão gabarola de James, tentando encontrar uma visão bem mais pequena, mas que o fizesse sair dali. Finalmente, convencera-se de que o problema de James era afinal uma grande vaidade. O que ele procurava era gente que declarasse no momento oportuno como era grande; e apresentasse a prova, como um voo desta envergadura, por exemplo. James, como muitos imediatistas, tinha um sonho de eternidade. Era mais um homem infeliz do que a infelicidade de um homem. O que mudava tudo. A conclusão a que chegara Slam fez com que Notflic perdesse todos os receios e encheu-o de ternuras em relação 39

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ao agente especial, cujo pescoço lambeu com ardor. Uma grande suspeita dissipara-se. Outras tomavam forma nas sombras propícias da noite, quando, chegando de longe, soavam os primeiros cantos de Natal. Reunir ideias, colectar imaginários, abarcar intuições. A seguir, a congregação de esforços. No segundo ponto residia a dificuldade de Off. As duas irmãs, por razões óbvias, seriam excluídas: Amil, por enquanto, não sabia de nada e a Senhora Dona Mãe, durante mais umas horas, continuaria a arrepelar os cabelos e a contorcer as mãos. Se o operador chegasse a tempo, obteria um clássico do cinema mudo. Coki desvanecera-se, pensava ele, como uma fumaça de boas intenções e, sabendo-se que a existência do irmão surrealista, cuja desaparição era já histórica, não passava duma hipótese académica, o único que restava era ele, o inevitável Off. Perante isto, estendeu-se – em fases cuidadosamente estudadas – em cima da carpete da sala e deu início à sessão de meditação. A viagem fantástica de Slam chegara entretanto ao fim e iniciava-se o processo de aproximação com vista a uma boa aterragem, manobra difícil e complexa que devia finalizar com a escolha discreta duma auto-estrada vazia, onde a nave espacial do agente especial se reconverteria então no Dodge Sucsex já nosso conhecido. Todas estas dificuldades superou-as Bond como nos melhores momentos da sua lenda, sem suor nem lágrimas, e sem deixar de sorrir.

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Mas ao fautor de actos danosos exige-se uma explicação, e até uma desculpa, se for esse o caso. Era o que esperava Slam da parte de James, o qual, já ao volante do seu Dodge recuperado, se refugiara num silêncio que caldeava ameaças imprecisas. Notflic latiu fracamente. Slam balbuciou palavras ininteligíveis. James não deu resposta. Era bel et bien dum sequestro que se tratava! O telefone soou na casa do tio Coki. Contra todas as expectativas, vemo-lo precipitar-se sobre o aparelho. – És tu, meu galinho da Índia? Há novidades? – Nada, meu pintainho do Sul, respondeu Off, desanimado. O rapaz desapareceu mesmo. Coki fez apelo à sua cultura de policiais mal lidos: – Se foi raptado, vão dar notícias. Há o resgate! Antes de sabermos o valor desse resgate, é justo que nos desculpemos perante o tio Coki. Afinal, ele não saíra de casa! Um dos nossos colaboradores, vitimado pela tele-emoção em rede em cujas águas pérfidas navegamos como peixes excitados pela imensidade dos mares que lhes esconde o isco, alucinara-o a carregar uma arma num portal do imaginário, baseando-se numa semelhança de chapéus. Ora Coki não usava chapéu nessa noite. O argumentista apossou-se imediatamente do boato e inscreveu-o no roteiro daqueles desnorteados como se fosse um facto, dando razão a Mr. Méliès quando fez aquela afirmação, cheia de bom senso, que muitos ouviram: o cinema é uma invenção sem futuro. Basta olhar para o futuro da invenção. Mas olhemos antes 41

