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Lilith e(m) Teresa, Teresa e(m) Lilith

Luis Maffei

Durante a escrita do posfácio, que intitulei “Eros enquanto poemas”, da edição brasileira dos Poemas eróticos de Maria Teresa Horta, vi-me assaltado pela presença de Lilith, que me surgia nas frestas daqueles versos, daquela voz. Em meu texto, entendi que o erotismo da lírica de Teresa é, também, conhecimento, hipótese de subjetivação, construção de si aberta à ruptura. Por tudo isso, e por causa de um livro como Feiticeiras, de 2006, no qual figura a espécie de oração satânica que é “Feitiço” — “Te evoco Belzebu pelas cinco chagas de Cristo/ poderes do negro que visto/ rastejando pelo chão por entre moitas e xisto/ por entre rosas e riso por entre o incenso e o mijo// Que de nós nem dó nem grito!” (2009, p. 833) —, passei a suspeitar da filiação da obra teresiana a Lilith: ao mesmo tempo em que, em movência desobediente, visita seu lado obscuro, fraturante, essa poesia investe num futuro que não deixa de ser sacrificial, mas é clara força de criação.

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Fiquei de pensar melhor no assunto. Agora, especialmente após a vinda à luz de Estranhezas, em 2018, visito, ou melhor, sou, visitado por Lilith, trazida a mim pela mão, pela potência da escrita de Maria Teresa Horta. Enceno, com desejo quase onírico, um gesto súcubo, pronto a acolher um peso (e alguém duvida que as palavras também pesem, sendo elas mais que elas mesmas?) que me redefina, na plasticidade dos corpos. Teresa publicou, em 1994, A paixão segundo Constança H., obra de lispectoriana inspiração. Começo aí, no trágico que configura a mobilização da protagonista em direção ao corpo do amado, lugar de perdição mas de achamento:

Conduzia-lhe os dedos através do prazer que sentia, os lábios, subindo devagar pelo seu corpo e pelos orgasmos, tentando ter acesso a uma fortaleza da qual — sabia — nunca mais poderia sair. Ficaria do lado das trevas, do negrume de si própria, tacteando por dentro dos seus

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sentidos e pulsões mais escondidas, que sempre conseguira calar e que desde que conhecera Henrique se ergueram de onde estavam tapadas e pardas. (2018, p. 110).

Constança H., assim como Maria Teresa Horta, sua criadora, escreve. Seria ocioso, por óbvio, insistir na associação entre os dedos e lábios que se inscrevem, corpo no corpo outro, e os dedos e lábios que escrevem e cantam? Cantar é contraface do exercício poético, anterior à própria escrita, seja ele em versos ou prosa. Mesmo a prosa de uma autora como Maria Teresa Horta é poesia — como a de uma Maria Velho da Costa, um Herberto Helder, uma Maria Gabriela Llansol, uma Agustina Bessa-Luís —, ou melhor, compõe uma poética, e não no usual sentido da prosa poética, expressão limitadora. Assim, mesmo tomando seara pouco viçosa, toco dedos e lábios de Constança, que inventam Henrique e inventam a possibilidade de textualizar Henrique, tornando o corpo do amado o próprio corpo do texto, propondo uma rara tatuagem — título, sintomático, do segundo livro de uma mui jovem artista.

Mais que isso: propondo o corpo de uma fala, não apenas sua matéria. Constança dirá a Henrique: “ ‘Não é a fidelidade que importa, é o acto de abandono.’ ‘Não é a posse que interessa, é a entrega.’ ” (p. 130). Inspiro essa lógica, ou melhor, essa intuição: não é o texto do corpo, nem tanto o corpo do texto, mas alguma coisa da ordem do que Eduardo Prado Coelho tentou formular escrevendo de Ambas as mãos sobre o corpo, trecho que faz parte da orelha da edição de 2014; escreve o ensaísta: “Mais do que pela ficção ou pela violência súbita de certos pormenores, é nesta deslocação infinita que se situa o valor erótico do texto”. O que estou buscando dizer, e talvez não saiba bem, tem a ver com a prevalência do gesto em relação a seu conteúdo. O problema da poesia não é de conteúdos, sabemos, e por vezes precisamos nos lembrar disso num ambiente famélico por temas como a academia.

