A Síndrome do Ipiranga

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A SÍNDROME DO IPIRANGA Por que Angola não ficou um Novo Brasil ? LUIZ CHINGUAR ABRIL 2013

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FICHA TÉCNICA Edição: Ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) Título: A Síndrome do Ipiranga - Por que Angola não ficou um Novo Brasil? Autor: Luiz Chinguar Capa: Patrícia Andrade Revisão : Ana Domingos Paginação: Nuno Remígio 1.ª Edição Setembro, 2013 Depósito legal: 361246/13 ISBN: 978-989-98448-3-4 © Luiz Chinguar PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO Sítio do Livro, Lda. Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


Aos meus Pais, velhos colonos de Angola, com muito orgulho Dedico.



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«O que é importante é a história. Porque quando todos nós formos pó – dentes e pedaços soltos de pele – quando estivermos a dançar com os nossos próprios esqueletos – as nossas palavras poderão ser tudo o que restará de nós.» Alexandra Fuller (2005). Scribbling the Cat-Travels with an African Soldier. London: Picador (edição em inglês e tradução do autor).

«Maldita seja a mentira, amaldiçoados sejam todos os que mentem.» Frase proferida por Maximino Conde em um comício pró-General Delgado, realizado na ilha de Luanda, para as eleições presidenciais de 1958, em Portugal.

«Entretanto, Angola já existia quando o Brasil foi descoberto, mas o seu progresso, se for posto em paralelo, não tem comparação possível. Na simplicidade deste lamento perpassa a vibração dum simbolismo amargo: Brasil e Angola, símbolo do que Portugal pode fazer e símbolo do que Portugal não pode fazer.» Excerto do artigo “Angola, a gata borralheira”, publicado no jornal A Voz do Planalto, em 24 de Maio de 1947, assinado F. A. Depois de este artigo ter sido publicado, o jornal esteve suspenso durante um ano. Não consegui saber quem foi F. A. (em anexo).

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INDICE 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.

Prólogo – indagações A costa O mato – o relevo e os rios O clima e as doenças As gentes Mobilidade e transportes Economia Os esqueletos nos armários 8.1. Os ossos do colonialismo 8.2. Os ossos da colonização 8.3. Os ossos da descolonização 9. Epílogo – ilações 10. Anexos 10.1. Principais produtos exportados por Angola, em 1973, em milhões de dólares 10.2. Angola, a gata borralheira 11. Bibliografia

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1. PRÓLOGO. INDAGAÇÕES. “Isto significa que, apesar de tudo, somos uma província da civilização ocidental. Uma nova Roma, uma matriz activa da civilização neolatina. Melhor que as outras, porque lavada em sangue negro e em sangue índio, cujo papel, doravante, menos que absorver europeidades, será ensinar o mundo a viver mais alegre e mais feliz.” «O que diferencia as condições de conjunção inter-racial no Brasil das outras áreas é o desenvolvimento de expectativas reciprocamente ajustadas, mas ajustadas, mais incentivadas que condenatórias do intercurso. O nascimento de um filho mulato nas condições brasileiras não é nenhuma traição à matriz negra ou branca, chegando mesmo a ser motivo de especial satisfação. Essa ideologia integracionista encorajadora do caldeamento é, provavelmente, o valor mais positivo da conjunção inter-racial.» Darcy Ribeiro (2006). O Povo Brasileiro, Companhia de Bolso 2010, São Paulo: Editora Scharcz, Lda.

«O povo português teve em Angola e Moçambique grandes terras virgens e grandes massas de negros escravizados; mas não sei o que houve nas directrizes iniciais da colonização que em África se atrofiaram os elementos que se expan11


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diram no Brasil – e a expansão étnica, a fixação pela casa e pela família, a adaptação ao meio que se pode chamar civilização regional, como que a simbiose da terra e do homem, não são fenómenos conhecidos da colonização de Angola e de Moçambique.» De Maria Archer, citado por Gilberto Freyre, em O Mundo que o Português criou.

«Mas a colonização, tal como foi praticada pelos Portugueses, deixou marcas originais em Angola. A estrutura económica, a estrutura social e a realidade cultural que a colonização portuguesa deixou como herança em Angola têm marcas sui generis que não se encontram em mais nenhum país de África.» Manuel Jorge (1998). Para Compreender Angola. Lisboa: Publicações D. Quixote.

«É importante referir, neste contexto, a desconfiança tradicional de Lisboa – e de Salazar – relativamente aos colonos brancos. Toda a retórica oficial sobre a criação de novos Brasis em África era projectada num futuro distante. De momento, os colonos eram vistos como um grupo problemático com a sua identidade própria e com prioridades que não eram necessariamente coincidentes com as da capital.» Filipe Ribeiro de Meneses (2010). Salazar – Uma Biografia Política. Lisboa: Publicações D. Quixote.

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asci no Planalto Central de Angola em 1932. Meus pais eram colonos portugueses que se fixaram em Angola em 1909 e 1928. Tomei plena consciência do mundo que me rodeava no início da adolescência, em princípios da década de 40, já em plena guerra 1939-1945. Frequentemente ouvia as verberações do meu pai sobre as injustiças e a má governação de Angola e, especialmente, sobre a letargia que caracterizava a vida na colónia. Até 1945, ainda havia a desculpa da guerra, em que faltavam os bens essenciais (pneus, ferramentas, gasolina, diversas peças, apetrechos e aparelhos, etc.). No entanto, após a guerra manteve-se o mesmo marasmo, agora sem uma justificativa plausível. Ainda assim, o governo colonialista em Lisboa começou a inquietar-se com as fumaças do incêndio anticolonialista que deflagraria alguns anos depois. A primeira fumaça apareceu na Índia, com a sua independência em 15 de Agosto de 1947, festejada com tanta pompa que até chegou a Angola, pelo cinema. Ninguém imaginou que o fogo chegaria até nós, mas ainda iriam decorrer perto de trinta anos. Ao longo deste livro abordarei, com alguma minúcia, os grandes males que afligiram Angola e que eu fui presenciando ano após ano. Já fora da Terra-Mãe, perdidos todos os laços físicos, não é fácil recordar o passado. Todavia, fá-lo-emos, até porque a história não é privilégio de alguns, mas de todos. Recordar é história, contribui para que não haja uma “verdade” fabricada pelos mais sabidos. Só a reunião de todas as 13