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para a figura menos polémica do director interino, a pregar uma enorme descompostura ao seu subordinado. É uma figura tão triste que põe em segundo plano a triste figura que anda a fazer. Enfim, isto não é da nossa conta, enquanto a tropa se mantiver a uma distância razoável e não abusar da transversalidade. Só falta um poeta. James Bond, sentado ao volante do seu Dodge, estacionado sob um luar sem concorrência, está neste momento a explicar a Slam que um denominado Ted Tungsténio o obceca ao ponto de lhe roubar o sono. Ted Tungsténio, aliás John Salmonete, aliás Niño del Sur, Big Alcazar, Gros Choux de Bruxelas, mil outros ainda, um terrorista de muitas caras, de muitas origens, de muitas obediências, todas elas confluindo na encarnação última do Mal. Segundo informações estritamente confidenciais – em relação às quais, escusado será dizer, pedia a Slam o mais absoluto segredo – Ted Tungsténio preparar-se-ia para levar a cabo um atentado de grande envergadura. Segundo alguns: o atentado do século num século de atentados. Propunha-se fazer explodir simultaneamente em diversos pontos do mundo uma meia dúzia de best-sellers da literatura, o que teria o resultado de fazer subir vertiginosamente as vendas. Os locais preferidos seriam as sessões de lançamento das obras, que seriam despachadas literalmente em todas as direcções com os respectivos autores, facultando-lhes uma expansão nunca sonhada. As acções de Tungsténio eram obviamente muito discutidas. Supunha-se que umas centenas de escritores despeitados e ressentidos 42

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as subsidiassem e como, paralelamente, os mais vendidos passariam a ter medo de o serem, seria possível, por este processo inabitual, obter um melhor equilíbrio no mercado das vendas e um acréscimo de democracia no meio. Mas não deixava por esse facto de ser um excesso. Com estas razões e outras, devidamente enumeradas, pretendia James justificar a incorporação insensata de Slam nas suas preocupações egoístas. Desculpava-se, em particular, por alguns silêncios misteriosos da sua parte, susceptíveis de gerar receios, ou pelos semblantes sombrios que arvorara em certas ocasiões, suficientes para pôr em dúvida uma bela amizade nascente. Ao ouvir estas explicações tão convincentes e as desculpas tão sinceramente apresentadas, fez-se no coração de Slam uma grande paz como aquela que sentimos ao declarar-se o fim duma longa guerra evitável. Meu caro James, está mais que perdoado e tem, da minha parte, toda a simpatia, solidariedade e, bem entendido, o segredo que me pede. A este respeito, James, devo dizer-lhe que nobre e poderosa é a amizade que consente nestas revelações, tão graves quanto elevada é a alma que tal amizade produziu. Bem haja, conquanto a expressão esteja desajustada, pelo seu pesado conteúdo histórico, aos alegres e ligeiros tempos de hoje, bem haja, meu amigo! E Slam secou, com a palma da mão trémula, lágrimas furtivamente. Que Deus me perdoe, replicou James, porque me culpo, em verdade, duma emoção tão sincera! Pois não deveria antes ter-me mantido calado, posto que se assim fora talvez um mal menor compensasse o mal maior que provo43

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quei, dando azo às lágrimas doloridas de um tão leal amigo? Deveria sem dúvida! Que não, apressou-se Slam. Sempre a verdade deve ser dita, ou a desculpa apresentada, nem que daí provenham as mais profundas e ardentes dores. Soltem-se as emoções, que destas assim se robustecem os melhores corações e alimentam as almas mais exigentes. Notflic latiu no seu canto, introduzindo o elemento de realidade indispensável. Exactamente, disse Coki. Precisamos de introduzir aqui o elemento de realidade, mano. Slam pode, muito simplesmente, andar a passear por aí. Ou terá encontrado o amor da sua vida. Duvido, rouquejou Off, enquanto vazava o copo com a derradeira garfada de um jantar memorável. Mas admitamos que é melhor esperar. Sim, é melhor esperar, disse Coki. Slam é imprevisível. É melhor esperar.

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CAPÍTULO 4

Um homem acaba de sair da última carruagem do último comboio. Não traz bagagem. Assemelha-se a já ter sido. Ninguém o reconhece, apesar disso. Mas quem viria esperá-lo? Avança devagar no cais da estação sinistra. Com guinchos de ferros arrepiados e sopros desfalecidos de fumaças negras, o comboio inicia a viagem de regresso. O homem pára a olhá-lo. A luz fraca de um candeeiro que agoniza logra contudo mostrar nos olhos do recém-chegado o tremor de uma lágrima. Um daqueles pássaros que se preparam para morrer entre as vigas de aço das abóbadas carbónicas das velhas estações ferroviárias, emite um grito de horror como se a sua hora tivesse chegado com a chegada do homem solitário e sem bagagem que se dirige com uma lentidão que se diria estudada para a porta da gare. A ave enegrecida pelas poeiras dos carvões de muitas partidas e chegadas, cai a seus pés. O homem não se mexe. A câmara filma. A vida continua. O homem é Spam, o tio Spam, o desaparecido. Quem o reconheceria? Mas nós sabemos de fonte segura que é ele. Dir-se-ia que ele também nos reconhece porque se 45