Mesmo nisso (sobretudo nisso?), a obra teresiana é lilithiana: está em jogo uma criação, feita por alguém que, em princípio, não tinha direito à criação, muito menos um direito divino. Alguém, sugerirá Constança, que cria com o corpo, que escreve com o sangue, e escreve “a menstruação, o útero, o tempo lunar das mulheres marcado na descida do sangue pelo interior do corpo.” (p. 199). Alguém que assim responde à pergunta de uma amiga, “E o teu pai?”: “Era aquele homem autoritário que ela”, eu, “enfrentava”. (p. 63). Posso arriscar-

me e dizer, num momento ainda precoce deste ensaio, que a obra de arte, mais que imitação de Deus, é, especialmente se dita por uma mulher, enfrentamento de Deus, por vezes efetiva disputa — claro, perigosa. Aí a coragem. É o que aprendi com Maria João Reynaud citando Hélène Cisoux na apresentação da Poesia reunida de Maria Teresa Horta, vinda à luz em 2009: “um texto que seja feminino na sua essência ‘não pode ser menos que subversivo’ ” (2009, p. 23). Em havendo um feminino na sua essência, não estará, creio, distante de Lilith.1

Constança é uma personagem que suga para si várias vozes, internas à narrativa ou não. Seu assassínio de Adele rouba desta o H. de seu sobrenome. Mas não é da personagem que vem a inicial, e sim da filha de Victor Hugo que Isabelle Adjani viveu no filme de Truffaut. Arquetípica, pode-se dizer, mas não sigo essa senda, por escolha e incompetência. Sei é que, dada sua afinidade com Lilith, Constança pactua com um cão para transformar Adele em protagonista de uma missa negra: “Levou um segundo apenas até formar o salto e cravar os dentes fortes no pescoço vulnerável de Adele, imóvel perto das escadas onde caíram os dois embrulhados um no outro, num ruído terrível.” (p. 286). Das bruxas — ou feiticeiras, para evocar o título de 2006 —, versões medievais de Lilith, a simpatia, divisão mesma de um páthos insubmisso, é pelo Diabo — “Ficaria ao lado das trevas, do negrume de si própria”. E é, pela avó, associada Constança a Lilith explicitamente: diante de uma ilustração infantil, “Constança pensou que gostaria mais de ser o anjo do que a menina, embora isso a inquietasse um pouco. Mas quando contou o facto à avó, esta respondeu: ‘Tu nunca poderás ser o anjo, tu és Lilith.’ E contou-lhe da primeira mulher, antes de Eva.” (p. 221). Diabo, pois: segundo Roberto Sicuteri, “Lilith entra no mito já como demônio.” (1987, p. 30).

O assassinato de Adele, gesto entre crime e loucura, pulsão e vingança (só se envolvendo com outra mulher, supunha Constança, ela se desforraria da infidelidade de Henrique), vai muito além de uma peripécia narrativa. Os relatos de Maria Teresa Horta, não canso de dizer, são pura Poesis, palavra que batiza seu conjunto de 2017. O longo fôlego expresso por Maria Teresa Horta não é apenas a substantiva quantidade de poemas de seus livros, Poesis inclusive, mas sua tentativa de produzir o sopro, o fôlego: uma poética da criação — a primeira seção do conjunto, aliás, chama-se Vocação. Um poema desse livro, “Alma”, é notável: “É um sussurro/ somente/ à beiraágua// (...)// Uma pérola/ oculta/ entre o poema” (p. 69). Murmúrio,

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sussurro (modos de dizer cheios de ar saindo da boca), alma: respiro e espírito encontram-se sugestivamente na etimologia e em muitas visões de mundo, inclusive da magia natural renascentista — e não só, pois a Bíblia, por exemplo, está cheia de referências a sopro e vento, ligados, lá, a alma, espírito. De acordo com Adriana Cavarero,

Segundo a Bíblia, a potência de Deus, que por meio da criação e da revelação se manifesta ao povo de Israel, encontra a sua expressão no respiro, ruah, e na voz, qol (...). Para a velha Israel, tanto a criação quanto a autorrevelação não vêm da palavra de Deus, mas sim de seu respiro de sua voz. Mesmo quando é explicitamente qol, isto é, voz, a potência divina é pertinente a uma esfera que se distingue e independe da palavra. (2011, p. 36).

