A enfermeira chinesa

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Rui Coelho e Campos

A ENFERMEIRA CHINESA E OUTROS CONTOS DA MEMÓRIA DE ÁFRICA **** E AGORA?


FICHA TÉCNICA Editor: Vírgula® (chancela Sitio do Livro) Título: A Enfermeira Chinesa e outros contos da memória de África - E AGORA? Autor: Rui Coelho e Campos Arranjo de Capa: Patrícia Andrade Ilustrações: Rui Coelho e Campos Revisão Linguística: Ana Sofia Domingos Paginação: Nuno Remígio 1.ª Edição Janeiro, 2014 ISBN: 978-989-8678-32-4 DL: 365734/13 © Rui Coelho e Campos PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO

Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt


PRÓLOGO Mói escrever sobre coisas de há muito tempo: não se cai no decalque da «realidade vivida» e a escrita acaba por despertar situações e torpores suspensos, que a memória guardou e criou. Ao fim de algum tempo, como se testemunha o tempo passado? Nas histórias que nascem em palco de guerra, o que por lá esteve passou a personagem de episódios que o exilaram de si próprio. Voltar ao fim do tempo não é coisa simples. Voltar do exílio também não é. Exige tempo. E agora?

Rui Coelho e Campos foi alferes miliciano de infantaria numa Companhia de Intervenção em Moçambique, durante a Guerra Colonial. É advogado e integrou a Direcção e Administração em Seguradoras da Economia Social em relação com instituições congéneres em diversos países europeus.

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A Jonasses Metotera, o guia

A PARTE de ANTES

A ENFERMEIRA CHINESA

e outros contos da memória de África

Alice sighed wearily. «I think you might do something better with the time,» she said, «than waste it in asking riddles that have no answers». «If you knew Time as I do,» said the Hatter, «you wouldn’t talk about wasting it. It’s Him». «I don´t know what you mean,» said Alice. Lewis Carroll. «A Mad Tea-Party», Alice’s Adventures in Wonderland. London: Penguin Books, 1994.

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ZAHIDA 1. Porta Principal A porta principal é como as outras do aldeamento, mas é a única por onde passam as viaturas das colunas e que dá acesso à pista do aeródromo; ficou, por isso, «a porta principal», assim identificada no tracejado rudimentar dos mapas e das recordações. Das cinco da manhã até às quatro da tarde, toda a gente que entra e sai do aldeamento usa a porta principal; mas quem não quiser ir por ali, basta levantar o arame farpado, longe da vista dos milícias, dobrar o corpo, enfiar a cabeça e ir atrás dos rins, uma perna e depois a outra, não custa nada e ninguém estranha. As mulheres e alguns homens, retemperados pela força da manhã, cruzam a porta principal e transportam ao ombro as enxadas que vão revolver, ao longo do dia, a terra vermelha da machamba distante; e regressarão ao cair da tarde, os músculos a pesarem no corpo, brilhantes ainda as gotículas de suor na pele negra. Ao fim do dia, ninguém entra ou sai do aldeamento sem a anotação tosca das milícias sentadas junto ao portão improvisado da porta principal; aos que atravessaram o arame farpado, ninguém se importa, ninguém liga, é assim a rotina dos dias. O grupo das três mulheres do régulo tarda a transpor a porta principal; Faad, que ficou ligeiramente para trás, ilumina os dentes 9


muito brancos e os olhos em movimento alternado e suave em direcção ao Posto 1, desatinando Matsinhe, soldado criado no sul, nas margens do Umbelúzi, onde aprendera a agarrar mulher, agora ansioso pelo anoitecer para agarrar Faad, longe da margem do arame farpado e da porta principal. O jogo discreto dos olhos de Faad é captado no Posto 1; o local, a hora, os cuidados, as promessas, tudo é registado por Matsinhe que, uma vez o sol recolhido, vai juntar as missangas de cores múltiplas no leito de capim acamado, onde mergulhará no corpo macio de Faad, escutando, os olhos cerrados, o marulhar das águas do Umbelúzi. Mas os sinais dos olhos de Faad também são captados por Zahida, mulher segunda do régulo, cansada da pele lisa de Faad, onde as missangas rolam e brilham sempre. Durante o dia, ao ritmo lento da enxada, Zahida lança as sementes da urdidura; tem de secar o atrevimento de Matsinhe e devolver Faad aos amores do soldado Mezulo; talvez por falar pouco, ou por ter vindo do Luatize, ou porque lhe lembra o filho, no mato, fugido à chibata do cipaio – sabe-se lá se regressa, um dia, com eles...– Mezulo é o consentido de Zaida. Evita a porta principal e reentra mais cedo no aldeamento, emergindo de entre as fiadas do arame farpado, decidida a alijar de vez o fardo da ousadia de Matsinhe. Antes que chegue aos ouvidos do régulo, acaba-se o fingimento entre Faad e Zahida; decidiu, vai procurar Mezulo e contar-lhe tudo. Não teme o escândalo; embora saiba que, quando há zaragata entre militares, a ninguém falha o pormenor das razões e o detalhe dos factos, ela confia que Mezulo intervirá com prudência e eficácia, sem que o régulo venha a suspeitar de nada. Mezulo chega amanhã, na coluna que vem da cidade.

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2. Coluna Por entre as pernas da tropa e da milícia, empoleiradas nas vedações e nos bidões de gasóleo vazios, o ventre redondo em interrogação constante, cobertas de farrapos e terra seca, as crianças do aldeamento são atraídas pela chegada da coluna, pelo roncar surdo dos motores das Berliets que se insinua na povoação há cerca de meia hora, cada vez mais nítido. A coluna vai entrar pela porta principal, daí a minutos. Os militares começam a aproximar-se do recinto preparado para o estacionamento das viaturas; encostado ao Jeep, o Administrador, a autoridade civil, absorto na contemplação do entrelaçado dos cordões do pingalim que as pontas dos dedos percorrem, meticulosas, parece, por detrás dos óculos escuros, alheio à excitação crescente da espera. Em semicírculo, guardando a distância dos brancos, a população está em silêncio. Gritando «Coluuuuna, coluuuuuna!», as crianças acolhem com grande agitação a Berliet «rebenta minas» que acaba de surgir na primeira curva da picada, visível da porta principal; e as mulheres, rindo, respondem «Coluuuuna, coluuuuna!». O «rebenta minas» parece espreitar o aldeamento, desconfiado; mas, de repente, acelera, animal de aço apontando o focinho rumo ao redil que lhe promete repouso. A seguir, emergindo da poeira densa da picada, a segunda, a terceira, todas as viaturas, abarrotadas de gente cor de terra, franqueiam a porta principal e avançam para a zona do estacionamento, inclinadas sob o peso das cargas, solavancando agora docemente sobre o piso alisado. Alinhadas as Berliets, como os militares gostam, o último motor cala-se e as vozes saltam para o chão, sacudindo o pó; a coluna só é coluna enquanto os motores a assinalam. 11


O aldeamento retoma os sons de todos os dias e o grupo das mulheres movimenta-se, como onda inofensiva desfazendo-se lentamente em redor das viaturas. Sob as ordens do sargento inicia-se o descarregamento das munições e dos equipamentos da tropa; seguem-se, depois, os fardos destinados à autoridade civil, os caixotes para a cantina e, no fim, os trastes dos civis. Zahida, por entre os volumes que se amontoam sobre a terra batida, procura Mezulo; não quer perder tempo e, por isso, apressa o reconhecimento ao longo das Berliets, observando discretamente cada um dos militares. Quer encontrar Mezulo, descobri-lo, já. Próximo da viatura que transporta as urnas e anuncia as próximas operações com os helicópteros – que mantém as lonas presas aos flancos e será descarregada mais tarde, a coberto da noite e dos olhos constrangidos – está Mezulo à conversa, a fumar, a carapinha esbranquiçada pelo pó da picada. Certa de que, apesar da idade a rondar, inexorável, ainda faz os homens em matilha farejar a sua presença, Zahida fica imóvel, a uns metros. Mezulo deixa cair o cigarro e esmaga-o sob a bota; volta-se, fixa-a e diz «Espera». Ela cruza os braços em silêncio; agora tem todo o tempo; não olha para os homens e aguarda, os braços imóveis sobre o peito, que ele se aproxime. Mezulo vem cansado, mas Zahida conta-lhe tudo, os olhos presos no chão a pedir desculpa: «O Matsinhe agarrou a Faad, aproveitou a tua ausência nas operações e nas colunas e não pára de agarrar Faad; ainda ontem, ali, junto ao arame farpado...». «Tu», continua Zahida, «Tu não podes dar-lhe porrada senão o régulo fica a saber e, nesse caso, terás que lhe pagar muito, muito

