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3.2.6 Mística dos sentidos

3.2.6 Mística dos sentidos

O enlace místico Abdias-Exu reclama, no “terreiro da história”, a potência do corpo, que com o sagrado incrustado percorre encruzas, “as distâncias do nosso aiyê feito de terra incerta e perigosa” (NASCIMENTO, 1983, p. 11). A vida se fez campo de batalha diuturna para o negro, batalha para sobreviver às investidas do projeto genocida da elite branca brasileira; genocídio físico, simbólico, epistemológico, espiritual etc. – para o negro, na subjetivação de Abdias, o Brasil fez-se, inescapavelmente, trincheira.

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Diz Abdias Nascimento (2016, p. 97): em O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado: “As feridas da discriminação racial se exibem ao mais superficial olhar sobre a realidade do país”. É, pois, contexto de massacre, extermínio, matança ou genocídio pluriforme que o corpo negro vai encontrar na mística – enlace com as divindades – forças extra-humanas para não abaixar a cabeça, não aceitar a lógica servilista e não aceitar “entrar pelas portas dos fundos”. Falar, então, em corpos negros na sociedade brasileira implicou para Abdias partejar mobilidades, deslizar, driblar, enfrentar na companhia dos orixás lugares (sociais) pré-determinados à população negra (samba, futebol etc.).

Os orixás tornaram-se, nesse horizonte, potências de visibilidade – forças nutrizes e motrizes de emancipação. Importante para o nosso trabalho exibir o discurso de Abdias, à época deputado federal, no palanque do centro do Rio de Janeiro na Marcha Contra o Racismo e Desigualdade Raciais no dia 19 de novembro de 1988. Em suas palavras, os orixás então presentes fortalecendo e dando visibilidade aos corpos negros a fim de que ergam as cabeças e se emancipem, assumido na insubmissão de seus corpos lugares de poder historicamente negados. Orixás encravados são potências de enfrentamento e agenciamento. Fala Abdias com voz firme e vibrante202:

O Deputado federal, Abdias Nascimento, o representante negro na Câmara federal, o negro representando os negros na Câmara federal, coisa que acontece pela primeira vez na história desse país. Este é um dia histórico na luta de libertação do povo negro deste país. Nós temos sustentado uma luta secular em resgate de nossa dignidade humana, em resgate de nossa história, em resgate dos nossos valores culturais. Infortunadamente, essa luta só tem obtido visibilidade quando ela se expressa em termos de carnaval, em termos de futebol; a nossa consciência política, essa é a primeira vez depois da abolição da escravatura que nós apresentamos num ato memorável como este a nossa maturidade política, a consciência dos nossos direitos irreversíveis. Não estamos aqui para mendigar, não estamos aqui estendendo a mão à mendicância das classes dirigentes. Não, a nossa mão está estendida à solidariedade, mas essa solidariedade tem um preço; é o preço que a sociedade

202 Ver: Cultne Doc – Abdias Nascimento – Marcha de 1988: Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=P3DG479n-oU Acesso em: 2 de junho 2018.

dominante tem que pagar. Tem que nos olhar cara a cara, olho no olho, porque nós não aceitamos mais isso do negro falar de cabeça baixa, nós não aceitamos entrar pelas portas dos fundos num país que nossos antepassados construíram. Nós somos construtores desse país, e enquanto nós estivermos alijados do poder este país só pode ser definido como uma África do Sul à moda sul-americana [...]. E é por isso que aqui em praça pública enfatizando a nossa visibilidade nesta praça que é nossa como o céu é do condor [...]. É impossível admitir que um Brasil construído pelos braços, pelo sangue, pelo esforço do negro não tenhamos ministros de Estado negros. Nós exigimos participação nos ministérios, porque não podemos ser teleguiados dos brancos [...]. Quiseram simplesmente massacrar e erradicar a nossa raça; mas, a nossa raça é muito forte, a nossa raça é muito resistente e por força do nosso sangue, por força dos nossos orixás, os deuses que nós trouxemos das Áfricas; esses orixás têm nos sustentado a nossa fé, tem sustentado a nossa energia e tem sustentado o nosso braço que jamais descansou nessa luta sem tréguas por nossos direitos fundamentais de seres humanos.