Entendo melhor agora aquele “sussurro/ somente” como o gesto e a gesta do poema, sua força de criação. Em Maria Teresa Horta, criar, gerar, é trabalho maternal, sem que exista qualquer contradição entre potência erótica e maternidade — quiçá Teresa esteja ao fundo daqueles versos de Adília Lopes, “O choro da bebé/ não impede a mãe/ de se vir” (1999, p. 34). Penso agora no conto inaugural de Meninas, cujo título é exatamente “Lilith”, que encena um parto. Estou, neste momento, pensando nas durações, quase no sentido musical, que possuem a escrita de Maria Teresa Horta e que essa escrita performa. Musical, sim, pois o ritmo da escrita de Teresa é muitas vezes hipnótico, conjugando a terza rima com refrães internos, repetição estratégica de vocábulos (leitmotive) com versos em geral curtos, memória, enfim, de vários tempos literários na criação de uma temporalidade própria e plural. Durações, enfim, e isso indica a proposição de um tempo longo, de caráter genesíaco, tempo vário que propicia o acontecimento. Uma das palavras mais frequentes na poética teresiana é “devagar”, o que me sugere que o andamento predileto da poetisa seja o largo, ainda que o andante, dada sua relação nominal com o durativo, se ouça muitas vezes.

Nessa obra, posso arriscar, criação é explosão erótica (alguns movimentos são allegri) e fazimento de mundos, momentos irrepetíveis que se repetem na revivência permitida pela escrita. Insisto: é mais a fala que o falado, mais o dizer que o dito, mais o sopro que a palavra, ainda que a palavra, evidentemente, participe das inaugurações, dos clímaces. Penso, por exemplo, em “Antecipação”, poema do infindo Minha senhora de mim, de 1971: “Entreabro as

minhas/ coxas/ no início dos teus beijos// imagino as tuas/ pernas/ guiadas pelo desejo// oiço baixo o teu/ gemido/ calado pelos meus dentes/ imagino a tua boca/ rasgada/ sobre o meu ventre” (2009, p. 345). Os verbos do poema estão no presente do indicativo, fundando experiência que, ao recuperar o tempo do encontro erótico, duplica-o e oferece-o à leitura.

Mas eu dizia do parto, e ocorre-me o poema final de Mulheres de abril, de 1976, conjunto deflagradamente político de Maria Teresa Horta. Os versos finais do livro são os versos finais de “Trabalho de parto”: “Mulheres — companheiras/ hoje — aqui// Em trabalho de parto/ de um país” (2009, p. 499). Não é novo dizer que a obra teresiana subverte uma dinâmica de poder masculino, pondo o homem na posição de ente a se alterar. São ameaçados os sustentáculos do que se pode chamar de patriarcado, especialmente em virtude de um escancaramento do que há de arbitrário, autoritário e frágil em suas bases. Escritas de autoras como Teresa recusam um silêncio que muito pensamento feminista procurou entender e enfrentar ao longo do tempo, e que uma pensadora com Gayatri Spivak entende a partir da ideia de subalternidade, já que a “mulher, como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir.” (2010, p. 15). Falar, em investimentos como o de Maria Teresa Horta, é forjar (e forçar) uma escuta, ou melhor, forjar um mundo onde seja possível forjar (já não forçar) uma escuta e subverter (palavra lilithiana) posições inaceitáveis de subalternidade.

A erótica teresiana tem alguma pedagogia, e uma erótica maternal saberá, coletivamente, parir um país. Agora, sim, vou a “Lilith”, conto que abre Meninas, de 2014. Cito um dos mais vigorosos parágrafos do texto:

Surpresa, sinto chegar a dor: seta afiada, ácida, laminada, a lacerar-me as articulações dos braços, idênticos a delgados juncos, enroscados em torno do lugar onde fantasio situar-se a curvatura das tuas ancas. Iço-me, relutante, pois deixei de escutar-te os gemidos, não obstante continuar a saborear-te o áspero sal das lágrimas, que me enchem a boca com o sabor ázimo da vertigem. Por segundos aquieto-me interdita, até julgar reconhecer ao longe o azul transparente do cintilante cristal dos teus olhos. E apesar das sombras, retrocedo no sentido inverso

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daquele para onde, sem dar por isso, começo a ser empurrada, mansa na tentativa de ganhar algum alento. (2014, p. 16)