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“verdades” expurgadas permite a construção de uma verdade consensual. É inútil querer impor um PC (politicamente correto), de acordo com as circunstâncias e, especialmente, com interesses ocultos. Todos têm direito a expor os seus pontos de vista. Como disse um funcionário colonial, filósofo irónico, algo mordaz e enigmático: «(...) toda a questão é hexaédrica, mas as questões coloniais são poliédricas irregulares.» Estas linhas concretizam o enorme esforço em tentar juntar algumas peças do tremendo puzzle em que se transformou a história de Angola no século XX. Puzzle que não é mais completo porque perdi milhares de apontamentos. Quando tudo é destruído, permanece sempre a grande maravilha da “cerebromática”: a memória. A menos que seja atacada por um terrível “vírus” que se vai espalhando pelo mundo: Alzheimer. Jovem, ignorante e mal informado, às vezes com notícias tendenciosas, sempre me perguntava por que o Brasil era uma nação pujante, próspera, afável e optimista e Angola estava mergulhada num quotidiano de lentidão imprópria de um país novo, exuberante de recursos e pletórico de desafios, com uma população entusiasmada, mas infelizmente não compreendida e subjugada. Os meus pais e avô materno liam muito, havia sempre jornais de Luanda (três diários), de Lobito (diário a partir de 1965), Benguela e Nova Lisboa. E romances. Todavia, a leitura mais desejada eram as revistas semanais brasileiras, Cruzeiro e Manchete, avidamente lidas pelos angolanos. Por

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estas revistas era fácil imaginar como era o Brasil e o seu surpreendente progresso, e compará-lo com a lerdeza de Angola. Era decepcionante ler as revistas brasileiras: por que não era assim Angola? Vale acrescentar que todas as revistas brasileiras chegavam às livrarias angolanas com semanas de atraso: passavam por Lisboa, pela censura, e só depois é que seguiam para Angola. É redundante afirmar que se elas tivessem qualquer artigo que colidisse com a retórica colonial oficial nunca chegariam às nossas mãos. Só a partir de 1970 é que houve ligações directas entre Brasil e Angola, apesar de se encontrarem “frente a frente”. As Selecções do Reader’s Digest – edição brasileira – eram muito procuradas, tinham sempre artigos interessantes, uma pequena janela para o mundo exterior. Contudo, também ela passava pela apertadíssima e algo enigmática censura oficial. Foi graças a esta pequena revista que milhares de angolanos tomaram o gosto pela leitura e adquiriram alguns conhecimentos sobre o mundo. Recordo que esta revista, durante muitos anos, não publicava fotografias, só primorosas zincogravuras. Tive a sorte de fruir uma vida profissional que me proporcionou conhecer grande parte de Angola e fazer, mais tarde, reflexões e comparações sobre as dúvidas que me perseguiram ao longo dos anos. Ainda assim, há indagações que se me colocam diariamente, três perguntas que afloram sempre, à medida que os anos tombam quais pedras de dominó: ˗ Sob o aspecto de colonização europeia, por que quase

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tudo deu certo no Brasil? ˗ Sob o mesmo aspecto, por que quase tudo deu errado em Angola? ˗ Por que Angola não ficou um Novo Brasil? Desde o século XVI que Angola e Brasil estiveram ligados. Durante mais de dois séculos, especialmente depois de 1648, muitos governadores de Angola eram oriundos do Brasil. A independência do Brasil em 1822 acabou com aquela estreita colaboração e intenso intercâmbio. Após o desligamento do Brasil, Portugal continuou em Angola e o tráfico de escravos manteve-se até 1850, ano em que a célebre Lei Eusébio sepultou, definitivamente, o nefando comércio. Eusébio foi um corajoso senador brasileiro que fez aprovar uma lei proibindo que os navios escravistas pudessem atracar em portos brasileiros. Era bacharel em ciências jurídicas e sociais pela Faculdade de Direito de Olinda, diplomado em 1832. Eusébio de Queiroz Coutinho Matoso Câmara nasceu em São Paulo de Luanda, em 1812, e morreu no Rio de Janeiro, em 1868. O seu avô e o seu pai exerceram ambos o cargo de ouvidor geral da comarca de Angola. Quando tinha três anos, em 1815, a família mudou-se para o Brasil, tendo o seu pai sido eleito representante de Angola às cortes portuguesas, em 1821. As históricas cortes que foram a causa próxima da eclosão da independência. O seu pai assumiu a sua condição de brasileiro quando eclodiu a independência, em 1822. Depois desta data, manteve-se o tráfico de escravos, só interrompido com a Lei Eu-

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sébio. Note-se que foi sustado o tráfico, mas não acabou a escravatura. Esta só cessaria com a Lei Áurea, em 1889. Parece que existiram movimentos, nas duas colónias, para que Angola ficasse agregada ao Brasil, mas a Inglaterra opôs-se terminantemente. Talvez algum inglês tenha tido um vislumbre do futuro e imaginado que, com isso, o Brasil ficaria detentor do Atlântico Sul. A Inglaterra era, então, a dona dos oceanos. A ligação directa entre Brasil e Angola cessou totalmente durante o século XX, porque foi minuciosa e intencionalmente barrada. Portugal, com um zelo eficiente, mas dissimulado, manteve os dois países sempre bem afastados, mas a influência cultural brasileira aumentou, naturalmente, de ano para ano. Salazar sentia ciúmes em relação ao Brasil, temia que se desencadeasse uma “intimidade” entre Angola e aquele país. Mesmo assim, havia um amor platónico de Angola, em relação ao Brasil, embora não correspondido por este, por motivos óbvios: o total desconhecimento dos brasileiros era alimentado e mantido pela má vontade oficial metropolitana. Portugal empenhava-se em manter o Brasil longe de quaisquer contactos com as colónias portuguesas. Infelizmente, o Brasil nem se apercebia disso, de tão grande que era! Eram mais lidos os escritores brasileiros do que os portugueses. A essa propensão não era estranha a semelhança climática, a vida quotidiana e o passado colonial entre Angola e Brasil. E, também, o facto de só termos disponível a literatura portuguesa do século XIX. No meu curso secundário não foi lido qualquer escritor português contemporâneo. Talvez

