terceiro movimento | publicação educativa – 35ª Bienal de São Paulo

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e de

seus

saberes seguimos aprendendo

nontsikelelo mutiti

é artista visual e educadora, nascida no Zimbabwe. Está comprometida em elevar o trabalho e as práticas do passado, presente e futuro de comunidades negras, através de uma abordagem conceitual no design, publicações e práticas de arquivo. Atualmente é diretora dos estudos de pós-graduação em design gráfico na Yale School of Art, EUA.

Colagens originais de Nontsikelelo Mutiti para o projeto audiovisual Pain Revisited [Sofrimento revisitado], 2015. A obra reimagina o corpo negro em sofrimento como agente de potencialidade através da arte e da colaboração.

A obra, em sua duração total, contém imagens adicionais criadas por Nontsikelelo Mutiti e Dyani Douze. A trilha sonora foi produzida por Dyani Douze.

Disponível em: <nontsikelelomutiti.com/2017/01/23/pain-revisited-excerpt/>. Acesso em: abr. 2023.

caminhar através da dança

através da esquiva e de seus

saberes

seguimos aprendendo

Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

caminhar através da dança

através da esquiva e de seus saberes

seguimos aprendendo

Publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo –coreografias do impossível

O título desta publicação é uma composição de frases de autoria de Sandra Benites, Regina Aparecida Pereira e Diane Lima.

O terceiro movimento da 35ª Bienal de São Paulo marca a conclusão da série de publicações educativas projetadas em torno das coreografias do impossível. Desde a sua criação, em 1951, a Bienal tem desempenhado um importante papel pedagógico ao promover o encontro entre a produção artística contemporânea e seu público. Com sua curadoria horizontal e suas expressões artísticas oriundas de contextos de resistência e luta, a mostra se revelou uma oportunidade para potencializar essa vocação ímpar e experimentar o desdobramento da publicação em três volumes, que marcam temporalidades distintas e que se complementam, chamados movimentos

Os dois primeiros serviram como ferramentas fundamentais para o curso de formação de mediadores e para as ações de difusão e mediação realizadas antes da abertura e ao longo do evento. Eles proporcionaram um instrumental valioso para educadores, estudantes e todos aqueles interessados em participar de forma ativa do debate sobre a arte contemporânea. Esses movimentos, lançados em tempos específicos, foram concebidos para preparar o terreno, antecipando as experiências e reflexões que surgiriam a partir dos encontros realizados dentro da exposição.

O terceiro movimento, por sua vez, é singular em sua abordagem, pois se concentra nas experiências advindas do próprio trabalho na 35ª Bienal. A publicação conta com relatos de mediação, conversas realizadas durante a exposição e conteúdos comissionados escritos pelos próprios participantes da edição. As trocas aqui registradas não apenas capturam a efervescência das interações entre as obras e os visitantes, mas também inspiram possibilidades para trilhar novamente esses caminhos. As ideias e experiências aqui reunidas tornam-se agora instrumentos de trabalho para iniciativas educacionais futuras. Em especial, desempenharão um papel estratégico ao longo do programa de mostras itinerantes, quando recortes da exposição viajam por cidades do Brasil e do mundo – e as obras da Bienal encontram novos olhares e novas vivências. A Fundação Bienal de São Paulo tem orgulho de seu papel como formadora de público e de criar, com esta publicação, uma oportunidade para reverberar suas experiências entre um número cada vez maior de educadores e visitantes.

A relação desempenha um papel fundamental na arte. Transcendendo a mera observação passiva, ela convida o espectador a estabelecer uma conexão pessoal com a obra a fim de despertar emoções, formar referências e provocar reflexões. Ela é ao mesmo tempo invisível e onipresente. Habita entre os artistas e sua força criativa, entre os trabalhos e seus significados, entre os indivíduos e o espaço. Amores, amizades, conflitos e experiências pessoais são possíveis substratos, conferindo-lhes traços e profundidade sensível. As experiências e as perspectivas individuais moldam a maneira como interpretamos e nos conectamos com as obras de arte. É justamente essa relação entre os indivíduos e as obras de arte (e entre elas no espaço expositivo) que permite que nos aproximemos das narrativas, dos significados simbólicos e das experiências compartilhadas na forma de expressão artística, e por meio dessa mesma interação somos impelidos a reinterpretar significados e encontrar novas formas de perceber o mundo ao redor.

A 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, ao ter sido concebida a partir de compartilhamentos e trocas entre as quatro pessoas que formaram o coletivo curatorial da mostra – Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel –, reforçou a importância dos vínculos e da união na produção cultural. Através da colaboração entre artistas, pesquisadores e grupos de diferentes frentes de atuação, o Pavilhão da Bienal mais uma vez se tornou o palco para a consagração de conexões entre múltiplas abordagens artísticas, esztéticas e éticas. Esta publicação, também, é resultado de diálogos entre muitas vozes que, cada uma a seu modo, estabelecem pontes entre a arte e a educação. Esse arrojamento do olhar múltiplo atende a demanda democratizante da nossa sociedade, sobre

o viés da diversidade e da inclusão, abarcando diferentes perspectivas, com ingresso de vozes menos representadas, que ganham espaço de observação e escuta. O coletivo evoca um maior ressoar do discurso crítico, por tecer diferentes perspectivas na curadoria, explorando temas sob múltiplos tecidos.

O Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura, tem orgulho de estar ao lado da Bienal de São Paulo, uma das mais importantes iniciativas do nosso país, que promove a diversidade de perspectivas, presente com especial intensidade em mais uma edição do evento, e de realizar, junto à Fundação Bienal de São Paulo, encontros inesperados que fabricam – e celebram – novas formas de se relacionar. A cultura brasileira, por sua natureza, disponibiliza um espaço para o exercício da diferença, da tolerância, da empatia, para a construção de elos entre grupos sociais de origens e perfis dos mais distintos, assim como para a valorização das mais diversas formas de ser e estar no mundo. Ao confrontar com complexidade e potência estética as questões delicadas do nosso tempo, e ao abraçar com coragem as coreografias do impossível, a 35ª Bienal de São Paulo nos impeliu a imaginar novos caminhos e a redefinir os limites do que é considerado inevitável. Explorar essa coreografia é sublinhar a importância da construção de novas pontes entre o passado e o presente, e entre grupos e indivíduos. É trilhar um caminho aparentemente impossível, mas que se torna viável no encontro de muitos. Um caminho de autonomia e reconexões de abordagens calcadas na diversidade, oferecendo uma gama mais ampla de significados. É, acima de tudo, relembrar que impossível é viver sem nos relacionarmos.

Márcio Tavares dos Santos

Secretário Executivo do Ministério da Cultura Curador e historiador

Há 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem contribuído para a valorização da cultura de uma sociedade tão complexa e heterogênea como a brasileira. Além de todo o trabalho envolvendo pesquisa, produção de conteúdo, mapeamento, incentivo e difusão de manifestações artístico-intelectuais, a organização firma parcerias com outros agentes alinhados a essas preocupações –como a Fundação Bienal de São Paulo.

