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O MÁRTIR SÃO VICENTE:

De Patrono de Alcácer do sal, até ao seu esquecimento actual.

O MÁRTIR SÃO VICENTE: De Patrono de Alcácer do Sal, até ao seu esquecimento actual. António Rafael Carvalho1

1. Introdução Existem perguntas muito simples, que por vezes, podem ficam sem resposta! Se perguntarmos a um alcacerense actual, qual o patrono da sua cidade, ele simplesmente fica a olhar para nós, porque não sabe a resposta. Consultando a informação oficial da Diocese de Évora, referente à nossa cidade, fica-se a saber que existem oficialmente dois oragos: 1

Arqueólogo. Gabinete de Arqueologia de Alcácer do Sal. http://al-qasr-abu-danis.blogspot.com/

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- Santiago para a freguesia com esse nome e Nossa Senhora do Castelo, para a freguesia de Santa Maria do Castelo, omitindo-se o facto de a cidade como um todo, ter o seu Santo Patrono, São Vicente, documentado no século XVIII.

Se a este facto, juntarmos a falta de tradição em estudos Historiográficos sobre Alcácer do Sal para os séculos mais próximos de nós, é natural que um santo mártir como São Vicente, surja actualmente como um estranho, sem aparente lugar cativo no nosso património cultural. Por questões que nos escapam, o seu culto foi perdendo sentido após o século XVIII, a tal ponto, que em meados do século XIX a sua capela ter simplesmente desaparecido da paisagem peri-urbana de Alcácer do Sal. Nos dias de hoje, São Vicente pouco ou nada diz aos alcacerenses e resume-se a um topónimo (Quinta Nova de São Vicente) localizado junto ao Mini-Preço. Que importância terá tido São Vicente na História de Alcácer e porque razão este orago desapareceu? Sem possibilidade de responder de forma adequada às interrogações expostas, vamos neste artigo, levantar um pouco o véu sobre esta questão.

2. Quem é São Vicente? Vicente, (Vincentivs), é um nome latino que deriva de vitium incendens, que significa – aquele que queima ou que reduz a cinzas o vício. A palavra vincens significa igualmente aquele que é “o vitorioso”. Segundo a tradição, São Vicente terá nascido em finais do século III, provavelmente na cidade de Huesca, no âmbito de uma família nobre romana da Hispânia, mostrando desde jovem aptidão para as artes e as ciências. Pouco depois é enviado para Saragoça (Caesaraugusta), onde prossegue os estudos junto do bispo desta cidade da Província Hispânica da Tarraconense. Para André de Resende (1498-1573), Vicente terá nascido na cidade de Évora, sendo irmão dos mártires Sabina e Cristeta.2

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RESENDE (1545) Vincentius leuita et martyr. (poema escrito sobre a passio e a trasladação das relíquias de São Vicente.) http://al-qasr-abu-danis.blogspot.com/

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Seja como for, como jovem diácono em Saragoça e possuindo o dom da palavra, gradualmente transforma-se no porta-voz do bispo local, S. Valério, visto este ultimo começar a mostrar problemas nesse âmbito. A sua visibilidade na oratória e sucesso nas conversões desagradou profundamente ao pretor Daciano, que no âmbito do édito de 303, de perseguição aos Cristãos emitido pelos Imperadores Diocleciano e Maximiano, os mandou prender para serem sujeitos a julgamento. O seu martírio que ocorreu em Valência no início do século IV, foi descrito por Prudêncio (348-405) e vai inspirar Santo Agostinho quando este retoma o assunto e narra o brutal sofrimento nos seus sermões. São os aspectos marcantes do que aconteceu após a sua morte, fixados pela tradição hagiográfica que vão estruturar alguns dos símbolos ligados a este santo e que serão reproduzidos nos séculos seguintes. O corvo, advêm do facto de este pássaro de hábitos necrófagos ter protegido o corpo do santo, quando este já sem vida foi depositado num pântano por Daciano, de forma a evitar a criação de mais um mártir cristão. Procurava-se desta forma fazer desaparecer o corpo, presumindo-se que este seria devorado pelos animais aí residentes. Reza a tradição que terá surgido um corvo e que este defendeu tenazmente os restos mortais de São Vicente, fazendo frente a lobos esfaimados que rondavam o local. O barco só aparece um pouco mais tarde. Ao saberem que o corpo do mártir ainda continuava intacto no pântano, o carrasco e os seus servidores aparelharam uma embarcação, para que deste modo efectuassem o transporte dos restos mortais do mártir para mar alto e aí o deitassem fora, dentro de um saco, com uma mó atada ao pescoço. Segundo a lenda ocorreu um milagre, porque após terem deitado borda fora o corpo do mártir, este apareceu de novo depositado na praia, antes de o referido barco ter chegado á costa. Reza a tradição que o primeiro templo foi erguido nesse local junto a Valência. http://al-qasr-abu-danis.blogspot.com/

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Após a conquista islâmica e segundo relatos que divergem entre si, os restos mortais do santo foram trazidos por moçárabes até ao Promontório de Sagres, onde repousaram num santuário, guardado por corvos até ao século XII. Após a conquista de Lisboa em 1147, D. Afonso Henriques toma conhecimento através da comunidade moçárabe, da existência dos restos mortais de São Vicente nessa região algarvia ainda debaixo do domínio islâmico. Após tentativas falhadas, o corpo é encontrado e as relíquias são transportadas por um barco, que segundo a lenda, terá sido protegida por dois corvos postados, um à popa e outro na proa. É esse o episódio marcante, muito ligado à comunidade moçárabe de Lisboa que figura nas armas heráldicas da cidade e que por sua vez entraram na iconografia heráldica das povoações portuguesas que têm como orago este santo.

