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ARTIGO: O IMPACTO DO BULLYING NAS VÍTIMAS E NOS AGRESSORES

não é brincadeira

Entenda o que é esse tipo de violência e como ele afeta vítimas, agressores e espectadores

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HÁ QUEM COSTUME dizer que, se uma criança está “apaixonadinha” por outra, tratará o objeto de sua afeição com uma dose de maldade: “Ela/ele só é ‘ruim’ porque está na dele/dela.” Apelidos, implicância constante, fofoca “pelas costas” e menções em mídias sociais são alguns desses comportamentos atribuídos a uma suposta paixão pura mas imatura. No entanto, há quem seja submetido a tais experiências devido a outro tipo de paixão alheia: o bullying.

A palavra vem da língua inglesa: é um substantivo derivado de bully, palavra que significa “opressor/ valentão”. Assim, de acordo com o dicionário Oxford, bullying é “o comportamento de uma pessoa que magoa ou assusta alguém menor ou menos poderoso, muitas vezes forçando essa pessoa a fazer algo que ela não quer”.

A história da advogada Laryssa Emanuelle é marcada por esse tipo de violência. Eloquente, ela pontua seus pensamentos em detalhes, pintando uma cena viva para quem a escuta. Mas nem sempre foi assim. Quem conheceu a adolescente Laryssa não poderia dizer que ela argumentaria na corte, diante de juízes. “Eu era gaga”, revela.

Um parêntese apenas. De acordo com o Instituto Brasileiro de Fluência, a gagueira é caracterizada como um transtorno de fluência da fala. Ela acontece porque o cérebro não consegue marcar o fim de uma sílaba/som e continuar a palavra ou frase. Por isso, quem é gago “trava” num fonema específico até que o cérebro faça seu trabalho corretamente. O tratamento para esse transtorno prevê acompanhamento fonoaudiológico e psicológico. Afinal, existem casos em que o estado mental da pessoa é o fator mais importante para melhora ou piora da gagueira.

Em relação à Laryssa, as ocorrências do transtorno começaram em 2011. Coincidentemente, esse foi seu primeiro ano do ensino médio. No início, pouca coisa foi afetada pela dificuldade na fluência. “Apesar de tímida, sempre fui uma pessoa falante e comunicativa. Isso não mudou com o começo da gagueira. Ninguém se importava ou comentava sobre isso, então, eu também não me importava”, enfatiza a advogada.

Contudo, durante o segundo ano da doença e do ensino médio, seu mundo virou de cabeça para baixo. Ela foi humilhada publicamente por um colega durante a aula de matemática, tornando-se alvo de chacotas em relação à gagueira. “O bullying que sofri em 2012 me mudou completamente. Comecei a ter medo de falar até mesmo com pessoas próximas a mim. Passei a acreditar que todos tinham o mesmo pensamento daquela pessoa que havia cometido bullying contra mim, mas que nunca tinham me falado nada por não terem coragem”, lembra.

Laryssa ficou apavorada: não sabia mais em quem confiar e como fazer amigos. “Eu via a imagem da pessoa que me humilhou no rosto de todos esses possíveis amigos”, lamenta. O reflexo de seu opressor também estava presente em seus crushes. Além disso, ela não se achava digna do interesse romântico de ninguém. Para evitar decepções, fugia de todas as oportunidades apresentadas. “Eu não dava papo e abertura para ninguém”, expõe.

A humilhação sentida repercutiu tanto em sua vida que quase afetou o sonho de cursar Direito. “Quase desisti da faculdade porque imaginei que nenhum juiz ou juíza levaria a sério uma advogada gaga”, admite. Hoje, ela estuda para cursar um mestrado na sua área de formação.

BULLYING EM DADOS

Infelizmente, o caso de Laryssa não é isolado. Segundo dados da Unesco, um a cada três adolescentes (de 11 a 17 anos) no mundo sofre bullying. Os dados, de 2018, sugerem que ninguém está ileso, mas que jovens com renda menor são alvo mais “fácil” para quem é “apaixonado” por humilhar outras pessoas.