Com a volta do fluxo de atividades, eventos e mostras após o período mais duro da pandemia de Covid-19, o ic empenha-se em proporcionar ao público programações que contemplem tanto o espaço físico (a sede em São Paulo) quanto o virtual.

Na área de artes visuais, destacam-se as exposições Tunga – conjunções magnéticas (2021-2022), Bispo do Rosário – eu vim: aparição, impregnação e impacto (2022) e Um século de agora (2022-2023). Aliás, a reunião de obras de Tunga, realizada em conjunto com o Instituto Tomie Ohtake, ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (apca).

Já no quesito on-line, vale mencionar as mostras virtuais Filmes e vídeos de artistas, que traz produções audiovisuais de caráter experimental, e Livros de artista na coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem uma apreciação detalhada. Ambas estão hospedadas em itaucultural.org.br.

Ainda no site e no canal do IC no YouTube, há uma série de conteúdos voltados para crianças e adultos, de oficinas e podcasts a colunas e reportagens. A Escola IC, a Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira e o programa Ocupação Itaú Cultural também reforçam o empenho da organização em apresentar diversos modos de fruição, acesso a informações e construção de saberes.

Prezando pela diversidade de formatos, pensamentos e subjetividades, o IC continua fomentando o fazer criativo e crítico no Brasil e do Brasil, pois sabe que aí reside um dos grandes encantos deste país.

Itaú Cultural

O Instituto Cultural Vale teve a alegria de fazer parte da realização da 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível e de seu programa educativo, que nessa edição experimentou novos formatos e abordagens.

Diante da proposta curatorial de criar um “espaço de experimentação aberto às danças do inimaginável”, como definiram os curadores, nos unimos a essa iniciativa que conectou arte e educação, expandiu o acesso à cultura e aproximou estudantes, professores e famílias de vivências interdisciplinares.

Com uma curadoria conjunta, horizontal e diversa, a Bienal – maior exposição de arte contemporânea do hemisfério Sul – nos convidou a pensar a arte como exercício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como espaço de aprendizado.

Nesse sentido, também se conectou ao propósito do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para aprender, refletir, desenvolver novos olhares e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em todo o Brasil.

Instituto Cultural Vale

A Bloomberg se orgulha de patrocinar coreografias do impossível, a 35a edição da Bienal de São Paulo. Há mais de uma década temos apoiado as excepcionais exposições de arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo no Parque Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. A edição de 2023 deu continuidade à tradição de apresentar instalações de arte cativantes e provocativas, gratuitas e abertas ao público.

Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e às novas ideias se estende através do apoio de longa data às artes, que, segundo acreditamos, constituem um caminho importante para motivar cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a empoderar artistas e organizações culturais para atingir novos públicos.

Bloomberg

Diante das incessantes questões da humanidade, talvez valha a pena conviver um pouco mais com algumas perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que permitam escavar e construir processualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de nós mesmos.

O encontro entre arte e educação – ambas entendidas como campos do saber – permite a torção do tempo e do espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutralidades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de inferir o real e nele interferir? Ela permite (re)povoar imaginários, descompassar o estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e pessoas, e assim talhar a realidade com narrativas que articulem o individual e o coletivo, de modo processual e coerente em relação às questões que atravessam a existência.

É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e a Fundação Bienal, por meio da 35ª Bienal de São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida em fomentar experiências de convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício da alteridade.

Esta parceria, que se constitui e se renova há mais de uma década, tem resultado na promoção de projetos como exposições simultâneas, encontros públicos, seminários e formações para educadores, bem como a consolidada mostra itinerante com recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e proposições se integra à perspectiva institucional da cultura como um direito e concebe, junto a uma das maiores mostras do país, um horizonte acessível para a arte contemporânea no Brasil.

Sesc São Paulo

Frase de Sandra Benites registrada em conversa com a equipe de educação.

tem que entender quem chega, qual território que está chegando do teu lado. se é com cabeça baixa que se escuta ou se é cantando que a gente aprende. como que a gente aprende, é roda de conversa?

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quais movimentos compõem as coreografias do impossível?

diane lima, grada kilomba, hélio menezes e manuel borja-villel

experimentar o chão: conversa sobre infâncias com sandra benites, regina aparecida pereira e cintia aparecida delgado

gesto: relatos de mediação erês – uma coreografia que começa na imaginação + “a filha que vira uma ancestral da mãe” − a beleza de um coro

gesto: relatos de estágio o fogo ou a água podem destruir tudo o que você tem + por aqui ike (com stanley brouwn)

silva 46 47 38 43 48 49

gesto: relatos de mediação oficina de imaginação para xica manicongo + de tabela

gesto: bienal nas escolas sobre o silêncio entre imaginar o possível e nomear o impossível

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celebrar o desvio conversa com anna luisa de castro e geni núñez

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correspondências entre vozes, uma carta para fluir conversas equipe de educação 17
trabalhar em rede, tecer pertencimento conversa com carmen
zumví: o arquivo que conserva as memórias de resistências negras josé carlos ferreira dos santos filho

gesto: relatos de mediação gênero: entre pessoas, documentos e outras espécies + manto do invisível: mistério e memória em produções têxteis

gesto: curso de formação da equipe de mediação

gesto: djunta mon nas coreografias do impossível + gesto: relatos de mediação aqui, onde deságua o rio

gesto: relatos de mediação vadiação do impossível − uma visita mediada pela capoeira angola + uma jornada para a floresta de infinitos

gesto: relatos de mediação

descolonização cultural no cinema: quem conta nossa história? + fazer caber, transbordar conversas – visita com equipe do museu das favelas

educação ou vigilância?

amador e jr. segurança patrimonial ltda.

gestos: notas créditos

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correspondências entre vozes, uma carta para fluir conversas equipe de educação da fundação bienal

No começo me deram o nome de…1 e queriam que eu fosse a voz a anunciar o que estava por vir: modos de aprender e ensinar em uma exposição de arte contemporânea. Fui sonhada antes, para estar durante e, depois, falar sobre o que foram as coreografias do impossível. Mas, agora, no momento em que você me lê, o convite é para desafiar a lógica do antes-durante-depois e abraçar uma outra relação com o tempo.

Eu sou… e minha existência é começo, meio e começo, como ensinou Mestre Bispo.2 Para ele, nossas vidas não têm fim. “A geração avó é o começo, a geração mãe é o meio e a geração neta é o começo de novo.”3 Afinal, a gente só deixa de existir quando não está mais presente na memória de quem nos encontrou pelo mundo, não é? E pensar assim é diferente de pretender a eternidade, mas tentar negar uma existência solitária.