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dinheiro; ofensa ao régulo só acaba com muito dinheiro, tu sabes!». «E então?», a voz de Mezulo mal se ouve. Raiva. «Caímo, o velho, trata disso; tens que falar-lhe hoje, agora». A ferida aberta, Zahida retira-se; perto da primeira viatura, volta-se e recomenda: «Não te esqueças, Mezulo, Faad não tem culpa; mulher é fraca».

3. Dentro do Peito Matsinhe salta do beliche, abotoa o camuflado, aperta o cinturão, avalia o volume confortável da carteira no bolso de trás das calças, e entra na fila do pequeno-almoço, o copo de metal girando entre os dedos. Cada um come no lugar que mais lhe apetece, mas a preferência vai para os dois círculos habituais onde, sentados no chão de terra batida, os braços apoiados nos joelhos flectidos, os militares mastigam lentamente o pão da madrugada, o café quente sorvido a pequenos goles. E a conversa da manhã escorre, morna, murmurada, uns atentos, outros não. «Muembe foi atacada esta noite – e a coluna para o Unango também – houve dois feridos e parece que um cabo “lerpou”1... a coluna de ontem trouxe várias caixas de dobrada sintética, tripa liofilizada, ninguém gosta daquilo, sabe a borracha... veio cerveja e o correio também chegou; o Gomes está em baixo, o pai foi internado lá na terra dele, na metrópole...» O pão ensopado em café vai acedendo regularmente à boca, em convívio relaxado com as notícias ditadas pelos mais informados; 1 Morreu.

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notícias que ficam por aqui e por ali, dentro de cada círculo, dispersas na atenção sonolenta de cada um, no curso sempre igual da manhã. «A Berliet da noite já foi descarregada, são onze as urnas; se juntarmos os quinze bidões de combustível para os helis que a última coluna trouxe, é claro que vamos ter chatice, a malta toda com o cu no ar, a ser lançada nas bases, em cima deles... porrada, da grossa... é o que aí vem...». As palavras são como as moscas, andam às voltas nos círculos dos homens sentados, vão e voltam, parecem mais do que são; não se deve ligar muito, é melhor esperar que pousem, talvez valha a pena, então, prestar atenção. «Se os tipos da intendência despacharam onze caixões para aqui, isso quer dizer que vão lerpar pelo menos vinte e dois dos nossos, é garantido! Os sacanas cortam sempre a encomenda ao meio, enchem-se com a massa que sobra e deixam-nos para aqui a guardar os corpos, numa palhota longe do quartel por causa do cheiro; azar o meu não ter ido para a intendência, ficava rico e não estava aqui; com dinheiro um tipo safa-se, sempre...!» Devagarinho, como capim afastado pelo cano da G3 à espreita, a inquietação desperta e rasteja em Matsinhe; sente que o dia começou insidiosamente a arrefecer, as vozes caminham para longe, enfraquecem, já não se entende o que dizem os homens e o pão molhado no café perde o gosto. É a luz da manhã que foge da alma de Matsinhe e morre na direcção da noite que já foi. Perturbado, sacode a cabeça em busca do sol; no outro grupo de soldados em círculo, sentado no chão, junto ao gerador, os braços nos joelhos e o copo de alumínio a baloiçar nos dedos, Matsinhe depara com os olhos de Mezulo fixos nos seus. Olhos de cobra. «Ele já sabe da Faad!», Matsinhe desvia os olhos, os maxilares 14


apertados e os sentidos em alerta, perscrutando o perigo. O frio aumenta e as moscas, indiferentes, continuam a dançar ao ritmo do café da manhã, sem pressa, zumbindo aqui e ali em volta das palavras soltas que envolvem os homens sentados no chão de terra batida. «Quando nos largarem na base» – as palavras tornam, de longe, reocupando o lugar entre os homens em círculo – «o problema não é entrar lá, o que é lixado é sair e caminhar pelo mato, regressar ao quartel; são as noites frias com eles a rondar, por perto...», como Mezulo a espiar agora Matsinhe, ameaçador, dissimulando no escuro do coração o ódio que a manhã, sem forças, nunca conseguiria expulsar. «Na base» – prosseguem as vozes – «se eles não fugirem, se nos esperarem para a porrada, isso é homem contra homem, arma contra arma; mas a merda toda, o pior, é quando não se luta homem contra homem, mas é a noite, o escuro e a surpresa que troçam de nós, a garganta apertada pela certeza de que estão por ali...», como os olhos de Mezulo fixos em Matsinhe, emboscados no negro da manhã. «Homem contra homem!», sussurra Matsinhe, «Se fosses já para a luta, Mezulo, era homem contra homem, nenhum de nós tinha medo deste escuro que nos cega e afugenta o sol; era assim que devia ser, homem contra homem... não só na base e no regresso ao quartel, mas aqui também!» Matsinhe levanta-se, o peso do corpo a puxar para baixo, contrariando-lhe os passos; abandona os restos do pão e do café aos miúdos em grupo, expectantes em silêncio, e dirige-se ao sargento para receber a chave da arrecadação que armazena os géneros. Vai iniciar os trabalhos da preparação do rancho, tarefa monótona, sempre igual todos os dias, e que tem lugar depois de escalados os homens que vão à água, à lenha, para o descasque

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das batatas ou para a cozedura do pão; Matsinhe controla as porções dos géneros, a força do lume, os tempos entre as refeições e os tempos que lhe deixaram tempo para se espreguiçar sobre o corpo macio de Faad, longe do arame farpado, e pesquisar uma a uma, as missangas brilhantes que rolam e se escondem, sob a luz da lua, entre os segredos de Faad. Ao almoço, ao meio-dia, os militares perfilam-se até à camarata grande; à frente, impacientam-se os que reclamam mais quantidade de sopa, de feijão, de carne, para partilharem com as mulheres que os acolhem à noite, no aldeamento; um dia, quando os soldados partirem, elas vão receber a comida das mãos de outros soldados que a guerra irá buscar e, mais tarde, das mãos de outros e de outros soldados, o correr inexorável dos meses e dos anos; terão assegurada comida do quartel até ao dia em que as mulheres mais novas se candidatarem ao seu lugar e às sobras dos militares, forçando-as a partir para o fundo do aldeamento, o fundo onde é sempre noite. «Antes na cozinha, no rancho... do que aos tiros no capim ou às voltas no ar sobre as minas da picada!» repete todos os dias Matsinhe; «No fim do ano são sessenta meses para aqui esquecido, já nem sei falar a minha língua...» amarga-se, rodando a chave do cadeado da porta, que range nos gonzos alquebrados por anos de investidas e profanações nocturnas. O cheiro a mofo da sacaria liberta-se da arrecadação em direcção à porta e uma levíssima brisa, fria, percorre-lhe o corpo; e é nesse momento, ainda a chave à procura de posição no cadeado, que o coração de Matsinhe se levanta e tenta escapar-se do corpo; debate-se em busca da saída, acotovela-se na garganta, acossado, bloqueia-lhe os ouvidos e sorve-lhe o ar dos pulmões, as pulsações mais rápidas do que as batidas do gerador. Matsinhe sente que vai morrer, o peito estoirar como uma granada, daquelas que empurram violentamente o vento que nos projecta para o ar e em que a cabeça fica, lá em cima, a ver o corpo 16