No Brasil, o cenário segue o padrão mundial: somente em 2015, 31,6% dos adolescentes relataram sofrer bullying. A pesquisa foi realizada pela organização não governamental Know Violence in Childhood. Os números brasileiros são altos, mas o cenário chega a ser pior em outros países. Samoa, arquipélago da Oceania, lidera o ranking com 74% de adolescentes vítimas de bullying. O Peru, nosso vizinho, é o triste campeão das Américas, totalizando 47% de jovens que sofrem com o problema.

As estatísticas não mentem. O bullying é um fenômeno cada vez mais evidente nos colégios. E, por isso, cada vez mais abordado nas salas de aula e na mídia. No entanto, se o tema é tão discutido, por que ainda há bullying, principalmente no ambiente escolar?

A resposta talvez passe pela compreensão de que a escola é mais do que um local em que se aprende matemática e língua portuguesa. “É por meio da escola que a criança inicia trocas com seus iguais para além do campo familiar. É lá que a criança ou adolescente exercita noções de empatia, cooperação e cumprimento

de regras sociais, para mais tarde formar-se como cidadão”, explica Marina Brum, psicóloga clínica e escolar.

A escola é o primeiro espaço de sociabilização que o ser humano tem fora da família e, atualmente, é o lugar em que alguém na idade escolar tende a passar a maior parte de seu tempo. Se a escola é mais do que um local de ensino, por sua vez, o aluno é mais do que um estudante, é um ser humano. “A escola é uma instituição de formação integral. Quando o aluno adentra os muros escolares, ele não deixa de ser uma pessoa para ser só estudante”, enfatiza Marilena Ristum, professora aposentada do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-doutora especializada em bullying escolar. Ao entender que o colégio é um meio social e o aluno é um ser humano, percebe-se a escola como um microcosmo da sociedade; uma pequena sociedade dentro de uma sociedade maior. A psicologia escolar entende o bullying como uma reprodução daquilo que vem acontecendo no meio social mais amplo. Portanto, o bullying é um termo recente, que foi criado para descrever um tipo de violência praticado em ambientes escolares, mas a origem desse comportamento é mais antiga e está longe das salas de aula.

É por essa razão que pesquisadoras como

Marilena Ristum e Ana Karina Checchia, psicóloga e professora da Faculdade de Educação da

Universidade de São Paulo (USP), consideram o termo bullying uma nomenclatura reducionista.

“O aluno é porta-voz daquilo que acontece nas relações sociais. O que temos de discriminação, intolerância, ódio, opressão, humilhação e preconceito na nossa sociedade é reproduzido no cotidiano escolar”, explica Ana Karina. De acordo com os dados de 2020 do Fórum

Brasileiro de Segurança Pública, que reúne estatísticas de criminalidade no país, houve um crescimento de 7% nos crimes cometidos no Brasil.

“Nossa realidade hoje é infelizmente de uma sociedade agressiva, preconceituosa e excludente”, constata a psicóloga Marina Brum. Assim, o bullying é simplesmente um espelho dos problemas que se encontram na sociedade.

QUEM SOU EU NA FILA DO BULLYING?

No aspecto social, cada ser humano tem seu papel. E, como o bullying faz parte desse universo, todos desempenham alguma parte nesse tipo de violência. De acordo com a professora Marilena Ristum, o bullying pode ser definido a partir de três aspectos: (1) é uma ação que causa dano a alguém ou a um conjunto de pessoas; (2) é feito entre pares; e (3) é repetitivo. No bullying, há quem pratica a violência, quem a recebe e quem a presencia. Nesse trio, todos são afetados pelo ato.

Contudo, o praticante do bullying é o primeiro a receber menções em palestras de prevenção desse problema. Há uma razão para isso. Ana Karina Checchia explica que o indivíduo que comete o bullying é visto como causa da violência; porém, o ato do bullying não é causa, mas efeito. “Ele está reproduzindo uma ação. Isso não sai da cabeça dele”, complementa. “Nesse processo de tanta opressão e discriminação, um dos efeitos é que as pessoas reagem. E uma das formas de reagir é reproduzindo a violência.”

