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Quando o povo preto escreve...

Com uma população negra de 56%, o Brasil tem sua história marcada nos corpos de negros e negras arrancados de suas casas, tratados como animais, silenciados e invisibilizados historicamente, realidade que vem sendo transformada e ressignificada há décadas pelo Movimento Negro brasileiro. No que diz respeito a atuação da população negra em espaços de poder, vemos uma crescente participação em diversos campos da sociedade, como acontece na área da literatura. A literatura preta articula e difunde a visão do cotidiano de negros e negras com obras com denominadores comuns que vão além de gêneros, formatos, linguagem e temas. É uma literatura que coloca em evidência, também, a reflexão social. Busca denunciar violências, opressões e se configura como um lugar de reconhecimento e de respeito para o povo preto.

A literatura negra nasce com o objetivo de resistência, para conscientizar, sensibilizar e acolher aqueles que não se veem representados em outros lugares. Isso porque, na maioria das vezes, o papel do negro na literatura é quase imperceptível, também porque em muitos clássicos da literatura, os pretos são marginalizados, estereotipados e violentados.

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Com o intuito da resistência, surgiu a obra de Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra que fez uma revolução que mudou a história e a sociedade. Maria Firmina escreveu numa época em que as mulheres escritoras, poetisas, artistas não podiam assinar seus nomes e não eram ativas na política. O tempo as esqueceu. No século 19, apenas os homens tinham o direito de assinar o nome. As mulheres viviam sob o regime autoritário de uma sociedade machista, racista e patriarcal, em um momento histórico quando as mulheres apresentavam sua arte, estilo de escrita e inspiração através de um pseudônimo. Muitas delas viveram anonimamente e ninguém jamais conheceu as verdadeiras obras desses artistas.

Por esses e outros motivos, Maria Firmina assinou a primeira edição do seu romance “Úrsula”como “Uma Maranhense”.

O desenvolvimento intelectual de Maria Firmina dos Reis e sua história de vida são considerados da temática abolicionista. inusitados se comparados a outros escritores e personalidades de sua época.

Os anos se passaram, mas a valorização de obras escritas por intelectuais pretos permanece insuficiente. De acordo com um levantamento realizado pelo Grupo de Estudos da literatura Brasileira Contemporânea – grupo de pesquisadores vinculados à Universidade de Brasília (UnB) –, entre 2004 e 2014, apenas 2,5% dos autores publicados não eram brancos. No mesmo período, apenas 6,9% dos personagens retratados em romances eram pretos e apenas 4,5 % eram protagonistas da história.

A falta de espaço em grandes Editoras e o racismo institucional que muitas vezes desvaloriza a produção intelectual negra, podem ser apontados como alguns dos motivos para a menor presença da literatura negra em estantes de livrarias.

A inquietação e o desconforto levaram a maranhense a desenvolver mecanismos de escrita. Ela viu e ouviu criticamente aqueles que oprimiram, perseguiram e desumanizaram outros seres humanos. Viu e ouviu relatos de dor, sofrimento e solidão em cativeiro, especialmente choque emocional, físico e mental.

Em 1859, Maria Firmina escreveu o que foi considerado o primeiro romance escrito por uma mulher no Brasil, “Úrsula”, que é percursor

No Maranhão, segundo dados do IBGE (2019), cerca de 82,5% da população se autodeclara como negra. Imperatriz, que tem uma grande parcela de população negra, apresenta um cenário literário em que os brancos são a maioria. A educadora e Coordenadora da Coordenação de Educação da Igualdade Racial de Imperatriz (CEIRI/ UREI), Eró Cunha, comenta: “É uma história toda mesmo de tentativa de deslegitimar a produção da literatura, trajetória, a vivência da população negra e isso tudo é resquício desse processo de colonização, dessa relação de opressão, de exploração desse corpo, dessa presença negra em diferentes espaços”.

Essa ação vem de anos em que negros eram vistos como seres inferiores. Dentro da literatura nacional, o povo preto foi retratado por séculos através de muitos estereótipos. O também educador e militante do movimento negro em Imperatriz, Davi Brandão, fala que a invisibilidade da população negra vem do período da escravidão brasileira.

“A supremacia branca em todas as profissões, ainda permanece e tem esse poder. Então nós, negros, temos essa invisibilidade maior por causa do nosso histórico, pela forma como foi construída a nossa sociedade. Quando vivemos quase 400 anos no regime de escravidão, e quando tivemos esse movimento abolicionista, nós não tivemos uma reparação social”, argumenta. Ao paramos para pensar no que a cor da pele reflete em uma sociedade que quer a todo custo embranquecer suas raízes, é possível compreender como a escrita aparece como uma porta de saída, um lugar de resistência para que negros e negras escrevam suas histórias. Mas, muitas vezes, pelo processo de apagamento histórico, alienação cultural e de “epistemicídio” das contribuições pretas para a sociedade brasileira, o próprio povo preto acaba por desconhecer a presença de grandes escritores negros na literatura brasileira.