Parto é luta, tanto no sentido metafórico (lutar por um país, uma causa) como no literal — ainda que, neste, seja uma luta com, não contra, luta de invenção dupla, da que nasce e da que dá a nascer. Não Eva, mas Lilith é a primeira mãe, e não Eva, mas Lilith é quem sofre as mais plangentes dores em virtude da maternidade. De acordo com Sicuteri,

no Alfa Beta de ben Shira lemos que Lilith, acasalando-se com os diabos, gerava cem demônios por dia, os quais eram chamados Lilim, um nome próximo a Lilith, que deriva do sumério Lil e em suas várias definições arcadianas significa “multidões” ou então “tolo” (...). Os pequenos demônios foram mortos pela mão implacável de Jeová Deus. A este cruento extermínio, verdadeira guerra entre o criador e suas criaturas, se opõe uma vingança de Lilith: ela mesma enfurece seus próprios filhos, ou melhor, ajudada por outro demônio feminino, segue por todo lugar estrangulando de noite as crianças pequenas nas casas, ou surpreende os homens no sono induzindo-os a mortais abraços. (1987, p. 40)

A punição a que Lilith é submetida se deve a sua mais terminal desobediência:

Os anjos com a chama e a espada fulgurante gritam a Lilith a ordem de voltar para junto de Adão pois, se não o fizer, será afogada. Mas Lilith (...) responde: “Como posso voltar para junto de meu homem e viver como uma esposa, depois deste meu gesto e de viver aqui?” Mas não há lugar para a dúvida e a hesitação: os anjos proclamam ainda: “Se desobedeces e não voltas, será a morte para ti”. (SICUTERI, 1987, p. 39)

Lilith se retirara do Éden por não aceitar o jugo de Adão, recusandose, inclusive, já que era feita do mesmo pó, a deitar-se por baixo dele. A maternidade posta em cena em “Lilith”, o conto, sabe, apaixonadamente, “do perfeito abandono a que leva o nascimento”

(2014, p. 21), que dá a vida, portanto, e a morte, à nascida e à doadora do nascer. A profunda relação de Lilith com a morte não deixa de assinalar o desespero que habita a concessão de vida, no limiar entre o sagrado e o monstruoso. Um dos mais provocantes e críticos filmes brasileiros dos últimos anos é o quase terror As boas maneiras, dirigido por Juliana Rojas e Marco Dutra. Em jogo, a gravidez dramática de Ana, uma gestante rica, abandonada pela família provinciana porque engravidara. Durante o processo, ela se apaixona por Clara, mulher que fora contratada para cuidar dela. Ana morre no parto, porque seu filho é um monstro, o que fica ainda mais ambíguo pelo fato de seu pai ser um pároco de interior chamado Mario Jorge, mesmo nome do papa Francisco. Clara adota a criança e é essa mãe negra que, na periferia de uma São Paulo um pouco estranha cenograficamente, enfrenta a paixão da maternidade e seu destino necessariamente permeado pelo trágico.

Paixão e melancolia — a que “vai nimbar/ o verso/ a mitigar a luz” num poema de Poesis (p. 121) — são aspectos da maternidade e de Lilith, primeira mãe. Tristeza, por sua vez, é uma das palavras-chave em Maria Teresa Horta, como se vê no “Poema ao queixume”, de Minha senhora de mim: “Ai tristeza de mim triste/ minha casa/ e meu cuidado// minha candeia/ e cadeia/ minha paz/ e meu olfacto// Ai tristeza meu queixume/ minha mesa/ e minha água// Ai tristeza de mim triste/ amiga de minha mágoa”. (2009, p. 307). Ou a mesma melancolia, que se presentifica num poema de Estranhezas: “Vou atando e desatando/ o destino e a desdita/ misturando os nós dos mares// com o anelo da paixão/ o alvoroço da vida/ as dúvidas da harmonia// e a minha melancolia” (2018, p. 20, 21).