a cair, lentamente; até ficar escuro. 4. Changane Junto ao arame farpado, Changane, o guia, a espingarda Mauser ao ombro, tem os olhos fixos nas montanhas que cercam, de longe, o aldeamento; sabe que quando o sol estiver por cima dele, a queimar-lhe o cabelo e a empurrar as galinhas para a sombra, as nuvens hão-de saltar na direcção das cubatas, enrodilhadas à frente do vento forte e húmido, deixando cair meia hora de água grossa, daquela que levanta o pó do chão aos primeiros pingos e que torna a terra vermelha em lodaçal nos minutos seguintes. Algumas mulheres vão continuar na machamba, prosseguindo os trabalhos, depois da pausa sob a protecção das árvores que, retendo a água da chuva nas folhas largas, só deixam cair alguns pingos grossos; outras mulheres vão regressar à aldeia, a água a evaporar-se rapidamente dos corpos que só amanhã voltarão a curvar-se sobre a terra. Changane sabe que eles vão atacar o quartel e o aldeamento, mais dia menos dia, menos que mais; há dois meses que o milho, o óleo, o sabão, os panos não ficam «esquecidos», ao fim do dia, na extrema da machamba, onde começa a barreira das árvores. O régulo cortou com a mão, «Acabou!». Foi qualquer coisa que correu mal, uma denúncia mais explícita, e o régulo está com medo do Administrador. Mas Changane sabe que eles vão reagir, vão atacar de noite, ele conhece Mazombe, o chefe da guerrilha, que não vai deixar que isto fique assim; a população do aldeamento há-de desobedecer ao régulo e vai voltar a deixar o milho, o óleo, o sabão e os panos, tudo acomodado nos sacos de serapilheira abandonados no local que todos sabem onde fica e que ninguém sabe quem escolheu. É preciso, por isso, preparar a defesa do aldeamento e do quartel, o alferes já mandou reforçar a vigilância em cada um dos 17


postos das milícias com mais três soldados, revelando-se inúteis os protestos dos homens, forçados a trocar a carne quente e macia das mulheres pelo frio húmido da vigília nocturna; foram deslocados quatro morteiros para os abrigos, as metralhadoras pesadas já estão nos Postos 2 e 3 e as serpentinas das munições dormem, alinhadas, à espera da «festa». «Não vai dar qualquer resultado atacar as bases deles!»; os milhares de litros de combustível para os helis, as caixas com munições e as rações de combate – nunca Changane, o guia, vira tal concentração de meios para uma operação militar – é tudo inútil, «Também não vão servir para nada!»; Mazombe até se vai rir, «Rir daquela maneira que ele sabe...» sussurra o guia, os dentes cerrados. Não se vêem há muito tempo. Changane sabe que, brevemente – ou talvez, quem sabe, neste momento –, Mazombe se acercará do aldeamento e, dissimulado na vegetação densa da floresta, espiará pelos binóculos as formas das mulheres que, apoiadas nas enxadas, descansam os rins dos trabalhos na machamba; depois, vai escolher meticulosamente o sítio onde os morteiros e o canhão sem recuo serão instalados na noite do ataque, as granadas em fila, obedientes, deitadas sobre o capim à espera de serem servidas. Dali, ao alcance dos olhos de Mazombe, alinham-se os postos de vigilância dos militares, as casernas, a sede da Administração, a casa do régulo e as cubatas da população; na data escolhida, às dez horas da noite, ajustados os alvos pelas luzes do aldeamento, momentos antes do gerador da electricidade ser desligado, as granadas voarão em fila, expelidas pelos tubos dos morteiros e do canhão sem recuo, enquanto – antevê Changane – as narinas de Mazombe se dilatam, aspirando forte o cheiro da pólvora, com o sorriso alargado pelo comprazimento da resposta à traição do régulo. Por isso, é preciso reforçar ainda mais a defesa do aldeamento

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e do quartel. Entre a esquina da casa da Administração e as primeiras cubatas, o guia avista a arrecadação dos géneros da tropa e distingue Matsinhe sentado no chão, imóvel, o braço esticado e a mão crispada no cadeado da porta, a cabeça virada para o sol e os dentes muito brancos parecendo que ri; parecendo que escorregou e se ri de si próprio, da queda desastrada, a perna direita dobrada. Changane aproxima-se. Não é o riso no corpo de Matsinhe que lhe amarrota a cara cinzenta, mas a morte que por ali anda, indecisa se o carrega com ela ou não. «Vão avisar o alferes e o enfermeiro!» ordena aos miúdos que, hesitantes, espreitam a arrecadação sem guarda e com comida, com muita comida lá dentro. *** A injecção e o soro estão a fazer efeito; «Mais de cento e oitenta pulsações, eu nem conseguia contar, era mais rápido do que os números na minha cabeça...» confia Cossa, o enfermeiro, que «nunca tinha visto taquicardia assim; mas agora Matsinhe está mais calmo, vamos ver se dorme, meu alferes». Changane, o guia, aproxima-se do catre, apoia o joelho no chão, fixa os olhos em Matsinhe; levanta-lhe as pálpebras, segurandoas entre o polegar e o indicador, escolhe cuidadosamente o trilho entre o branco e a retina e inicia a marcha, suave, sem ruído, rumo ao coração de Matsinhe. Em silêncio, curvado para não o despertar, quase rasteja agora; imobiliza-se por momentos e avança de novo, espia, o pescoço alongado, sustendo a respiração. Mas retrocede, rápido.

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Levanta-se. «Vou ao Posto 2» diz, e abandona a camarata; não olha para ninguém, respira fundo, os pulmões sedentos de sol. «Matsinhe vai morrer.»

5. Caímo À noite, depois do jantar, Matsinhe sofre a terceira crise, o coração a trepar por ele adentro, às voltas, encurralado. Cossa, o enfermeiro, não se reveza, Matsinhe não o deixa; quase chora, a mão, antes negra, agora cor de cinza, crispada no braço negro de Cossa, que jantou ali, o talher numa mão e a outra a acalmar o rato louco no peito de Matsinhe. Rejeita a comida, está imóvel, não quer mijar e aparenta ter perdido metade do peso, «Pareces fornecido pela Intendência», graceja o furriel Santiago, em vão; Matsinhe está a ser empurrado para baixo, como a luz da manhã se escapara para a noite sob a ameaça dos olhos de Mezulo; a mão fria no braço de Cossa está cada vez mais fraca. «Continua a pedir a evacuação por heli, nem que o faças cem vezes seguidas», ordena o alferes ao cabo telegrafista; «O Matsinhe tem de ser levado para o hospital amanhã, sem falta, e tu, Cossa, vais ter que o aguentar até lá, custe o que custar; atira-lhe para as veias com tudo o que tiveres à mão, que eu vou manter o contacto com médico do batalhão... O homem não pode morrer desta maneira…» Cossa, o enfermeiro, está agitado, não compreende; normalmente, o coração salta à frente dos primeiros disparos ou do estrondo da mina, mas, depois dos primeiros segundos, respira fundo e começa também ele, à espreita; bate baixinho para ouvir