O discurso longo, intenso e intrépido de Abdias, supracitado, reverbera sua competência mística de sofisticada complexidade. É um pensar que não secciona o religioso da vida, da dimensão política, da luta, da emancipação e da efetiva liberdade. Para o místico-ativista os orixás sustentam o “braço”, isto é o corpo. Essa percepção vai ao encontro de uma concepção de mundo e de fé, por conseguinte, segundo a qual, o corpo é o lugar da enunciação, do discurso, da luta, dos deuses e deusas – da felicidade.

No âmbito de uma mística que nomeamos de ancestrista partejada por Abdias Nascimento, todo o corpo (ou o ser humano integralmente pensado) comparece na profunda dialogacão com o mistério, a magia dos orixás e com tudo que existe. Nada escapa ao domínio alteritário. E essa teia relacional corpórea, política e erótica reclama a visão, audição, tato, gustação e olfato. A trajetória de Abdias expressa na obra Axés numa mística sem fronteiras, exige competências do corpo, outras sensibilidades. Emergem então os órgãos do sentido como potências do corpo e vetores mistagógicos. Recobrá-los torna-se exigência mística fundamental e tarefa política de libertação, de descolonização.

No poema Padê de Exu liberador, Abdias (NASCIMENTO, 1983, p. 9-14) se mune dos sentidos para conhecer mundos rompendo fronteiras, e a partir deles mergulha no enlace com o Exu, não recusando provar do mel e cheirar “meia-noite marafo forte”. Dessa feita, no ver, tocar, cheirar, ouvir e provar, o negro recobra a senha de seu ingresso no mistério, na magia e no encante. Pelos sentidos, – potências do corpo – Abdias se acerca do alguidar ofertado e, com Exu – gozando da intromissão só permitida aos místicos –, se farta, fortalece o corpo!

Rubens Alves (2008) aborda a necessidade no âmbito educacional de se “educar para os sentidos”, o que implica, necessariamente, considerá-los sob outras lentes. “Nossos sentidos – visão, audição, olfato, tato, gosto – são todos órgãos de fazer amor com o mundo, de ter prazer nele”, diz

Rubens Alves (2018, p. 24). Diríamos, em chave mística afrodiaspórica, os sentidos são portas abertas que conduzem ao sagrado, por isso o processo de libertação abdiasiano implica também a libertação dos sentidos sequestrados pela colonialidade. Escreve Mbembe (2018, p. 225): “O potentado deve habitar o súdito de modo tal que este não possa mais exercer sua faculdade de ver, ouvir, cheirar, tocar, se mover, falar, se deslocar, imaginar, deixando até de sonhar sem que seja em referência ao significante mestre que agora o domina...”.

No Padê de Exu libertador, exemplarmente, Abdias (NASCIMENTO, 1983, p. 9-14) escreve ao “dono do corpo”: “Vejo-te comer a própria mãe...”, cheira “meia-noite de marafo forte”, “bebe” no alguidar, oferece a flauta de Pixinguinha para que Exu possa “chorar chorinhos aos ancestrais”, roga a Exu para que plante em sua garganta o axé verbal... É preciso, como podemos verificar, que os sentidos estejam descolonizados a fim de que o enlace aconteça e a mística se torne benfazeja. A propósito, na mística ancestral africana os sentidos são canais de memória. Por exemplo, o cheiro de um defumador no universo da umbanda pode trazer consigo um universo de possibilidades conectivas. Diz Abdias (1983) em Prece a Oxum “[...] parto ao odor das violetas/do meu campo santo de amor [...]” (NASCIMENTO, 1983, p. 39).

