Não custou muito para ficar sabendo da doença. Três dias, uma semana depois. Seu Sousa não ouvia mais rádio. Não saía da cama e recusava a comida. Estava mal. A pobre dona Jorgina vinha contar à sua mãe que era grave, não havia muita esperança. O maior problema, dizia o médico, era que ele não queria mais viver. Ela andava pelos cantos pensando e, mais do que nunca, treinando a cegueira. Fechava com força os olhos, ficava assim por um tempo longo, um tempo infinito, até que não aguentava mais e descerrava as pálpebras. Tentava mais uma vez: olhos fechados, afundava na escuridão. E bem ali, no meio do breu mais denso, aparecia o rosto transtornado, as mãos que se erguiam no gesto de defesa, a voz trêmula perguntando quem é. A doença de Seu Sousa, só ela sabia, era medo do fantasma que vinha das trevas para pegá-lo. Quando ele morreu, andou tão quieta, sem fome e parada, que a mãe se preocupou. Por muito tempo, o susto do cego doeu dentro dela. Depois, chegou o Natal, as chuvas de janeiro inundando as casas, a mudança para outro bairro, e distraída, enfurnou sua culpa num abismo de sombras.
Foto por Paloma Vidal
Miriam Mambrini é carioca, formada em Línguas Neolatinas pela PUC/RJ. Começou a escrever tardiamente e dedicou-se à prosa de ficção; publicou oito livros até hoje. Vários de seus contos receberam prêmios literários, dentre eles alguns como Taxidermia, presente em seu livro Grandes Peixes Vorazes e primeiro colocado no Concurso Stanislaw Ponte Preta (1991). Participou das antologias de contos Contos de escritoras brasileiras (Martins Fontes, 2003), mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (organização de Luiz Ruffato—Record, 2005), entre outras, e colaborou na revista Ficções.
Foco no Brasil, Outubro 2013 | 23