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dirige ao nosso encontro com um sorriso confiante, aberto o suficiente para exibir a chacina dentária. Spam? perguntamos nós. Ele mesmo, confirma o viajante. O homem que vem de longe, mais um. Slam está convosco? – Slam? – Sim. O meu sobrinho. Trago notícias de grande urgência para ele. Uma questão de vida ou de morte. Não exagero. Parece que pensam que estou a exagerar. Não pensamos que está a exagerar; pensamos que tudo é um exagero. Esta cidade nunca esteve tão pouco. Parece um pesadelo de Goya refeito por Dali, para pior. Quem vai leiloar isto, que não se exponha ao ridículo? – Veio para o leilão? – Vim para o que vos disse. Levem-me a Slam. Não sabemos onde está Slam, dissemos. Slam desapareceu. – Slam desapareceu? – É a cidade parda. Muito reputada internacionalmente por causa das nuances, imperceptíveis, todos no cinzento, explicou o argumentista. Nem o senhor queira saber o que tenho sofrido por um azul. Talvez agora alguém que vem de fora possa ouvir-me. Não sou ouvido. Falo mas não me ouvem. Isso é o problema de muitos, disse Spam. É inclusivamente o meu neste momento. Não é exclusivamente o seu, respondemos. É o de todos: todos procuramos Slam. Balelas, disse Spam. Os senhores são uns tolos ou uns brincalhões. Não são gente séria. Eu tento fazer o meu trabalho com seriedade, interveio o director. Mas é raro ouvirem-me. 46

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Ninguém se ouve, ninguém nos ouve. No fundo do homem jaz a surdez. É bem verdade. Qual é o seu nome? O meu nome é ninguém, esclareceu o director. Então porque se queixa? O argumentista riu como se soluçasse e Spam consultou o relógio. – É a hora, anunciou. Esqueci-me, porém, de mudar a hora. É tarde demais. Um silêncio gelado congelou as línguas. Spam foi o primeiro a falar. Não disse coisa com coisa. A emoção varrera-lhe a razão verbal. Aos poucos, as línguas foram derretendo, as palavras foram surgindo, isoladamente ao princípio, depois em frases que não formavam grande sentido, depois em sentidos que procuravam frases, e por fim em frases que já faziam algum sentido: fora reencontrada uma linguagem suficientemente descongelada para ser consumida. Agora, bastava passá-la pelo suave calor humano que emana das almas e voltar a pô-la na mesa para ser servida como a melhor das iguarias. Tudo o que possuímos, disse Spam, são as palavras. Temos mais algumas coisas, disse o argumentista. Sim, concordou Spam, mas todas elas, mais coisa menos coisa, são escravas das palavras. Assim toda a minha arte foi dada à depravação das palavras. Pôr as palavras a nu, despi-las, denunciar-lhes as hipocrisias, injuriá-las, assim como fez um grande romântico em relação à Beleza. O que tem para dar a Slam, além de palavras e Beleza açoitada? É urgente o amor, sintetizou Spam, com uma ironia que escapou a todos. É ele que, embalado nas palavras, entregarei ao meu sobrinho. 47

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Oferta sublime, exclamou o director. Mas será o bastante? O rapaz, ao que oiço dizerem, está desaparecido. O amor tudo descobre, o amor tudo encontra, o amor tudo sabe, adveio o argumentista. O amor levar-nos-á Slam, e como o amor de Slam o levará a nós, o encontro não pode ser evitado. Daí a Hora, advertiu Spam. Porque, se for a hora errada, o encontro não terá local, ou melhor, realizar-se-á noutro local, nessa hora errada, um encontro que poderá ser catastrófico nas suas repercussões cósmicas. É a lei de Andróide. Conhecem? A surrealidade activa, em plena contradição profunda, impõe condições precisas para o seu advento. É a chamada perfeição aparente ou insinuação angular da Pirâmide, uma descoberta de Zizi quando fazia Dada em pleno sono. Mas há mais. Será necessário? interrompeu o director. O senhor é director de quê? Eu declarei-me director? Decerto não o inventei. O que estamos a fazer por Slam, para Slam, ao redor de Slam? O tempo passa, o que significa que a má hora agrava-se. Em má hora desembarquei do hediondo féretro. Acerte a hora, homem, que assim reduzirá a desgraça. Não há redução da desgraça; a desgraça é. A haver movimento será para o aumento, o inchaço, a expansão maligna. Não se façam ilusões. O tio Spam acertou no entanto a hora transcendental do mundo pela hora da região, o que não poderia ser pior e não teria qualquer importância para o mundo. Segundo me dizem, rola imensa gente à procura de Slam. E no entanto, o rapaz é modesto. Com certeza que não tem nada a ver com isso. Se calhar, passeia-se, tão-somente. 48