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melhor, espreita, entra no jogo e chega mesmo a sorrir. «Mas assim não pode ser, meu alferes, ele tem o pulso normal entre as crises, o coração forte, pancadas fortes, o sangue a correr, forte como o rio Lucuísse depois das chuvas; porquê, então, ficar maluco, de repente, sem avisar?» Fora da camarata, sozinho, está Mezulo; fuma. Não quis conversar, não procurou ninguém, vai ouvindo aqui e ali que o Matsinhe está a «lerpar» e que será evacuado por heli se resistir até de manhã. São quase dez da noite e o gerador vai ser desligado; no escuro é tudo mais fácil, os olhos dos outros não passam por Mezulo, ignorado pelas lanternas que cortam fugazmente a rotina do quartel. *** Santiago fala com o alferes, a voz baixa, «Temos chatice, meu alferes, temos chatice da grande». «Que se passa?» «Afinal toda a gente, no quartel e no aldeamento, sabe o que aconteceu ao Matsinhe! Não reparou?» «Reparar em quê?» «Hoje a cantina não abriu depois do pôr-do-sol, todos recolheram mais cedo, não há fogueiras junto às cubatas e foi um sarilho escalar gajos para os Postos, ninguém queria ir, tudo a fingir que estava doente; tenho passado a noite de lanterna na mão a contá-los dentro dos abrigos e dos Postos! E todos sabem o que se passa, até o cantineiro! O chefe das milícias também! Até o enfermeiro, o Cossa, já sabe! Imagine, meu alferes, também ele já sabe!...» «Mas já sabe o quê, Santiago?» «E o Changane, o Changane também sabe, foi o primeiro a 21


descobrir...» continuou o furriel, agitado; «Os únicos que não estão por dentro da história, claro, somos nós, o meu alferes e eu! E o Sargento também!... E o régulo já sabe! E o Administrador também, o sacana, esse filho da puta que até foi para a cama mais cedo como se não tivesse nada a ver com o caso!» «E então, Santiago? Que história é essa?» «Eu não gosto de falar nestas coisas, meu alferes, fico nervoso e com as mãos suadas, até a lanterna e a G3 me escorregam dos dedos; mas lá vai, não se ria de mim, meu alferes: o caso é que o Matsinhe pôs-se na gaja do Mezulo e o Mezulo chateou-se e encomendou um trabalho ao Caímo, um feitiço – um “xiquembo”, como alguns dizem aqui… o Caímo, o velho… não sei se o meu alferes está ver quem é... por isso o Matsinhe vai morrer, é o que dizem todos, antes de chegar o heli, amanhã!»

6. Changane, de novo Changane está acordado, mas finge que dorme; Fátima senta-se na esteira, aos pés, ele disse-lhe para não dormir; Rosa, a segunda mulher, na outra cubata, escuta e passeia os olhos brilhantes sobre a esteira vazia do corpo de Changane, que lhe disse, também, para não dormir nessa noite. Os meses passaram, os anos também, só este cheiro e este silêncio, que vêm agarrados aos dias e às noites, perduram desde o dia em que, sentado ao lado do pai no banco de madeira, Changane acenou a Mazombe: «Vem até aqui! Há cerveja, vais beber cerveja connosco, senta-te e passa os dedos nestas missangas que eu trouxe do Malawi, leva um saco delas para as tuas mulheres...». Mazombe encaminha-se, firme, para a cubata do pai de Changane, dois homens atrás, a poeira saltando irritada sob as botas e a pele negra brilhante de suor, reclamando cerveja! 22


Mas a boca vai apertada, os lábios cerrados. «Não bebo cerveja com traidores!», gritou. A Walter muito negra empunhada por Mazombe emergiu do coldre escondido sob a camisa e o cano da pistola penetrou no ouvido, em busca da vida na cabeça do pai de Changane. «Tu és um informador, denunciaste-nos ao Administrador, ao Chefe de Posto e à Pide; alguns já morreram de porrada e outros vão continuar a morrer!» E a bala partiu. O disparo, é sempre assim, transportou a cabeça do velho para longe, voando nos braços do vento; e só voltará se o vento morrer ou se Changane disparar sobre a cabeça de Mazombe. Depois do enterro do pai, Changane lubrificou a velha espingarda Mauser, da caça, e disse ao Chefe de Posto: «Quero ser guia da tropa, sei onde ficam as bases dos turras, todas as bases». Nesta noite continua acordado, imóvel; se não fosse este cheiro, este silêncio, não recordaria agora Mazombe; «mas vais morrer! não com os feitiços do Caímo, não! mas com uma bala, o vento não há-de morrer e a guerra vai sobrar até lá...» Recorda, naquele tempo, o Chefe de Posto, o Administrador e a tropa, confiantes, a clamarem que «A guerra está a acabar, os terroristas estão a entregar-se»; e ele, Changane, contrariado, pois o vento não morria e sem a guerra não podia apanhar o Mazombe. Agora, tantos anos passados, a guerra cresceu e ele sente que ela vai chegar ao fim, o Chefe de Posto, o Administrador e a tropa, inquietos; e Fátima, e Rosa, as mulheres dele, cansadas... a população cansada... ele cansado. Mas, antes de acabar, Changane, tem de correr ao lado da guerra e gritar-lhe para continuar, empurrá-la com o cano da Mauser, estimulá-la com promessas e incitamentos para não a deixar esmorecer sem que, primeiro, faça partir a cabeça de Mazombe,

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para rolar, rolar ao vento, para sempre. As emboscadas e as minas, as morteiradas, as bombas, as granadas, os gritos, a poeira, os helis... é aqui, nesta machamba de ferro, de pólvora, de sangue e de cheiros que Mazombe terá de morrer. Só depois a guerra pode desistir, exausta, reabrindo as portas às missangas do Malawi no peito e nos braços de Fátima e de Rosa. O soldado bate à janela da cubata de Changane e diz: «O nosso alferes está a chamar».

7. Santiago «Ele não aguenta, nenhum coração aguenta aquilo! Vai "lerpar" e a gente nem sabe a que horas chega o heli!», repete Santiago, o furriel, os passos rápidos, entre a porta e a cadeira junto à mesa, a baterem o chão. «O heli? Para quê o heli?» pergunta Cossa, vencido, a voz rouca, «O Matsinhe morre na mesma, com ou sem heli, não é Changane?» «Sim, ele vai morrer», assina Changane. «Mas que história é essa, de merdas com feitiços?!» interrompe encolerizado o alferes, «Que porra vem a ser esta?! O Matsinhe está doente, tem um problema no coração, “taquicardia paroxística”, confirmada pelo médico, se bem entendi pela porcaria do rádio – a antena está mal orientada, já o disseram das transmissões várias vezes, temos que a pôr a funcionar como deve ser...! Isto está a criar uma vaga de histeria colectiva, com estes cabrões sugestionados por uma graçola primitiva, indigente, sem graça nenhuma... tudo cagado de medo!» «Chamem o Mezulo, quero falar com esse tipo, já!», a irritação a subir.

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*** Mezulo fica de pé, o quico pendurado no cinturão, as mãos cruzadas atrás das costas. «Senta-te», ordena o alferes, «Dizem para aí que o Caímo fez um trabalho contra o Changane, encomendado por ti. É verdade?» «Não», diz Mezulo, os olhos vermelhos. «Estás a negar para quê? Vamos acabar com isto, toda a Companhia sabe que encomendaste um feitiço, um “xiquembo” ou lá o que é, ao Caímo, para lixar o Matsinhe.» O silêncio de Mezulo, mais do que os olhos ou a voz, começa a acenar que sim. «E digo-te mais, todos sabem o porquê do feitiço», continua o alferes; «Portanto, despeja lá o que se passa porque há demasiada gente por aqui a acreditar em superstições e em fenómenos ocultos; vamos acabar com esta merda que está a acagaçar toda a gente, a tropa e a população, e a agravar a doença do Matsinhe que já nem à medicação reage.» Changane, o guia, segreda a Cossa, «Remédios não podem curar; o coração do Matsinhe vai parar!» «Mezulo, tu vais dizer ao Caímo, aqui à minha frente, para ele deixar o Matsinhe em paz. Vão buscar o Caímo!», ordena o alferes. «O Caímo é civil...», lembra Santiago, o suor a escorrer pelas faces em direcção ao pescoço, «É melhor falar antes com o Administrador, ele conhece-o melhor... É da competência dele...» «Era o que mais faltava!» interrompeu o alferes, irado. «Não, não, esse tipo também se pirou, não foi o que você disse? Quero resolver isto agora, arrumar esta história, já! Não vou permitir que esta porra afecte toda esta gente, o cu entre as pernas por causa de histórias de feitiços! Era o que me faltava! Tragam-mo cá! Se esse Caímo se diverte com feitiços, vai acabar com a brincadeira