Se escrevi há alguns parágrafos que o protagonismo não é do corpo do texto, redigo-me, contradigo-me: claro que é, sim, do corpo do texto, e um texto dado na sua condição de corpo, tanto que Eduardo Prado Coelho conclui a citação que transcrevi indicando “esse ilimitar de um corpo que em palavras se move”. Mas aí, se vem ao caso o corpo e sua doação, seu dadivar(-se), toda a poesia de Maria Teresa Horta é um radical e indócil deslocamento de paixão — não rumo à paixão, mas composto de paixão, sacrificial, mergulho abismal: não estranha que essa obra encene uma lilithiana maternidade. Recordo-me de Jesus no momento da sua paixão, de sua “entrega” (“não é a posse que interessa”), e, acima de tudo, de Maria, sua mãe. As mães, com efeito, são algumas das mais altas coisas que a obra de Maria Teresa Horta cria, o que me faz voltar a Minha mãe, meu amor, para depois

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conhecer, reconhecer, aquela outra mãe, ainda apenas nomeada de passagem. Edênico é um poema do livro de 1984: “Lembro-me do paraíso/ no teu interior/ O paraíso:// com árvores/ e oceanos// Penumbras incessantes/ num enredado princípio// E havia também a maçã/ do teu útero/ sítio da tentação no início” (p. 553). Eva terá sofrido influência de Lilith? A primeira mulher, que, na verdade, é a segunda, talvez não pudesse passar incólume pela sombra da sua antecessora. Por isso, desobedecer é uma espécie de herança que Lilith, já muito distante do paraíso, terá deixado a Eva. É esse desavirse com a ordem e com o pai que permite à humanidade o conhecimento, o que me permite suspeitar que Eva é a contraface bíblica do Prometeu mitológico: uma e outro agem por amor ao conhecimento e à vocação humana por conhecer.

Prometeu foi vítima de uma punição olímpica, posteriormente revogada em virtude de uma capitulação do titã. Eva não recebeu complacência, Lilith, ainda menos. Aquela que a avó de Constança H. chama de a primeira mulher é punida com o apagamento, não sendo sequer nomeada nas versões institucionalmente aceitas do texto bíblico; Eva, com o degredo imposto a ela e a Adão, e a culpa por esse destino. O conhecer, portanto, é de caráter diabólico, demoníaco, no limite, mas, no mínimo, desviante, subversivo como Helène Cisoux entende o texto feminino. A rebeldia é traço marcante da obra de Maria Teresa Horta desde Espelho inicial, obra de estreia, mas entendo o “Poema de insubordinação”, de Tatuagem, contribuição da poetisa em Poesia 61, marco inaugural dessa postura que é ética, política, revolucionária. Assim começa o poema: “Preto/ sem submissão/ palavra de relevo agudo nas ruas” (2009, p. 67). Cito mais um fragmento:

Preto

Como um insecto um vitral uma cave

Uma língua

Preto

De sabor de sal de punhos na lua

Ultrapassado Extremo Ruptura

(2009, p. 74)

Não é possível, num poema editado em 1961, esquecer África, e o corpo que o poema dá a ver não deixa de rememorar um corpo africano que se insubordina. Já a primeira Teresa entende que a mulher em estado de revolução precisa olhar também para o que não seja imediatamente sua causa, e um problema muito discutido ainda hoje, o da falta de unidade entre as lutas pelos diversos direitos civis, já está em cena na poética da autora: a causa feminista não pode esquecer a negra, e ambas, todas, não podem perder de vista o que seja uma causa que toca a todas e todos, que é uma política de alcance coletivo. Aproximar o feminismo da luta do corpo “Preto” “de punhos na lua” e na luta é radicalizar a potência da palavra, corpo preto sobre o branco da folha de papel. A poesia, em estado de inscrição no mundo, é Tatuagem inclusive na sua força de “ruptura”, palavra-verso do poema, da pele dos corpos e da pele de um real que grita por ser transformado. Observar o que está oculto por poderes de potência eroticamente impotente não difere tanto de olhar nos olhos o lado negro da lua, lado lilithiano, clara sombra, verdade esconsa e profunda.