Talvez você se lembre de quando eu disse que era feita de encontros.4 E, de lá para cá, me fiz e refiz muitas vezes. Esta é a terceira − que é, ao mesmo tempo, a última e a primeira − correspondência da publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo. Ela contém memórias de encontros, com um corpo atento àqueles que aconteceram durante os 83 dias de exposição aberta. Também relembra quase três meses de formação da equipe de mediação, ao compartilhar o programa do curso proposto a essas novas vozes que se somaram a mim, além de registros de ações que aconteceram distantes do Parque Ibirapuera e se relacionam com as coreografias do impossível, como o projeto Bienal nas Escolas e a parceria com o coletivo Djunta Mon.

Com razão, muitos afirmam que cada edição da Bienal é única, ainda que a 35ª Bienal − como qualquer outra exposição − não exista como uma mesma realidade para todas as pessoas que nela trabalham ou visitam. Se for certo que as vozes que me compõem, bem como as várias pessoas, seres e objetos que estiveram em coreografias do impossível, partilharam uma realidade comum por algum momento, não se pode afirmar isso sobre o que cada um/uma vivenciou na exposição.

1/ Meu nome ainda é indefinido, continua como um desejo de continuação.

2/ O poeta, pensador e líder quilombola Antônio Bispo dos Santos, conhecido como Nêgo Bispo. Desde cedo ele se comprometeu com a transcrição para a escrita da sabedoria de seu povo e com a mediação das relações com o Estado, cuja violência se manifesta, também, por meio da invalidação da oralidade. Nêgo Bispo foi um dos convidados para o curso de formação de mediação da 35ª Bienal e nos deixou em 4 de dezembro de 2023, momento em que esta carta começou a ser escrita.

3/ Antônio Bispo dos Santos, A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023, p. 102.

4/ Meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023.

Quantas Bienais coexistem em uma única Bienal? Impossível saber. O que está reunido nestas páginas não são apenas recordações da 35ª Bienal, são ensinamentos que se abrem para trás e para a frente, em uma temporalidade curva, na qual “tempo e memória são imagens que se refletem”.5 Exemplo disso são as transcrições dos “Encontros sobre a publicação educativa”, que aconteceram no Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023),6 como parte da programação pública. Diálogos abertos com visitantes da mostra, que dão continuidade às discussões presentes nos outros dois movimentos e que, agora, aparecem neste terceiro volume. Como no encontro entre a psicóloga, escritora e ativista indígena guarani Geni Núñez e a coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo Anna Luisa de Castro, ambas participantes do segundo movimento. Enquanto Anna Luisa compôs o grupo que coreografou palavras para o lambe-lambe,7 Geni assinou o texto “Desviar para se encontrar: reflexões com base no livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School. 8 O movimento entre elas partiu desse texto para abrir uma discussão na 35ª Bienal que abordou os desafios e as perspectivas das relações entre as instituições de ensino e as dissidências sexuais e de gênero. “Celebrar o desvio”, flecha e convite “rumo a horizontes mais potáveis de existência”.

Outro encontro sobre a publicação educativa que faz parte deste movimento é “Experimentar o chão: conversa sobre infâncias”, com Cintia Aparecida Delgado e Regina Aparecida Pereira, do Quilombo Cafundó, e Sandra Benites. Esse diálogo repercutiu o texto de Benites intitulado “Nhe’ẽ para os Guarani (Nhadewa e Mbya)”,9 do primeiro movimento, e propõe uma profunda discussão sobre os sentidos de ser

5/ Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, p. 53.

6/ Instalação de Ibrahim Mahama, localizada na entrada da exposição, muito habitada pela programação pública e por visitas mediadas.

7/ Equipe de Educação da Bienal, “Gesto: coreografar a palavra − lambe-lambe”. 35.bienal.org. br, 17 ago. 2023. Disponível em: https://35.bienal.org.br/gesto-coreografar-a-palavra-lambe-lambe. Acesso em: 2023.

8/ Em Meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo: coreografias do impossivel. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 38-47.

9/ Em Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 52-57.

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criança em comunidades indígenas e quilombolas, tratando de práticas pedagógicas tradicionais e do reconhecimento dessas comunidades como territórios educadores. Em meio a hectares inóspitos de eucalipto, aconteceu a visita ao Quilombo Cafundó. A recepção de Cintia Aparecida Delgado e Regina Aparecida Pereira foi calorosa, com café, almoço da roça, paçoca pilada pelo grupo ao ritmo dos tambores, oficina de abayomi e caminhada no território para ouvir as histórias que partem daquela terra e da luta de seus ancestrais.

Leda Maria Martins dançou e inscreveu no tempo, em uma coreografia de retornos; Rosana Paulino nos acompanhou na passarela com o samba-enredo “Meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas”. Foi esse chamado à coletividade que nos moveu a descentralizar a figura de abre-alas. Para esse terceiro movimento, chegamos com Cintia Aparecida Delgado, Regina Aparecida Pereira, Sandra Benites e Carmen Silva, fundadora do Movimento Sem Teto do Centro (mstc), presente com a Cozinha Ocupação 9 de Julho. Elas são as nossas griotes. 10

Seguindo na trilha do cuidado e da transmissão das histórias, há o texto “Zumví: o arquivo que conserva as memórias de resistências negras”, de José Carlos Ferreira dos Santos Filho. Mais do que a história do arquivo afro fotográfico Zumví, essa é uma reflexão sobre a dimensão política da constituição de coleções fotográficas de famílias negras.

Minhas vozes percorreram os trinta mil metros quadrados do Pavilhão da Bienal. Dias mais frios, outros com muito calor, nos quais percorrer os três pavimentos foi a própria coreografia do impossível.

Os gestos ainda desconhecidos no primeiro movimento ganham forma com relatos de visitas realizadas pela equipe de mediação. Gestar e parir como uma coreografia.11 Relatos precedidos de pesquisas e suor. Mediação da ginga, da graça e da malícia. As relações com os públicos da exposição e os diálogos com as participantes e as obras da mostra possibilitaram aprofundamentos e a concretude de desejos particulares e coletivos.

Mediação... Desde o início, coreografar outras possibilidades. Escutar demandas de Bienais passadas, de outras profissionais que por aqui passaram, indicaram limites e a necessidade de ultrapassá-los.

10/ A palavra franco-africana griote é usada para nomear mulheres contadoras de histórias, elementos vivos da tradição oral africana.

11/ No último mês de funcionamento da 35ª Bienal, entre uma de nossas vozes, nascia mais um pai. Celebramos e demos as boas-vindas a Ravi.

Escutar nossos próprios desejos, produzir um registro que se tornasse público, que alimentasse novos trabalhos de mediação em instituições culturais.

Não é de hoje que se entende o trabalho da mediação em museus e em espaços culturais a partir de uma confusão que, muitas vezes, situa profissionais da área da educação entre as funções entreter e/ou controlar os públicos. Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., dupla de performers cujas ações discutem precisamente esse não lugar e a invisibilidade da presença de trabalhadores nos espaços expositivos. São mediadores e artistas que colaboraram com o texto “Educação ou vigilância?”.