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num instante...» O silêncio encosta-se, sólido, à porta da cubata e parece crescer, trepa em direcção ao colmo do tecto; as sombras de Changane, do alferes, de Santiago, de Mezulo, de Cossa, agitam-se à luz trémula do petromax, projectadas no chão como gigantes, sobem pelas paredes e derramam-se pelo tecto onde se cruzam. «Santiago, vá com o Changane e traga o Caímo nem que seja de rastos. Eu espero aqui com o Mezulo, que me vai “explicar” umas coisas, entretanto… não é, Mezulo?» sorriu, ameaçador, o alferes. *** Não quer sentar-se, está nervoso, as mãos esguias tremulam; Caímo é velho, velho como os outros velhos da povoação, o cinturão desfiado, da tropa, a segurar as calças e a prender a camisa enorme, descalço, olhos habituados à fogueira e atordoados pela luz intensa do petromax, piscam, raiados de vermelho. «Changane, antes de começarmos...», adverte o alferes, «o Caímo fica já a saber que tu aqui, nesta sala, és só intérprete, percebeste? Ele fica a saber que, quando falas na língua dele, é como se tu, Changane, não estivesses aqui; tu és só a minha boca e a boca do Caímo, mais nada, percebeste?»; e provoca-o, em surdina, «Não é preciso ficares borrado de medo com os “xiquembos” do velho...» Changane, altivo, não responde. «Caímo», começa então o alferes, «vais acabar com o feitiço que fizeste ao Matsinhe!»; Changane repete as palavras na língua de Caímo, que, com a voz sumida, os olhos no chão, insiste «Não fiz feitiço, não fiz feitiço»; «Fizeste sim!», teima o alferes, «Fizeste!» repete Changane, «Vais acabar com o feitiço, já!»; «Não fiz feitiço...», responde Caímo com os olhos amedrontados, um relance em pânico para Mezulo, comprometido. 26


«Já estou a ficar farto...», rosna o alferes, «São três horas da manhã, já estou a ficar farto!», traduz Changane, «Quero a porra desse feitiço acabado!»; «Não fiz feitiço...», balbucia o velho, a voz dobrada por Changane, sombra vocal das palavras do alferes e do Caímo, o sim e o não sincopados no lento desenrolar da noite. «Cabrão, filho da puta, feiticeiro de trampa, fodo-te o canastro! Se o Matsinhe morre, vais lerpar também, mas à porrada!!»... é Santiago, com os nervos à solta e o medo aos berros, perdido por um ou por mil, as veias do pescoço reluzem à chama pálida do petromax; a coronha da Mauser de Changane, empunhada por Santiago, voa em direcção à testa de Caímo que se protege apavorado, os braços em volta da cabeça; e, o corpo encolhido, indefeso, a rolar no chão, os olhos esgazeados, grita, grita, muitas vezes, e Changane grita também, mas ri, ri muitas vezes, «Sim, sim, vou partir o xiquembo do Matsinhe!», clama Caímo, clama Changane. O sol vem aí.

8. Meio-Dia Ao meio-dia, Matsinhe quis levantar-se e comer; disse «Estou fraco e tenho muita fome!» Regressou da noite e viajou com o sol a trepar pelo céu africano rumo ao meio-dia; breve vai rondar a cubata onde se abriga Ida, levar-lhe comida e missangas, código infalível de entrada no aconchego da carne, importado das margens do Umbelúzi. Cancelado o pedido de evacuação, o heli já não vem; ao almoço, no extremo da mesa onde se sentam o alferes e os furrieis, está Caímo, figura franzina ao lado do sargento, os rituais da reconciliação em curso.

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A ninguém escapa o desvelo com que o sargento obsequia Caímo; os abraços sucedem-se, abanando o feiticeiro, mudo e assustado com as palmadas nas costas, reminiscência das pancadas das suas recordações, com o chefe de posto à porrada, sempre à porrada. «O sargento tem o Caímo por conta», é o rumor que pinga aqui e ali, tão certeiro como o prenúncio da chuva forte que dilata as narinas de Changane. Ao fim do dia, já todos sabem, o gozo é geral, mas reservado: o sargento também «passeou as calças» por cima da mulher do régulo e borrou-se todo com o feitiço do Caímo! Por isso, resolveu arrastá-lo para o lado bom do coração à custa de prendas e dinheiro... «Não vá o cabrão do velho repetir a façanha do Matsinhe em cima de mim!», rosna; e faz deslizar discretamente o dedo indicador para a veia do pulso esquerdo e absorve-se na contagem da pulsação cardíaca durante quinze segundos; «Vezes quatro... não está mal!», respira aliviado, sorriso aberto e nova palmada de reconhecimento e medo sobre as costas frágeis do aliado Caímo. À noite, Matsinhe vem jantar pelo seu pé. Ainda naquela noite alguém foi ao focinho do Mezulo, não se sabe quem, nem ele diz; o régulo sovou Faad e também Zahida, que não cuidou da mulher mais nova como era sua obrigação, e enviou um recado ao alferes para se iniciarem as negociações da reparação que lhe é devida pela honra ofendida por um soldado do sul, reparação que mete dinheiro, cerveja e panos, talvez um relógio de pulso que o sargento vai pagar – pois há que aproveitar a onda de generosidade que lhe invadiu subitamente o coração. Do feitiço, ninguém fala. Passou. O importante é que o Matsinhe se tenha safado e já não interessa se foi feitiço ou não; de qualquer modo, nem que seja para lixar a cabeça do médico quando por cá pousar, o tipo vai encostar o estetoscópio ao peito do Matsinhe para se certificar que

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o coração dele, que circulou a mais de cento e oitenta durante tanto tempo, não gripou, é saudável e empurra o sangue com a força do Lucuisse, como ri, feliz, o enfermeiro Cossa.

9. Vestido As operações helitransportadas começam para a semana, já se sabe; o cabo cripto há-de trazer a mensagem a indicar o dia D, que todos calculam que seja na quinta-feira. Amanhã é dia de avião, vamos lá a escrever à família… Rosa e Fátima dormem, fatigadas pela noite de vigília; o gerador foi desligado às dez horas e Changane vem sentar-se ao lado do alferes, as botas sobre o varandim frente à porta, para fumar um cigarro com filtro; as estrelas brilham acima do recorte dos montes, «Imagem de tantos filmes que já vi... Esta é sempre a melhor e a mais bela de todas as cenas», sorri o alferes; e só o som dos grilos e o ladrar medroso, longínquo, dos cães cortam o silêncio da noite. «Conta-me lá, Changane! Estavas borrado de medo! Medo do Caímo!...» «Changane não tem medo», responde, disfarçando o testemunho, visível, mas discreto, das marcas no corpo das armadilhas e das minas que lhe furaram a carne; Changane só tem medo de ficar velho, sem forças para matar Mazombe, sem forças para as mulheres, sem forças para caminhar vinte quilómetros por dia, oito dias em cada mês, para comprar as missangas no Malawi, como fazia antes da guerra. «E medo de feitiço, de xiquembo», diz Changane, «Não é medo de bala, de mina, de porrada. Não.» «Feitiço, meu alferes», continua Changane, «Feitiço é vestido de mulher que voa no céu sem corpo dentro; quando cai, vestido

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de mulher não cai no chão, não! Sempre cai no corpo de gente, fica vestido que não se vê, só se vê gente.» «Vestido que não se vê só sai quando quer», sorri Changane, «Ninguém pode tirar vestido que não vê; é preciso esperar, para vestido sair sozinho, sair quando ele quer.» «Assim fica o feitiço, meu alferes. Não precisa de ter medo, não!» As estrelas aprovam, em silêncio, brilhantes como os olhos de Changane, as palavras do guia. «Mas, afinal, o que foi que o Caímo fez ao Matsinhe?» pergunta, directo, o alferes. «Changane não sabe!» Ponto final, Changane é assim.