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A ideia já foi aventada. Parece ser essa a convicção do tio Coki, que espera com tranquilidade que ele surja, vivo ou morto, dissemos. O nome de Coki fez empalidecer Spam. Uma nesga de céu desanuviado autorizou a lua a iluminar fracamente o rosto de Slam para aí ler uma expressão de tranquilidade e alívio e permitir-nos a nossa própria leitura. A lua desapareceu outra vez, deixando-nos sem luz para as confirmações. Mas tudo levaria a crer que a expressão de Slam fosse de ansiedade, equivalente àquela que agitava todos os que o procuravam, ou muito próximo dela, segundo as tradições do género. Ora Slam caminha lenta e pausadamente na noite escura, com uma ligeireza e um bem-estar aparentes como se estivesse em pleno dia e com o tempo suficiente, segundo os seus cálculos, para as visitas previstas. Apenas uma pequena preocupação: encontrar tempo para voltar a casa do tio Coki, donde saíra com um sentimento de insatisfação, estranheza e ocultação persistente. Quão esquisito estava o tio Coki! Parecia exibir-se num desses teatros inverosímeis à beira-mar, armados no nevoeiro. E aquele chinelo que nunca chegava a cair! Bizarro. O monólogo interior prosseguiu sem a nossa presença. O que reportamos, diga-se desde já, baseia-se nas notas de Slam. Tudo como deve ser. Nenhuma modificação, nenhum acrescento. Difíceis de decifrar, apenas. Aproxima-se o meio-dia. O sol modesto de Inverno parece ser de outro tempo. Há dias como este, mas nunca são referidos. A tia Amil tinha estendido sobre a mesa a sua mais bela toalha para dias como este em que o sobri49

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nho vinha almoçar a sua casa. Ao fim e ao cabo, tudo se conjuga, prolonga e repercute. Slam sorriu ao ver a toalha esplendidamente bordada. Retribuiu a tia Amil o seu sorriso; porém, depois dos beijos e abraços que a quadra dramatizava, seguiram-se longos segundos de suspiros e lágrimas. É assim com o coração. Tia Amil, como gosto de si, não cessava de dizer Slam. E a tia Amil respondia com as mesmas palavras e o mesmo sentimento. Depois destas efusões naturais entre tia e sobrinho muito tempo separados, sentou-se Slam à mesa, torceu as mãos três vezes, por três vezes pigarreou; e disse: – É hoje que vai cantar aquela canção, minha tia? E logo a tia Amil se encheu de rubor em seu rosto e quase deixou cair a terrina da sopa. – De que falas tu, mafarrico? – A canção da Juliette: Déshabillez-moi, que a canta melhor do que ela, segundo diz o tio Coki. E tu dás ouvidos a esse vadio ordinário, que nunca saiu da terrinha, e despreza o existencialismo? E a cólera da tia Amil era tanta que Slam temeu que a sopa entornasse e precipitou-se para agarrar a terrina. Está o caldo entornado, disse a tia Amil. Mas não está a sopa, assegurou Slam. Pode ser outra canção, minha tia. Eu só falei desta porque o tio Coki… Não repitas mais esse nome, disse a tia Amil. Slam calou-se e encetou a canja. Apenas desejara ser sobrinho, mais nada. O silêncio era constrangedor e Slam fazia os possíveis para evitar os ruídos sempre tão desagradáveis que são emitidos quando se sorve 50