3. O Culto de São Vicente em Alcácer do Sal O grande défice documental referente a Alcácer do Sal, devido à erosão dos séculos, impede-nos de podermos esclarecer algumas questões. Por vezes temos que estar atentos à documentação existente e tentar interpretá-la de forma adequada. De facto, continuamos a desconhecer quase tudo sobre São Vicente; quando começou o seu culto e em que século teve início a sua escolha como patrono de Alcácer do Sal. Segundo a tradição ainda vigente em Alcácer do Sal no século XVIII e dada a conhecer pelo P. Luís Cardoso, (sic)3

“Não há noticia certa da fundaçaõ destas Ermidas; porém he tradiçaõ, que a de S. Vicente, e a da Senhora dos Martyres foraõ fundadas pelo Senhor Rey D. Affonso Henriques à imitaçaõ da Cidade de Lisboa; que como N. Senhora dos Martyres, e S. Vicente foraõ fundadas pelo mesmo Senhor para sepultarem nellas, os que morriaõ no cerco da Cidade, e juntamente em S. Vicente de Fora se aquartelou o Exercito dos estrangeiros, e na Senhora dos Martyres os Portuguezes; da mesma forma, e pelo

3 CARDOSO, P. Luís (C. Or.) (1747) Dicionário Geográfico. Régia Oficina Silviana e da Academia Real, Tomo I., Lisboa, folio 134

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mesmo Rey dizem ser fundadas estas duas Ermidas; a dos Martyres para os Portuguezes, e a de S. Vicente para os estrangeiros.”

Quando o mesmo autor a dada altura, descreve as ermidas existentes no arrabalde da Villa de Alcácer afirma que (sic)4 “…, a de S. Vicente, que he Padroeiro desta Villa, e de muita romagem; e estas duas ficaõ defronte do Castelo para a parte do Norte.” Esta forte ligação a Lisboa, em termos de memória histórica, patente nos textos atrás referidos, que permitem estabelecer paralelismos sobre a conquista e a geografia sagrada de ambas as cidades, permite-nos encarar a hipótese de Alcácer do Sal após ter sido conquistada, ter assumido São Vicente como seu Patrono e não Santiago ou Santa Maria, como seria eventualmente natural. Se aceitarmos esta hipótese de trabalho, devemos expor a seguinte questão:

- A evocação a São Vicente, como patrono de Alcácer, remonta à primeira conquista de 1160 ou à conquista definitiva de 1217? E qual o seu significado?

Admitimos que poderá remontar à primeira conquista, tendo em conta os elementos colocados à nossa disposição e que iremos expor de seguida em síntese:

1. São Vicente é um santo mártir que faz parte da liturgia moçarabe e assume-se no decurso do século XII como elemento de resistência frente à reforma da liturgia cristã imanada desde Roma. 2. O relato da conquista da cidade de Lisboa em 1147 testemunha a existência de uma comunidade moçarabe que habitava a cidade em contexto islâmico. A semelhança de matriz económica, politica e religiosa entre Lisboa e Alcácer, ambas importantes bases portuárias abertas ao comércio a longa distância, permite equacionar a hipótese de em Alcácer também ter existido uma pequena comunidade moçárabe. 3. As fontes muçulmanas mencionam Ali Wahibi, soberano de Alcácer do Sal em 1159/60, aliado de D. Afonso Henriques e traidor da causa islâmica5. As fontes

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CARDOSO, (1747) Ibidem, folio 134. Liderada nesta fase pelos Almóadas. http://al-qasr-abu-danis.blogspot.com/

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portuguesas sugerem a existência de aliados alcacerenses, que terão contribuído na primeira conquista da cidade. Será que estamos em presença de moçárabes?

Se aceitarmos que a escolha de São Vicente para patrono de Alcácer, remonta à primeira conquista de 1160, como sugere a tradição alcacerense ainda viva no século XVIII, tal facto poderá significar duas coisas: - A existência de uma comunidade moçárabe em Alcácer e o que esta comunidade terá prestado ajuda ao primeiro rei Português. Desta forma se poderá compreender três questões que têm passado desapercebidas pela análise historiográfica:

1 - Ausência de Carta de Foral imediatamente após a conquista 2 - Cedência da cidade à Ordem de Santiago passados 10 anos e não logo após. 3 – O Orago da cidade ser São Vicente e não Santiago ou Santa Maria como seria lógico supor.