É como o gesto fundador de Lilith: não aceitar estar por baixo, exigir estar por cima, ser íncuba. Assim sendo, “a fim de te ouvir gritar” (2009, p. 343), como se encerra a obra-prima “Segredo”, de Minha senhora de mim, é que a deusa-demoníaca submete os homens à posição sufocada, dolorosa (e gostosa, e gozosa) de súcubo. A mulher, biblicamente, veio depois. Ambas as mãos sobre o corpo, primeira experiência de Maria Teresa Horta fora dos versos, editada pela primeira vez em 1970, é uma espécie de romance cuja estrutura é muito próxima a de um longo poema sinfônico. Há um ataque musical logo após o parágrafo de abertura do primeiro texto, uma frase, um

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acorde: “Depois a mulher.” (2014, p. 13). Insubordinação, mais uma vez: “depois”, agora, não no lugar secundário da aparição adiada, mas no lugar desejado da ocupação do futuro, tempo que pode receber duração semelhante ao do tempo de caráter genesíaco que uma obra como a de Teresa anela cumprir.

Tempo das sereias, talvez? “Sereias aladas” é poema de Estranhezas: “Ah, as sereias aladas/ de Ulisses!// Na sua longa/ e longínqua errância/ na sua inconstância...” (2018. p. 195). O primeiro poema da parte VII de Minha mãe, meu amor também se refere às sereias: “Falei-te de um passado/ cheio de ondinas/ de sereias e de aves// Com uma mãe por detrás/ a comandar as fadas” (2009, p. 509). Tempo das musas? “Musa” é poema de Inquietude, de 2006:

É a musa a esmeralda a cintilação absurda uma pequena bolsa de ar na lisura do pulso

No perfil do papel a vagem do poema

A penumbra a palavra a rasura da pena

É a musa o marfim o faim à cintura o mistério que se adensa na leveza da bruma

No fio do coração o voo do sentimento (2009, p. 794)

Adriana Cavarero comenta o desassossego de um Platão faminto de logocentrismo diante da voz e da música:

(...) no Fedro, Platão não se cansa de preocupar-se com o efeito de encanto e de aprisionamento que provém da Musa. O problema é sempre o mesmo. A épica preocupa Platão principalmente como atividade vocálica e musical ligada à esfera corpórea do prazer. Musas e Sereias, de voz

harmônica, ou cigarras, de canto monótono e penetrante, todas perturbam o imaginário platônico quando o filósofo se empenha em criticar os poetas. A função principal dessas figuras — emblematicamente femininas — parece ser a de ressaltar a materialidade sonora, libidinal e présemântica do logos (...). (...) nesse prazer contagioso, o registro acústico reina soberano e se opõe ao estilo solitário da theoria. (...) “Uma implícita associação, ainda que nebulosa, entre a figura da mãe e o trabalho oral do poeta” norteia a crítica platônica a Homero. (2011, p. 126).

Lilith também passeia pelo universo da libido e do pré-semântico, representando, segundo Roberto Sicuteri (1987), aspectos instintuais que o macho insiste em, por um lado, silenciar, por outro, caricaturar, estabelecendo que os gêneros são naturais e imutáveis, o que lhes confere um estatuto de verdade.2 Mais uma vez penso no quanto o sopro, anterior a qualquer demanda de meros significados, participa do Gênesis, como comentou Cavarero, e é sopro afim a esse que instaura a poesia, corpo de palavras, não nego, mas construção em gerúndio desse corpo. Construção ligada “à esfera corpórea do prazer”, que mistura, como indica a citação que a autora faz a Ida Travi, existir uma associação entre mãe e poeta, entendendo poeta como alguém que fala, não escreve — como as Musas, que alimentam de sopro o papel, como as ornitomorfas Sereias que, de acordo com poema de Poesis, “iam fazendo... poesia” (2017, p. 230).

Referi-me a Maria há não muitas páginas. Ela é importante mãe a ser conhecida, reconhecida, neste texto. Maria é a mãe paradigmática da cultura ocidental, e, nesse sentido, é uma espécie de reabilitação, aprisionadora, do feminino materno, posto que a mãe de todos, Eva, pecou. O culto mariano, a partir da baixa Idade Média, uma das práticas centrais do cristianismo, colaborou para a crescente descorporificação da mulher. Maria é virgem,3 é a Virgem, condição que se torna um ideal imposto ao feminino. Maria Teresa Horta, num fascinante livro editado em 2016, Anunciações, enseja como que uma lilithização de Maria, que se mostra, nos poemas, tomada por um desejo intenso por Gabriel, que a leva a um estado franco de enfrentamento. Já indiquei a associação entre maternidade e desejo em Teresa, e é como se a poetisa não admitisse a virgindade da mãe de Jesus, pois um corpo criativo não poderá ser, na mirada da autora, um corpo desapaixonado — não sei se vou longe, mas a paixão de

