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Epigenética

Muito tem acontecido nas Universidades desde que Lamarck, um naturalista francês do início do século XIX, foi apresentado nos bancos de escola como alguém equivocado dentro das descobertas da ciência. O meio ambiente influenciando a herança genética era algo que não se concebia até poucas décadas atrás. Pensávamos em fatores de risco desencadeando doenças, mutações genéticas ocasionando síndromes, mas é um conhecimento relativamente novo o fato de que reações químicas no DNA possam ocorrer sem afetar os genes, mas podendo modificar algo nas gerações seguintes. A epigenética vem para mostrar isso e o trauma é um dos exemplos a traduzir a força que esse novo campo pode ter dentro da ciência. Atualmente, diz-se que a Epigenética permite incorporar experiências na expressão do DNA, ou seja, variações não-genéticas (epigenéticas) adquiridas durante a vida de uma pessoa, podem passar aos seus descendentes, influenciando e determinando fenótipos. O termo epigenética foi cunhado por um biólogo inglês chamado Conrad Waddington nos anos 1940, juntando os termos epigênese e genética. Conrad questionava como era possível que o DNA, sendo o mesmo em todas as células, produzia órgãos tão diferentes e desenvolvia funções diversas. Os cientistas, hoje, sabem que variações não-genéticas (epigenéticas) adquiridas durante a vida de uma pessoa podem passar aos seus descendentes, silenciando genes e impedindo a transcrição de proteínas a partir deles. Há alguns anos, muitas situações traumáticas eram consideradas fator de risco para alterações na saúde física e mental dos indivíduos, mas não se tinha ideia dos mecanismos epigenéticos envolvidos na gênese dos transtornos mentais e das doenças físicas secundárias ao trauma. E como isso acontece?

Estudos relacionados com cuidado materno em ratos têm demonstrado a influência do comportamento da mãe em uma medida de estresse da vida pós-natal dos ratinhos, revelando que características relacionadas à dedicação materna – como amamentar e lamber os filhotes - promovem a diminuição na produção do hormônio cortisol relacionado ao estresse na vida dos mesmos. Podemos então observar o cuidado materno como fator externo (ambiental) determinando a expressão fenotípica dos filhotes (mais ou menos estressados).

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Em humanos, estudos mostram níveis de ACTH (adrenocorticotrofina) em resposta ao estresse seis vezes maiores em mulheres que sofreram abuso na infância, quando comparadas a mulheres que não passaram por tal situação. Experiências traumáticas em etapas iniciais da vida predispõem à maior vulnerabilidade a efeitos epigenéticos do estresse e à depressão na idade adulta, muito parecido com o que ocorre em outras espécies já estudadas.

A primeira vez em que ficou claro que as alterações aconteciam não só nos indivíduos expostos, mas também nas gerações seguintes foi em um estudo na Suécia, aonde toda a população é estudada há muitos anos. Em uma aldeia, ao norte deste país, dentro do Círculo Polar Ártico, com períodos longos de rigorosos invernos, eram registrados, além de dados populacionais, as colheitas que eram perdidas e as fomes que se seguiram em função disso. O que se descobriu posteriormente foi que quando a avó, enquanto feto na barriga da bisavó, ou quando o avô passou fome até ao menos os 11 anos de idade, o neto tinha maior chance de desenvolver diabetes, inclusive afetando sua sobrevida. Outras situações de trauma ou de privação demonstraram afetar gerações e passaram a ser estudadas e observadas com maior atenção.

Um estudo similar passou a ser conduzido na Holanda, em um contexto de Segunda Guerra Mundial. Em setembro de 1944, os alemães estavam em retirada por toda Europa, mas mantinham um território na região nordeste da Holanda, de importância estratégica e simbólica para a causa nazista. Com o avanço aliado e uma greve ferroviária holandesa, os alemães instituíram um embargo de alimentos em retaliação à greve. O embargo coincidiu com um inverno rigoroso que congelou os canais. Os alemães também destruíram a infraestrutura de transporte e inundaram a maior parte das terras cultiváveis do oeste holandês. Até o final de novembro, a dieta da maioria dos habitantes do oeste da Holanda foi reduzida a menos da metade da dieta usual consumida e, no fim de fevereiro de 1945, as provisões haviam se reduzido a menos de um quarto da dieta usual. Quando a Holanda foi liberada pelos Aliados, em maio de 1945, 22 mil pessoas haviam morrido no oeste do país. Um grupo de sobreviventes especial, aqueles que estavam nas barrigas de suas mães durante o período de fome, foi estudado em uma pesquisa sobre desnutrição, que ainda hoje se mantém em atividade. A fome holandesa é um caso singular de situação traumática/privação, pois foi possível determinar com precisão as datas de início e fim. Estudiosos de Harvard que conduziram a pesquisa, constataram que o peso dos bebês