10. A Folha A primeira vaga de helicópteros pousa dentro de minutos e os cinco homens de cada fila fumam os últimos cigarros; proferem as «bocas» habituais e as botas martelam repetidamente o solo, esmagando a tensão. O Unimog vem do aldeamento, sai pela porta principal, encaminha-se veloz para a pista e imobiliza-se a alguns metros; ao volante vem Santiago que corre e chama, «Meu alferes, meu alferes!» «Diga lá, Santiago, os helis estão a chegar e vão engolir-nos dentro de momentos...» Ofegante, Santiago aproxima-se e grita «Já sabemos o que foi aquilo do feitiço do Matsinhe, meu alferes!» «Conte lá... depressa!» «Na manhã a seguir à chegada da coluna, depois do Mezulo ter

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falado com ele, o Caímo agarrou num cordel de amarrar as sacas da farinha, dos mais finos, e embrenhou-se no mato até chegar à zona onde começa a floresta; apanhou uma folha de árvore caída sobre o capim, uma folha seca...» «Despache-se, os helis já aí estão!» «...fez-lhe um furo, inseriu o cordel e deu um nó, com muito cuidado para não rasgar a folha; depois... o feiticeiro pendurou o cordel, com a folha suspensa na ponta, no ramo de uma árvore na floresta...» «Rápido!» insiste o alferes, o vento das hélices a esmagar o capim e a levantar rolos de poeira vermelha. «...e quando o vento batia na folha seca e a fazia girar...», grita Santiago, as duas mãos à volta da boca, «o coração do Matsinhe rodopiava, rodopiava, rodopiava como um louco!» Louco. Louco como estas hélices imparáveis, mas exilado de nós, para sempre.

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AS ÁGUAS DO LUSSANHANDO Foi assim. – Contaram-me que também ias na operação, quando o Carawela «marou»… Não respondeu, limitou-se a aspirar com mais força o fumo do cigarro, a ponta incandescente alojada na concha da mão treinada… – Deve ter sido uma coisa mesmo lixada – insistiu, palpitando-lhe que a cumplicidade despertada pelo isolamento, pelo silêncio e pelo frio – sobretudo pelo frio que se contagiava aos sacos de areia, amontoados entre os barrotes que seguravam as chapas de zinco abauladas sob o peso da terra vermelha – agiria sobre Lotário para o levar, finalmente, a contar a história do Carawela. – Foi uma coisa lixada, sim – sibilou Lotário, quase inaudível. «No papo! O gajo vai falar!» correu Jorge dentro de si a espalhar a boa nova, os maxilares apertados na direcção da noite, simulando atenção distante. Lotário era o único homem do aquartelamento que tinha assistido a tudo e nunca ninguém lograra arrancar-lhe uma palavra sobre o que se tinha passado durante aquela operação nas margens do rio Lussanhando; e o estranho era que a Companhia a que ele pertencia na altura, terminados os meses de intervenção em zona de guerra, rodara para o «refrescamento», para o sul, e apenas alguns soldados se referiram de leve ao caso, um tenso encolher de ombros e um fugidio «Ele marou, foi só isso…» 33


De entre eles, Lotário – a história de Carawela enredada na recordação lixada – foi o único que permaneceu no aquartelamento, agora na condição de adido à Companhia que rendeu a sua, para cumprir mais doze meses de operações no mato, voluntário, após requerimento estranho prontamente deferido pela hierarquia militar; «Com os turras cada vez mais perto, quantos mais do nosso lado a empunhar a G3, melhor», fungara o major. – Ouves? – perguntou Lotário, os olhos submersos na escuridão. – O quê? Não, não estou a ouvir nada… – alarmou-se Jorge. – Não ouves os gritos… – Não oiço nada, Lotário. Nada, só o vento… – Não é o vento. Jorge ficou em silêncio, «Este também está marado», a curiosidade a esmorecer como a ponta da faca de mato a perder ânimo na tampa da última lata da ração de combate. O fumo do cigarro de Lotário não era visível, apesar do aviso prévio de luz a enrubescer e a desmaiar na palma da mão; mas, levado pelo vento ou pelos gritos, ameaçava o ar húmido durante a vénia da despedida, antes de se escapulir do abrigo. – O Lussanhando é um rio tramado – retomou Lotário – A água chega-nos à cintura, é muito fria, mesmo durante a estação quente, quando o sol calca os miolos dos homens; temos que respirar fundo antes de assentarmos o corpo nu no leito do rio para se ouvir a água a borbulhar, a bater com força e a percorrer o nosso corpo alisado como as pedras redondas que vêm acima e abaixo ao sabor da corrente, envoltas no colar da espuma brilhante sob o sol que calca os miolos dos homens; respirar fundo e prender o ar dentro do peito: é só o que é preciso para se enfrentar o frio; se te esqueceres de respirar sob as águas do Lussanhando, ele perdoa-te. Jorge não reagiu, dedilhando a expectativa ressurgente da história, não fosse um comentário mais desastrado – falar em água 34


fria dentro de um abrigo gelado como este! – desviar o leito da noite do encontro com os gritos nos ouvidos de Lotário.

O templo Há três dias que caminhavam. Ou há trinta? Que importância tem balizar o tempo da acção, se uma só unidade desse tempo é já três dias ou trinta, se tudo acontece agora e vai acontecer depois? Há três ou há trinta dias, o tempo conta-se pelas latas da ração de combate: mais latas, mais tempo; menos latas, menos tempo; o resto não conta, não é tempo. Escurecia, as patas livres das botas e os dedos a acenar sobre a pedra recortada no céu, Salvaterra contava que o Carawela estava a inquietar o pessoal, «O meu alferes sabe como ele é.» – Partam-lhe os cornos que o gajo sossega logo. Não, não é isso; «Só ontem é que ele chateou o Serra com um gesto qualquer, mas depois não abriu mais a boca; ficou encostado à árvore com a G3 nas mãos, tanto eu como o Gonçalves sabemos que o tipo não pregou olho e hoje fechou-se num mutismo tão cerrado que o pessoal está a ficar preocupado. Ah! E não comeu, nem bebeu. Nada. Se calhar nem mijou…» – E então? Se o tipo não quer dormir, melhor! Fica de guarda esta noite, outra vez… Talvez lhe dê o sono… – O Manhiça, que o conhece bem, disse que o Carawela «está a falar». – A falar? Mas como? Você não disse que ele tem estado mudo? – Pois. O Manhiça – eles são da mesma terra – diz que ele está a falar para dentro, sozinho, e que dali não vem coisa boa. – Diga ao Manhiça para ficar com ele debaixo de olho.

