A Palavra que me inventa

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ANTÓNIO POÇAS

A PALAVRA

QUE ME INVENTA

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FICHA TÉCNICA edição: Edições Vírgula ® (Chancela Sitio do Livro) título: A Palavra que me Inventa autor: António Poças desenho de capa: Teresa Alexandra Rocha Poças (Tuxa Poças) arranjo de capa: Patrícia Andrade revisão: Pedro Nuno Rocha Poças paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, fevereiro 2016 isbn: 978-989-8821-17-1 depósito legal: 403634/16 © António Poças

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

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DEDICATÓRIA

A minha mulher, Laura, a maior amiga, esposa, amante, mãe dos nossos filhos, avó dos nossos onze netos, que muito me tem estimulado ao longo da vida. Da sua coragem, determinação e fé, muito temos recebido, nesta família. Aos filhos e netos que são a luz dos nossos olhos e o encanto do nosso coração Aos amigos, por quem vale a pena acreditar e ter esperança numa sociedade melhor onde, “ser é um ato de coragem”, como recorda um grande teólogo, falecido em 1956, chamado Paul Tillich. Ao Carlos Granja, homem corajoso, persistente e dedicado; amante das letras, escritor (com vários livros publicados) e dedicado à cultura e às gentes da sua terra a quem tanto se vem dedicando. Foi ele que muito me estimulou nesta arriscada aventura de trazer a público o meu primeiro livro de poemas. Fiel a Deus e dedicado aos homens a quem, pelo ministério de diácono Ele me convocou e envia, canto, com júbilo, a alegria de ter nascido neste tempo. Guardo no coração o testemunho de uma mulher enorme em estatura de humanidade e de fé que morreu com 29 anos apenas, no campo de concentração de Auschwitz, em 1934. 5

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Chamava-se Etty Hillesum. Podendo fugir ao martírio, tendo-lhe sido oferecidas condições para tal, ela optou consciente e voluntariamente pela dádiva de si mesma como empenhamento de fidelidade e solidariedade para com o seu povo. Serei sempre um admirador do seu caráter e generosidade e procurarei, com modéstia, adotar o seu estilo de vida. Ela defendia e praticava o perdão e a rejeição radical do ódio contra aqueles que a humilharam e que eliminaram da forma mais desumana e brutal seis milhões de seres humanos da sua raça. Que testemunho! – De ontem, para hoje e para sempre!... Para que jamais aconteça outra barbaridade semelhante, cultivemos os valores do espírito e deixemos que a alma cante! A todos com muita amizade, dedico esta recolha de poemas a que dei o título: “A Palavra que me inventa”.

António Poças

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PREFÁCIO DO AUTOR

Disse muitas palavras ao longo da minha vida, mas falta-me aquela que paira dentro de mim. É essa que eu quero dizer, que quero perceber, que intento descobrir…, mas as letras escapam e escondem-se e nunca as consigo juntar para formar a palavra que procuro. Assim me vou inventando e reinventando, a ver se engano a palavra e a apanho distraída. Ando nisso há muitos anos, como garimpeiro frenético pesquisando ouro ou diamantes, insistindo uma e outra vez, fracasso atrás de fracasso, mas nunca desistindo. O garimpeiro acredita até à loucura. Pode ser que a gema lhe caia um dia nas mãos febris ou que a pepita amarela cintile, deslumbrante, entre o odiado entulho que o tem enlouquecido te tanto escavar e esgaravatar com as unhas gastas e os dedos em carne viva. Cada risco, cada linha, cada letra… lavradas sobre a concessão do papel, afigura-se com esse mítico sertão que a pena, qual picareta em riste, procura ferir com mestria, à espera de encontrar a palavra diamante ou ouro. Depois, há que lapidar as gemas, fundir as pepitas, trabalhá-los até chegar o momento de os engastar no colar da vida.