DRA. JULIANA PERIZZOLO

CRM/SC 15564 | RQE 17165 | RQE 7963 | Psiquiatria - Psicoterapia

• Formada pela UFRGS; • Residência em Psiquiatria pela UFRGS/HCPA; • Especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica pela UFRGS/CELG; • Cooperada da Unimed Chapecó e Associada da APRS.

nascidos no período da fome era consideravelmente menor que o dos que haviam nascido antes. Estudos posteriores estabeleceram forte ligação entre baixo peso ao nascer e saúde precária dos bebês. Quando aos 18 anos destas crianças, no momento do alistamento no exército, aqueles que haviam sido expostos durante o segundo e o terceiro trimestre da gravidez da mãe apresentavam significativo aumento nos índices de obesidade (mais ou menos o dobro quando comparado aos que nasceram antes e depois da fome). Também constataram aumento significativo do risco de desenvolver esquizofrenia entre os expostos (homens e mulheres) e maior incidência de transtornos de humor, como a depressão. Para melhor compreensão da sequência do mesmo estudo, há a necessidade de conhecermos um pouco a parte molecular da epigenética.

Sabemos que a herança epigenética depende de pequenas mudanças químicas no DNA e nas histonas (proteínas do núcleo das células), respectivamente metilação e metilação/acetilação. A metilação do DNA está relacionada à repressão gênica (o gene fica metilado/ marcado para não codificar proteínas). Como é um processo em gradação, quanto mais metilado, menos ativo é o gene. A metilação não é passageira (o grupo metila tende a permanecer ligado ao DNA mesmo depois que esse é copiado durante a divisão celular). A acetilação das histonas geralmente tem relação com a ativação gênica e a metilação das mesmas, resulta em inibição. Tudo isso acontece sem alterar as sequências nucleotídicas originais do DNA.

Ilustração de Douglas Garcia Dias

As histonas são proteínas que se especializaram para empacotar o DNA em uma estrutura similar a um carretel de linha. No passado, acreditava-se que a principal função delas seria essa, mas, atualmente, se reconhece que o papel das histonas seria muito mais dinâmico, tendo um papel na regulação da expressão gênica. Dependendo das modificações ocorridas nas histonas, elas podem mudar a forma como o DNA é embalado. Podem compactar esta embalagem, tornando-o inacessível para a expressão de seus genes. Como ocorre com o DNA metilado, as histonas metiladas são transmitidas intactas, de uma célula a suas descendentes.

Em um estudo mais recente sobre a geração que sofreu a fome na Holanda, foi identificada, em células sanguíneas, uma série de genes com alterações epigenéticas. O grau de metilação desses genes era diferente entre os indivíduos expostos e os não expostos à fome e, foi visto que os efeitos epigenéticos do ambiente fetal poderiam se estender por até seis décadas. A esse respeito, cabe notar que os efeitos adversos da fome não se limitaram àqueles que a viveram. Os filhos dos que passaram pela fome no ventre materno se tornaram mais suscetíveis a apresentar problemas de saúde que os filhos de mães não expostas à fome.

A epigenética é um campo que vem acrescentar na compreensão de como situações traumáticas e de privação podem nos afetar enquanto indivíduos, não só fisiologicamente ou psiquicamente, mas também a nível molecular, muito próximo do DNA. O alento que temos no momento tem relação com o fato de que antes achávamos que tudo era determinado geneticamente (o aparecimento de doenças, sua evolução e sua gravidade) e agora, temos um novo lugar de pesquisa, que abre possibilidades outras para pensarmos novas formas de prevenção e novos tratamentos.

Como despedida, convido vocês a apreciarem a obra de Portinari chamada “Criança Morta”, que se encontra no MASP em São Paulo. Deslumbramento e sensação de desolação ficam evidentes quando nos colocamos diante da fome e da pobreza retratadas pelo autor em 1944 (obra praticamente contemporânea à época da fome holandesa). As lágrimas desproporcionais assim se configuram pelo transbordar de sofrimento da família que chora sua perda. Quem é a criança morta que essa mãe nos entrega? Será a marca de uma época? Quantas gerações adiante dos irmãos carregarão o fantasma da fome em seus genes? E quantas gerações vem carregando? Podemos mudar a experiência traumática de uma família como esta em um futuro próximo com os conhecimentos gerados pela epigenética? Espero que sim!

Dra. Juliana Perizzolo Médica Psiquiatra e Psicoterapeuta Dinâmica *Este artigo é parte do trabalho de conclusão do Curso de Pósgraduação em Neurociências e Comportamento da PUCRS.