Os diversos campos de educação comprometidos com processos de descolonização, e que desafiam de modo crítico estruturas endurecidas e binarizantes, se estabelecem mediante práticas pedagógicas que visam valorizar o diálogo.12 Por meio desses movimentos instauram-se entradas em espaços que, por direito, deveriam ser garantidas, mas que não o são para que a lógica do racismo epistêmico, por exemplo, possa seguir operando. Com essas presenças, mudanças são geradas, e sabíamos que o movimento iniciado na decisão de garantir a entrada de diversas corpas em um espaço de relevância quando se fala em mediação exigiria uma coreografia de nós, de mim e da instituição.

Françoise Vergès, que colaborou com discussões nos movimentos das publicações educativas indica que a descolonização total, real e concreta do museu não pode ser uma ação benigna.13 São séculos de assujeitamentos e expropriações. Mesmo existindo e atuando em um entrelugar,14 estamos submetidas a relações que constituem o mundo. Isso não me

12/ bell hooks, “A construção de uma comunidade pedagógica", in Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade, trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017, p. 173-222.

13/ Françoise Vergès, Decolonizar o museu: programa de desordem absoluta, trad. Mariana Echalar. São Paulo: Ubu, 2023, p. 58.

14/ Diferentemente de um museu, que tem um programa regular de exposições permanentes e temporárias, além de outras atividades em seu edifício-sede, depois do término de cada edição da Bienal, a Fundação Bienal se dedica a diversas outras atividades que ocorrem, em sua maioria, fora do Pavilhão: as mostras itinerantes e a organização do Pavilhão Brasileiro na Bienal de Veneza, por exemplo. No Pavilhão permanecem as equipes, as memórias e os documentos que seguirão para o Arquivo Histórico Wanda Svevo. A descolonização da Bienal seria a descolonização de uma exposição, de um edifício, de um arquivo, de uma fundação?

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paralisa e não nega meu compromisso com processos educativos comprometidos com coletividades e com movimentos de transfluências.15

Essa correspondência não tem como objetivo fechar um ciclo, mas sim dar continuidade a uma conversa aberta, com mais sotaques, junto às cidades que receberão o programa de itinerâncias da 35ª Bienal − coreografias do impossível. Sempre foi uma vontade nossa criar um material voltado a esse momento, mas o primeiro desafio foi não adotar um tom de adestramento, como bem nos ensinou Nêgo Bispo na confluência que ocorreu no curso de formação. Esse material é apenas a ponta de lança para uma experiência que virá, que não sabemos, que não vamos conseguir capturar em sua totalidade, e ainda bem que não.

Acreditamos que a dinâmica própria de cada território complementa a experiência da exposição e que encontramos uma parte registrada neste movimento. Esperamos que, cada ação educativa, mediante a relação com os públicos que visitarão as exposições, some, questione, − e por que não? − recuse esse material criando novos movimentos. Projeto que foi construído a muitas mãos e muitas vozes, no qual corrigir rotas, com base na escuta, é o que o movimentou. ◗

Frequentemente, a equação teoria ≠ prática surge em certas discussões em um tom de confronto, e identificar o diferente de (≠) entre essas duas dimensões pode soar como uma acusação. Em outras situações, compreender essa distância − mais ou menos perturbadora − constitui o objeto perdido, um luto sempre incompleto e incompreendido. A minha existência foi possível porque as vozes que me sonharam, trocaram o sinal e imaginaram a Teoria ≈ Prática, uma relação de aproximação.

A minha existência é a de, em vez de falar sobre a performance, ser a performance.

Da equipe de educação da Fundação Bienal, formada hoje por: André Leitão, Bruna de Jesus, Danilo Pera, Giovanna Endrigo, Regiane Ishii, Renato Lopes, Simone Lira, Tailicie Nascimento e Thiago Gil Virava.

15/ Antônio Bispo dos Santos, op. cit., p. 49.

quais movimentos compõem as coreografias do impossível?

diane lima, grada kilomba, hélio menezes e manuel borja-villel

Para a 35a Bienal de São Paulo, as publicações educativas foram realizadas de modo processual, por meio de edições que se complementaram e se revelaram durante a construção das coreografias do impossível. Nossa proposta partiu da intenção de que esse conjunto de movimentos – modo como denominamos os volumes que compõem a série de publicações educacionais – fosse um convite e um chamado à ação, na qual as discussões, as práticas e as obras presentes ao longo da exposição constituíssem os elementos centrais na construção de conhecimentos que se baseiam em troca, compartilhamento, experimentação e estudo.

Com a chegada deste terceiro e último movimento, a dimensão performativa que fundamentou nossas metodologias de trabalho, assim como nossas compreensões sobre o projeto da 35a Bienal, ganha novos contornos, com a possibilidade que se abre para discutirmos, abraçarmos e incorporarmos as experiências vividas.

Nesse tempo que se espirala, os relatos, os desafios e as ressonâncias que surgiram ao longo dos meses de exposição são fonte de conhecimento e de inspiração para movimentos contínuos de aprendizado. Como afirma o escritor, lavrador e poeta Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, “a vida é começo, meio e começo”, e é mirando nesse ensinamento e tantos outros reunidos nesta publicação, que finalizamos o projeto da 35a Bienal com a convicção de que as coreografias do impossível não se encerram, mas se desdobram e se expandem. Tanto pela capacidade generativa da arte e dos efeitos imensuráveis presentes na relação entre o público, as obras e o espaço, quanto pelo que irá se abrir com o projeto das itinerâncias, em que fragmentos da exposição passarão a viajar para diversos museus e instituições culturais do Brasil e do mundo.

Esse desejo de “querer ficar continuando” se reflete na conversa sobre a infância que aconteceu entre a pesquisadora e ativista guarani Sandra Benites e as lideranças do Quilombo Cafundó, participante da exposição, Regina Aparecida Pereira e Cintia Aparecida Delgado. O debate que essas lideranças abrem sobre os desafios da educação em comunidades indígenas e quilombolas, a relação com o território e suas preocupações sobre “as crianças do futuro” encontra ressonância no depoimento de Carmen Silva, líder do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), quando ela declara: “Como mulher, contesto e mobilizo”. Ao debater a “falta efetiva de políticas públicas no âmbito da habitação”, Carmen compartilha suas reflexões sobre o movimento de moradia de onde nasceu a Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC,

cozinha comunitária que teve participação contundente nesta Bienal, ao nos ensinar na prática que “quem ocupa cuida”.