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O sentido da vida depende da palavra que inventamos, porque é ela, na verdade, que nos inventa e nos renova. É ela que nos mantém vivos, em suma! Espero encontrar, um dia, a Palavra que me falta para rematar o meu colar. Esta é apenas uma tentativa mais, entre tantas, de encontrar a palavra que me inventa. Novembro de 2013

António Poças

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PREFÁCIO

Conheci a poesia de António Poças para regalo da minha reflexão. A palavra que me inventa, aqui ao poeta, também a induz no espírito do leitor, ainda que possa não ser essa a sua prioridade maior. O poeta António Poças busca-se entre as palavras, primeiramente aludindo ao que o traz para esta poesia que o acompanha recentemente na vida e que, de certa forma, tanto o surpreendeu e gerou o abrigo certo para os seus dias e noites. “Sou o que sou, mas não sei de onde venho/Nem para onde vou./Mas sei que sou alguém/E que tenho o direito e o dever de me pertencer”, pois a força do passado e a inexistência de futuro, por via do desconhecido que ele representa, passa incólume à sua presença de corpo e alma, que todo ele é uno e cabal também na pertença. E mais palavras se elevam na sequência perfumada dos versos, “Na contemplação do além, vejo muito mais perto,/A aproximar-se de mim,/O Ser que me reúne.”, em volta da definição do ser. António Poças requisita a essência que todos os seres predestinam na sua origem, que levam pela vida fora, ainda que os correctos comportamentos e os gestos se devam à sã consciência e se adequem às palavras, gerando o consenso mais puro, entre o que se diz e o que se faz, e também no que se escreve. Não tenho dúvidas da grandiosidade da pessoa em conformidade com o poeta. 9

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A fluidez do discurso combina na perfeição com o discorrer das palavras. Elas não se soltam, nem saltam das aparências, elas são assim porque o poeta é assim como a sua palavra que o inventa e encontra-se nesta reflexão que envolve facilmente na leitura. Das muitas perguntas para o pensamento, “É verdade, mamã, que um dia iremos viver/No céu, ao pé das estrelas?”, o ritmo poético desencadeia as respostas que nos surpreendem pela beleza das suas definições, como pela angústia da ausência delas, nas rotinas diárias e nas atitudes entre os seres, como se perdessem tempo com as futilidades, descurando a importância que não é atribuída a causas maiores. Aqui surgem-nos temas maiores, de âmbito pessoal e social, que marcaram bastante o crescimento do poeta como pessoa, que o leva também à reclusão interior, consigo, também com a natureza, “Por fim era apenas eu, a areia/E o azul do mar.” Se os caminhos da poesia são secretos ou inspiram sentimentos que não se é capaz de discernir ao primeiro olhar, cabe ao poeta a serenidade da sua escrita, para calar a revolta, no sentido do baile dos versos, do jogo entre as palavras, dos segundos significados em mistura com a contundência da crítica e das verdades. Nada fica de fora nesta poesia sentimental que alerta para as desfigurações do mundo. O caminho pode ser trilhado de mãos dadas, para um lugar-comum, de felicidade e solidariedade. “Gestos simples e notáveis que só ele vê/E intenta gravá-los na história, /É essa a sua incessante procura e o seu intento,/Para futura memória.”, porque quem escreve poesia não tem uma varinha de condão que resolva todos os problemas, nem pode trazer o conhecimento na sua plenitude, embora lhe saiba percorrer os alertas e a vontade de, em comunhão com outros, ajudar a construir um mundo melhor. Assim, deixo para os leitores o sublime gosto de sorver a poesia de António Poças, de ir gota 10

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a gota pelas palavras inspiradas que completam o verso, pelas linhas que de imaginação em imaginação vão compondo o poema, sempre com um rumo definido, que desfaz a solidão num abrigo que só as palavras conseguem inventar!

CARLOS NUNO GRANJA

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Modalidade de ser A montante do fio de água há uma fonte que o alimenta, Tal como a vida desemboca no mistério da morte. Tudo tem um antecedente para haver consequente E é nessa lógica natural que a história do mundo se sustenta E se renova… Antes do dia vem a noite sem que ninguém possa alterar O ritmo das horas e dos dias; e assim será para sempre. Não se pode imaginar o firmamento sem o universo, Nem o eterno sem o contingente… Não se pode entender a comunhão sem o diverso Nem é possível perceber a igualdade sem a diferença; Como não se pode avaliar um facto sem algo que o comprova, Nem a conformidade sem o controverso… Poder-se-ia falar em marés se não houvesse mares? Avaliar do bem-estar da saúde, sem o sofrimento da doença? Quem poderia imaginar a multiplicidade dos seres Sem pensar numa causa original? Por mais voltas que demos à razão e ao saber, Sempre havemos de esbarrar nestas questões fundamentais: Afinal, donde provém o ente donde eu sou? Quem informou a modalidade do meu ser? Sou o que sou, mas não sei de onde venho Nem para onde vou. Mas sei que sou alguém E que tenho o direito e o dever de me pertencer: De não ter que ser igual a mais ninguém, Simplesmente Porque sou quem sou!... 13

