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Educação também é missão?

Lourenço Stelio Rega

A palavra “missão” vem do latim “missĭo”, que significa em sua essência “enviar” também sido também utilizada para indicar alvo a ser conquistado ou mesmo a finalidade a ser alcançada, por exemplo, por uma equipe militar que recebe uma missão a cumprir. E aqui é possível unir os dois significados, há uma missão a ser cumprida e a pessoa é enviada ( missĭo ) para cumpri-la.

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Embora a palavra não figure na Bíblia, tem sido amplamente utilizada ao longo do tempo da história para indicar que a Igreja tem uma missão e, por isso, é enviada ao mundo. Aqui entram diversas discussões. Há quem defenda que a missão da Igreja é fazer missões, mas também há quem indique que seja adoração, ensino, serviço, obras sociais etc.

Uma pergunta que poderá nos ajudar: a Igreja tem mesmo uma missão? Christopher Wright, um dos maiores missiólogos da atualidade, pode nos ajudar a compreender um pouco mais ao afirmar que “... não é tanto que Deus tenha uma missão para Sua igreja no mundo, mas que Deus tenha uma igreja para Sua missão no mundo. A missão não foi feita para a igreja; a igreja foi feita para a missão: a missão de Deus. (no livro “A missão de Deus”, Vida Nova, cap 1).

Existe hoje uma profunda e séria discussão sobre esse tema, que talvez estejamos passando ao lado, e será de suma importância dedicar um pouco de tempo para nos aproximarmos, pois disso dependerá a maior priorização no cumprimento de nosso papel que Deus espera na história global.

A criação fez parte do plano de Deus, que foi interrompido pela rebeldia humana e mudou todo curso da história (Gênesis 1-3). Deus poderia destruir e recomeçar tudo de novo, ou simplesmente deixar a própria criação abandonada ao seu próprio destino. Nesse mesmo período inicial da história humana, Deus Se aproxima da obra criada e do ser humano, prometendo a sua restauração, que é descrita essencialmente em Gênesis 3.15, que chamamos nos estudos bíblicos e teológicos como o primeiro evangelho (protoevangelho). Temos aqui o que podemos chamar de “missão de Deus” (no latim missĭo Dei) que é recuperar toda a criação, incluindo o ser humano.

Deus, então, deseja restaurar toda criação e é necessário que compreendamos que em toda Bíblia temos a ação divina seguindo esse rumo que vai além da salvação individual. E aqui outro missiólogo, também importante hoje, Michael Goheen, nos desperta afirmando que “missão é participar da história da missão de Deus. O papel que o povo de Deus deve desempenhar nessa história dá-lhe sua identidade missional. Portanto, a Igreja é missional por natureza, e sua missão como um todo nasce dessa identidade.” (no livro “A missão da igreja hoje”, Ultimato).

Nesse caminho, ainda é possível compreender que, como povo de Deus, nossa participação é comprometida ao convite do próprio Deus a sermos Seus instrumentos no cumprimento de Sua missão dentro da história do mundo, para a redenção da criação como um todo, inclusive da vida humana. Assim, a nossa participação é ampla pois o Evangelho são as Boas Novas do Reino de Deus, que aponta para a restauração de Seu governo sobre o mundo. No Sermão da Montanha é possível ver isso quando Jesus nos desafia a buscarmos em primeiro lugar o Reino de Deus e Sua justiça (Mateus 6.33).

Goheen novamente nos aponta que “a igreja é um sinal, uma prévia e um instrumento do reino de Deus no mundo, uma comunidade que diz com sua vida, com suas palavras e com seus atos: ‘Jesus é Senhor sobre todas as coisas’. Uma vida de amor altruísta para o bem dos outros é central para o reino de Jesus. Tudo isso submete a igreja à justiça e à compaixão do reino.”

Esse processo da restauração de todas as coisas, inclusive do ser humano individual, pode ser visto no chamado de Abraão, quando Deus aponta para o fato de que ele e sua descendência seriam bênção para todas as nações. Seguindo a linha do tempo, o povo de Israel, como descendência da Abraão, recebe essa herança missional e missionária, que deveria ser um povo de contraste (Goheen), indicando às nações quem era Javé (o Deus de Israel o único Deus) por meio da adoção de um modo de viver baseado em Sua Lei que, de certo modo, seria como que a recuperação do Plano da Criação. Infelizmente Israel acabou falhando e se misturando com as nações absorvendo sua idolatria, seus valores éticos e não cumpriu seu papel. Foi para o cativeiro.

Deus avança na história para continuar com Sua missão, e Judá, ainda como descendência de Abraão, assume o papel de ser um povo de contraste, seguindo o curso da história, mas, em vez de se aproximar das nações, Judá se torna arrogante e cria a dicotomia entre um povo santo (judeus) e os gentios. Tem a promessa do Messias mais próxima (que foi iniciada em Gênesis 3.15) e imagina uma libertação política que será por Ele promovida. Deixa também de ser um povo modelo para as nações. Vindo o Messias, os judeus não apenas O negam, como O crucificam.

