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Capítulo 17 – POR UM NOVO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

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POR UM NOVO MODELO DE DESENVOLVIMENTO

O Poder Legislativo mineiro cumpriu assim o seu dever, por meio da Comissão Parlamentar de Inquérito da Barragem de Brumadinho, ao realizar um trabalho dedicado, rigoroso, tecnicamente sólido e socialmente participativo, que procurou fazer justiça a todos os envolvidos.

As medidas de responsabilização, reparação e prevenção recomendadas pela CPI são fundamentais para que a justiça prevaleça e seja possível impedir a repetição de tragédias como a de Brumadinho. Essas medidas, sendo colocadas em prática pelos órgãos competentes, justificam plenamente todo o enorme esforço realizado pela ALMG e por outras instâncias do poder público para investigar meticulosamente as causas e consequências da tragédia.

Mas a catástrofe de Brumadinho – e, antes dela, a de Mariana – suscita também uma reflexão mais ampla, que a sociedade mineira precisa realizar com urgência, sobre o próprio modelo de desenvolvimento que o estado historicamente adotou, tendo como um de seus pilares o extrativismo mineral.

A verdade é que, durante três séculos, Minas Gerais tratou da mineração em termos sobretudo econômicos, ou seja, do ponto de vista da riqueza que gera, dos capitais investidos, das tecnologias empregadas, dos lucros obtidos, subestimando o outro lado da moeda, isto é, o alto custo humano, sanitário, ambiental e cultural – em síntese, o alto custo civilizatório – que a mineração também acarreta para as regiões e populações nela envolvidas ou por ela afetadas. Levou-se também em conta os impostos e os empregos resultantes da atividade mineradora, que são inegavelmente muito importantes, mas que estão longe, infelizmente, de constituírem os únicos impactos dessa atividade. Ao longo de toda a história de Minas, as vantagens da mineração foram sempre louvadas e celebradas, enquanto o seu crescente custo ambiental, social e humano foi frequentemente secundarizado.

É inegável que, nas últimas décadas, Minas Gerais aperfeiçoou e ampliou bastante o aparato legal para proteger o meio ambiente e a sociedade de empreendimentos potencialmente poluidores. A mineração tornou-se uma das atividades econômicas mais reguladas no estado e com maior obrigação de adotar 277

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medidas compensatórias, como a de criar e/ou manter unidades de conservação. Sem falar no licenciamento ambiental, que é pré-condição para atuar no setor, e que leva em conta também aspectos socioculturais e, em muitos casos, requer inclusive a realização de audiências públicas.

Mas também é fato que tem crescido na opinião pública a consciência de que os importantes esforços realizados nesse sentido não são suficientes. De que é preciso ir além. E isso não se refere apenas às condições de segurança, por cruciais que elas sejam, mas à própria mineração em si, ao modo como ela tem sido tradicionalmente concebida e praticada. É cada vez mais nítida a percepção de que a indústria da mineração exige uma nova abordagem, que encare sem subterfúgios a sua dupla face. De que ela não pode continuar funcionando com base em uma lógica exclusivamente mercantil, tendo o lucro como motivação determinante, à revelia dos direitos e interesses do conjunto da população, e, sobretudo, dos padrões mais avançados de salubridade e qualidade de vida. Afinal, a matéria-prima da mineração é o meio ambiente, que não é um patrimônio privado, renovável, mas um bem coletivo, finito, quase sempre insubstituível.

Depois das catástrofes de Mariana e Brumadinho – com suas terríveis consequências em termos de vítimas fatais, de famílias e comunidades desalojadas, de rios contaminados, de belezas naturais prejudicadas, de turismo comprometido, sem falar no impacto físico e psíquico avassalador para os moradores das duas cidades, das regiões vizinhas e de municípios mineiros que têm em seu território barragens de rejeitos semelhantes às do Fundão e do Feijão –, tornou-se impossível ignorar ou subestimar o caráter contraditório e problemático da atividade minerária em seu modelo vigente.

Os danos da mineração à vida dos municípios e das comunidades não se dão apenas quando ocorrem tragédias, o que já é sem dúvida gravíssimo, inaceitável. Os seus prejuízos ambientais, por exemplo, e à saúde pública, são muito significativos mesmo em condições “normais” de produção, sem risco aparente de calamidade. E, quando se fala das enormes crateras deixadas nas cidades mineradoras como feridas que jamais cicatrizam, não se trata de exagero ou força de expressão. É uma triste realidade que pode ser constatada a olho nu.

Como já foi reconhecido por entidades empresariais do setor, a exemplo do Instituto Brasileiro de Mineração, em publicação intitulada “Carta-compromisso do Ibram perante a sociedade”, de setembro de 2019, “os rompimentos de barragens colocam em xeque a essência da atividade minerária”. O que está em questão “é o próprio custo-benefício de sua presença nos territórios”1 .