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Maria e Gabriel talvez anuncie a própria paixão de Cristo, encontrando-se o sacrifício final, pulsão de morte, com uma natividade acentuadamente erótica, pulsão vital. Destaco, entre tantos (inclusive alguns em que Maria se espelha ao que houve de rebelde e indócil, lilithiano, em Eva), um poema do livro:

Quando Maria enfrenta os anjos de armadura

olha-os nos olhos glaucos de cinza e urdidura

Confronta-os com o próprio medo logo mudado em punhal

de desafio e ruptura (2016, p. 281)

A cena lembra o combate entre Lilith e os anjos que tentaram reconduzi-la a Adão, a fim de que ela finalmente sucumbisse ao poder masculino. A Maria de Maria Teresa Horta é uma contendora dos “anjos de armadura”, expressão que abrange, tanto o Deus dos exércitos de um Antigo Testamento bélico, como muitos combates travados em nome da Igreja. Assim como a musa do poema de Inquietude porta um “faim”, Maria modifica seu medo em punhal e parte para a luta, cujo fim será, no mínimo, a “ruptura” — a revolução? Lilith, o nome próprio, não era (já explico esse imperfeito) presença frequente ao longo da poesia de Maria Teresa Horta, não obstante as duas aparições aqui investigadas, em A paixão segundo Constança H. e Meninas. Aparece, no plural, indicando decerto um conjunto de demônios, no poema “Santo Ofício”, de (nada mais adequado) Feiticeiras: “Precipitadas do céu/ Liliths que insubordinam/ Vos arrenego anjos negros!” (2009, p. 837). Mas Estranhezas, o conjunto de 2018, nomeia Lilith duas vezes. Na primeira aparição, ela é enxergada desde um lugar de desejo, identificação e “Desobediência”:

Por vezes vejo Lilith com a sua saia de lã

e casaco de retrós

ou um vestido de noite todo coberto de nós que desata um por um

Por vezes vejo Lilith pé ante pé no porvir

desobedecendo ... a sorrir (2018, p. 187)

A Lilith do poema é extemporânea, possuindo uma duração que, “devagar”, chega ao presente, visto no vestuário sedutor da noturna personagem, e ao futuro, ao “porvir”. O poema desmobiliza o trágico lilithiano ao vê-la sorrir, convicta de seu lugar e de seu(s) tempo(s). A segunda aparição se dá em “Eterna vertigem”, poema que indica em nota ser uma “Resposta possível de Elizabeth Siddall ao poema ‘Iluminação Súbita’, de Dante Gabriel Rossetti, sobre a intemporalidade do amor que a ambos ligava” (p. 224). O poema é longo, possui seis partes. Cito a primeira estrofe da IV: “E sou nó, sou enigma, sou delírio/ sou amada, lívida como um lírio,/ em Lilith mudada, entre Vénus e Musa/ cabelos de fogo iluminando o nada” (p. 226). Se ainda não estivesse dada a estreita relação entre Lilith e a Musa, agora ela seria incontornável. Não apenas a Musa se estreita a Lilith, mas também Vênus, que recebe da primeira mulher caracteres demoníacos e oferece-lha beleza e solaridade. Esta poder ser a tríade, Vênus, Musa e Lilith, que rege a inteira poesia de Maria Teresa Horta.

Considerando a hipótese de um estilo tardio — ideia adorniana abraçada por Edward Said — em Teresa, é agora que sua poética é mais lilithiana que nunca? Penso que sim, pois Lilith habita cada vez mais o que Maria Teresa Horta escreve. Tive o gozo de ela atender a meu pedido de me enviar alguns inéditos lilithianos. Um deles se intitula exata e simplesmente “Lilith”:

Antes da queda Lilith enredou a serpente no pulso

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Sentindo a sua própria essência

Insubordinação desobediência (Inédito)

O estilo tardio, entre outros aspectos, tem a ver com catástrofe. Se tomo essa senda, a catástrofe que Lilith representa no poema é a catástrofe criativa de desobedecer à normatividade, seja religiosa, seja advinda de outras morais mais ou menos misóginas. A imagem axial do poema é a “serpente no pulso”, “antes da queda”: além de enfeitar Lilith, tal uma pulseira ofertada por Eva, a serpente, ou seja, a “desobediência” e a vontade de saber, participa do ritmo cardíaco de Lilith. O tempo, anterior, é uma espécie de eternidade mítica, que pode ser recuperada no tempo da história sempre que precisemos nos alimentar de Lilith.