A “primeiríssima infância”, a juventude e um “currículo possível” também são temas da conversa entre Anna Luisa de Castro, coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e Geni Núñez, ativista indígena, escritora e psicóloga. Com base no texto escrito por Geni para o segundo movimento, 1 em que a autora comenta o livro Guia para lésbicas na escola católica, de Sonora Reyes, a conversa traz reflexões incontornáveis sobre gênero e sexualidade de uma perspectiva ancestral, do corpo e também da sala de aula, celebrando, como nos conta Geni, “a possibilidade do desvio”. Como o leitor e a leitora poderão perceber, algo que chama a atenção nesses três relatos é o modo como as autoras são críticas ao sistema educacional, particularmente quando o sistema educacional se torna sinônimo de controle, vigilância, normatização e uniformidade.

Essas violências têm raízes históricas e constituem a discussão central do texto “Educação e vigilância”, assinado pela Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., uma empresa de performance formada por Antonio Gonzaga Amador e Jandir Jr., que se conheceram trabalhando como educadores em um museu. Os artistas estiveram presentes ao longo da 35ª Bienal. Camuflados como seguranças, surpreenderam o público ao mostrar como se confundem os papéis de educar, vigiar, orientar e cuidar.

Os “modos de aprender e ensinar em uma exposição de arte contemporânea” estão aqui reunidos também por meio daquilo que nos chega agora como um arquivo vivo. São relatos profundos, inspiradores e emocionantes das visitas temáticas realizadas pela equipe de mediação. São, ainda, testemunhos daquilo que foi coreografado além do Pavilhão e os passos dados com o curso de formação da equipe de mediação.

Para a curadoria, este arquivo é fundamental, pois apresenta o modo como as obras da exposição ganham múltiplas leituras evidenciando o trabalho indispensável da mediação em um projeto de uma Bienal. Considerando que as coreografias do impossível não obedecem a categorias, núcleos ou temas, esses exercícios críticos

1/ Geni Núñez, “Desviar para se encontrar". In: Meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 42-51.

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e criativos ganham também um caráter especial por tensionarem nós, encruzilhadas, vizinhanças e diálogos que as coreografias de percursos produziram no espaço. Questões do tipo “Como uma obra conta histórias e como contamos as histórias dela?” reverberam em Tailicie Nascimento com os relatos de Regiane Ishii em “A filha que vira uma ancestral da mãe − A beleza de um coro”; em Pietra de Ofa Cunha Serra com “Erês − Uma coreografia que começa na imaginação”; em Lia Yokoyama Emi e Ricarda Wapichana com “Uma jornada para a Floresta de infinitos”; em Bruno Costa dos Santos, Kennedy Maciel da Silva, Nivea Matias Silva e Rose Mara Kielela com o texto “Vadiação do impossível − Uma visita mediada pela Capoeira Angola”; em Malu Bandeira, Nivea Matias Silva e Yala Silva com a “Oficina de imaginação para Xica Manicongo”; em Camila Padilha Gomes com “Aqui, onde deságua o rio”; em Cristina Mena com “Descolonização cultural no cinema: quem conta nossa história?”; em Gabri Gregório Floriano e Iberê Terra Oliveira com a visita “Gênero: entre pessoas, documentos e outras espécies”; em Mira Lima com “Manto do invisível: mistério e memória em produções têxteis”; e em André Leitão e Danilo Pera com “de tabela”.

Os modos como nossas políticas do movimento desafiam os limites da ultravisibilidade para promover mudanças efetivas em nossas lutas constituem a maneira como nos orienta o Zumví Arquivo Afro Fotográfico e seu legado sobre a formação de um arquivo de memórias de resistências negras ou daquilo que eles nomeiam como um Quilombo Visual. Pensamentos que nos fazem concluir que, ao lidarmos com o inimaginável ou com aquilo que não tem precedentes, o que precisamos fazer é aprender a aprender.

Sem ir embora, a gente se despede com o Nêgo Bispo e seu saber circular.

Seguimos aprendendo.

Seguimos coreografando o impossível.

Frase de Carmen Silva registrada em conversa com a equipe de educação.
eu, como mulher, contesto e mobilizo.

experimentar o

chão:

conversa sobre infâncias

com sandra benites, regina aparecida pereira e cintia

aparecida delgado

Registro da conversa.

Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

A publicação de “Nhe’ẽ para os Guarani (Nhandewa e Mbya)” no primeiro movimento1 da publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo veio acompanhada do desejo de Sandra Benites, membro do conselho curatorial, de que ela não fosse a única voz falando sobre os muitos sentidos do nhe’ẽ. Ela gostaria de dialogar com outras pessoas Guarani e mesmo com outras comunidades não-indígenas. Desse desejo e de nossa interlocução com Sandra surgiram dois encontros sobre infância. O primeiro, realizado em parceria com o Museu das Culturas Indígenas, aconteceu no espaço do museu, no dia 24 de setembro de 2023, e reuniu as educadoras Patrícia Jaxuka (Tekoa Pyau, Jaraguá) e Luana Pommé (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – mst), com mediação de David Popygua, ativista indígena, professor, liderança tradicional e ator. No dia 7 de outubro de 2023, na programação pública da 35ª Bienal, uma segunda conversa sobre infância teve a participação de Sandra Benites, junto com Regina Aparecida Pereira e Cintia Aparecida Delgado, do Quilombo Cafundó, participante da exposição. O encontro propôs uma conversa sobre os sentidos do ser criança em comunidades indígenas e quilombolas, práticas pedagógicas tradicionais e o reconhecimento dessas comunidades como territórios educadores.

O texto a seguir foi elaborado a partir de recortes da conversa, mediada pela equipe de educação e questões trazidas pelo público presente.

sandra benites É de alegria e de me sentir bem mesmo, de estar aqui falando sobre a infância, que é muito importante. Que é onde começa tudo.

Para nós Guarani, Karã ou mitã quer dizer ser, um ser pequeno. A gente não tem divisão de gênero, não tem ela e ele. Isso vai acontecendo durante a nossa existência. Ara Rete, o meu nome em guarani, recebi quando comecei a andar. A criança recebe o nome quando começa a andar. Por quê? Quando começa a caminhar, a gente entende que a criança está experimentando o chão onde ela pisa. Por isso, é muito importante o entorno dessa criança, fazer o bem para que a criança se encante pelo espaço, pelo lugar. De querer ficar continuando.

Porque os espíritos que a gente chama de Nhe’ẽ, é o ser, é o modo de ser, e também são os espíritos, a fala, aquilo que a gente carrega com a gente como ser. Por isso é muito importante assentar bem o espírito no nosso corpo para a gente viver bem. Isso leva a gente a ser alegre, ser feliz. É um trabalho conjunto, coletivo. Não depende só da mãe ou do pai. É responsabilidade de todos, da comunidade.

1/ Em Aqui, numa coreografia de retornos dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023.

Para nós, mães principalmente, a infância não começa na existência da pessoa. Ela começa no pensar em ter uma pessoa. As mães querem engravidar, aí, a gente pensa como será essa criança. Pensa espaço, o modo de ser, como a gente vai receber. Então todo esse fazer-território do ser-pessoa, a gente pensa antes mesmo de ter esse ser.