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porque grande parte dos escritores portugueses do século XX era contrária ao regime imposto por Salazar. E incrível: saí do ensino secundário sem conhecer Fernando Pessoa! Quando cheguei ao Brasil, em 1976, estranhei bastante ser Fernando Pessoa muito apreciado e constantemente citado. Os brasileiros estranhavam a minha ignorância em relação a Fernando Pessoa. Apreciei todos os livros de Jorge Amado, alguns por vias clandestinas, como é o caso de Capitães da Areia e de Subterrâneos da Liberdade, hoje completamente desactualizados, depois do tremendo fracasso comunista. Li quase todas as obras de Érico Veríssimo, Guimarães Rosa (criticado, por alguns intelectuais portugueses, pelo modo moderno de usar a língua portuguesa), José Mauro de Vasconcelos (criticado por ser popular) e José Cândido de Carvalho, que, com um único livro conhecido, consegue ser genial. Trata-se do romance O Coronel e o Lobisomem, que usa uma linguagem igual à do Coronel Odorico Paraguaçu, da telenovela O Bem-Amado, de grande sucesso televisivo. O livro é um delicioso ensaio humorístico e de neo-literatura! Todavia, não consegui ler a obra de Euclides da Cunha, Sertões, porque nunca apareceu nem foi autorizada, por motivos óbvios, nas livrarias angolanas. E porquê? Porque o livro aborda, de um modo épico, uma revolta camponesa nos sertões do nordeste brasileiro, no estado da Bahia, em 1890. Foi escrito por um coronel do exército brasileiro, Euclides da Cunha, que, de modo surpreendente, descreve a epopeia abordando a crua realidade, infelizmente admitindo diferen-

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ças genéticas entre os brasileiros, como era moda pseudocientífica no mundo, no fim do século XIX, lamentavelmente prolongada até 1945, mas prestando justiça à revolta dos camponeses, caso inédito para o tempo em que as revoltas populares contra injustiças eram todas encaradas como sendo puro banditismo. Foi pena que, durante o tempo colonial, o Brasil estivesse afastado das nossas vidas. Quem sabe se ele não teria dado uma preciosa colaboração, não só na área tecnológica, indiscutivelmente a mais avançada em países tropicais, mas especialmente no aspecto de tolerância, capacidade de diálogo e consenso. O país, especialmente na década de 50, tinha uma agradável democracia, durante o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1960). Só muito tardiamente, em fins dos anos 50, é que foi aberto um consulado brasileiro em Angola. A ligação aérea entre Angola e Brasil só se efectivou em princípios da década de 70. De Angola foi feito um convite a Juscelino, quando residiu em Portugal nos anos 60, para visitá-la. Salazar, manhosamente, torneou a questão. Nada de contactos com os brasileiros, nada de entusiasmos fora do contexto. Decorridos mais de 30 anos sobre a independência de Angola, e tendo este país perdido a matriz portuguesa (é totalmente africano, completamente diferente do Brasil), é hora de se abordarem os porquês, porque os há e muitos. Em Portugal, após uma descolonização desmiolada e irresponsável, é comum a esquerda culpar Salazar pelo insucesso português em Angola. Por outro lado, a direita culpa

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Mário Soares pelo descalabro em que se caracterizou a descolonização. Como se estes dois estadistas, apesar de carregarem culpas, e muitas, pudessem traçar os grandes vectores humanos, históricos, geográficos e mundiais que definiram o porvir de Angola. Contudo, que eles carregam as suas culpas, e grandes, é mais do que evidente! Que qualquer um deles podia ter porfiado outro desfecho, menos trágico, é incontroverso! Ainda assim, a independência de Angola, matematicamente, não é só um somatório de erros, de intolerâncias, de inoperâncias e ganâncias, mas apresenta, felizmente, muitas faces positivas, como, aliás, qualquer independência ou como qualquer “sacudidela de poder injusto”. Ambos, Salazar e Soares, eram ignorantíssimos sobre Angola. Inacreditável: nem um nem outro estiveram em Angola, mas as suas influências e decisões contribuíram para o desenlace final. O desfecho, em 1975, que acabou por se tornar natural, depois de muita intolerância e imensas tragédias, deveu-se a muitos factores, grande parte deles imputável à geografia e, obviamente, à história. Angola “ocupa” quase todo o nordeste brasileiro e, portanto, é fácil fazer um cotejo. A latitude é a única coordenada geográfica que permite fazer comparações, uma vez que ela define os climas (condição principal para a fixação das pessoas) e, de certo modo, os solos (condição para uma vida melhor e atitude de ficar) e a geologia (condição para riqueza rápida e retorno ou fixação se a nova terra oferecer entesouramento, estímulos e garantias). A geologia, consubstanciada

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em ouro, prata e diamantes foi, e continua a ser, o factor que atrai mais colonos e é, também, o maior motor de um desenvolvimento rápido. Este factor dá tranquilidade aos imigrantes, pois constitui o melhor entesouramento e é o mais fácil para esconder ou subornar. Não é racional fazer-se uma comparação de Angola com o todo brasileiro. O sul do Brasil já é marcadamente de tendência temperada, assim como o norte é vincadamente equatorial. Todavia, vamos fazê-la numa área do Brasil situada precisamente entre as latitudes 4º S e 18º S, e com a mesma largura a partir do Oceano Atlântico, ou seja, “arrastando” Angola 1200 km horizontalmente para ocidente, adoptando os paralelos como trilhos e justapondo-a às terras do outro lado do Oceano Atlântico. A área da Angola, 1.276.700 km2, cabe 6,66 vezes na área do Brasil. Porém, vamos considerar neste apenas uma área igual à de Angola, um “quadrado” que tem, grosso modo, por limite norte o paralelo que passa por Maracanaú, no Ceará (50 km a sul de Fortaleza), e por limite sul o paralelo que passa pelas cidades de Nova Viçosa, na Bahia, e Teófilo Otoni, em Minas Gerais. Por “limite” oeste, temos o meridiano que passa por Brasília e, ainda, por limite este considere-se o Oceano Atlântico. É uma área inteiramente situada na zona tropical sul. É sobre esta área, que abrange parte do Nordeste Brasileiro, que vamos fazer todas as comparações possíveis a fim de podermos responder, satisfatoriamente, à pergunta: por que a colonização europeia não vingou em Angola, ao contrário do Bra-