Deus, então, segue com o cumprimento de Sua missão e, dos dois povos (judeus e gentios), fez um só povo (Efésios 2; Romanos 9-11), e lhe confia que seja um povo que avance sendo bênção para as nações. Por isso mesmo tanto a Grande Comissão (Mateus 28.18-20), quanto o desafio de At 1.8, apontam para o alcance aos povos da Terra com as Boas Novas que agora tem sido completada com a vinda de Jesus - o Deus encarnado, Seu Filho - que morreu por nós, ressuscitou, foi ascendido e um dia voltará - quatro atos centrais da história da missĭo Dei

A volta de Jesus indicará o final desta fase de vida criada e rebelada contra o Plano da Criação e o início de uma nova linha de completa restauração. Mas é nesse período que vivemos e, ao nos arrependermos de nossa condição rebelde, aceitando a recuperação que nos é oferecida por Deus por meio da obra sacrificial de Seu Filho, que nosso papel como juntos - indivíduos salvos - como Igreja, somos convidados por Deus para darmos prosseguimento ao cumprimento de Sua missão em restaurar todas as coisas (Efésios 1).

E aqui é necessário que tenhamos muita atenção para que possamos cumprir cabalmente a missĭo Dei (a missão de Deus) que nos convoca agora para sermos como que um povo de contraste, uma comunidade de contraste (Goheen) para demonstrar ao mundo o caminho de volta ao Plano da Criação.

Penso que um dos pontos que necessitamos recuperar em todo ensino bíblico é que há, pelo menos dois focos essenciais, como que se fossem dois trilhos de uma estrada de ferro (onde um trilho para a viagem para). Em primeiro lugar existe o que podemos chamar de intencionalidade missionária que envolveria alcançar os povos (longe e perto/urbano) que ainda não foram alcançados pela verdade restauradora das Boas Novas. Aqui temos alguns destaques como a apresentação verbal do Evangelho, envio de missionários a estes campos, levantamento de oferta missionária para o sustento da obra da evangelização e plantação de Igrejas etc. Em resumo seria a ênfase na pregação, na verbalização da mensagem salvadora.

Outro destaque é o que podemos chamar de dimensão missional que é a faceta que envolve a realização dos ideais das Boas Novas na vida concreta e diária de cada pessoa que, arrependida, aceita a salvação. Em outras palavras, é a aplicação nas linhas da história pessoal da concretização dos valores e princípios bíblicos. Ser salvo, como resultado da intencionalidade missionária, tem de ter como resultado prático e concreto na vida uma dimensão missional de demonstrar ao mundo (às nações) a realidade transformadora das Boas Novas. A dimensão missional tem a ver com a realização da missão de Deus por meio de minhas obras, meu caráter, minha sensibilidade para com as pessoas (generosidade), minha participação com o reestabelecimento do que seja justiça, retidão, conforme o Plano da Criação que foi abandonado e que agora é recuperado por meio da obra restauradora do Filho de Deus, demonstrando às pessoas a realidade do Evangelho que vai além da sua verbalização, de sua pregação. É cada salvo individual unido aos demais salvos individuaiscomo Igreja - agora no meio ambiente em que vive sendo o elo entre Deus e o mundo, que nos vendo verá a Deus por meio de nosso modo de ser, pensar, falar e agir.

Então, o que podemos aprender com tudo isso é que temos aqui duas facetas - a manifestação das Boas Novas tanto por palavras (intencionalidade missionária) e por obras (dimensão missional) - que necessitam andar juntas para que a missĭo Dei se cumpra e ocorra a restauração de toda criação que se completará quando nosso Mestre voltar.

Enquanto isso, cumpre-nos o papel de vivermos nessa história, no meio ambiente em que ganhamos nosso pão diário, como uma SOCIEDADE DE CONTRASTE que demonstre não apenas as Boas Novas verbalmente, mas também por meio de vidas transformadas e transformadoras, promovendo nas estruturas desse mundo o incômodo que os primeiros cristãos provocavam (Atos 17.6) ao vivermos os compromissos éticos cimentados nos ideais bíblicos demonstrando ao mundo sem Deus o que é a vida com Deus.

Enfim, temos o desafio de pregar, anunciar, verbalizar as Boas Novas, mas essas Boas Novas necessitam ser mais do que um cartão magnético que nos dará entrada na Nova Jerusalém. Necessitam ser concretas em nossa vida pessoal, íntima, relacional, matrimonial, profissional, escolar, cidadania etc. e como Igreja.

Depois de tudo isso dá para considerar o papel da educação na formação da vida e caráter da pessoa que aceitou o Evangelho? O quanto a educação poderá contribuir para que a igreja possa ser instrumento no convite em cumprir a missão de Deus sendo uma sociedade de contraste no mundo, além de ser uma sociedade portadora de uma mensagem?

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