Outro dos inéditos se intitula “Ensimesmada”:

— Lilith? Pergunto-me ensimesmada querendo saber da alma escondida entre os meus braços

Neste baraço de lume nascida do meu regaço onde se abriga o ciúme (Inédito)

Nesse poema, que recupera tema que visita a poética de Maria Teresa Horta desde muito tempo — o ciúme é um dos braços do candelabro de Candelabro (1964), por exemplo —, Lilith habita a poetisa, numa alteridade internalizada. Lilith possui uma alteridade irredutível (a não Eva, a mulher proscrita etc.), mas não inacessível, enquanto participa arquetipicamente da construção do feminino em nossa(s) cultura(s). Assumi-la implica recolher sua força, a que se evidencia em “Lilith”. Assim, “ensimesmada”, ativa na construção de si mesma, a poetisa é sempre outra de si, no contínuo fiar e desfiar do “baraço de lume”.

A potência que Lilith empresta à obra de Maria Teresa Horta e que a obra de Maria Teresa Horta empresta a Lilith se liga ao que posso chamar de genesíaco feminino, cuja significação de potência é sempre renovável, indo da rebelião à maternidade, da tristeza ao mais

profundo gozo, do saber ao ciúme. Neste atroz começo de século, num mundo e, especialmente, num país dado a odiar as mulheres (ainda que o mundo e o país estejam cheios de mulheres que nos ensinam os mais urgentes nãos e o mais potentes sins), é nutritivo saber que Lilith ainda está, estará, em algumas importantes fileiras deste tempo, sejam elas versos, sejam, para aproveitar expressão de Judith Butler, “corpos em aliança”. Maria Teresa Horta me ensina que, sem Lilith, este mundo não tem a menor chance de se tornar habitável.

Notas

1 Não obstante, afirma Carolin Emcke: “se o gênero, como ‘masculinidade’ ou ‘feminilidade’, não é simplesmente um fato fisiológico inato, mas o resultado de acordos sociais e políticos que determinam diferentes modos de existência, então nenhuma ‘normalidade’ basilar ou valor fundamental podem ser derivados dele.” (2020, p. 117). Como indica uma nota em seu livro, a autora, aqui, incorpora vozes como as de Claudia Honegger, Thomas Laqueur e Barbara Doubt; se entendermos o aspecto de jogo que comparece à construção dos gêneros, podemos ouvir também Judith Butler. Já se solidificou, nas últimas décadas, uma crítica de caráter político à écriture féminine. Seja como for, o que quero salientar é que a poesia de Maria Teresa Horta é também uma crítica à normalização dos gêneros e de seus papéis. Nisso inclusive, a simbologia de Lilith tanto diz.

2 Há poucas noções mais usadas e abusadas para fins de violações de direitos, diferenças, nuances etc. que a de natureza. No disco que a genial Elza Soares lançou em 2018, Deus é mulher, uma das faixas diz: “Olha, cara, não me venha com esse papo sobre a natureza/ Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia”. A canção foi escrita por Mariá Portugal. Como quem dialoga com toda a gente que Carolin Emcke ecoa na citação que transcrevi na nota 1, a compositora desvela a falácia de se considerar a natureza como justificação do que quer que se situe na esfera da cultura e do comportamento humano.

3 E se Maria não fosse virgem? E se esse ônus dado às mulheres não tivesse nem o fundamento bíblico? Frederico Lourenço, tradutor da Bíblia e fundo conhecedor do texto, comenta um problema severo que cerca a profecia da virgindade mariana, feita por Isaías: “Todos os comentadores modernos concordam que a palavra hebraica alma (utilizada no texto original de Isaías) não signfica ‘virgem’. Traduzida, porém, na versão grega dos Setenta por parthenós, que designa uma jovem solteira que pode ser (ou não) virgem, contribui para consolidar a crença de que a mais famosa parturiente da cidade de Belém pôde engravidar sem que para isso tivesse de perder a virgindade”. (2017, p. 29).

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Referências

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