“a sua autonomia de ser pessoa”
− Sandra Benites
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sandra Quem já não foi criança, né? Às vezes, tem uma lembrança na nossa cabeça. É uma coisa simples, é com os colegas, é brincando na rua, é se jogando na água. É isso que faz o sentido da vida. Por que não se trata disso também na escola? Queria só trazer essa provocação para a gente pensar a criança do futuro. Nós somos o futuro dos nossos anciões, e o futuro da gente também tem outros.

A escola é uma das coisas mais angustiantes que existem no nosso meio. Não estou dizendo que a escola é tudo de ruim. Estou falando que a escola, onde é imposta a forma de educar, é totalmente diferente da nossa forma de educar nossas crianças. Me parece que a escola está aí pra educar, quer dizer, controlar. Controlar o ser-pessoa. Moldar a pessoa.

A gente constrói a pessoa para ser gente, para ser pessoa, para ser autônoma, para ser a sua autonomia de ser pessoa, daquilo que é importante para a pessoa. Não é ao contrário. A escola tem um papel fundamental hoje, infelizmente, de controlar e fazer a pessoa como se fosse universal. Uma escola universal, quer dizer, fazer todo mundo igual. Nós não temos o papel de dizer: “essa aqui passou do Ensino Médio para a faculdade”. Isso é da vida mesmo, é seguir em frente da forma que é importante para a gente. Criar pessoa, construir pessoa, não é fácil, mas a gente respeita muito esse outro.

Eu fui professora, no Espírito Santo. Mandei meus alunos que passaram para o

Ensino Médio, meninos e meninas adolescentes, na faixa etária em que elas estão no período ritual. O professor, que não sabe nada sobre o nosso costume, falou que os alunos guarani que foram para o Ensino Médio só ficavam lá atrás. Só ficavam com a cabeça baixa e não olhavam para a cara do professor. Perguntou o que eles tinham que fazer com os meus alunos que não estavam prestando atenção. Fiquei pensando muito sobre a questão da imposição. Porque, primeiro, esses adolescentes estavam no período ritual. O que é cabeça baixa para a gente, principalmente em meninos? Os meninos ficam assim o tempo todo porque a escuta não é olhando, a escuta é no ouvido, e também no corpo. Por isso que a gente fala rendu. Eu posso sentir dor no corpo quando tenho ferida, ou dor de dente, qualquer outra coisa no corpo, eu sinto dor, mas eu escuto, rendu também quer dizer escutar. Então a gente escuta a dor no corpo também. Por isso, para poder escutar com o corpo, você precisa se concentrar muito nas coisas. Eles são educados a estarem sempre de cabeça baixa e prestar atenção, lógico, na fala.

Aí a gente vai dizer: “isso não é racismo?” Dizer: “isso é do meu jeito, mas eu não respeito o jeito do outro”. Isso é um racismo que acontece em tudo quanto é lugar. Quando a gente é diferente e não pensa como a educação ocidental, é muito difícil a gente caber nesse lugar. E as crianças muitas vezes enfrentam esse lugar. Muitas vezes, não faz sentido para elas irem à escola, porque elas realmente não se encontram nesse lugar.

Não estou dizendo que a escola ocidental tem que acabar. Estou dizendo que tem que entender quem chega, qual território que está chegando do teu lado. Se é com cabeça baixa que se escuta, ou se é cantando que a gente

aprende. Como que a gente aprende, é roda de conversa? Não só olhando em fileira e achando que essa é a única forma de aprender. A gente tira o ser criança muitas das vezes, e molda a criança de um jeito só, como excelente educação. Acho que nós, que estamos aqui hoje nesta mesa, somos um exemplo de resistência.

Será que vai ter um espaço para levar todo o mundo sem pisar no chão? Acho que nós estamos aqui para discutir território, o nosso modo de ser, o nosso próprio corpo. Isso requer o nosso chão para a gente pisar, para a gente continuar reproduzindo o nosso conhecimento. Esse é o nosso processo de ser pessoas quilombolas, indígenas, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst) e várias outras comunidades tradicionais que têm esse conhecimento próprio. Isso requer para a gente também ter chão, ter água, ter árvore, ter planta, ter roça do nosso meio.

“primeiro, eu coçumbo, pra depois eu cupopiar”

− Cintia Aparecida Delgado

cintia aparecida delgado Estou muito feliz de estar ao lado dessas duas potências, essas mulheres. Sou descendente do Quilombo do Caxambu. Um quilombo que foi extinto na década de 1970, e a família do meu avô foi a última a ser expulsa do quilombo. Ao ter a casa queimada, o vô e a vó tiveram que sair com sete

crianças pequenas, com a roupa do corpo, e recomeçar a vida. Hoje eu trabalho no Quilombo Cafundó, já faz vinte e tantos anos. Sou mãe de três filhos, duas meninas e um menino.

A nossa cultura é passada, através da oralidade, até os dias atuais. Tudo o que sei, tudo o que falo, e que hoje é o meu trabalho falar dessas comunidades, aprendi com alguém mais velho. Aprendi com um griô, através da coçumba. Coçumba, no nosso dialeto, é ouvir, mas é além de ouvir. Coçumbar é ouvir e entender. Primeiro, eu coçumbo, pra depois eu cupopiar. Cupópia é a fala, é a conversa. Eu ouço, entendo, e depois coloco isso em prática, depois falo. E esse é um dos saberes mais ricos dos povos tradicionais, dos povos quilombolas. Para você aprender dessa forma, você tem que estar ali sempre. Na nossa comunidade, quem passa o dialeto não é o pai que passa para o filho, não é a mãe que passa para a filha. O pai vai passar para um sobrinho, e essa tia [mãe desse sobrinho] vai passar para outro sobrinho. É uma forma pensada de manter a família sempre conectada.

Apesar de parecer sonhador, acredito num futuro ancestral. Acredito que a gente vai ter que voltar lá para trás e equilibrar isso novamente. Lá, a gente chama criança de camanaco no dialeto. E, da mesma forma que a irmã falou, não tem gênero. O pequeno é camanaco. Teve muita miséria, teve muita fome, e hoje eu vejo que, apesar de tanta dificuldade, a gente também tem muita riqueza. Muita riqueza que, infelizmente, a cidade vai ter que voltar para lá, vai ter que olhar para esses povos de novo com mais carinho, e aqueles que ridicularizaram e demonizaram a nossa cultura já estão enfrentando os resultados da falta dela, na falta do brincar. A gente aprende brincando. A nossa forma de transmitir é cantando, é brincando, é

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em roda, tendo esse toque, tendo esse contato, pegando na mão.