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Outras linguagens Só os doirados areais se interpõem Entre as arribas e o mar. Foi-se o Verão e já o Outono rebenta as águas E anuncia o Inverno que ameaça nascer, Antes do tempo, mais madrugador do que o costume, Insinuando-se por entre os poros da pele. As gaivotas, que agora se dispõem Nas arestas e recortes cor de barro das encostas, Grasnam de onde a onde: – não sei se é comunicação, Lamento ou queixume: – Dizem que sempre se exprimiram assim! Ouve-se com mais força, e às vezes raiva, O bramido das ondas do mar, Requebrado pelas areias finas da praia E sufocado pelas reentrâncias concavadas das arribas, Tão medonhas, Que às vezes parecem levar às portas do inferno! Há pouquíssimo tempo atrás, Quando a Primavera carregava no ventre O filho mais desejado – o primogénito, Aquele Verão abençoado, que de ansiado, Parecia nunca mais chegar, A beatitude era tanta que não merecia ter fim!... As arribas cheias de mirones, E as praias coalhadas de gente, E aquele chinfrim Onde, apesar de tudo 14

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Muitos apostam a pés juntos que assim Encontram descanso e paz… Para mim, contudo, Hoje, tudo é diferente: Parece que sinto coisas e oiço vozes De um tempo primordial Que só se vêm e só se sentem Na voz selvagem da natureza, Naquele murmúrio que perscruto, Sentado, Nos areais doirados da praia, Entre as falésias e o mar.

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Entre o céu e a terra Dizem os amantes das teogonias e os criadores de fábulas Que tanto deliciam jovens e velhos: cultos ou néscios, Que o universo foi esculpido pelos deuses Que nele imprimiram as marcas dos seus caprichosos desvarios: Disputas, tiranias e até sequelas dos seus rebaixamentos morais, Quando, esquecendo a sua natureza e origens, Se entregavam aos sortilégios da carne Nas alcovas e prostíbulos das simples mortais. O Universo não passaria de um amontoado de destroços: – Pedaços dos deuses do mal derrotados e vencidos. Triste seria a humana condição – resultante dessa odiosa perversão, Iníqua lembrança de desolação, Nessas reminiscências do mal. Num destino decadente, o homem teria ficado Para sempre abandonado à sua sorte, sem honra e sem nome, Filho bastardo de aleivosos amores. Facilmente se cria uma lenda, um mito e até uma epopeia Se a ela de sacrificam princípios, valores E o que quer que seja Para orquestrar uma teoria com a solenidade da verdade. Para muitos, a verdade sobre um Céu que não querem ver, Está sob a fantasmagórica capa de uma realidade Imaginária e ilusória, Que não é da terra nem do Céu.

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O ser e as aparências Gosto de subir à montanha e ficar, sozinho, num lugar escolhido Ou dar uma escapadela até ao mar e esconder-me debaixo de um abrigo – Daqueles que a erosão do mar modela nas arribas, Com a magia do vento, o cinzel das águas e o esmeril do sal. Ali fico, em meditação demorada, carregando o peso das minhas incongruências, Naqueles lugares de eleição, onde a vista e os olhos se prolongam Nos ímpetos da mão e tocam o infinito… Como dói, por vezes, sentir o peso de memórias e reminiscências De tantas tentativas, recomeços e desistências! Peso doloroso que se abate sobre o ser que me compõe, Apesar das minhas leviandades e aparências. Mas também tenho que o dizer, alto e bom som, Que é em muitos momentos como estes Que reconcilio as modalidades em que me divido, tantas vezes, Com o “Modelo” perfeito e são Que me dá força, alegria e alento. Na contemplação do além, vejo muito mais perto, A aproximar-se de mim, O Ser que me reúne.