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sil? Por que se esvaneceu, no meio da maior precipitação, e até de pavor, a apreciável colónia de emigrantes portugueses, e alguns estrangeiros, de mais de 100.000 leuco-angolanos e, também, de muitos milhares de euro-africanos e africanos? Situando-se em latitudes iguais, Angola e o Nordeste Brasileiro têm algumas semelhanças, mas muitas diferenças. Podemos agrupá-las de acordo com uma cronologia, a partir do momento em que Diogo Cão pisou as praias angolanas (1482). São factores que condicionaram, inapelavelmente, o futuro dos dois países: ˗ Factores naturais: ventos e correntes marítimas no Atlântico Sul, o litoral, o interior, a orografia e a hidrografia. ˗ Factores humanos: existência de povos nativos vivendo há séculos com as suas idiossincrasias, avessos a transformações sociais, muito aferrados aos seus costumes e tradições, ciosos das suas terras. No processo histórico mundial, os povos de Angola viviam na etapa rural. Não existia nenhuma cidade até 1575. Só em pleno século XX é que Portugal conseguiu estender a sua autoridade sobre todo o território angolano, após entrechoques que chegaram a adquirir um cariz militar. Historicamente, a presença tardia de colonos catalisou a território para a etapa urbana. A ocupação europeia do Brasil não foi tão violenta como a de Angola ˗ Factores climáticos: preponderantes na aclimatação das pessoas e gados alóctones. ˗ Factores de mobilidade e de transporte: fundamen-

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tais na formação de cidades e sociedades urbanas, consubstanciadas nas trocas comerciais provenientes das produções internas. ˗ Factores económicos: geologia e solos, abrangendo os sectores de mineração, florestas, agricultura, pecuária, pescas e concomitante comércio e indústria. ˗ Factores geoestratégicos: correlação com os povos vizinhos e com o mundo. ˗ Factores sócio-histórico-políticos: como foram as governanças, quais os interesses que intervieram em todo o processo histórico, quais as variáveis em jogo e quais foram as influências externas. Vamos descrever todos estes factores que foram preponderantes na formação dos dois países – Brasil e Angola –,saídos de colonizações portuguesas, desde o século XV até aos séculos XIX (1822) e XX (1975), respectivamente. Vale ressaltar que estes factores estão, como é lógico, interrelacionados. Uma circunstância dá origem a outras variáveis, assim como o tempo acaba por favorecer ou acelerar desfechos surpreendentes. O tempo está sempre ligado a todas as variáveis. Como filosofou um brasileiro, que infelizmente não consigo situar com precisão, salvo erro foi o mineiro Ciro dos Anjos, escritor e político: «as coisas não existem no espaço, existem no tempo.» Não se pode imaginar um luandense, como já vi escrito, saboreando um “baleizão” (sorvete) em pleno século XIX!

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ngola foi cartografada, pela primeira vez, em 1482, na sequência da tentativa de se alcançar a Índia contornando a África, a fim de concorrer com o comércio por terra, feito através de Veneza, como então se verificava. A Índia era considerada um eldorado de civilização requintada, com muitas riquezas (ouro, diamantes ainda pouco conhecidos na Europa, pedras preciosas e pedras ornamentais). Todavia, o principal interesse económico eram as especiarias (pimenta e canela, principalmente), uma vez que estas, além de tornaram as comidas mais deliciosas, as disfarçavam quando estavam comumente adulteradas (o que era normal num tempo em que não havia refrigeração!), e, sobretudo, algumas eram consideradas afrodisíacas. A escala dos navegadores em Angola foi apenas um primeiro trampolim, meramente geográfico, para se atingir a Índia, o que se concretizou em 1498, com a célebre viagem de Vasco da Gama. O primeiro navegador europeu a desembarcar nas costas de Angola foi o português Diogo Cão, em 1482. Ele seguiu uma rota de cabotagem, sempre com a “terra” à esquerda, e teve de navegar à bolina, ou seja, contra ventos e correntes 25


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marítimas desfavoráveis. Percorreu quase o dobro de uma rota bem definida. Mais tarde, Bartolomeu Dias, em 1486, atingiu o extremo sul do continente africano – o Cabo da Boa Esperança –, seguindo também uma rota ao longo da costa. Este teve de enfrentar os mares ao largo da Namíbia, ao sul de Angola, com correntes marítimas adversas – a célebre Corrente Fria de Benguela, que corre de sul para norte – e com ventos contrários. Não é por acaso que a costa, ao sul de Angola, tem o sugestivo nome de Costa dos Esqueletos: nas suas praias jazem dezenas de carcaças de navios, ocupadas, alegremente, por milhares de focas e leões-marinhos que encontraram ali apartamentos de 1.ª classe, verdadeiras fortalezas contra os predadores terrestres. Por seu lado, o Brasil foi cartografado, pela primeira vez, em 1500, pelo português Pedro Álvares Cabral. Há controvérsias sobre esta viagem: uns historiadores dizem que a rota era intencional, outros afirmam que foi por acaso, devido às contingências da navegação à vela. Pelos documentos existentes, especialmente mapas, verifica-se que Vasco da Gama, em 1498, já navegou de acordo com os ventos e correntes marítimas do Atlântico Sul, tendo passado ao largo do Brasil. Assim, ficou definida uma nova rota que aproveitava as condições naturais predominantes no Atlântico Sul. Hoje, dir-se-ia que navegou utilizando energias renováveis. Para a época era, indiscutivelmente, uma tecnologia de ponta, era uma navegação mais científica. Embora Angola tenha sido reconhecida e cartografada

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(em 1482) dezoito anos antes do Brasil (em 1500), esta não despertou, inicialmente, qualquer interesse à Coroa Portuguesa. As frotas da Índia só passavam por Angola no regresso, apenas para aguadas. Como se diz popularmente, passavam “de rota batida”, vinham carregadas com riquezas e especiarias destinadas à Europa. A pressa em chegar era mais que óbvia: as caravelas vinham hiperlotadas. Com a “descoberta” do Brasil descobriu-se, também, que a melhor rota de navegação para a Índia era através deste, de acordo com a feição dos ventos e correntes marítimas do Atlântico Sul. Com isto, até mesmo os barcos mais bem aparelhados e aprovisionados, com destino final para Angola, passavam primeiro pelo Brasil, que se apropriava dos bens destinados a ela, indo as sobras para África. Um governador-geral do século XVIII indignou-se com a apropriação “das delícias do Natal” destinadas a Angola. Como notou o geógrafo Gago Coutinho (1869-1959), a propósito das correntes marítimas: «A importância da ponta nordeste do Brasil na latitude de 5 graus – o Cabo de São Roque – não foi notada nem pelos cronistas, nem por autores de agora. Ignoravam os riscos das naus, ao tentarem montá-lo à vela. Pois são-lhe impostos tanto o sueste, vento dominante do Atlântico Sul, como ainda a forte corrente Equatorial para Poente. Era necessário cortarem o Equador pelo meridiano das ilhas de Cabo Verde, como lemos nos roteiros. Mas este detalhe não foi adivinhado, e até Colombo o ignorou. Ademais, hoje já sabemos que as travessias atlânticas à vela obedecem a mãos, como as ruas: o que