A escrita preta em Imperatriz - As pessoas não têm o hábito de ler pessoas negras, desconhecem a produção de escritores pretos. Trata-se de um reflexo perverso do racismo estrutural. Domingos Almeida, escritor Imperatrizense, comenta sobre a problemática do apagamento da presença negra na escrita nacional. “Essa aversão a ler o escrito de pessoas negras é o que pode ser identificado no caso de Machado de Assis. Um escritor negro, mas que teve sua negritude apagada. Machado de Assis tem um grande feito história, e não só por ter sido um grande escritor de sua época, mas por ter fundado a Academia Brasileira de Letras”. Fausto Ricardo Silva, Mestre em Educação pela UFMA, argumenta que o apagamento da produção intelectual de pessoas pretas “se dá devido a própria existência do racismo que, ao privilegiar uma cultura nacional, marcadamente branca, impossibilita que tenhamos acesso a escritas negras e indígenas. É o epistemicídio que havia dito anteriormente. Somos educados e educadas numa sociedade que difunde um único conhecimento como correto e válido, e a educação, tanto quando a indústria gráfica alimenta esse sistema. Não tem como culpabilizar as pessoas negras por não lerem escritas negras, até porque muitas vezes nem chegamos a conhecê-las”, finaliza.

Essa situação decorre da internalização da ideologia de que o “branqueamento” será a única forma de ganhar respeito e dignidade socialmente. Estudos da área de saúde realizados em diferentes momentos apontam para os negros como as maiores vítimas de discriminação explícita, são psicologicamente mais vulneráveis a desdobramentos mais comuns, como: ansiedade, ataques de pânico, depressão, crises de identidade e distorções no autoconceito.

(Continua ...)

Escrita da pele para a pele - Foi perguntado a um grupo de professores negros que trabalham em Imperatriz e região: a escrita ajuda no processo de reconhecimento pessoal? Uma pessoa pode se reconhecer negra através da escrita?

A psicóloga e mestra em educação, Lizandra Sodré, diz que “o ato da escrita, especialmente no que diz respeito à trajetória de vida, possibilita um processo de construção pessoal e de reconhecimento de si como pessoa negra.

Já para o Mestre em Educação, Fausto Ricardo Silva Sousa, a escrita permite retratar a “realidade vivenciada, rememorar acontecimentos marcantes e refletir sobre nossas experiências de vida, que possuem o racismo como marcador estrutural, nos leva a compreender nossa negritude, nossa condição de pessoas negras.”

A autoaceitação é aceitar nossos erros e nossos acertos. Se trata de poder reconhecer e celebrar quem somos e buscar mudar o que achamos necessário. Todos esses elementos interagem na construção de nossa autoimagem como pessoas pretas e fazem parte da noção de autoestima.

Para a professora Maria dos Reis, a escrita contribui para o processo de compreensão e pertencimento racial.

Quando falamos da escrita como uma forma de aceitação, estamos pontuando a prática de usar o ponto de vista de uma pessoa preta para contar uma história e isso traz ao leitor um novo sentimento, talvez uma reflexão sobre si mesmo, um acolhimento e apoio para que possa se reconhecer negro.

“Tentativa de deslegitimar a produção da literatura, trajetória, a vivência da população negra e isso tudo é resquício desse processo de colonização, dessa relação de opressão, de exploração desse corpo, dessa presença negra em diferentes espaços”

Sônia Conceição, Mestranda em Educação Profissional, acredita que nós “temos na atualidade o que se denomina “epistemicidio”, termo abordado por mulheres negras feministas, como Suely Carneiro, que trata do apagamento ou ostracismo das e dos intelectuais negros e negras. No entanto,

MARIA GABRIELA

Cadernos Negros

Cadernos Negros é uma série literária independente que transmite textos afro-brasileiros. A série foi idealizada por jovens estudantes que acreditaram no poder de conscientização, sensibilização e aceitação da literatura e viram na poesia uma oportunidade de expressar e divulgar adequadamente a arte negra. Os cadernos visam combater a discriminação racial e resistir no campo das letras de forma literária, social e política.

Os cadernos negros nasceram na década de 1970 em uma situação em que borbulhavam movimentos de empoderamento e autoestima da população negra. Com a libertação de Angola e Moçambique da colonização europeia, movimentos como os Panteras Negras Black is Beautiful e Imprensa Negra Paulista , além de ecos do ativismo de Rosa Parks, Nelson Mandela, Abdias do Nascimento, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez. Como muitas marés que convergem na mesma direção, a onda de luta pela igualdade se espalhou pelo mundo para lutar contra a discriminação racial. muito se tem escrito e visibilizado nesse campo epistemológico. E autoras e autores negros e negras tem se destacado muito.”

O epistemicício é usado para explicar que o contato de europeus e povos indígenas e africanos criou desigualdades, diferenças, violências e alienações. O branco europeu impôs hierarquias sociais que subordinavam, apagavam, marginalizavam e roubavam as contribuições intelectuais e culturais afro-indígenas, impondo uma história única, a do colonizador. Para Suzana Rossi, “por meio de uma escrita, podemos realizar uma análise sobre os porquês de determinadas situações acontecerem, o que faz com que as questões étnico-raciais sejam postas. Assim, uma pessoa negra que não se reconhece ao perceber que muitos momentos de sua vida foram marcados por falas e ações racistas, pode acabar passando por um processo de autorreconhecimento.”

A literatura preta nasce de um movimento de resistência e de reexistência, protagonizado por negros e negras para que as histórias possam ser contadas por aqueles que a vivenciaram, narradas numa posição de primeira pessoa.

“(...) As diferenças de estilo, concepções de literatura, forma, nada disso pode mais ser um muro erguido entre aqueles que encontram na poesia um meio de expressão negra. Aqui se trata da legítima defesa dos valores do povo negro. A poesia como verdade, testemunha do nosso tempo.”

Cadernos Negros 1, 1978

LGBTQIAP+

Invisibilidade, a importância de ressignificar as representações sobre a comunidade e do protagonismo político desses sujeitos