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Fazer-se à vida Se não podes ter um transatlântico ou valeiro Podes fazer uma bateira ou uma simples canoa – – Igual àquelas que os povos tribais, Escavam no tronco de uma árvore morta, Com ferramentas rudimentares, ancestrais. Vale muito mais do que as condições materiais Que anseias ter, a todo o custo, Para gozar à “tripa forra” Os prazeres que se podem ter com o dinheiro, A criatividade pura, descontaminada, Que fervilha e ressoa Dentro do teu ser. Está atento a essa riqueza que te convida A embarcar, ainda que seja a nado, No mar da tua vida, Se acaso não tiveres navio, Ou pouco mais que nada… Fazer-se à vida e respirar-lhe o ar, É, essencialmente, Tudo o que é preciso. O resto pode não passar de asas de cera Que ao calor das paixões se derretem e degradam. Valem o que valem, Mas não são a força nem o vento.

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Na terra também há estrelas Foi pela calma da tarde de um dia quente: – Um daqueles dias de Verão, Em que a frescura sabe melhor que um tratamento Relaxante, Num desses “resorts” de luxo, A que, sofisticadamente chamam “spa”. Deitado de costas sobre a relva do chão, Fixava as estrelas que iam surgindo no firmamento E delicadamente se dispunham lá, Nesse retábulo longínquo, onde todas parecem Equidistantes e iguais. Como me pareciam singelos e informais Esses pirilampos mágicos que parecem tremer: – Julgo que não é de medo, certamente! Um petiz, ao colo da mãe, que por ali passava Naquele momento, Parecendo adivinhar o que estava a ver, Perguntou à mãe, de repente: – É verdade, mamã, que um dia iremos viver No céu, ao pé das estrelas? Não cheguei a ouvir a resposta que a mãe lhe deu, Mas pensei em tantos astros luminosos Que cintilam na terra Sem que ninguém dê por eles. Que pena! Porque voltamos, tantas vezes, As costas às estrelas que há na terra, As quais podemos tocar 19

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E passamos tempo infinito a olhar para as do céu, Tão longínquas e desiguais? A mãe com o filhinho ao colo Era certamente um quadro mais belo e mais vivo Que todas as estrelas do firmamento.

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Modelo Ainda há pouco eras tido como modelo E já deixaste de ser mero esboço. Depressa passaste de motivo de eleição, À condição de anátema e desprezo! Os mesmos que te renderam o coração E te entoaram loas, Despejam sobre ti, Agora, Encendrado “ódio de estimação”. Com a mesma pressa e alvoroço Com que te elegeram e canonizaram, E te elevaram às alturas do pódio, Depressa lançaram, sobre a tua irrefutável inocência A mais torpe e dolorosa interdição, E verberam sobre ti, encendrado ódio. Afinal, se sempre mantiveste a mesma postura e coerência, Porque deixaste, de repente de ser cordeiro E passaste, num ápice a ser fera? Queres um pobre conselho dos meus? Nunca aceites ser modelo Se não queres sofrer a maior desilusão Da tua vida. Modelo só existe um e não é da terra, mas do Céu: – Deus!

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Miragem Sobressaias na areia da praia, como uma sereia Recortada sobre a imensidão do mar: azul e infinito. Cabelos soltos ao vento, parecias bailar, Enlaçando nos braços roliços e nus, O meu corpo sequioso de deletérias paixões. Sugado pela sedução, vencendo o espaço E esquecido do tempo, Corri, corri , instigado pela ânsia de te enlaçar. Mas, ó! Quando dei por mim, tu esfumaras-te, Perante a imaturidade dos meus sonhos E a crueza da realidade. Debaixo dos meus pés, restava uma ilusão Desfeita na areia que acabava de calcar. Por fim era apenas eu, a areia E o azul do mar.

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O poeta e a poesia Muitos pensam que a poesia é a arte de adocicar as palavras E esconder pensamentos elevados sob alegorias ou metáforas De leitura hermética e interpretação complicada. Outros analisam o arrazoado do poeta e inquirem sobre a rima, A melodia, a análise morfológica e sintética. Tão longe desse critério apertado, indiferente à métrica E à ortodoxia do estilo, O poeta deixa fluir os sentimentos da alma, Dando livre curso à alegria e às lágrimas. Libertar os sentimentos e ler nas entrelinhas, Interpretar cada momento e esculpir, na vida, Gestos simples e notáveis que só ele vê E intenta gravá-los na história, É essa a sua incessante procura e o seu intento, Para futura memória.