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não fora adivinhado. Não havia lá sinais nem sinaleiros. No Norte, a mão é pela esquerda e, no Atlântico Sul, pela direita. Ambas eram “segredo de D. João II” e os pilotos faziam caixinhas. Com eles aprendeu Colombo, mas não foi contar para Espanha. E tanto que, das suas caravelas, duas já levaram velas quadrangulares, as próprias para ventos favoráveis. Foi às Antilhas pelo Sul e regressou pelos Açores. Sempre pela esquerda.» O Cabo de São Roque localiza-se 50 km a norte da cidade de Natal, no município de Maxaranguape. Foi cartografado pela primeira vez por André Gonçalves e Américo Vespúcio, que ali aportaram em Agosto de 1501, integrados numa esquadra de três naus. Ficaram extasiados com a exuberância vegetal da costa. Até ao aparecimento dos barcos a vapor (1820), generalizados por volta de 1860, a navegação fazia-se à vela, aproveitando os ventos e as correntes marítimas. A melhor rota específica para Angola era através do Brasil ou, a priori, segundo os rumos Lisboa-Canárias-Cabo Verde-Cabo de São Roque-ao largo da costa do Brasil-ilha de Santa HelenaMoçâmedes (Namibe). Logo de início, esta rota deu preponderância ao Brasil. Tudo o que se destinava a Angola passava primeiro pelo Brasil. Os barcos da “carreira da Índia” não demandavam Angola, passavam muito ao sul, próximo do Cabo da Boa Esperança, vindos do Brasil. Às vezes só passavam por Angola no regresso ... Isto alterou-se com os barcos a vapor, que seguiam qualquer rota sem subordinação aos ventos e correntes marítimas.

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Eles generalizaram-se a partir de 1860, quando o Brasil já era independente e quando o nefando comércio da escravatura estava agonizante. Este Américo Vespúcio foi o “padrinho” do continente americano. E, podemos também afirmar, foi o padroeiro dos actuais repórteres. Nada sabia de navegação, apenas acompanhava as expedições como cronista-mor. Ficou imortalizado porque escreveu crónicas sobre as suas viagens no continente “americano”. Em troca, imortalizou-se. É interessante notar que os actuais aviões bimotores, que fazem a rota LisboaBrasil, voam pelo Oceano Atlântico, directos ao Cabo de S. Roque, e dali por terra até às diversas cidades brasileiras. Um caso paradigmático passou-se com o desterro de anarquistas italianos. D. João VI, em 1821, já estava em Portugal e assinou um “convénio” com o rei das Duas Sicílias, D. Fernando IV. O convénio estabelecia o desterro para Angola de 3000 revolucionários de Nápoles, Palermo e Creta, condenados à morte. Não eram presos de delitos comuns, mas revolucionários. O anarquismo estava despontando no mundo e a Itália (na altura ainda não unificada) era um dos berços da nova doutrina que estava provocando terror entre a burguesia europeia. Os anarquistas sempre se caracterizaram por uma boa consistência cultural. Fora da Europa eram disputados pelos novos países. Só 200 presos é que desembarcaram em Luanda. O resto ficou no Brasil, um lote de bons colonos que o Brasil tratou logo de aproveitar. Os que desembarcaram em Angola não foram tratados como degredados, mas foram de imediato

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aproveitados para as diversas actividades que exigiam capacitação. Muitos casaram com angolanas. Destes casamentos nasceu Geraldo António Victor, mestiço afro-napolitano, que se tornaria um oficial superior do exército português (general de brigada, actual tenente-general). O pai de Geraldo Victor, napolitano de origem, desembarcou em Luanda, em 1821, vindo na fragata Vénus. Deu-se um caso semelhante no tempo do Imperador D. Pedro II. De novo na Itália, vários anarquistas foram condenados à morte, mas o imperador conseguiu anular a pena máxima e levou-os para o Brasil, onde constituíram um valiosíssimo núcleo de colonos. Entre eles viajou uma criança de nome Zelia Gatai, que viria depois a ser a esposa de Jorge Amado. Ela escreveu um livro com um título elucidativo: Anarquistas graças a Deus. Pélissier (1986) descreve-nos: «Giraldo António Victor (1835-1894), mestiço afro-napolitano, exerceu funções de comando na Guiné e em S. Tomé. Supõe-se que foi o único oficial general de 1.ª linha de ascendência angolana que existiu durante o longo império colonial português. Tinha a fama de decapitar os seus inimigos, com um único golpe, motivo por que ficou conhecido como Quinjango (catana).» Pouco depois de 1970, o governo colonial de Lisboa lembrou-se (por motivos óbvios) do general Geraldo Victor e deu o nome dele a uma escola. Nesta época, era urgente apresentar “serviço”, ou seja, mostrar ao mundo que a precária aculturação em Angola provinha de séculos anteriores. Cabe aqui uma reflexão, relacionada com esta curiosi-

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dade: em 1974, um ano antes da independência, as Forças Armadas portuguesas em Angola não tinha nenhum africano com o posto de general, ou sequer de major. Isto leva-nos a afirmar que G. António Victor foi o primeiro, e talvez único, general mestiço do exército português. O Brasil tem uma área de 8.547.403 km² e um recorte litoral de mais de 8000 km. Angola tem 1.246.700 km² e um recorte litoral de 1650 km. O Brasil é quase sete vezes maior do que Angola; esta abrange, em área, parte do Nordeste Brasileiro, a Bahia e parte de Minas Gerais. Os navegadores portugueses, ao pisarem terras angolanas, tiveram uma decepção: a costa é semiárida, de feição desértica, com vegetação xerófila (predominância de embondeiros, espinheiras e eufórbias ou “cactos candelabros”). Não apresenta nascentes de água, a que existe é trazida pelos rios vindos dos planaltos, ou encontra-se em lagoas originadas pelas chuvas. Estas são escassas e irregulares na orla marítima (350 mm anuais, em Luanda), decrescem de norte para sul, mas são fartas e regulares nos planaltos (1200 mm anuais, em média). Nos meses do “cacimbo”, de Junho a Novembro, na orla marítima angolana não há vegetação verde, não chove, não há frutos silvestres, mas a temperatura média é fresca, em torno de 22 ºC, mercê das brisas que sopram do mar para terra, à noite, e de terra para o mar, durante o dia. A costa angolana apresenta falésias, com alturas passando dos 30 m, muito erosionadas pelas chuvas e pelos ventos, despidas de vegetação. A decepção inicial dos navegadores prende-se com o facto de que entre os europeus prevaleceu,