Outros países do mundo que também possuem expressivo setor de mineração estão de alguma forma promovendo uma “reconversão” dessa indústria, levando-a a abrir mão de seus paradigmas imediatistas, centrados na lucratividade de curto prazo, e a fazer os investimentos necessários para tornar-se, além de mais segura, também mais sustentável do ponto de vista humano, social, ambiental e sanitário. Isso exige mudar de fato a lógica da mineração, e não somente destinar mais recursos para esta ou aquela medida compensatória mantendo técnicas produtivas arcaicas e ultrapassadas. Supõe, com certeza, a eliminação das barragens de rejeitos2, com a adoção de novas tecnologias já disponíveis.

Alemanha3 e França4, por exemplo, reconverteram importantes territórios mineradores. E o fizeram modernizando e diversificando a sua vida produtiva, a começar pela agregação de valor nas próprias regiões, de modo a evitar os perigos do “extrativismo”. Além disso, fortaleceram outras vocações locais e criaram condições logísticas e econômicas para implantar novas cadeias de produção. Somando esforços do Estado, em seus diferentes níveis, da iniciativa privada, dos sindicatos, das universidades, da comunidade científica, das entidades ambientais e da sociedade civil em geral, desenvolveram projetos inovadores, capazes de dar uma nova perspectiva estratégica a esses territórios.

Minas Gerais pode e deve intensificar o debate público sobre a superação do atual modelo extrativista. Segundo a Agência Nacional de Mineração, pelo menos 488 de seus 853 municípios possuem algum tipo de atividade ligada à exploração mineral. Ressalvadas naturalmente as competências legais dos municípios, é óbvio que esse problema não pode ser enfrentado de modo isolado, apenas em âmbito local, já que a maioria das cidades não tem meios nem força suficiente para lidar com poderosas empresas globais. Já existem pesquisas sobre o tema da reconversão do setor mineral patrocinadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), bem como investigações realizadas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) e pela Fundação João Pinheiro (FJP), assim como por entidades empresariais do setor, além de contribuições de entidades da sociedade civil5 e de outros órgãos públicos.

Trata-se de um debate de interesse nacional, já que a mineração, especialmente de ferro, é realizada também em vários outros estados do país. Mas, para Minas Gerais, ele é simplesmente inadiável. Em dezenas de depoimentos colhidos pela CPI e de audiências realizadas – e com base na contribuição de diversos especialistas –, ficou evidente que é preciso debater com equilíbrio e serenidade, mas com total liberdade, o tipo de mineração que se faz no estado e, principalmente, o modo como ela é feita, pondo muitas vezes em risco não só vidas humanas, mas também

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ecossistemas, recursos hídricos fundamentais para o abastecimento de milhões de pessoas, belezas naturais e patrimônios culturais irrecuperáveis.

Um livro recente veio lançar nova luz sobre essa condição contraditória do extrativismo mineral e sobre como ela angustiou, durante toda a sua vida, um dos maiores gênios artísticos que o país já teve, Carlos Drummond de Andrade. Trata-se de A maquinação do mundo: Drummond e a mineração, do professor e ensaísta José Miguel Wisnik6, publicado após a catástrofe de Mariana mas antes da tragédia de Brumadinho, que analisa exaustivamente as inúmeras referências de Drummond ao tema em seus poemas, contos, crônicas, artigos, cartas e diários – mostrando como a percepção do poeta a respeito da mineração foi se tornando cada vez mais sofrida e crítica à medida que se expandia vertiginosamente a extração de minério em sua terra natal, Itabira, e em toda a região central de Minas, inclusive em Belo Horizonte.

Sem ignorar a importância da indústria mineradora, de seus tributos e empregos, e mesmo ciente da dependência de tantos municípios em relação a ela, nem por isso Drummond deixou de expressar, com grande profundidade emocional e beleza artística, a sua dor e o seu inconformismo diante dos efeitos em muitos casos devastadores da mineração sobre a paisagem natural de Minas, o patrimônio histórico, a saúde pública, as condições de vida, enfim, de sua província nunca esquecida.

Hoje, há perguntas que não querem calar e que a opinião pública não abre mão de ver respondidas: como é possível obter os resultados positivos da mineração – tributos, empregos, investimentos – evitando-se os seus efeitos negativos e os altos riscos socioambientais e culturais? O que pode ser feito para que os municípios mineradores consigam diversificar sua matriz produtiva, emancipando-se gradativamente do extrativismo?