Refletindo sobre Religiões do povo no Brasil: pressupostos para uma leitura, Brito (2010, p. 303-320) se serve do termo “espiritualidade dos sentidos” sublinhando o lugar proeminente do corpo nas práticas religiosas populares que, em perspectivas de oralidades, surpreendem e desqualificam o absolutismo da escrita/livro203. No que se refere a “espiritualidade dos sentidos”, Brito faz referência ao testemunho pastoral de Dom José Azcone, terceiro bispo de Marajó, em seu território de missão. Expõe o bispo:

Percebi uma espiritualidade dos sentidos. Por exemplo, [aqui na ilha] entra muito, os sentidos, o olhar para a imagem, isso é importantíssimo, olhar para a berlinda, olhar para as roupas de Nossa Senhora, olhar para o carro dos anjos, e tudo isso é movido de religiosidade, não é curiosidade turística... Isto para mim foi uma novidade a ser aprendida. (BRITO, 2010, p. 313)204 .

As palavras testemunhais de Dom José Azcone supracitadas sugerem pensar que órgãos dos sentidos são órgãos mistagógicos, mnemônicos e epistemológicos. Conhecer nesse horizonte, não obedece ao exclusivismo do cogito ocidental. Pode-se, pois dizer: “Cheiro, logo existo”. Os sentidos, então, apresentam textualidades a partir de lógicas sensoriais, como o cheiro de alfazema num

203 Brito (2010, p. 313), desenvolvendo sua reflexão cita Antonacci que escreve: “O corpo, especialmente quando a relação com a escrita e o livro não é geral, pode revelar uma profundidade por vezes inimaginável”. 204 O termo “mística dos sentidos” utilizado em nossa tese é inspirado na referida reflexão produzida por Ênio José da Costa Brito.

defumador de umbanda ou a cor amarela da farofa com dendê num alguidar na encruza. Escrevem Tânia Mara Vieira Sampaio e Jorge Hamilton Sampaio205 (2009, p. 166):

Sem fazer uso das oposições, mas considerando a integralidade do ser humano e sua possibilidade de aceder ao conhecimento não exclusivamente pela razão, proponho agregar a esta multiplicidade de linguagens de expressão de conhecimento, que apontem sentidos à experiência humana no mundo, as percepções sensoriais (audição, visão, tato, paladar, olfato) que são interdependentes das percepções intelectivas, cognitivas, racionais. Não se pode estabelecer uma separação, uma disjuntiva sem que esta seja artificial ao tratar-se da elaboração ou apreensão de um conhecimento pelo ser humano206 .

Órgãos dos sentidos, então, comparecem como portais mediante os quais o místico-poeta Abdias se entretém com o sagrado. Ao fim e ao cabo, o que se impõe é a cidadania do corpo no trato com o divino e com tudo que existe. Falar, nesse horizonte, de órgãos dos sentidos é falar de memórias e imagens que abrem portais da imaginação que o eu místico-poético Abdias ousa balbuciar na invenção de novas letras. Antonacci (2016, p. 217) cita Norval Baitello, pesquisador no campo da semiótica, que sustenta que

Uma imagem não se esgota apenas no sentido da visão, há imagens olfativas, auditivas, táteis, gustativas e proprioceptíveis (...) imagens que se incubam dentro do homem, em suas vísceras, sua pele, seus músculos ou seu cérebro, quando criam ambientes de sociabilidade e de cultura.

Seria gratuito e arbitrário dizer que todos os candomblecistas partejam a espiritualidade ou religiosidade tal como Abdias a vivenciou; porém, nosso trabalho não tem a pretensão de apresentar “a espiritualidade” ou “a mística” a partir dos orixás de forma genérica. No limite, nossa tese se ocupa em investigar uma possibilidade de hermenêutica acerca de Exu (e dos orixás) bem como uma experiência mística que o sistema complexo do candomblé pôde proporcionar a Abdias Nascimento.