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Às quatro horas da manhã, a ascensão rápida do sol a rosar o céu, ninguém ouviu os pássaros. Manhiça chamou, baixinho, «Meu furriel, venha ver, venha ver o Carawela». Há bronca, estremunhou Salvaterra, o tom da voz de Manhiça a escancarar «Há bronca sim... E que bronca!» Carawela estava na mesma posição da noite anterior, as costas marcadas no tronco da árvore, a coronha da arma assente no chão, as calças, o dólmen, a roupa interior cuidadosamente dobrados sobre as botas alinhadas e os braços apoiados nos joelhos; nu, totalmente nu, a ponta dos dedos das mãos mantinham o cano da G3 orientado ao céu. Rapara o cabelo, as sobrancelhas e os pêlos do corpo. As latas da ração de combate jaziam por terra a seu lado e assinalavam, cada uma, dois furos por onde fugira o azeite que Carawela verteu e espalhou pela cabeça, sobre os ombros, sobre todas as zonas do corpo onde a lâmina da faca de mato alisara meticulosamente o terreno para a unção. O alferes ordenou silêncio com um gesto largo, como se alguém ignorasse que ali, no templo coberto pela copa gigante da árvore, se devia falar em surdina. Imóvel, o corpo de Carawela já brilhava sob os raios oblíquos do sol a içar-se na manhã. – Que se passa, Carawela? – inquiriu o alferes, o joelho em terra, fitando-o directamente nos olhos. – Mataram a minha família, ontem, no Umbelúzi – respondeu. – Quem te disse isso? Como soubeste? O Umbelúzi fica a milhares de quilómetros daqui… Estamos no mato há onze dias, sem correio, e não recebemos nenhuma notícia via rádio! – Vou para o Umbelúzi, agora. Matá-los. – E levantou-se.

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A lâmina – Ainda faltam duas hora e meia para sermos rendidos – disse Jorge, desenroscando a tampa do cantil – Queres? – perguntou, na palma da mão dois comprimidos muito brancos – Se tomares um agora, o sono só te vem daqui a duas horas e meia, é matemático; quando o furriel chegar para nos substituir já estás a pestanejar como um papagaio; depois é só deixares-te cair em cima do catre e acenar para a boleia dos sonhos que te levam daqui para fora. – Eu não quero sair daqui para fora – respondeu Lotário. – Ah! Sim, já me esquecia que pediste para ficar mais um ano no mato, nas operações! A mim ensinaram-me que na tropa um gajo só deve ser voluntário para se ir embora mais cedo, para a casa da mãe; em mais nenhuma situação… – Se agarrares os limos do leito do Lussanhando e puxares o corpo para o fundo – interrompeu Lotário – tu ficas suspenso a resistir ao impacto da corrente; e as águas vão alisar-te o corpo como a lâmina da faca do Carawela a raspar todos, todos os milímetros quadrados da tua pele... para os verter na água do rio que os leva para longe... Serão partes de ti, que já não te pertencem... – Eh! Pá! Esse rio deu-te a volta… – a risada nervosa de Jorge. – Depois o teu corpo torna-se mais impressivo… – O que é isso, «mais impressivo»? – Torna-se mais sensível ao Lussanhando. – Sacana de rio, esse! Podíamos tentar um negócio quando a guerra acabar, Lotário... explorar as propriedades da água… – sorriu Jorge. – O Lussanhando trouxe ao Carawela os gritos da família.

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Flagelação Manhiça marcha logo atrás de Carawela, na fila que deixa um sulco sinuoso e interminável no capim seco de metro e meio de altura; os dois grupos de combate avançam em marcha forçada e os homens não falam, querem chegar rapidamente ao morro onde vão acampar para passarem a noite; todos querem deixar para trás, para bem longe, aquele amanhecer sem as vozes dos pássaros nas margens do Lussanhando, que descobriu Carawela a pôr-se a caminho do Umbelúzi, para o sul, nu, a G3 nas mãos para matar os assassinos da mulher e das filhas; foi preciso cair-lhe em cima para o dominar, o alferes, o furriel e mais cinco ou seis; e Carawela bateu-se com o elefante cercado no peito, brilhante do azeite das latas da ração, escorregadio como a serpente a escapar-se para o rio. Nenhum homem gosta de tomar parte numa acção daquelas; a refrega para o algemar arrastou-se no silêncio da manhã, só entrecortado pelos sons a explodirem, abafados, nas gargantas dos homens sob o esforço dos músculos, «Que outra dor não lhe fira o corpo senão a que se lhe instalou na alma». E, por isso, visível a cautela nos rostos crispados, demorou mais tempo do que o previsto a imobilização de Carawela. Agora, os pulsos presos atrás das costas, sob o olhar vigilante de Manhiça, Carawela marcha, finalmente, para o sul, dissimulado entre o capim; vai chegar ao Umbelúzi nesse dia, antes do sol se pôr, a milhares de quilómetros, o que interessa? A G3, o cinturão e as cartucheiras, a mochila, foram distribuídas em silêncio pelos companheiros. – Dentro de duas horas estamos lá… – sussurra Salvaterra, à frente de Carawela, animando os homens. Os pássaros fugiram do calor? Por que continuam calados? Ao estrondo da primeira morteirada só os mais novos se atiraram 38


para a terra vermelha. – Flagelação – confirmou Salvaterra, os olhos rasando o capim em direcção aos montes, ao longe. De lá da frente, as ordens passam em silêncio, «Vamos continuar, estão longe.» Com um toque dos dedos, Gonçalves empurra Carawela, que retoma a caminhada para o Umbelúzi, enquanto onze homens se destacam do grosso da fila indiana para seguirem o furriel no itinerário de protecção entre os montes que escondem os disparos e o trilho esculpido no capim alto pelo grosso dos militares; vão, os dois grupos, marchar em paralelo, os homens do furriel mais próximos dos montes, «Se houver nova flagelação já ficam ao alcance dos nossos morteiros», rosna Salvaterra. O cheiro intenso da transpiração de Carawela, impregnada de azeite das latas da ração, sob o sol que calca os miolos dos homens, não incomoda Lotário que segue agora à sua frente, o vento a bater-lhe na cara como as águas do Lussanhando.

Cego Jorge percebeu que, fechando-se no silêncio, as palavras acudiam à boca de Lotário num borbulhar mais solto, lembrando as torrentes sinuosas que corroem as margens dos rios em fiozinhos quase invisíveis, a princípio, para ensaiarem depois a descida cautelosa, alagando aqui e ali, até desenharem o leito das palavras que correm livres, transbordando no abrigo. Incomodava-o cada vez mais falar sem lhe ver a cara, efémeros os momentos em que a ponta do cigarro acendia o brilho dos olhos de Lotário; não se recordava de uma noite tão escura, impacientava-se, e logo hoje se esquecera da lanterna que o

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regulamento derrotado proibia. Notou um peso que lhe era estranho ao espírito, até aí cruzado pelas gargalhadas das farras, pelo torcido da insolência, pela irritação e a raiva, e, tantas e tantas as noites, pelo ódio e a revolta. E se, naquele momento, a cortina descesse ocultando para sempre a história do Carawela, Jorge, com um tenso encolher de ombros e um fugidio «Marou, foi isso…» deixá-la-ia recolher, desinteressado do fim. – Se me apanho a dormir, nem acredito! Raio de noite! Lotário deu uma risada breve. – Durante a segunda flagelação já todos percebêramos que os turras tinham um plano; não se intimidaram com os homens do Salvaterra que avançavam umas dezenas largas de metros à nossa direita e morteiraram-nos a valer, mas sempre com falta de pontaria; por isso o primeiro grupo de combate avançou em direcção a eles para reforçar o fogo dos companheiros do Salvaterra e varrer as rochas onde os outros se emboscavam. – Não pediram apoio aéreo? – Não. Não éramos tropa de luxo, como agora. Jorge não reagiu à provocação; sabia que as condições mais duras da guerra eram atribuídas às guarnições locais, com raros europeus e muitos africanos pouco exigentes, habituados ao mato, no fim de contas, à terra deles, assim diziam os relatórios. – Ficámos agachados no capim à espera que o alferes e o Salvaterra resolvessem a situação, lixados com o atraso que a fuzilaria ia causar à caminhada até ao morro; ninguém gosta de avançar no meio do capim quando começa a escurecer, não há helis que nos venham buscar se um gajo estoira um pé numa antipessoal. – Havia um capitão, de uma Companhia da metrópole – avivou Jorge – que às duas da tarde dizia «Arriar!»; mandava parar a coluna e, antes de sair da Berliet e de pôr as botas na picada, ordenava à

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malta para esquadrinhar em volta à procura das minas, berrando «Não há problema, “piquem” à vontade, topem as antipessoais… se for necessário os helis ainda voam mais duas horas hoje...»; era para tranquilizar os soldados…. – O Carawela disse «Tira-me esta merda, Lotário». Ele tinha visto o Manhiça dar-me a chave das algemas antes de avançar com os homens do Salvaterra, depois da primeira flagelação.

