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COMO MATEI MINHA QUERIDA FAMILIA

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A prisão de Limehouse, como você pode imaginar, é medonha. Se bem que talvez você não possa, não de verdade. Não há consoles de videogames, nem tv s de tela plana, como deve ter lido nos jornais. Não existe atmosfera comunitária, nem irmandade. Ao contrário: é tudo caótico, barulhento, com uma briga sempre prestes a estourar. Desde o início, tentei ficar na minha. Fico na cela o máximo possível — entre refeições que são, no máximo, ocasionalmente digeríveis — e tento evitar minha “colega de quarto”, como ela insiste em ser chamada. Kelly é uma mulher que gosta de “bater papo”. No meu primeiro dia aqui, há quatorze longos meses, ela se sentou no meu beliche, apertou meu joelho com as unhas horrivelmente longas e disse que sabia o que eu tinha feito e me admirava muito. Esse elogio foi uma boa surpresa, dado que esperava apenas violência quando me aproximei das portas ameaçadoras deste lugar decrépito. Ah, a inocência de alguém cuja única referência de prisão são as séries de baixo orçamento da tv… Depois dessa apresentação inicial, Kelly decidiu que eu era sua nova melhor amiga e, pior, uma colega de quarto de quem se vangloriar. No café da manhã, ela sempre se aproxima, enlaça o braço no meu e sussurra como se estivéssemos trocando confidências. Já a escutei falando com outras presas, a voz baixa em tom de conluio, dizendo que confessei a ela todos os detalhes do meu crime. Ela quer ser influente e ganhar o respeito das outras mulheres e, se tem alguém que pode lhe proporcionar isso, essa pessoa é a assassina Morton. Isso me deixa exausta .

Eu sei, falei que a Kelly diz que sabe tudo sobre o meu crime , mas talvez isso, de certa forma, atenue meus atos. Para mim, a palavra crime soa esfarrapada, deselegante e banal. Pessoas que furtam lojas cometem crimes. Quando se anda a 60 km/h em uma rua com limite de 30 km/h só para comprar um café morno antes de mais um dia chato no escritório, comete-se um crime. Fiz algo muito mais ambicioso. Concebi e executei um plano complexo e cuidadoso, cujas origens antecedem e muito as circunstâncias desagradáveis que permearam o meu nascimento. E visto que tenho bem pouco a fazer nesta jaula feia e nada inspiradora — uma terapeuta sem noção sugeriu que eu fizesse aulas de gramática, mas estou confiante de que a reação estampada no meu rosto a dissuadiu de futuras sugestões —, decidi contar minha história. Não é uma tarefa fácil, já que não tenho um laptop de última geração como estou habituada. Há pouco tempo, quando o meu advogado me apresentou uma tênue luz no fim do túnel, senti que devia registrar o tempo que passei aqui e escrever um pouco sobre o que fiz. Uma ida à cantina me rendeu um bloco de notas fino e uma caneta a um custo de 5 libras do meu limite semanal de 15,50 libras. Esqueça os artigos de revista que sugerem que você poupe dinheiro economizando no café caro para viagem; se quer mesmo aprender a viver dentro do orçamento, passe um tempo na cadeia. A escrita pode ser inútil, mas tenho que fazer algo para aliviar o tédio monumental deste lugar. E tenho esperança de que, se eu parecer ocupada, Kelly e seu interminável grupo de “damas”, como ela insiste em chamá-las, vai parar de perguntar se eu quero ver algum reality show na sala de recreação com elas. “Desculpa, Kelly”, vou dizer, “estou fazendo anotações importantes para a minha apelação. Nos falamos depois.” Espero que a perspectiva de que eu possa contar a ela detalhes sórdidos do meu caso a deixe entusiasmada o bastante para me deixar em paz.

Claro que a minha história não é para Kelly. Duvido que ela tenha a capacidade de entender o que me motivou a fazer o que fiz. Minha história é apenas isso — minha —, embora eu saiba que os leitores a aprovariam, se algum dia eu viesse a publicá-la. É uma história impublicável, lamento, m as é bom saber que as pessoas iam curtir. Seria um best-seller, e as massas correriam para as livrarias, querendo saber mais sobre a tragédia de uma jovem bonita capaz de cometer um ato tão terrível. Os tabloides andam escrevendo sobre mim há meses, e o público não se cansa dos psicólogos que me diagnosticam à distância, nem dos comentários em minha defesa que são massacrados no Twitter. O público está tão entretido com a minha história que até engoliu um documentário malfeito e confuso sobre mim no Canal 5, com a participação de um astrólogo gordo dizendo que meu signo solar previa tudo. Ele só errou meu signo. Por isso, sei que as pessoas correriam para ler o meu relato. Sem nenhum esforço para me justificar, o caso já se tornou notório. E, o mais irônico, sem que ninguém saiba dos meus verdadeiros crimes. O sistema judicial neste país é uma piada, e não há nada que demonstre isso melhor do que esta frase: matei várias pessoas (algumas de forma brutal; outras, com calma) e, no entanto, estou definhando na prisão por um crime que não cometi.

Os crimes que orquestrei, se descobertos, garantiriam minha posteridade por décadas. Talvez até séculos, se a humanidade durar tanto tempo. Dr. Crippen, Fred West, Ted Bundy, Lizzie Borden e eu, Grace Bernard. Na verdade, isso me desagrada um pouco. Não sou amadora ou imbecil. Se você me visse na rua, me admiraria. Talvez seja por isso que a Kelly grudou em mim em vez de me dar um murro, como eu esperava. Mesmo aqui, preservo certa elegância e uma frieza que intriga as mais fracas. Apesar dos meus crimes, dizem que recebi cartas aos montes: declarando amor, admiração, me perguntando onde comprei o vestido que usei no primeiro dia do julgamento (Roksanda, se estiver interessado. Infelizmente, a esposa do primeiro-ministro usou algo muito parecido no mês seguinte). Muitas cartas de ódio. Às vezes, umas paradas loucas em que o remetente acredita que estou me comunicando telepaticamente com ele. As pessoas parecem realmente interessadas em me conhecer, me impressionar, me imitar. Se não nos meus atos, nos meus looks. Não faz diferença, já que nunca leio nada disso. Meu advogado pega tudo e leva embora. Não tenho interesse em estranhos patéticos a ponto de pegarem caneta e papel para escrever cartas para mim.

Talvez eu esteja superestimando o público, pressupondo que sejam pessoas dotadas de um conjunto de emoções mais complexo do que têm. Talvez a razão para o interesse contínuo e frenético no meu caso seja melhor sintetizada pela teoria da Navalha de Occam: em geral, a resposta correta é a mais simples. Nesse caso, meu nome ficará célebre pelos séculos vindouros pelo motivo mais prosaico de todos: simplesmente porque a ideia de um triângulo amoroso parece dramática e obscena. Mas, quando penso no que realmente fiz, fico um pouco triste porque ninguém nunca saberá a operação complexa que organizei. Sair impune é muito melhor, claro, mas talvez, quando eu estiver longe, alguém abra um velho cofre e encontre esta confissão. O público ficaria chocado. Afinal de contas, quase ninguém no mundo consegue compreender como é que alguém, na tenra idade de 28 anos, pode ter matado friamente seis membros de sua família. E depois continuar feliz pelo resto da vida, sem nunca se arrepender de nada.