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O grito dos pobres Há dias em que a densidade dos sentimentos Pende para a melancolia e o desassossego. Naqueles momentos em que a realidade é mais cruel E se esgotam as energias da mente A tentar estabelecer acordo entre a fé e a razão: Quando não há argumentos Racionais, Que satisfaçam e expliquem os contrastes da História, Chagada de absurdos e insanáveis feridas e agressões. Se o apelo à fé e à esperança bastasse Para resolver tantos descalabros e impasses!... Mas não! Há uma razão maior, e saber qual é? Cujo detentor não a revela nem explica; E o que fica, É uma sensação de vazio, sem sentido, ausência, Mágoa, impotência, incredulidade, resignação Que nestas situações não se consegue vencer. Como o salmista e o homem que reza, Cada qual ao seu Deus, Senhor do tempo e da História, Também eu quero perguntar ao meu Deus, De mãos postas e olhos fitos nos Céus: Porquê tanta desordem e miséria? Porquê tantos crimes hediondos e vitupérios Sem conta? Por que razão hão-de ser sempre os pobres, os fracos: – Os inocentes, afinal, Desde que há memória, A suportar os horrores, humilhações e holocaustos? 24

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Não duvido que guardas contigo o segredo e o poder Para resolver de uma vez por todas tão injusta desordem, Tão infame humilhação. Não permitas, por mais tempo ainda, que os justos sofram: – Já não têm mais lágrimas para verter, Nem meios com que pagar crimes que não cometeram. Nunca tiveram muita coisa, Senhor, A não ser a Ti E sabem que lhes bastas, mas às vezes não entendem. Por isso acreditam e esperam, mais uma vez, Mas não os deixes no desespero.

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Experiência de deserto No deserto, sucedem-se os dias e as noites E as vigílias deixam de ter sentido, Porque o corpo e o pensamento se comprimem Durante a frialdade da noite e dilatam-se, Como ferro fundido, na calidez do dia. Não há nada que procurar nesse horizonte monótono, Onde faltam referências visuais e fonéticas: Ali, no oceano amarelo – que não é oiro – Nesse areal cáustico, ora fundente, ora gelado, A alma cola-se ao corpo num desespero Sintético. A dor escaldante dos pés não se sabe Se provém do chão abrasado ou das alfinetadas Da areia descarnando a pele dormente, Ora crua, ora cozida. Não se pode ir de viagem pelo deserto, Sem antes conhecer uma estrela, Por causa das miragens e da loucura Que depressa se abate sobre o ânimo E faz perder o tino e a orientação. Não se pode partir para essa imensidão Onde não há nada nem ninguém, À espera que algures, no além, Se desenhe e afigure um oásis, Pois, quase sempre, o que desponta Não é mais do que alucinação e miragem.

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No deserto perde-se o Norte, o Sul, O Este e o Oeste, Se não se souber onde está situada a estrela, De preferência a Polar. É ela que permite regressar ao ponto de partida, Onde se pode reencontrar o corpo com a alma, Sem aquela aflitiva confusão sincrética. No deserto faz-se uma experiência limite, Porventura singular: Ali se encontra o silêncio interior E um desejo ardente de recomeçar. Quem regressa do deserto nunca mais é o mesmo: É novo e diferente.

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Obrigado, Pai “Não tenhas medo” – dizia ele, quando me levava pela mão E íamos de abalada pelo mundo fora, como dois conquistadores: – Ele, meu pai e eu, seu filho; ele, guiando-me com ternura e determinação E eu, deixando-me conduzir, em segurança, pela doçura do seu amor, Que se oferecia, naquele gesto simples de firmeza E se convertia em brandura, Sob o calor e o conforto da sua mão. Foi assim que palmilhei tantos caminhos: – Seguros uns, outros não, Levando sempre comigo na memória O calor e o conforto da sua mão. Obrigado Pai!

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Saudades de nós Onde paravas quando eu, ausente, Partia para fora de mim e esperava, Confiado, Que tu zelarias pelas minhas coisas, Como se fossem tuas? Bem sabias, e eu assim pensava, Que nem eu nem tu poderíamos viver sós! E foi, justamente, Por supor que o “eu” e o “tu” Se tinha transformado em “nós”, Que eu parti tranquilo, assim, de repente. Onde estavas tu, E como posso ter consciência do meu “eu”, Agora que partiu cada um para seu lado E ficamos sós? Tenho saudades de “nós”!...