Algemas A aragem da tarde começa a dissipar o cheiro das munições; há uma hora que estão parados. Os guerrilheiros calaram-se; ou então fugiram; ou estão a reagrupar-se para esperarem no vale; de qualquer modo, é muito estranho que, desta vez, tenham dado tanta luta, desmentindo a impressão inicial de que iam fazer umas flagelações e fechar o livro das presenças para continuarem amanhã, e assim sucessivamente, até correrem com a tropa da região. Não há baixas de um lado e, do outro, provavelmente, também não; apenas Salvaterra recolheu a almofada do canhão sem recuo que eles não chegaram a utilizar e que abandonaram entre as rochas onde se tinham emboscado. Lotário abriu as algemas de Carawela e o alferes, contrariado, ainda resmungou «Antes de lhas tirares, devias ter perguntado! Não estás em autogestão!»; mas do seu rosto não transparecia grande convicção, também ele aliviado com o fim súbito e simples daquela situação anormal, a de ter consigo um companheiro amarrado sob fogo da guerrilha, sem poder defender-se. A visão dos pulsos livres de Carawela expulsaram num ápice a inquietação que corroía os militares dos dois grupos de combate,

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libertos, por efeito do acto de Lotário, do ferrão que lhes mordia a alma e os arrastava, mesmo sob o fogo, a vigiarem o companheiro algemado na sua marcha solitária para o seu Umbelúzi; a G3, o cinturão, as cartucheiras regressaram às mãos de Carawela, a mochila de novo presa às costas. Tudo como nos outros dias, finalmente, «Vamos a isto, ele está de volta». Durante mais uma hora, os morteiros dos militares e da guerrilha fizeram voar várias granadas que, cruzando o silêncio, pareciam imitar os pássaros, mudos desde a madrugada.

O morro – Nessa tarde ainda atravessámos o vale e fomos acampar no morro. Conheces o morro? – Não, nunca fui para aqueles lados; se calhar, qualquer dia… – respondeu Jorge. – O morro é um monte que só tem um acesso, fácil de subir, coberto de árvores, e, lá em cima, há uma espécie de planalto, frio como o inferno; mas é seguríssimo, só tens que vigiar o acesso e pôr dois homens à beira do escarpado por onde se desce para o outro lado; ninguém consegue trepar o morro pelas rochas sem ser visto. – E o Carawela? – perguntou Jorge – Ao escurecer, o Carawela disse ao Manhiça que «Amanhã, por esta hora, já estou no Umbelúzi.» – Então o tipo não tinha recuperado da maluqueira? – O Manhiça não ligou; arrasado de sono, já dormia segundos depois. – E que aconteceu? – O Carawela ofereceu-se para ficar de guarda, nessa noite, no

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posto do acesso principal ao morro; disse que não tinha sono, que estava bem, e até brincou com a pestilência que irradiava do corpo por causa do azeite das latas, «Nenhum turra aguenta o meu cheiro.» Eu fui escalado para o segundo turno com ele, o vento a assobiar sobre o capote nas minhas costas. A noite estava escura, negra como hoje, não nos víamos um ao outro a um metro de distância; o cigarro tornava-se um farol e a luz intermitente escapava-se para longe; como as águas do Lussanhando, a luz corria pelas pedras polidas das margens, ao longo dos corpos alisados, irritada. – Mas falaste com o Carawela? Percebeste alguma coisa do que se lhe passava na cabeça? – Ele falou para dentro, como dizia o Manhiça. – Mas se ele falou para dentro, tu não o ouviste. – Ouvi, claro. Eu também mergulhei nas águas do Lussanhando. Nunca, para Jorge, nos meses que já levava em zona de combate, o tempo passara tão irregular como naquela vigília; ao princípio, preparara-se para o desafio e glória de arrancar a Lotário a história do Carawela; agora ansiava perdidamente que a narração ficasse a meio, o comprimido para o sono finalmente algemado às palavras e ao som cavo e repetitivo da lâmina da faca de mato de Lotário, raspando os contornos da noite. Os ponteiros luminosos do relógio indiferente asseguravam-lhe que ainda tinha meia hora antes do irromper da luz da lanterna do furriel a anunciar a rendição.

A mensagem De início, ninguém percebeu como aquilo começara; só mais tarde, os militares souberam que o cabo enfermeiro, que se 43


oferecera para ficar de guarda no posto de vigilância ao escarpado do morro, começara de repente aos tiros, não de G3, arma que enfermeiro não usa, mas da pistola Walter. Foi isso que lançou a desorientação sobre os homens dos dois grupos de combate; porque, nos primeiros momentos, ninguém identificou os sons dos disparos da pistola, precipitadamente confundidos, na terra de ninguém do sono interrompido, com os disparos das Kalashes dos turras. A surpresa – «Os gajos a atacar pelo lado do escarpado?!» – e a escuridão da noite pressionaram os homens nos postos de guarda a reagir às cegas, a fogachada das G3 a soar aos ouvidos dos homens como o melhor dos cantos. Minutos depois, ficava tudo esclarecido: o enfermeiro adormecera no posto, o companheiro também, e, subitamente, acordou com ruídos que vinham da escarpa; escancarou os olhos na noite e vislumbrou os vultos dos guerrilheiros a trepar pelas rochas. Desfeito o engano – a guerrilha não atacara, muito menos pelo lado do escarpado, e só a imaginação do enfermeiro aterrorizado detectara os vultos –, o acampamento preparou-se novamente para dormir. Salvaterra fez a ronda pelos postos de guarda e encontrou Lotário, no lado do acesso ao morro, sozinho. – O Carawela? – Está por aí. A mijar, creio. – Olho nele. Às quatro horas da manhã o alferes informou os homens que o Carawela desaparecera e que não se organizaria a busca; o guia já lhe tinha detectado a pista que, seguramente, seguia em direcção ao quartel. Quando os primeiros homens começaram a descer o escarpado ouviu-se um tiro ao longe; neste caso, sim, de Kalashe.

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Às dez horas o corpo de Carawela foi encontrado no trilho que conduzia à picada, onde as Berliets iriam recolher os dois grupos de combate. Um tiro no peito, só um, pouco sangue no camuflado. – Parece que chupou a bala para dentro dele – chorou Manhiça. O alferes falou para o quartel, pelo rádio. – Não me diga! O Carawela?! – exclamou o capitão – Olhe que coincidência: tenho aqui uma mensagem do Comando de Sector a mandá-lo seguir para a terra dele, no Umbelúzi! Parece que lhe mataram a mulher e os filhos, uma coisa assim, uma tragédia qualquer… O Lussanhando trouxe ao Carawela os gritos da família, sussurrou Lotário.

Lussanhando – Ouves os gritos, Jorge? – Lá estás tu outra vez, Lotário! É o vento… – Vou para o Umbelúzi. Matá-los – disse Lotário Jorge levantou-se de um salto, os olhos muito abertos inundados de escuridão; os sons das latas de ração cedendo à ponta da faca de Lotário e o deslizar das mãos espalhando o azeite vertido pelo corpo corriam à solta. Nesse momento, as vozes do exterior anunciaram os homens para a rendição; o furriel apontou a lanterna para o interior do abrigo «Saiam, já podem ir dormir.» O feixe de luz iluminou o corpo nu de Lotário, ungido, as costas marcadas na parede, os braços apoiados nos joelhos, a coronha da G3 assente no chão e o cano entre os dedos das mãos; e a cabeça,

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as sobrancelhas, todos os pelos do corpo rapados pela lâmina ao longo da noite, o corpo alisado pelas åguas do Lussanhando.

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