A mística engendrada por Abdias faz eco à experiência religiosa afrodiaspórica na qual o ser humano é parente do divino, conatural ao sagrado e com ele se entretém, se confunde e se embola. Essa experiência de unidade cósmica travada no corpo ata o visível ao invisível, irremediavelmente.

Para a nossa tese, o fundamental é assinar que Abdias, no seu rogo a Exu, faz alusão aos rogos da confraria dos humilhados, dos subalternizados, dos historicamente vulnerabilizados. Sua mística,

205 Doutor em História da Igreja, trabalha na área de Filosofia e Ética na UCB - Universidade Católica de Brasília - onde dirige Programas de Ação Comunitária da Pró-Reitoria de Extensão. 206 SAMPAIO, Tânia Mara Vieira; SAMPAIO, Jorge Hamilton. Uma reflexão introdutória sobre o mito e sua potencialidade educativa libertadora. In: REIMER, Ivoni Richter; MATOS, Keila (Orgs). Mitologia e literatura sagrada. Contribuições do III Congresso Internacional de Ciências da Religião, Goiânia: Ed. PUC-Goiás, 2009, p. 161-171.

então, talhada no corpo é, ao fim e ao cabo, reverberação de que sozinho, ou com suas próprias forças, o negro sucumbe.

Pelo exposto acima verificamos no pedido de Abdias, no plano místico-poético, a Exu (“fecha o meu corpo”) uma compreensão subjacente de que não se combate no terreiro da história com um corpo “aberto”, isto é, vulnerável aos ataques (visíveis e invisíveis) do inimigo. Essa é uma verdade cara no plano das místicas afro-brasileiras. Nesse sentido, o heroísmo só pode ser pensado no horizonte da presença do sagrado e dos incontáveis auxílios sobrenaturais.

No poema Mãe (NASCIMENTO, 1983, p. 18) Abdias aparece como o negro místico com eguns nas veias, o que significa dizer que a materialidade do corpo esconde/revela a presença e a força dos antepassados em virtude das quais nunca se está só nas encruzas da história. Afirma Abdias: “[...]. Navego a santificação/ do seu martírio de escravos/ celebro seus quilombos levantados/ suas Áfricas/ enfurecidas em minhas veias/ plenas de eguns antepassados [...]”. E diz também: “[...]. Navegador do sangue/ navegador do leite/ sei dos que vieram/ e se foram antes de mim/ pois no sangue deles flutuo [...]”. Na esteira da ancestralidade africana ancorada no rito, ainda se exprime no horizonte de uma mística ancestrista diaspórica (p. 20): “[...]. Navego o pus e o luto/ que rutilam a gota de teu sangue/ profanado/ jorrando em mim/ séculos de gritos/ milênios de ritos [...]”.

Quando Abdias diz que carrega consigo “séculos de grito e milênios de ritos” assinala a ritualidade como valor de fundamental importância na trajetória da negra gente diaspórica. “O ritual é o lugar próprio à plena expressão e expansão do corpo” (SODRÉ, 2018, p. 129).

O africano faz o rito e rito faz o africano; e tal feitura produz vida potente pela atualização dinâmica que o rito faz do mito. Desse modo, a díade rito↔mito, que exige o trabalho humano, permitiu de forma sublime o fazer memória em tempo de desterro; mas, não apenas uma memória como recordação de um passado perdido, mas sobretudo, de um passado capaz de iluminar o presente e gerar inventividades, peripécias culturais e espirituais – místicas alternativas.

No poema/oriki O Agadá da transformação, Abdias (NASCIMENTO, 1983, p. 85-90) sustenta no corpo sua vivência mística diaspórica. Afirma nas primeiras linhas: “Em meu peito vazio de despeito/ Oxum fincou o seu ixé/ sou peixe mergulhado/ no canto do pássaro odidê/ pousado na folha da vida [...]”. E ainda: “[...]. Existo na minha natureza Ori/ levedado pelos Orixás/ embora o costado dos ancestrais/ clame/ a costa dos escravos/ proclame/ o cravo cravado no lombo/ me