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a sopa, não apenas porque era bem-educado, mas por recear ainda que desse silêncio nascesse uma nota de culpa, que não poderia pagar nem ser-lhe perdoada. E a dívida ia longa! A sua reputada falta de jeito no manejamento certo das conveniências ofendera a tia Amil, e corria o risco de converter num velório o que deveria ser um alegre almoço entre tia e sobrinho. Tentou então descomprimir a situação fungando e pretendendo em vão encontrar um lenço nos bolsos das calças, esperando que a tia Amil desse por isso e lhe agitasse um lenço de papel como uma bandeira branca. Mas a tia Amil não dava por nada, imersa nos seus pensamentos cheios de desilusão e dor, que se deviam a ele, Slam, o cruel sobrinho, e parara de comer a sopa, com a colher espetada no ar e os olhos marejados de lágrimas. “Quer então dizer que esse tal tio de que falaram anda em busca de Slam! Ora senhores. É bem mais provável que tenha sido ele a desencaminhá-lo.” A sua acusação é grave, disse o director. O senhor ainda não nos disse com clareza de que diabo é director, disse Spam. E é um erro, um enorme erro de partida, terem-no engrandecido com um título desses. Proponho então que o despromovam. Quem vota a favor? Todos votaram a favor, incluindo o despromovido, que suspirou como alguém a quem acabam de retirar uma responsabilidade esmagadora, e balbuciou uma ou duas frases sem nexo. Desde já lhe imploro, atalhou Spam, porque falou pouco e bem, que se mantenha calado para que não estrague nada, e não se meta em mais assados. Tudo o que 51

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não disse, que seja tido por factos bem estabelecidos. Adira ao Movimento, está feito para si, à sua medida de destronado! Estou disposto a aderir imediatamente, respondeu o demitido. O senhor é um impulsivo compulsivo, interveio o argumentista. Pode vir a arrepender-se da sua decisão. Apresente os seus argumentos, disse Spam. Eu não vim de tão longe para ouvir opiniões sem peso científico. É mais do que surreal ouvir um surrealista invocar a ciência, ripostou o argumentista. Este senhor, interveio o ex-director, apontando o argumentista, é um bolseiro inútil. Todos esperamos com ansiedade que apresente ao menos uma ideia que leve à sua desaparição. Em contrapartida, tenho imensas no que se refere à sua, replicou o argumentista. Eu não vim de tão longe, disse Spam, para me dedicar à dinâmica de grupos. Façam-me o favor de resolver os vossos conflitos fora dos lugares de trabalho. Os senhores estão a trabalhar, não é verdade? Pois aí é que está, interveio o operador. Eu sou o único que faz alguma coisa, mas desconheço a sua utilidade. O senhor o que faz? Filmo; e como vivo, vivo. In povertá mia lieta. Não entendo. Esse senhor mente, disse o demitido. Filma dos telhados tudo o que lhe passa em frente dos olhos com o dinheiro da produção. Onde está o produtor? quis saber Spam. Mas logo a seguir arrependeu-se e murmurou: tudo isto é inútil. Para quê tudo isto? O produtor revelou-se improdutivo, disse o ex-director. Tudo isto é inútil, repetiu Spam. Mas não conseguiu impedir-se de perguntar onde arranjavam o dinheiro. O dinheiro vem do Ministério, disse 52

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o director. De qual Ministério? interessou-se Spam, a mal-grado daquilo que desejava. São parcerias, muitas parcerias, amplas parcerias, disse o despromovido. Tudo isto é inútil, disse Spam. O que faço eu aqui? O que faço eu aqui? repetiu o operador, filmando Spam em close-up. O senhor vai-me dar o que filmou, gritou Spam. A minha estadia é rigorosamente clandestina. Ele filma não importa o quê, disse o demitido, depois atira tudo fora. Eu, mesmo atirado fora, não deixo de existir. Dê-me a fita. Sem dar sinais de ouvi-lo, o operador continuava a filmar como um alienado. Deixe-o estar, é uma mania, ele atira tudo fora, ouviu-se em torno. Eu vou dar cabo dessa máquina dos infernos, ameaçou Spam. Quando ouviu isto, o operador deu meia volta e fugiu como uma lebre. Uns instantes depois, subia pela fachada de um prédio e acocorava-se no telhado. A criatura é um símio, disse Spam. A que terra vim eu dar, meu Deus. Bendito Slam! O senhor não se preocupe, disse o argumentista, com mansidão. Ele atira tudo fora. É o mais difícil de todos, disse o ex-director, mas precisamos dele para o subsídio. Todos os anos, mandam-nos um pató ainda mais complicado do que este. São as condições da parceria, continuou o argumentista. Tentar uma reinserção impossível. Nem quero acreditar no que oiço, disse Spam. Nem o senhor sabe onde se veio meter, disse o ex-director, mas há coisas boas. Sim, há coisas boas, confirmou o argumentista. Só precisa de encontrá-las. Só precisa de as encontrar, coadjuvou o demitido.

