10 minute read

O Algarve merece melhor

Os cidadãos do Sotavento Algarvio não fazem ideia dos riscos que correm ao serem “tratados” no serviço de cirurgia do Hospital de Faro. Conheço a situação desde que fui diretor do Curso de Medicina da Universidade do Algarve (2008-2013) e da qual alertei a administração hospitalar durante o meu mandato. Também tornei o meu parecer público, na imprensa local em 2011, com grande consternação dos poderes instalados.

mas escolheram nada fazer.

Advertisement

A Faculdade de Medicina da Universidade do Algarve viu-se obrigada a suspender a colocação de estudantes em estágios no Hospital de Faro por reconhecer a falta de padrões mínimos de qualidade em vários serviços.

Não tenho ilusões que a maioria das decisões tomadas pelos políticos dão máxima prioridade aos seus interesses pessoais seguidos dos interesses do partido. Os interesses dos cidadãos contam, em pequena medida, apenas durante

O POSTAL entrevistou um médico algarvio residente em Londres

Jorge Fonseca licenciou-se em Medicina na Universidade de Cape Town e tirou a especialidade primeiro em Anestesia e posteriormente em Cuidados Intensivos em Londres. Mestre em Segurança do Doente pela Escola Nacional de Saude Pública em Lisboa, tem uma paixão pela segurança do doente e educação médica. Chefiou o centro de simulação no hospital onde trabalha desde 2017 deixando esse cargo para chefiar a Governanca Clinical da Unidade de Cuidados Intensivos.

P O que se sabe sobre a atual situação da segurança do doente em Portugal, em particular no Algarve, e o que tem sido feito em Portugal nas últimas décadas?

R Não me considero uma autoridade suficiente para dar parecer pormenorizado sobre a atual situação em Portugal, mas posso apontar para iniciativas do meu conhecimento que merecem louvor: cação e Investigação na área da segurança do Doente, coordenado pelo autor principal do estudo supracitado.

A ação da minha colega Diana Pereira, ao denunciar as graves negligências que ela testemunhou, é uma atitude rara que só um médico com altos padrões éticos e grande coragem o faz, perante um sistema corrupto onde a mediocridade esconde a mediocridade.

A verdadeira extensão do problema vai muito além da denúncia da colega Diana Pereira e nunca poderá ser exatamente avaliado dado que não existe uma auditoria honesta e eficaz dos serviços. E não creio que a Ordem dos Médicos ao “investigar” o problema tome outra atitude que não seja de compromisso com o poder estabelecido.

A presente situação no Hospital de Faro podia ter sido resolvida há meses se a tutela política fosse isenta de promiscuidades nas nomeações dos administradores. Quer o Ministro da Saúde, quer o Diretor Executivo do SNS foram alertados várias vezes para os problemas graves que comprometem a saúde da população algarvia, o curto período das eleições. Infelizmente, os graves problemas do Hospital de Faro não são únicos no país. Não existe em Portugal uma cultura de segurança do doente com sistemas instalados tal como, por exemplo, na indústria da aviação civil. Vai demorar gerações a progredir nesse sentido.

Vivo em Londres, onde percorri quase toda a minha carreira de médico, passando curtas temporadas no Algarve. Devo confessar que quando lá estou [no Algarve], vivo com a constante preocupação de involuntariamente ir parar ao Hospital de Faro, como doente, se me acontece uma emergência cirúrgica.

Tenho esperança que a denúncia da corajosa colega Diana Pereira venha a ser um daqueles momentos “me too”, que encoraje mais colegas e doentes conhecedores ou vítimas dos graves problemas do Hospital de Faro a virem a público denunciar esta situação, vergonhosa para o Algarve e para o país.

P O problema da segurança do doente é um campo recente, com apenas duas a três décadas, da gestão em saúde, investigação e prática clínicas, mas é cada vez mais uma preocupação formal dos diversos Sistemas de Saúde e seus responsáveis, com liderança dos países anglo-saxónicos… R …O problema da segurança do doente não é um campo recente, pois o estudo do Institute of Medicine 'To Err is Human' em 2000 identificou que entre 44 mil e 98 mil americanos morriam por ano em consequência de erros nos cuidados de Saúde. Em 2011, um estudo piloto realizada pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) pelo Professor Paulo Sousa e colegas, utilizando a mesma metodologia, apontava para uma taxa de 11,1% de erros médicos em Portugal, dos quais mais de metade (53,2%) eram evitáveis. Cada evento adverso resultou em estadia hospitalar prolongada por 10,7 dias com um custo direto de 470.380 euros. Estes dados não são só números, mas pessoas. Em menos de 0,8% dos casos, os doentes ou familiares foram informados da ocorrência do evento adverso [ou seja, apenas 1 em cada 125 foram informados].

• O Plano Nacional de Saúde 2021-2026 [infográfico em anexo] que cito 'constitui-se como uma ferramenta de apoio a gestores de topo, lideranças intermédias, CQS gestores de risco e profissionais de saúde (…) de modo a aumentar a segurança da prestação de cuidados de saúde, tendo presente o foco no doente e seus cuidadores.'