Estes três factos parecem indicar a presença de uma comunidade moçárabe alcacerense sólida e ciente dos seus direitos, que só será relegada para segundo plano após 1170, quando gradualmente começa a perder peso económico e demográfico e surge no horizonte uma ameaça Almóada que procura conquistar a cidade. Tradicionalmente em Portugal, São Vicente é um santo ligado à vida marítima e aos assuntos do mar. De facto essas qualidades profiláticas fazem imenso sentido numa cidade aberta ao comércio oceânico e que possui uma parte da sua população ligada à pesca, como seria o caso da moçárabe.

3. São Vicente: Panorama actual

Como já foi referido, a memória do mártir e santo Vicente perdeu o seu sentido nesta Alcácer do Sal, do início do século XXI. Se o seu nome não desapareceu totalmente é porque alguns alcacerenses têm mantido como nome de família e este subsiste a custo como topónimo junto ao Minipreço. http://al-qasr-abu-danis.blogspot.com/

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Desconhecemos a razão da erosão deste culto como patrono da nossa cidade, mas atendendo aos factos conhecidos, a ermida terá sido desmantelada e abandonada ao culto em finais do século XIX, acompanhando provavelmente a desactivação das actividades económicas ligadas ao comércio marítimo.

Se conjugarmos estes dados, com o que conhecemos da dinâmica histórica alcacerense, chegamos à conclusão que a variação do ciclo de devoção a este santo em Alcácer, parece estar ligado ao ciclo da actividade naval e portuária da cidade. Ou seja, quando a actividade portuária é intensa, é provável que o culto ao santo também o seja. Quando no decurso do século XIX e no século XX a actividade portuária e económica a ela ligada começam a estagnar, chegando a desaparecer totalmente como parece ser apanágio dos anos mais recentes, é natural que fique sem sentido o culto a um santo tão intimo e fortemente ligado a uma realidade que já faz parte da História: - A comunidade moçárabe e a actividade portuária que moldou esta terra, tão ligada ao rio Sado, que passa aos seus pés.

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4. Em jeito de desafio aos alcacerenses Actualmente, estamos perante uma sociedade da informação, globalizada, onde o que é pensado no outro lado do mundo nos chega imediatamente em formato digital, em tempo real. Esquecer as nossas raízes culturais, é o mesmo que diluirmos num caldeirão disforme sem sentido, para um futuro que não apetece alcançar. São Vicente encontra-se actualmente esquecido nesta terra que o escolheu para seu patrono, há mais de oito séculos. De facto ele simplesmente desapareceu do nosso quotidiano nos últimos 150 anos. A descoberta inesperada numa fonte documental do século XVIII, de uma referência com mais de dois séculos que testemunha a devoção popular dos alcacerenses a este mártir e que afirma que é este o seu patrono, parece-nos ser uma boa oportunidade para não deixar morrer de novo esta descoberta! As duas juntas de freguesia urbana têm os seus oragos oficiais reconhecidos pela Diocese de Évora: - Santa Maria do Castelo e Santiago, contudo Alcácer do Sal como cidade, não são duas entidades urbanas separadas, mas uma só. Penso que a recuperação da memória histórica de São Vicente como patrono da cidade de Alcácer do Sal e a sua adequada divulgação, transmite-lhe uma unidade que lhe parecia faltar em termos de “Geografia Sagrada.”

Bibliografia Fontes impressas CARDOSO, P. Luís (C. Or.) (1747) Dicionário Geográfico. Régia Oficina Silviana e da Academia Real, Tomo I., Lisboa. (PDF – Site da Biblioteca Nacional)

Estudos BARBOSA, Isabel Maria de Carvalho Lago (1998). A Ordem de Santiago em Portugal nos Finais da Idade Média. (Normativa e Prática). Militarium Ordinum Analecta, nº 2, p. 93-327. CARVALHO, A Rafael (2007) ALCÁCER: Alcácer do Sal Medieval e Cristã. Roteiro – Cripta Arqueológica do Castelo de Alcácer do Sal. Edição IGESPAR, p. 57-68. http://al-qasr-abu-danis.blogspot.com/

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CARVALHO, A Rafael; FARIA, João Carlos e FERREIRA, Marisol Aires (2008). (AlQasr) Alcácer do Sal Arqueologia e História de uma Madīna do Ġarb al-Andalus (Séculos VIII-XIII) Ed. C. M. Alcácer do Sal CORREIA, Virgílio (1972). Alcácer do Sal (esboço de uma Monografia). Obras, vol. IV, Estudos Arqueológicos, p. 127-200. PEREIRA, Maria Teresa Lopes (2000). Alcácer do Sal na Idade Média. Ed. Colibri e Câmara Municipal de Alcácer do Sal. PICOITO, Pedro (2008) A Trasladação de S. Vicente: Consenso e Conflito na Lisboa do século XII. Revista Medievalista online, Instituto de Estudos Medievais, Universidade Nova de Lisboa, ano 4, número 4, p. 1-11 www.fcsh.unl.pt/iem/medievalista , consultado em 2008

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