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Encontrar coisas boas, rosnava Spam, enquanto descia a rua que era a eterna descida. Como se fosse fácil. Há-de haver por aí um livro. Talvez um livro turístico. Turismo do terror. Espero que esses idiotas já se tenham evaporado. Parou e olhou para trás: não havia ninguém. Porém, se tivesse erguido os olhos, teria visto uma figura humana a pular de telhado para telhado, como um macaco furtivo. Congratulemo-nos então com um hábito em boa hora adquirido, que levava Spam a concentrar-se nos perigos das calçadas devastadas e a negligenciar a contemplação dos espaços. Dada a nossa posição neste conto – a qual, verdade seja dita, ninguém terá conseguido entender claramente – não nos é possível abordar Spam (o tio Spam, de facto) e interrogá-lo sobre as suas intenções. Por isso nos disfarçamos convenientemente e apresentamo-nos com medida e muita serenidade. – Ora meu bom senhor, grata lhe seja esta noite. – Quem é o senhor? disse Spam. – Se me permite, apresento-me na pluralidade do ser. – Sendo o quê? – Gente de paz, retorqui. De grande paz e ampla confiança. Um amigo.

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CAPÍTULO 5

Alguns minutos depois, já Spam nos abria a sua alma. Tanta é a solidão do homem que faculta de boa vontade e no instante o seu coração àquele em quem pelo coração logo confia. Pode originar o pior, mas não neste caso, porque somos bons como mel e laranjas doces. E quando o nome de Slam saiu da nossa boca, já não sabemos bem porquê, as lágrimas brilharam nos olhos de Spam. Sim, o tio Spam sou eu, confirmou. Pois conhece Slam? De vista, umas vezes; de ouvir falar, outras vezes, resumimos. Ao contrário do que seria de esperar, a reacção de Spam foi de agradável surpresa. Vejo que sois de grande lucidez e tendes a arte da inexactidão sugestiva facultada pelo ponto e vírgula. Pois assim também tem Slam por costume ser. Manifestámos imediatamente o nosso desejo de encontrá-lo em carne e osso. Sabemos, porém, que se encontra desaparecido, tivemos de intercalar a contragosto. Ainda que… – Ainda que? – … Não o possamos considerar um desaparecido efectivo, nem tão pouco se conheça o lugar donde se ausentou. 55

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(E damos à palavra lugar uma contextualização cosmográfica.) Eu suponho que ele está muito simplesmente presente noutro contexto. Ter-se-á apercebido, decerto. – Sim, sim, apercebi-me, disse Spam, como num sonho. Eu apercebo-me facilmente do que é escusado. O que diz é mais do que interessante: é primordial. Alude à transfiguração do real pela criação de outro real onde o Grande Irreal se recria. É este o outro contexto que refere, não é assim? E agora, senhores: como tirá-lo de lá? Ou será que devemos ir ao seu encontro? O que fazer na realidade? – Questão das origens, origens da questão… É exactamente como enuncia. Mas porquê então esta súbita descrença, esta desolação ressuscitada em nossos peitos? Nós afirmamos que, no fundo, nada vale a pena, e que Slam se comporta como a pessoa educada que é: aceitando o rigor do seu destino, quando este é de rigor, ou a sua leveza alada, se for esse o caso. O facto de o dizerdes na pluralidade aumenta grandemente o peso e a responsabilidade, parece-me a mim, disse Spam. Mas posso enganar-me. Uma solução possível não seria eleger dentre vós um chefe? Ai de mim, exclamei. Não se aplica a uma aglomeração de génese ontológica a grelha eleitoral das democracias representativas. No entanto, disse Spam, vejo que fala em seu nome. Porquê, senhor? Só porque disse eu, senhor? Uma simplificação no estilo… Na verdade, muitos falam por mim e, de cada vez, eu sou outro. Je est un autre, parafraseei. Decerto, avançou Spam, não deve tratar-se de uma idiossincrasia sua, mas sim do quinhão de 56