• Foi designado na ENSP um centro colaborador da OMS para a Educação, Investigação e Avaliação da Segurança e Qualidade em Saúde para promover a Edu-

• O inovador “Curso de Medicina”, da Universidade da Universidade, foi um dos primeiros em 2009 a integrar um currículo de segurança dos doentes transversalmente no programa do curso e na avaliação dos alunos, selecionando alunos não só com excelência académica, mas também com atitudes e aptidões compatíveis com boa comunicação, trabalho em equipa, empatia e dedicação à melhoria continua. O programa de simulação clínica para o treino de competências não técnicas, iniciado em 2009, continua com a abertura de um novo centro de simulação para disseminar não só o treino de competências técnicas clínicas, mas também estratégias de comunicação e trabalho em equipa, incluindo a notificação do erro às entidades relevantes e também a participação do erro aos doentes para melhorar a segurança.

P Que recursos são precisos disponibilizar para a sua melhor resolução?

R Só os custos diretos do erro clínico, mais os custos dos processos jurídicos a ele associados, excedem 470.380 euros anuais.

Investimento na segurança do doente faz mais sentido, não só economicamente, mas também em termos dos custos indiretos sociais e económicos. O plano nacional estabelece claramente os princípios a aplicar para reformar as práticas.

Deveriam receber prioridade máxima:

• a liderança dos serviços com o envolvimento dos órgãos de topo da gestão;

• a notificação e gestão de todos os eventos adversos;

• a formação dos profissionais nas três áreas.

P Em caso de suspeita de erro clínico ou medicamentoso com consequências graves para um doente, que procedimentos são ou podem ser ativados?

R Em Portugal atualmente existe um sistema da DGS para notificação de eventos adversos de forma anónima e confidencial, podendo o sistema ser utilizado pelos profissionais de saúde e pelos doentes ou familiares. Podem notificar qualquer preocupação com a prestação de cuidados de saúde. O sistema pode ser acedido por telemóvel ou computador pessoal em qualquer lugar através de https://notifica. dgs.min-saude.pt/ .

Mesmo apenas a suspeita do erro sem consequências adversas graves - os 'near mis-

Segurança do doente: quais as medidas a tomar?

‘near miss’ devia servir de oportunidade para se perceber que partes do sistema falharam e que partes funcionam, e como melhorar a maneira de trabalhar.

O desafio não é eliminar o impossível, o erro, mas sim reorganizar a maneira de trabalhar tendo em conta a falibilidade humana e impedir que essa falibilidade se traduza em danos para o doente.

A opinião de Jorge Fonseca Médico ses' - deveriam ser notificados porque apontam para uma área dos cuidados de saúde com alguma fragilidade que poderia ser melhorada, prevenindo a repetição do mesmo erro. É fundamental fazer a transição de 'quem é que fez asneira' para 'como é que isto aconteceu' - uma atitude que não culpabiliza individualmente o profissional e que permite uma maior transparência absolutamente necessária para tornar os cuidados mais seguros. Todos os estudos apontam para uma taxa de erro de 10%: todos os profissionais, mais tarde ou mais cedo, vão errar alguma vez. Eliminar o erro não é possível, mas montar sistemas para evitar que os erros causem danos aos doentes é obrigatório.

P A fazer fé nas sentenças de tribunal e nas investigações da Ordem dos Médicos, os casos de “erro/negligência” médica são praticamente inexistentes em Portugal. Em Inglaterra, por exemplo, onde reside atualmente, também não há condenações por “erro/negligência” médica?

R Em Inglaterra, as condenações individuais são raras e em geral são conduzidas pelos tribunais porque se trata de indivíduos com intenção de fazer mal.

Os erros e os casos de negligência médica são geralmente notificados e investigados localmente, mas por investigadores com formação sobre a segurança do doente e conhecedores dos fatores humanos conducentes ao erro ou à negligência. Fazem-no com uma abordagem sistemática (‘como é que aconteceu’, não ‘quem fez a asneira’). Há uma obrigação legal do clínico de participar ao doente ou seu familiar qualquer erro significativo que tenha ocorrido. Há também a obrigação legal de levar o caso a um tribunal especial (Coroner’s Court) que determina a causa de morte. O juiz [‘coroner’] pode emitir um alerta para as entidades de saúde envolvidas no caso, ou até para todo o país, sobre qualquer situação que requeira uma melhoria nos procedimentos, mesmo sem atribuir culpabilidade. Todas as mortes, inesperadas ou não, que ocorrem em ambiente hospitalar, são obrigatoriamente avaliadas por um médico independente especialmente nomeado, o ‘Medical Examiner’, que faz parte da equipa do ‘Coroner’ e não do hospital envolvido, e que tem poderes para pedir aos investigadores hospitalares quaisquer dados relacionados com o doente falecido, incluindo pormenores de todas as manobras terapêuticas ou de diagnóstico que o doente recebeu. Os familiares têm acesso direto ao ‘Medical Examiner’ e podem questionar qualquer aspeto que considerem insatisfatório nos cuidados que o seu familiar recebeu.