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até há pouco tempo, a ideia de que, na natureza, tudo o que não é verde é feio e inóspito. Infelizmente, desde muito cedo que se instalou no imaginário europeu a ideia de que a costa de África era pouco recomendável para se viver e que era escalvada e feia. Os condenados iam, regra geral, para a tenebrosa “costa de África”. Os modernos conceitos de turismo reabilitaram todas as terras do mundo, tornando-as atraentes e cada uma com a sua beleza. Hoje, até os desertos fazem parte, e bem, da propaganda do turismo. Júlio Verne, escritor francês (1828-1905), celebrizou-se pelos seus livros de aventuras que fizeram a delícia dos jovens de todo o mundo, durante gerações. Ainda hoje as aventuras idealizadas por ele se lêem com agrado. Contudo, até ele contribuiu para a exagerada má fama que pairou sobre Angola e, de uma maneira geral, sobre África. Quase toda a literatura europeia, e, por acréscimo, a dos restantes países, fossem das Américas ou de outros continentes, apresenta o continente africano como repositório das maiores desgraças e portador de um clima ceifador antecipado de almas. E Júlio Verne também deu “uma mãozinha”. A obra Um herói de quinze anos é uma aventura que roda em torno de uma viagem de barco desde a Nova Zelândia até ao continente americano. Depois de uma violenta tempestade, o barco acaba por encalhar na costa de Angola, a 100 milhas (norte ou sul não é pormenorizado) da foz do rio Cuanza. Quando se apercebem onde estão, um dos personagens exclama: «A África! A África equatorial! A África dos negreiros e dos escravos!».

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De seguida, descreve os perigos, mais do que exagerados, que os náufragos enfrentaram em terra: de noite, tiveram de fugir de doze ou quinze crocodilos que atacaram um dos flancos da caravana, um evidente exagero que nada abona os taciturnos répteis! Os crocodilos, em Angola, impropriamente denominados de jacarés, nunca precisaram de sair das margens dos rios: milhares de mamíferos vêm beber nas suas margens. Para se alimentarem, eles não saem da água. Só as fêmeas o fazem para enterrarem os ovos nas areias das margens, até à oclusão provocada pelo calor. Os crocodilos, em Angola, têm medo de sair da água! E não são aos dez ou quinze. Quando precisam de comer, atacam isoladamente, sempre dentro da água, embora depois, mal-humorados, deixem os “colegas” participar do bolo. Aliás, precisam deles porque as carcaças são rodadas até se desfazerem em pedaços pequenos o suficiente para serem engolidos. A descrição de Júlio Verne dos morros de salalé (as simpáticas térmitas) chega ao exagero: «Chegou a parar junto de verdadeiros edifícios, não de vinte pés de altura [6 m], mas de quarenta a cinquenta [12 a 15 m], cones circulares, enormes, rodeados de pequenos campanários, à semelhança do zimbório de uma catedral: assim são os que se vêem na África meridional.» Armindo Monteiro, um dos mais famosos ministros de Salazar, deslocou-se a Angola em Agosto de 1930 para consertar as abaladas e mal conduzidas, ou melhor desbaratadas, finanças da colónia. Escreveu uma carta a Salazar, de que

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transcrevo as seguintes passagens, todas impregnadas do velho preconceito europeu relativo a África: «Lá acabou, por fim, esta tremenda navegação. Ontem de manhã o Quanza fundeou em frente desta feia e árida Luanda onde não lobriguei um canto de verdura.» E noutra passagem da carta: «A própria natureza fez desta costa uma linha árida. Os campos são secos, as árvores nodosas e retorcidas, parece que crescem de raízes para o ar; as palmeiras chegam a fazer vista de bonitas. A terra é vermelha, abrasada.» Muitos exageros, a começar por «esta tremenda navegação». Na verdade, as viagens entre Angola e a Metrópole, no século XX, eram agradáveis, com boa comida e muitas festas. Quando se ia para a metrópole, de férias, elas começavam, agradavelmente, logo na primeira noite. Num dos poucos e anémicos compêndios de geografia de Angola, o autor, em 1940, descreve a orla litorânea: «Vista do mar, é erma e triste toda a zona litoral. Corcoveiam nela os morros amarelentos, escalvados como dunas, que a secura esteriliza, gretados por enxurros que nenhuma vegetação atenuou. Só de onde em onde os palmares, que verdejam ao longo dos rios serpenteantes, ou as matebeiras que se alçam pelas planuras da costa, abrem manchas de cores vivas naquela monotonia de terra escandecida, onde a luz rubra do sol se reflecte com um clarão de incêndio. Mal se enxergam, de longe, os espinheiros bravios ou os candelabros de formas esqueléticas que são produção maior deste solo de miséria. O próprio embondeiro, de tronco bojudo, com o seu

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ventre hidrópico, tem aparências de rocha na sua desgraciosa enormidade.» Os «palmares, que verdejam ao longo dos rios serpenteantes» certamente que não foram avistados pelos primeiros europeus, pois trata-se de plantações feitas pelas plantations, a partir dos fins do século XIX. Através delas, Angola era um grande produtor de óleo de palma. Utilizamos o termo inglês “plantations” para designar uma fazenda de produtos tropicais ricos (algodão, óleo de palma, cana de açúcar, coqueiros). Os donos nem sequer as conheciam, viviam em Lisboa. Todas as plantations se situavam na orla marítima, na foz dos rios planálticos perenes (onde corre água todo o ano). As fazendas dos colonos, situadas nos planaltos, denominadas regionalmente de “chitacas”, eram paupérrimas e não serviam de suporte para uma economia pessoal. Desenvolveremos este assunto mais adiante. O escritor Miguel Torga não escondeu o velhíssimo “preconceito europeu”. Numa breve viagem que fez a Angola, em 1973, registou apressadamente: «Escrevo diante da mesma paisagem feia para que abri os olhos de manhãzinha e que parece abafar como eu. Paisagem seca, pulverulenta, ardida, de vegetação precária e rasteira, que algumas cabras famélicas depenam e algumas presenças arbóreas tentam em vão erguer: embondeiros disformes, edemaciados monstruosos, mangueiras sombrias, espessas, maciças, mamoeiros esgrouviados, sintéticos, de testículos ao pescoço.» Edemaciados significa inchados, uma deformação profissional de Miguel Torga, que era médico.