“ele não entendia a escrita dos brancos, mas entendia a fala dos pretos”

− Cintia Aparecida Delgado

cintia A gente que tem filhos na escola fala de educação o tempo inteiro e passa por esse choque cultural. E, para ser bem sincera, pelo menos a minha filha do meio, mando para a escola porque sou obrigada. É muito sofrido para uma criança de comunidade participar de um grupo onde ela não pode nada, onde tudo que ela aprendeu de valores é contestado o tempo todo.

A prova desse impacto negativo é que, no Quilombo Cafundó, teve uma escola. Enquanto a escola era ali na comunidade, estava todo mundo brincando. Deu a hora de ir pra escola, atravessava a mata e estava lá, e ia com a roupa que estava. A primeira vez que todo mundo foi pro [Ensino] Fundamental II, que era na cidade, não era mais assim. Eu não podia ir descalça, ninguém tinha a roupa igual à minha. Aí, começam as comparações, e o resultado disso foi que, da minha faixa etária, só três pessoas concluíram o Ensino Médio. Três pessoas. Porque ninguém quer ser ridicularizado.

A gente tem um trabalho de turismo dentro da comunidade e, às vezes, as pessoas falam isso: “não pode ter vergonha”. Mas não

é uma questão de vergonha. Como que eu vou exigir de uma criança de seis anos que ela fique palestrando na escola. Eles não querem, eles querem pertencer. Com o turismo, a gente está conseguindo, a passos bem curtos, retomar a autoestima dessas crianças e mostrar para elas que essa forma de viver é uma forma saudável, é uma forma valiosa, que foi arrancada delas. Se todo o mundo dá risada do meu avô, não vou querer parecer com ele, não vou querer parecer com alguém de quem eles riem. Um dos nossos ancestrais, seu Otávio Caetano, faleceu com o sonho de aprender a escrever. Era um sonho. Ele falava que ele não coçumbava a mukanda do cafombe. Coçumbar é o entender, a mukanda é a escrita e o cafombe são os homens da cidade, os homens brancos. Ele não coçumbava a mukanda dos cafombe, mas ele coçumbava a cupópia do vimbundo, ele entendia a língua dos pretos. Ele morreu com esse sonho. E ele era muito ridicularizado na nossa cidade.

Hoje, estar num espaço tão grandioso como este, repleto de fotos do seu Otávio Caetano lá em cima, mostrando que ele não era um bobo, um tolo. Ele era um estrategista, um sonhador. E, graças a ele, a gente pode estar aqui hoje. Graças às estratégias do seu Otávio Caetano. Ele era o responsável por transmitir a cupópia, que é o dialeto da comunidade. Então, ele fez com que a cupópia permanecesse viva até os dias atuais, graças ao saber dele. Graças à fala, graças à oralidade. Porque se esses povos tradicionais, povos quilombolas, estão vivos até hoje, diante de tudo o que sofreram, foi graças a esses saberes.

sandra Um exemplo, meu filho é engenheiro ambiental. Ele entrou para engenharia, depois de quase um ano ele me ligou e disse: “eu vou sair, vou desistir”. Perguntei por quê. Aí, ele falou para mim: “mãe, os meus colegas estuda-

ram na escola particular, e eu não. E, por isso, tenho dificuldade de fazer cálculo de física e química, que é muito pesado na minha aula”. Fiquei pensando, falei pra ele: “olha só, filho, quem é incompetente pra te receber é a universidade, não é você”. Infelizmente, a gente está enfrentando esse desastre também neste momento. Eu diria um desastre, porque é o maior poder que tem dizer que o seu entendimento, o seu conhecimento, é ruim. Então, respondi para o meu filho: “olha, o que é para nós química e física? Cálculo de física e química, a gente faz todo dia. No ritual, no canto. Para a gente fazer roça, a gente faz ritual pra pedir permissão pra aqueles espaços, pra aquelas plantas, então a gente a usa cotidianamente”.

Eu costumo dizer que existe muita ferida que a gente precisa cavar para a gente voltar e recontar a história brasileira, porque não foi contada ainda por nós mulheres, que estamos passando por isso. A gente está contando agora através dessa nossa conversa e eu acho que isso é uma coisa que tem que ser muito valiosa, que tem que ser levada como um valor mesmo: a nossa voz, as nossas falas.

“tive a honra de andar pelos mesmos caminhos de onde saiu o nosso ancestral”

− Regina Aparecida Pereira regina aparecida pereira Não nasci dentro de uma comunidade quilombola, estou lá há vinte

anos. Sou uma mulher ativista, sempre participei de movimentos sociais urbanos. Conheci um membro do Quilombo Cafundó, em 2003, a dona Cida, uma grande liderança feminina. A nossa comunidade foi formada por matriarcas. Tanto que a gente tem a Vó Efigênia, e a gente só está ali por conta dela. Foi ela que fez todos os enfrentamentos, desde quando o pai dela, Joaquim Congo, faleceu. Foi ela que manteve a língua, foi ela que manteve a cultura, foi ela que manteve as terras. Foi ela que mostrou onde eram as demarcações. Depois que os grileiros tomaram o território, antes de a Vó Efigênia morrer, ela chamou os filhos e os netos e mostrou onde eram as demarcações. E foi em cima das memórias da Vó Efigênia que a gente conseguiu recuperar tudo. Tudo que a gente tem hoje, a gente deve muito a ela.

Acabei abraçando a luta da comunidade e uma das maiores dificuldades que eles tinham era a questão de acessar o território. Eles tinham já uma luta de cinquenta anos. O seu Otávio Caetano foi o primeiro homem preto a entrar com um processo de usucapião. Era um processo que já estava havia cinquenta anos no poder judiciário e nada tinha se resolvido ainda. Abracei a luta com a comunidade e começamos a correr atrás, procurar os órgãos competentes para resolver a questão e, em 2005, o governo propôs que as comunidades teriam que montar uma coordenação para ficar mais fácil a luta pelas necessidades.

Os membros do Cafundó foram proibidos de participar dessa coordenação, porque eles eram analfabetos, o que cai nessa questão que a Cintia colocou. Quando a escola saiu de dentro da comunidade para a cidade, ninguém concluiu, e muitos não sabiam ler e escrever. Foi um absurdo. Como uma pessoa que tinha todo o conhecimento histórico que eles

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tinham, falava outras línguas e tal, era proibida de participar porque não tinha uma leitura. Aí, eles pediram para que eu pudesse assumir esse papel. Em 2012, esses territórios começaram a voltar para a comunidade. Então, foi um grande avanço aqui no estado de São Paulo, foi a primeira comunidade a ter os territórios devolvidos pelo Governo Federal.

E aí a gente se deparou com uma outra questão: quem estava lutando eram os mais velhos, e quem ia tocar aquelas terras, seriam os jovens, seriam as crianças que estavam se dispersando da comunidade por todas as dificuldades, por essa questão de chegar na escola e ser ridicularizado porque eram crianças que falavam uma língua estranha, que eram de quilombo, que eram descendentes de escravos.