P Qual a grande vantagem de notificar erros médicos aos doentes?

R Ao contrário do que poderia ser expectável, quanto mais os erros são notificados aos doentes, menos são os processos judiciais e queixas contra hospitais e médicos, esta é a experiência prática que acontece nos EUA e no Reino Unido. Por exemplo, os médicos britânicos são pagos seis em cada quarenta horas para atividades de ‘governança’, isto é, para reuniões de mortalidade e morbilidade, auditoria de indicadores de qualidade e casos difíceis.

Adenúncia corajosa da colega Diana Pereira desencadeou uma indignação compreensível; apontou para uma ação terapêutica disfuncional em que a primeira obrigação do profissional de saúde, de não mal ao doente, mais do que a própria doença, não foi cumprida. Houve crime com intenção de causar lesões ao doente da parte dos cirurgiões do hospital de Faro? Duvido, mas as investigações que irão decorrer pela Ordem dos Médicos e pelo Ministério Público possivelmente vão esclarecer essa hipótese. Felizmente os casos como o do médico Dr Harold Shipman e, mais recentemente, o caso da enfermeira Lucy Letby, ambos no Reino Unido, profissionais que intencionalmente fizeram mal aos doentes a seu cargo, são muito raros. Houve negligência? Sem dúvida. Pelo menos num dos casos denunciados, a retenção de objetos intra cavitários após procedimentos cirúrgicos (neste caso, compressas), representa uma quebra grave de boas práticas, uma clara violação das legis artis, estabelecidas a nível nacional, tal como as normas da segurança do doente publicadas pela Organização Mundial da Saúde na sua “Orientação Cirurgia Segura” de 2009. Mas crime, negligência e erro médico não são atos homólogos: o crime é raro, a negligência menos rara, mas o erro clínico é muito frequente. Um estudo pelo grupo do Professor Paulo Sousa da Escola Nacional de Saúde Pública apontou para uma incidência na ordem dos 10% de todos os atos clínicos, um índice comparável com o resto da Europa e os EUA. É uma consequência inescapável da complexidade dos sistemas de prestação de cuidados de saúde, a falibilidade dos profissionais e a enorme variabilidade de circunstâncias nos recipientes desses cuidados.

Parece muito atraente a noção de que o erro pode ser eliminado se apontarmos os indivíduos responsáveis para os culpabilizar, envergonhá-los, despedi-los ou re-treiná-los. A verdade é que na esmagadora maioria de casos quando as coisas correm mal não é por crime ou negligência (relativamente raros), mas por erros (comuns) devidos às complexidades e falibilidades do sistema de saúde e dos seus constituintes. Cada erro médico ou

A aviação civil já aprendeu esta importante lição há muito tempo. As notificações e as chamadas da atenção para eventos adversos são obrigatórias, reduzindo dramaticamente a incidência dos erros humanos: o silêncio, quando as coisas correm mal, garante a continuação das condições que predispõem ao mesmo erro voltar a acontecer.

Quais as medidas a tomar?

Se for averiguado crime, que haja julgamento e castigo.

Se houve negligência, que sejam responsabilizados quem não cumpriu a normas estabelecidas.

Se houve erro humano, investigar exaustivamente as circunstâncias, sem culpabilizar os profissionais envolvidos, disseminar os achados e rever os protocolos dos procedimentos para minimizar futuros erros.

Problemas e desafios existem em todos os sistemas de cuidados de saúde, o nosso incluído, e haverá sempre problemas de variada gravidade.

A coragem da colega Diana Pereira é um momento importante para chamar a atenção de todos para o que acima afirmo: não são só os profissionais de saúde que cometem erros, mas também os políticos e os gestores que fazem parte integral do sistema. O sistema inclui procedimentos, condições de trabalho, constrições e prioridades que determinam a segurança dos doentes. É uma responsabilidade coletiva e é preciso uma mudança sísmica na relação tradicional entre estes componentes, o que requer coragem e empenho da parte de todos.

Proteger o doente implica o fim da cultura do silêncio, do medo, da culpabilização e da ameaça. O erro clínico deve ser notificado, discutido e aproveitado para melhorar a prestação de cuidados aos doentes, usando princípios científicos bem estabelecidos sobre a influência dos fatores humanos no erro.

A notificação do erro deveria ser feita não só através dos sistemas clínicos mas também perante o doente e familiares com esclarecimentos e sinceros pedidos de desculpas. Antes de qualquer procedimento, tal como a obtenção do consentimento informado, os doentes devem ser rigorosamente informados dos riscos desse procedimento, assim como das medidas operacionais a funcionar para minimizar a ocorrência de erros. Os conselhos de administração hospitalares devem, com os diretores de serviço, assumir a responsabilidade final pela segurança do doente com uma cadeia de responsabilizações clara e bem definida.

Entrevista ao Professor José Ponte, o primeiro diretor do Mestrado Integrado em Medicina da Universidade do Algarve