Não se pode mais admitir que um modelo minerário obsoleto e de alto custo – e risco – socioambiental seja perpetuado para maximizar lucros. E tampouco bastam para justificar esse modelo anacrônico medidas mitigatórias, paliativas, que não raro apenas correm atrás de um prejuízo que se alastra em minutos, segundos, deixando sequelas imensas que perduram indefinidamente.

O que se impõe, na verdade, é uma outra concepção de mineração, tanto econômica quanto ética, que se traduza em uma prática produtiva e socioambiental realmente nova, garantida na legislação e nas políticas públicas do Estado para o setor em todos os níveis da Federação. Mesmo que isso implique, se for o caso, em investimentos adicionais das empresas, perfeitamente compatíveis, aliás, com a altíssima lucratividade do setor. Que custo pode ser mais importante que o do gigantesco desastre ambiental de Mariana? Que gasto pode ser remotamente comparável ao valor das quase trezentas vidas criminosamente aniquiladas em Brumadinho?

Notas

1 – CARTA compromisso do Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) perante a sociedade. Ibram: Mineração do Brasil, 9 set. 2019. Disponível em: https://portaldamineracao.com.br/ibram/carta-compromisso-do-ibram-perante-sociedade/. Acesso em: 5 maio 2020. 2 – Conforme já foi mencionado no capítulo 7, a Assembleia Legislativa de Minas Gerais instituiu, em 25 de fevereiro de 2019, a Política Estadual de Segurança de Barragens (Pesb). A Pesb proibiu barragens a montante no Estado e determinou, em seu art. 8º, que, para a aprovação de qualquer nova barragem, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o respectivo Relatório de Impacto Ambiental (Rima) devem comprovar a “inexistência de melhor técnica disponível e alternativa locacional com menor potencial de risco ou dano ambiental para a cumulação ou para a disposição final ou temporária de rejeitos e resíduos industriais ou de mineração em barragens”. MINAS GERAIS. Assembleia Legislativa. Lei nº 23.291, de 25 de fevereiro de 2019. Disponível em: https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/ completa.html?ano=2019&num=23291&tipo=LEI. Acesso em: 10 jun. 2020. 3 – MARCHI, Polise Moreira De. IBA Emscher Park: uma oficina de 10 anos para a reestruturação da antiga região industrial do Vale do Ruhr, Alemanha. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL, 11., 2005, Salvador. [Anais]. Salvador: ANPUR, 2005. Disponível em: http://www.xienanpur.ufba.br/261p.pdf. Acesso em: 7 jun. 2020. E CASTELLO, Lineu. Da sustentabilidade da subjetividade: o projeto IBA Emscher Park. Arquitextos, São Paulo, v. 4, nov. 2003. Disponível em: https://www.vitruvius. com.br/revistas/read/arquitextos/04.042/636. Acesso em: 9 jun. 2020. 4 – Bacia de mineração de Nord-Pas-de-Calais. Lista do patrimônio mundial. Ver mais em: Nord-Pas-de-Calais Mining Basin. Unesco. Disponível em: https://whc.unesco.org/en/list/1360/gallery. Acesso em: 7 jun. 2019. E POLICARPO, Maurício Aquilante; SOUZA, Rita de Cássia Martins. As estratégias da logística contemporânea como instrumento de ordenamento territorial na reconversão em Nord e Pas-de-Calais (França). Confins: Revista Franco-Brasileira de Geografia, n. 40, 2019. Disponível em: https://journals.openedition.org/confins/19569?lang=pt. Acesso em: 8 jun. 2020. 5 – Minas Gerais e França debatem planejamento urbano. REDBCM: Rede Brasileira de Cidades Médias, Recife, 2013. Disponível em: http://www.redbcm.com.br/Novidade.aspx?id=165. Acesso em: 8 jun. 2020. Franceses trazem experiência de reconversão de antiga mina de carvão para Minas Gerais. Geopark Quadrilátero Ferrífero, Belo Horizonte. Disponível em: https://www.geoparkquadrilatero.org/?pg=noticia&id=179. Acesso em: 8 jun. 2020. ARAÚJO, Ana Rita. Reconversão de territórios mineradores mobiliza pesquisadores e gestores públicos. Universidade Federal de Minas Gerais, Cedecom, Belo Horizonte, 22 out. 2012. Disponível em: www.ufmg.br/online/arquivos/025987.shtml. Acesso em: 9 jun. 2020. E GUIMARÃES, Carolina Lucinda, MILANEZ, Bruno. Mineração, impactos locais e os desafios da diversificação: revisitando Itabira. Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente, v. 41, ago. 2017. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/ made/article/view/49360. Acesso em: 15 set. 2020. 6 – WISNICK, José Miguel. A maquinação do mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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