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Presença de Deus Não existe nada debaixo do sol Que Deus não cubra com a sua graça. Separam-se os dias das noites e o tempo passa, Mas a solicitude desse amor imarcescível Enche de luz as criaturas e, como arrebol, Esparge a sua benevolência no universo, Ontem, hoje e sempre. Sente-se no palpitar dos seres O influxo permanente da sua sabedoria E em cada movimento da natureza A eloquência e a doçura de um verso. Mesmo se a leviandade e ousadia De alguns pretensos poderes Ouse profanar a arte e a beleza Dessa presença inabalável, Deus estará connosco e em nós, Sempre, incontornável: Eterno, único e diverso. Deus está presente E o homem só pode estar com Ele, Hoje e sempre.

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Meu lugar, meu mundo… Nenhum lugar é neutro nem indiferente Quando nele se para com tempo, e se contempla, A plêiade de segredos e mistérios que pode revelar. Um lugar é sempre uma surpresa, Uma ocasião peculiar para encontrar beleza – – Talvez aquela que tanto procuro e não existe noutra parte. Um lugar é como uma pessoa – único e irrepetível, Com as suas misérias e as suas grandezas, Mas é sempre aquele mundo que me é dado A transformar. O lugar é onde eu estou, Aquele donde parto e outro, para onde vou; Aquele que eu percorro, muitas vezes de forma distraída, Inconsciente… O que eu faço por esquecer mas que, mesmo sem querer, Recordo de forma consciente ou inconsciente. Por mais que pense e diga que me é indiferente, O lugar está sempre comigo. É sobre ele que caminho, vivo e me movimento! Por isso, se não me aplico a fazer dele O meu castelo e o meu mundo encantado, Haverá nesta terra algum lugar apetecível?

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Moagem Roda a mó, trilhando os grãos do cereal, Impelida pela água da levada, batendo no rodízio; E a farinha repousa, branca como a cal, no tremonhado, Donde, pouco a pouco, vai caindo nos taleigos Que o moleiro, um a um, enche com cuidado. Água, mó, moleiro, cereal…, Distintos e cúmplices na unidade da missão, Cada um dá o que tem, o que sabe e o que entrega Para transformar aqueles grãos, lançados com carinho Na moega… E, assim, da farinha branca e pura como a cal, Se faz pão.

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O Senhor Contribuinte Cobriu-se de cinza o Senhor Contribuinte E vestiu de saco a nudez e a decência; Corre como um louco, de lado para lado, E acorda, sem dormir, sempre estremunhado. Já virou o mealheiro do avesso, A ver se por lá tinha algum cêntimo ou cruzado, Mas apenas lhe sobrou a raiva e a impotência, Como sequela da pesada e injusta penitência, Imposta de forma cruel e incomplacente, Pela trituradora máquina do Estado. O Senhor Contribuinte ficou sem nome, E há muito que perdeu pecúlio e dignidade… Neste desgoverno, arrosta o infernal castigo, Sem conhecer qual a causa do pecado, Por tanto tempo, que soa a eternidade… Cresce-lhe na alma o desejo de desforra, Ante a injusta maldição que o devora. Como fera enjaulada no covil, contra a vontade, O Senhor Contribuinte, pessoa nobre e respeitada, Sente que lhe sacaram não apenas a carteira Mas, mais ainda, o direito de viver com dignidade, E Já não pode suster por mais tempo a revolta. Um dia, talvez consumido e esgotado, pela vigília, Quem lhe poderá suster por mais tempo a exaltação?

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Sob a sorrateira cupidez da ambição Cresce impunemente a usura e a perfídia Dos que, sem vergonha, exigem ao Senhor Contribuinte A vida ou a bolsa até ao último tostão. Haja respeito neste Portugal Onde os direitos são dos ricos E os deveres dos pobres “ Senhores Contribuintes” Mas que maldição!...

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Coerência Quem dera que os pensamentos brotassem Com genuína limpidez do coração! Que as palavras dissessem o que exprimem, Se as segundas intenções não ocultassem Os sentimentos da alma e a voz sensata da razão. Quem dera que o ser e o agir se enfrentassem Em campo aberto na arena da consciência! E aí, onde as incertezas e erros se dirimem, Triunfasse a verdade e a transparência. Porque se passam tempos da vida A dizer o que não se sente, E a sentir coisas que se não dizem? Afinal a vida é curta, mas tão bela na essência, Que é uma pena permitir que saia dela nela O embuste e a mentira!...