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Quando Miguel Torga se embrenhou no interior (Cela, a 1200 m de altitude) continuou com a sua azeda impressão: «Mais trezentos quilómetros de desilusão paisagística e humana. O embondeiro é, na verdade, o aborto da flora, a vergonha do reino vegetal. Com semelhante trambolho atravancado nos olhos não há beleza panorâmica possível.» Vale dizer que acima dos 1000 m de altitude já não há embondeiros! Na Cela já não existem! Em nossa opinião, a paisagem da Cela, pletórica de inselbergs (montes-ilhas), é deslumbrante. Sobre o embondeiro, o inglês Lovett Cameron, que esteve em Angola em 1874, lisonjeou a árvore ao afirmar que «o baobá é o elefante do reino vegetal». O litoral brasileiro impressionou, logo de imediato, os primeiros navegadores. Pero Vaz de Caminha, o cronista da primeira expedição, na sua celebérrima Carta, descreve assim as praias: «(...) e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos, de ponta a ponta é toda praia plana muito chã e muito formosa.» E mais adiante reforça a impressão inicial: «Além da terra em si, é de muitos bons ares, frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora, assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, quando a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.» A costa brasileira é verdejante, com uma flora riquíssima, com dezenas de frutos silvestres e uma fauna variada, especialmente pássaros de cores lindíssimas, com milhares de nascentes provenientes das chuvas regulares que ali ocorrem. Foi a exuberante Mata Atlântica que, logo de imediato, for-

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neceu o primeiro vector económico das novas terras: o paubrasil. E serviu de nome ao futuro país. Portugal tinha encontrado, em terras sul-americanas, um fecundo maná de riquezas e matérias-primas, melhor do que as Índias. Pela primeira vez, os navegadores valorizavam os recursos naturais vegetais, um antagonismo à avidez de especiarias, de metais (ouro e prata) e de diamantes. O litoral brasileiro, embora não tenha um grande recorte, se o compararmos com a costa leste dos Estados Unidos, é mais bem servido de baías e ancoradouros naturais do que Angola, um factor importante nos tempos de barcos à vela que, como é óbvio, teriam de ficar bem resguardados das ondas, dos ventos, de tempestades e, principalmente, das esquadras inimigas ou piratas. A costa brasileira tem boas e grandes baías naturais, com relevância para a baías de Marajó (Belém), S. Marcos (S. Luiz), Todos os Santos (Salvador), Camamu (Bahia) Recife, Guanabara (Rio de Janeiro), Paranaguá, ilha de Santa Catarina (Florianópolis) e Laguna dos Patos (Porto Alegre). No Nordeste Brasileiro, situado nos mesmos paralelos de Angola, destaca-se a Baía de Todos os Santos onde nasceu a cidade de Salvador, uma das metrópoles brasileiras. É uma baía de origem tectónica, proveniente de movimentos da crosta terrestre durante milhões de anos. Com uma área de 1232 km2, é uma das maiores baías do mundo e proporciona um abrigo natural excepcional. Com um perímetro de 300 km, alberga 56 ilhas (a maior é Itaparica, uma jóia do turismo) e 13 municípios, com “deliciosas” cidades históricas

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espalhadas ao longo do seu litoral. Não nos admira que a Baía de Todos os Santos tenha sido escolhida para a fundação de uma cidade que, de imediato, ficou como capital dos novos territórios. A cidade de Salvador não precisou de grandes incentivos. Logo de início (1549) se impôs como cabeça de nação. O mesmo se passou mais a norte, a cerca de 700 km, com as cidades de Olinda e Recife. Nesta última existe o estuário do rio Capibaribe, que dava bom abrigo aos barcos. Nasceram, assim, as duas cidades, já opulentas, decorridos pouco mais de 50 anos após a chegada dos primeiros navegadores. Em Salvador chove quase todos os meses do ano, sendo a cidade bem provida de água. Nos arredores há lindíssimas lagoas, abastecidas, regularmente, por generosas chuvas. A costa de Angola não tem uma única baía natural, isto é, que seja de origem tectónica. É desoladoramente lisa. Em 1200 km de meridiano, a costa tem 1650 m de extensão, ou seja, um baixo índice de recorte (1,4). Como exemplo, o índice de recorte litoral da Noruega é impressionante: em mais de 3500 km de costa, há milhares de golfos (fiordes), baías e ilhas. Qual é o índice de recorte? Quem for curioso perde a vontade de o calcular, o litoral é todo rendilhado. Em Angola, as “baías” onde foram construídos portos marítimos (Luanda, Lobito e Moçâmedes – agora Namibe) foram originadas por cordões litorais (restingas) constituídos por areias trazidas pelos rios, mais a sul, associadas a erosões costeiras, encarreiradas sob a força da Corrente Fria de Benguela. A baía mais notável é a Baía dos Tigres, no extremo