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todos, que, indiferentes além de mal informados, falamos abusivamente em nome próprio. Eu mesmo já dei por essa regurgitação de identidades a arranhar-me a garganta da Palavra. Há-de falar-se, depois, de identidades parciais para salvaguardar a opinião republicana, segundo a qual, somos livres e responsáveis na unidade do ser, continuei. Decerto. Mas isso só agrava o problema, porquanto a nossa responsabilidade multiplica-se pela de muitos outros. Não cessamos, é bem verdade, disse Spam, de observar como alguns de nós pagam por muitos, que lhes são comprovadamente alheios. É muito justo o que diz, mas eu não exerço em política, declarei, e apenas me limito a observar como a chuva continua a cair onde a terra já transborda e o sol não larga a cabeceira do que há muito secou. Já os interlocutores deste improviso socrático tinham então avançado algumas centenas de metros na noite da cidade pardacenta, sempre seguidos de telhado em telhado pela câmara do operador ingénuo. Sem querer ser pretensioso, nem em excesso narcisista – o que já seria mais apresentável – diria que a minha teoria do deslize permanente da realidade, vivido e não formulável, se confirma, disse Spam. Assenti com uma tristeza de alma mais negra do que a noite. A lua voltara, pequenina e sem brilho capaz de iluminar o desígnio mais alto de um poeta. E sabe Deus como eles costumam ser altos. Pois aqui temos uma das mais insignificantes luas de que há memória, observou o operador, radiante por beneficiar, inexplicavelmente, do direito à 57

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palavra por que tanto ansiava. O seu clarão tem como única serventia iluminar as olheiras daqueles dois olhos descaídos e patetas com que sempre nos enganaram quando éramos petizes e cheios de boa-fé, e consagrar a ostensiva elevação do seu senhor solar. E aquele sorriso de obeso! Ó minha lua nova. Eu sei que sou um insano a estagiar entre gente atilada; no entanto, e graças de certa maneira a esta condição, tenho observado destes telhados o que ninguém vai desejar que se diga e se propague. E não o direi porque sou caridoso ao mesmo tempo que não ignoro que a nossa despreocupada humanidade deve ter atingido o seu ponto mais baixo, razão pela qual me impeço de nos pôr a todos ainda mais rasos do que já estamos. Digamos que, em certas latitudes, a reptação já se tornou o meio de locomoção mais adequado à vida de todos os dias, ainda que a acumulação em altura e a mística dos aeroportos dê uma impressão de arrebatamento vertical, que protege da ameaça de soterramento. Posso afirmar-vos que, aqui do meu telhado, vezes há em que observo como a criatura humana se vai rebaixando ao espírito do tempo até ficar mais aplainada do que uma tabuinha de pinho; e como, apesar disso, teima em insistir no uso de sapatos de chumbo porque estão na moda e em comprar livros que lhe escavam conscienciosamente o crânio porque é assim que deve ser para ser como se deve. E com isto não digo nada de novo. O que pode ser interessante é o facto destas observações, habitualmente apresentadas por eruditos de quem toda a gente se ri, ter chegado à mansão dos doidos, 58

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onde costumavam estar os vermes, e poderem ser retomadas agora por baratas dos telhados como este vosso criado, quem sabe se com mais êxito na distribuição e um calafrio de febre nas livrarias. A punição imediata seria o adeus ao subsídio, a partir da altura em que me teria tornado socialmente nocivo, quando já era inútil e reverente quanto baste. Encontrar o equilíbrio sustentável, aí está. Tanto mais difícil quando nos movemos nos telhados e vamos verificando com o coração em farrapos como a rataria toma conta do mundo, infectando com a lepra dos equilíbrios insustentáveis o que ainda sobra de gente e cada vez sobra menos, vos digo eu, que daqui de cima conto as cabeças com mais facilidade. Mas eu sou, reconhecidamente, um psico óptico tranquilo, subsidiado pelos camaleões estrábicos da assistência pública para ser insultado por um bando de cinéfilos incapazes e aprender assim, por meu custeio, os sofrimentos da reinserção entre invisuais, quando salta aos olhos que sou o único a ver alguma coisa. Pois bem: não descerei dos telhados! Acham que não dói ser-se insultado perante alguém que vem de fora por um director que não dirige nada e um argumentista ranhoso? Slam, que continuava em amável cavaqueira com a tia Amil, sentiu um nó formar-se no estômago, que lhe foi apertar a garganta. Tanta inexactidão, meu Deus, exclamou. Quantos erros de agulhagem! Mas como pode ser de outra maneira? Estás a referir-te a quê? disse a tia Amil, que não entendera nada. Estou a referir-me mais uma vez ao inex59

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