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Aos meus avós Lembro-me da avó Carolina, dos seus olhos azuis, Onde se liam os enigmas dos céus! E aquele corpo por onde os anos passaram Sem lograr retirar-lhe a beleza e austera dignidade? As rugas emolduravam-lhe o rosto benigno E rescendiam ao saboroso pão de trigo quente da manhã, Quando nos estreitava nos braços, Fortes e meigos, contra o seu peito. Se o avô Casimiro, por vezes resmungão e maldisposto, Ralhava com ela, contrafeito, Pela prodigalidade com que nos dava, Furtivamente, Às escondidas do seu mau-humor, Uma guloseima ou um presente, A avó Carolina vinha ter connosco ao caminho E, com doçura e amor dizia, Enquanto nos estreitava nos braços E nos presenteava com a guloseima habitual: – Não façais caso, primores: – o avô é mesmo assim, Mas aquilo passa-lhe, não é por mal!... Ficai cientes de que gosta muito de vós.” – E gostava! E nós, contentes, corríamos, corríamos Por aqueles caminhos fora, leves como penas, Com o rosto afagado pelo vento E o coração a palpitar de amor e contentamento. Eram assim os meus queridos avós!... 36

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Essa palavra Nem imaginas a falta que me faz o teu abraço E aquela palavra que espero há tanto tempo! Não te inquietes em construir-me aquilo que já faço, Nem recordar-me as coisas que não lembro, Mormente as que esqueci e não quero recordar Diz-me, simplesmente, o que preciso de ouvir E que mais ninguém tem coragem de dizer, Porque estou cansado que me venham repetir Brejeirices e ninharias que gostaria de esquecer. Quero aquela palavra que sei que mora em ti Cheia de frontalidade e honradez, Que te adivinho pura na garganta, pronta a jorrar, Como água cristalina. Di-la, ainda que me custe ouvi-la! Mas diz de uma vez Essa palavra que é de nós dois, Que não é tua nem é minha: a Verdade! Espero, ardentemente, Que a digas ou, então, que a esqueças De uma vez para sempre.

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Amor de Mãe Encharcada até aos ossos, pelo suor Que lhe escorria do corpo e encharcava o chão, A Mãe caminhava, firme, galgando as fragas do caminho, Sem outro arrimo nem bordão, A não ser aquela força que nasce, lá bem fundo No inabalável mistério de um grande amor. Os ossos pareciam ranger e ameaçavam desconjuntar-se; Os músculos, esses já não os sentia: De tando lhe doerem, a própria dor os anestesiou Mas embalava ao colo o seu menino, como um tesouro Que aconchegava ao peito sobre uma cama de penas Que o coração aprontou. – «Só mais um passo – dizia ela, como se falasse com gente invisível. – «Só mais um passo, primor da minha vida. – Então, Não tarda nada, serás um homem e eu poderei partir, contente». No dia em que o filho ficou apto e capaz para enfrentar a vida, A mãe dançou, rezou, viveu como nunca tinha vivido! Depois, serena e contente, Partiu. Foi assim Que sempre a conheci: – Mãe!...

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Restituir As virtudes que canto, não são minhas: – Semeou-as alguém dentro de mim. Eu apenas as reguei, mondei, zelei, Para que não as sufocassem, Ervas daninhas, Que teimam em eivar qualquer jardim. Se algo de bom e belo herdei, Eu reconheço, Que muito terei que restituir, enfim!... Pois o bem que nos é dado, não tem preço, E a dádiva gratuita é transação que não tem lei. Se no percurso desta vida, algo mereça, Que seja a simples e fiel comprovação, Do zelo e devotado empenhamento Em redobrar o que, de graça recolhi; Para que deixe, como legado do meu esforço, O dobro das virtudes e dons que recebi. O bem que para mim almejo De pouco ou nada valeria, Se o contivesse, avaramente, Agrilhoado nas prisões do meu desejo…

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Momentos de paz Doce momento, quanta calma, Nesta suave frescura Sobre o silêncio da tarde! Quem me afaga com ternura, Que já nem sinto bater As asas do pensamento? Como quem anda à procura, Fecho as cortinas da mente Dentro do quarto da alma; E no meu ser, como em templo, Vejo um altar, lá no centro, Onde me ajoelho a rezar… Pouco depois, adormeço, Sonhando em novo começo Que o bom Deus tem para me dar…

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