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sul, que era um cordão litoral, com 30 km de extensão, originado pelas areias carreadas pelo rio Cunene, cuja foz se situa 30 km a sul, e pelas dunas do deserto. O rio Cunene delimita a fronteira sul com a Namíbia. Dizemos “era um cordão litoral”, porque a língua de areia se transformou numa ilha, em 1971, separada de terra em mais de 2 km. A melhor “baía” de Angola foi tragada pelo mar. A costa angolana ficou mais lisa. A baía de Luanda é formada por uma restinga típica do litoral angolano: um cordão de areias, no sentido sul-norte, provenientes dos rios costeiros (Cuanza, principalmente), carreadas pela corrente fria de Benguela, pelas erosões costeiras e pelas calemas que são marés vivas periódicas. O porto marítimo de Luanda aproveitou a dádiva do rio Cuanza, que desagua a 50 km a sul da cidade e deposita no mar, anualmente, milhões de toneladas de areia, formando a baía de Luanda. A formação da ilha do Mussulo, a sul de Luanda, é de igual génese. O outro grande porto de Angola – Lobito – está também implantado numa baía formada por uma restinga de areias carreadas pelo rios Catumbela e Cavaco, mais a sul. Conhecido inicialmente por Enseada do Mangral, e depois por Catumbela da Água Salgada ou Catumbela das Ostras, o Lobito era frequentado, no século XIX, por habitantes da Catumbela que ali iam fazer piqueniques de ostras assadas. Não existia água potável nas imediações. Ralph Delgado, um historiador angolano de século XX, formulou a seguinte pergunta: por que Cerveira Pereira, quando fundou Benguela em 1617, não se apercebeu da ense-

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ada do Lobito, muito melhor do que a Baía de Santo António (Benguela) onde ele se estabeleceu e fundou a cidade? E ele mesmo concluiu: porque a restinga não existia. Em 1785, em seu Mapa da Derrota, o navegador Joaquim José da Silva não assinalou a restinga. Todavia, os cordões de areia do Mussulo, das Palmeirinhas e da ilha de Luanda já estavam assinalados. O LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil de Lisboa) procedeu a demorados e meticulosos estudos sobre a restinga do Lobito, em modelos reduzidos e no terreno, e chegou à conclusão que a restinga era de origem recente (cerca de 400 anos) e que estava a crescer, em comprimento, de tal maneira que causaria o fechamento da baía em cerca de 25 anos. Para obstar a esta adversidade, foram construídos, nos fins dos anos 60, espigões de blocos de pedra, perpendiculares à linha de costa. Os resultados foram espectaculares: a restinga não avançou, mas engordou, como se pretendia. A restinga do Lobito foi “construída” por vários agentes geográficos: os sedimentos do rio Catumbela e, talvez, do rio Cavaco a sul, a ondulação ou vaga que é sempre de Sudoeste devido à Corrente Fria de Benguela, as fortes erosões eólicas e pluviais das falésias e as calemas periódicas. Estes agentes originaram um cordão litoral com 3 km de comprimento e com 150 a 250 m de largura. O Lobito era farto de mangues (plantas de raízes aéreas que vivem dentro da água salgada durante as marés cheias). As ostras, aos milhares, agarram-se às raízes aéreas. A costa de Angola, povoada de mangues, especialmente entre Porto Amboim e Lobito, era riquíssima em ostras, uma actividade

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que deveria ter merecido um pouco de atenção ao governo colonial. A maior parte da população de Angola nem sabia o que era uma ostra e o bem que elas faziam ao ego das pessoas. Dizem que a ostra é afrodisíaca. Quer seja ou não, nunca vai perder esta fama. Um meu familiar tentou comercializar as ostras e, depois, talvez criá-las em viveiros. O pó das cascas, precioso em calcário, seria industrializado. Não conseguiu crédito em parte alguma. Chamaram-lhe louco e acabou por “gastar” a sua vida na camionagem, aquela terrível camionagem em estradas lamacentas, com comboios de camiões atolados em mais de 30 km. Por que se chama Lobito? Uma versão, talvez a verdadeira, diz que a palavra vem do ovimbundo “oluptu”, que significa passagem da água. Outra versão diz que vem da seguinte história: em fins do século XIX, quando começou a construção do porto do Lobito, a enseada começou a ser frequentada por barcos a vapor que, de manhã, apitavam para os trabalhos diários. Depois, quando começaram as dragagens, antes da construção do porto, as dragas a vapor apitavam para o começo dos trabalhos, às 7 horas da manhã. E as pessoas perguntavam: já tocou o apito? Que se simplificou para “Lôpito” e, depois, Lobito. Há uma saborosa história sobre o Lobito. Quando o Presidente da República, General Craveiro Lopes (eleito em 1951, jovem para o cargo, um presidente zero quilómetros, ao gosto de Salazar, que assim julgava que não iria ter problemas, tão cedo, com as incomodativas eleições), visitou Angola, em

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1954, todas as cidades foram heraldicamente contempladas. Trocando em miúdos, receberam bandeira com brasão. Tudo feito lusitanicamente, ou seja, à pressa e sem ouvir os interessados, neste caso, as populações. Os brasões foram desenhados no Ministério do Ultramar por pessoas que pouco ou nada conheciam do assunto. Resultado: no brasão do Lobito foi inserido um pequeno lobo, um lobito, o que provocou comentários hilariantes no jornal da cidade: O Lobito. Este jornal foi o que mais oposição criou ao governo colonial, com artigos quase sempre mordazes. Já era diário em 1972, tinha boa circulação e, sobretudo, credibilidade, este um produto que está rareando na combalida informação portuguesa. Como curiosidade, e porque a engenharia actual pode ajudar, citamos o Ambriz, a norte de Luanda. Nele há uma lagoa natural (Gango) que comunica com o mar através de um canal natural. É uma condição que pode transformar, artificialmente, a lagoa numa grande baía e o Ambriz no melhor porto marítimo da costa ocidental de África. Talvez por causa disso, o Ambriz esteve sempre na mira dos ingleses, em fins do século XIX. Contudo, nunca passou disso, talvez só porque os ingleses tinham receio que os alemães se apropriassem do Ambriz. A ambição dos ingleses era a fingir, a fim de tirar as aleivosias dos alemães. Eles preferiam o Ambriz em mãos portuguesas do que em mãos alemãs ou outras quaisquer. Os ingleses estavam no Ambriz somente para negociar, mas aperceberam-se da importância das condições naturais marítimas; estavam cientes da “fome” colonial dos franceses e alemães.

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Em resumo: a costa brasileira apresenta boas baías; a costa angolana apresenta angras ou enseadas e restingas. Desde cedo, século XVI, que o Brasil ficou servido com bons portos de mar – avultando Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos, situados em amplas baías. Angola só teria o primeiro porto de mar – Lobito – já em pleno século XX (1903), o segundo em Luanda, inaugurado em 1945, e o terceiro em Moçâmedes (Namibe), inaugurado em 1955. Os portos de Lobito e Luanda aproveitaram restingas, o porto de Moçâmedes aproveitou uma angra, outrora pejorativamente apelidada de Angra do Negro.

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