Na “fila” do bullying, o segundo a ser afetado é o receptor da violência. Essa categoria compreende quem é estatisticamente mais prejudicado. Em 2018, foi publicado um estudo no Journal of the American Academy of Child & Adolescent Psychiatry que levantou dados sobre adolescentes em 48 países. Os resultados revelaram que o risco de suicídio pode triplicar entre aqueles que sofrem bullying. “Os reflexos causados por esse tipo de violência são devastadores e, em alguns casos, irreversíveis para a vítima”, reflete a psicóloga Marina Brum. Entre esses reflexos estão baixa autoestima, ansiedade e depressão.

Quem assiste a atos de bullying também é impactado. “Na plateia há quem aplauda, quem condene e quem vai denunciar o problema”, diz a professora Marilena Ristum. Os que aplaudem reforçam o ato que testemunham e, portanto, fortalecem a violência na sociedade como um todo. Em contrapartida, quem condena o ato e o denuncia faz parte da solução.

No entanto, no meio dessa plateia, há quem fique escondido. A professora Ristum os chama de passivos. “Eles não vão para um lado nem para o outro por receio de serem as próximas vítimas, ou simplesmente pelo fato de serem aquele tipo de pessoa

que se omite em tudo”, afirma. Essa omissão vem de medos e submissões da esfera social. Se engana quem pensa que passivos em situações de bullying não influenciam em nada. “A passividade contribui para o bullying na escola. Pode não contribuir tanto quanto aqueles que aplaudem, mas é um tipo de contribuição”, atesta a pesquisadora.

“MAS É SÓ BRINCADEIRA”

Na psicologia, um termo é usado com frequência por causa de sua importância para a convivência em sociedade: limites. Cada ser humano tem os seus, e eles devem ser respeitados assim como os limites dos outros também. São os limites emocionais e físicos que sinalizam até onde vai a linha imaginária daquilo que é aceitável ou não para cada pessoa. É devido a isso que Marilena Ristum diz que nem tudo que um observador de fora vê como bullying é bullying. “Quem sofre bullying é quem pode dizer se aquilo, para ele, é uma violência ou não”, define a professora.

A diferença entre brincadeira e preconceito, humilhação e opressão está nos limites de cada ser humano. “A gente precisa do limite. Ele é libertador. Esse limite pode ser explicitado nas relações respeitosas”, explica Ana Karina Checchia. Ela acredita que é no respeito aos limites que encontramos a solução para o bullying e a violência fora dos muros escolares.

Ana Karina faz referência à alteridade, uma expressão pouco utilizada no dia a dia, mas cujo conceito é muito importante. “Quando você se coloca no lugar do outro, você percebe quando machuca, quando faz mal, quando faz a pessoa ficar angustiada por aquilo. Esse limite é ultrapassado quando há sofrimento”, afirma.

E quanto à criança e ao adolescente que praticam o bullying com frequência? A resposta é mais simples do que se imagina. “Assim como é possível reproduzir a violência com mecanismos excludentes, é possível romper com esses mecanismos excludentes. É na possibilidade da ruptura que nós agimos”, reflete Ana Karina.

Profissionais da educação já perceberam isso e reconhecem a importância de agir nas rupturas. “Os educadores precisam estar atentos e orientar os alunos por meio do diálogo. É um assunto a ser

esgotado em salas de aula e palestras para pais e alunos”, defende Karine Silva, professora há oito anos e pós-graduada em Psicopedagogia clínica pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Nas palavras da educadora e pesquisadora Marilena Ristum, o ser humano não nasce com o gene do bullying. Pode-se dizer o mesmo sobre a sociedade como um todo. Ninguém nasce com o gene da violência, do preconceito ou da opressão. “A esperança está em ações coletivas de combater a violência por meio da humanização do ser humano nas relações escolares, nas relações sociais”, aponta Ana Karina. Faz parte do agir nas rupturas a humanização da sociedade. Há esperança para as Laryssas de hoje e de amanhã que, mesmo com Quem sofre dificuldades na fala, encontrarão suporte dos seus pares para obterem bullying é que uma vida sem preconceito e opressão. Para a pesquisadora Ana Karina, pode dizer se, essa esperança é mais que plausível pois, assim como “é possípara ele, aquilo vel achar planta no meio do concreto, é possíé uma violência vel haver ruptura do ou não bullying”.