A gente começou a perceber que tudo o que a gente passava, os valores que a gente passava para as nossas crianças, acabava sendo desconstruído quando elas chegavam na escola. A gente percebeu que o problema não era só as nossas crianças, a gente tinha que começar a educar o município. Era importante que os moradores do município tivessem esse olhar diferenciado, porque não adiantava nada a gente construir, a gente mostrar valores para as nossas crianças, e chegar na escola e a gente ter vários momentos de ter que ir até o Ministério Público, por desconstrução e, muitas vezes, por crianças que chegavam em casa e falavam: “eu não quero mais ir

pra escola”, por terem sofrido algum tipo de discriminação.

Agora em agosto [de 2023], a pedido do prefeito, nós do Quilombo Cafundó fizemos um trabalho de vivência com 310 professores da rede municipal, mostrando para eles o que era uma comunidade quilombola. Isso sem contar os preconceitos que a gente sofria em relação à religião. No trabalho que a gente faz, a gente não prega a religião, a gente conta a nossa história, e a nossa religião faz parte da nossa história também.

Desconstruir na cabeça das nossas crianças a questão de ser descendentes de escravos. Nós não somos descendentes de escravos, nós somos descendentes de reis e rainhas que vieram forçados para o Brasil e foram escravizados. Hoje, eu posso colocar com muito mais altivez, porque eu consegui falar isso para as crianças e provar isso para elas também. Falar da língua. A nossa comunidade foi reconhecida por conta da língua.

Através da cultura, através da dança que as crianças gostam de fazer, da capoeira que elas gostam de fazer, a gente introduz a língua. Aí, a gente cria os nossos cantos, os nossos pontos, a gente procura transformar isso tudo na língua que é falada na comunidade. Na época da pandemia, quando todo o mundo estava se recolhendo, a gente conseguiu pegar uma parte da juventude. Tínhamos já uma quantidade de plantação, e então eles assumiram o restante. A gente começou a fazer cestas básicas e levar, inclusive, para comunidades que tinham uma necessidade maior do que a nossa, algumas comunidades indígenas próximas da nossa região. E foi um trabalho que, para os jovens, fez uma diferença muito grande. Eles se sentiram importantes. Eles sentiram que a gente não estava ali só pedindo e só precisando, a

gente também podia fazer alguma coisa para ajudar, e isso era através da terra.

No ano passado, a gente teve a honra de ser visitado pelo Consulado angolano, que veio através da nossa língua. Eles vieram ver de perto a questão da nossa língua, porque ficaram sabendo que existia uma comunidade que mantinha o dialeto do quimbundo. A gente foi convidado a participar de um intercâmbio em Angola. E eu tive a honra de andar pelos mesmos caminhos de onde saiu o nosso ancestral. Eu tive a honra de ser homenageada e de receber a bênção do rei de Angola, que no dia 282 vai estar dentro da nossa comunidade para dar a bênção, porque é do mesmo reinado dele que saiu a língua quimbundo que a nossa comunidade mantém até hoje.

Então, hoje, as crianças veem isso com outros olhos. Eles estão assim: “nossa, o rei vai vir aqui”. E a gente tem a honra de dizer: “vocês fazem parte desse reinado, porque é dessa forma que o rei também está vendo”. Mais do que nunca, o educar as crianças da nossa forma, do nosso jeito, é muito importante não só para nós, mas para a sociedade também. Parte do que se ensina ou do que a sociedade lá fora aprende, sai de nós. Somos nós que estamos ensinando também.

2/ No dia 28 de outubro de 2023, Tchongolola Tchongonga Ekuikui 6º, rei de Bailundo, na região central de Angola, visitou o Quilombo Cafundó.

“através da dança, através da nossa esquiva”

cintia O que me incomoda muito é receber essas pessoas no nosso território e a pessoa ditar como é que eu tenho que apresentar isso. Foi o que aconteceu recentemente. Uma formação com 360 profissionais, e, um dia antes, eu fui orientada que, se tivesse algum lugar com algum santo ou alguma coisa que remetesse à religião de matriz africana, pra eu passar por isso de uma forma mais amorosa, sabe? Porque a gente vai desconstruir isso, mas a gente precisa desconstruir isso de uma forma amorosa. Eu não consegui responder sem um palavrão. Porque eles não dão nem o tempo de eu ficar feliz com esse trabalho e já puxam o meu tapete. Demonizaram, criticaram, mataram, e aí, beleza, agora eu tenho que falar disso na escola, então vamos lá. Como eu disse a vocês, minha família teve seu quilombo exterminado – tacaram fogo, mataram pessoas –, e eu que tenho que tomar cuidado pra contar essa história? Está muito errado. E tanto no Quilombo Caxambu quanto no Quilombo Cafundó, quando esses fazendeiros compraram essas pessoas, o mais velho com uma idade aparente de doze anos, essas crianças passaram pelo processo de catequização, e eu tenho que tomar cuidado com a forma como eu falo. A gente trabalha com turismo pedagógico. Recebe grupos e conversa, faz a parte histórica, algumas oficinas culturais. Uma dessas pessoas postou no Instagram uma foto da capela. Dentro da história do Quilombo Cafundó, essa capela era uma imposição da Igreja, e não foi destruída porque foram construídos vínculos afetivos ali dentro. Quando o fazendeiro falece, eles introduzem o dialeto e os tambores. Eles

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ressignificaram; então, a capela permanece ali. Tinha uma foto minha na frente da capela, era uma sexta-feira e eu estava de branco, com uma criançada na minha frente e eu conversando com eles. Uma mãe raivosa, xingando muito, tentou agredir a diretora da escola porque permitiu que os alunos visitassem um lugar de macumbaria, um lugar de feitiçaria. Eu conto para vocês um detalhe, o filho dela não foi. O que incomodou foi a minha presença. Foi o meu território. Ela se sentiu atacada, ela se sentiu ofendida pela nossa existência, pelo nosso território.

Quando eu era pequena, roupa de santo era estendida atrás da casa pra ninguém ver. Até as saias que a gente dança jongo. Minha mãe falava: “Cintia, passa o povo aí e eles ficam olhando, e aí eles não dão tempo de você explicar”. Explicar o quê? Entendo que ela fazia isso tentando me proteger. Ela pede muito que eu faça isso com os meus filhos. Agora é diferente. Eu tive que construir isso em mim, tentar melhorar isso na minha mãe, curar essas feridas dela. O que a gente não pode deixar acontecer é esse silenciamento, esse massacre acontecer com os nossos filhos. É tão absurdo que, quando a gente foi abrir o boletim de ocorrência, ninguém na delegacia sabia em qual artigo se encaixava. Porque ninguém tem coragem de falar. Sempre foi uma brincadeira: “ah, mas não falou sério”; “ah, não, eu estava brincando”. Acho que dentro da escola ainda é muito perigoso.

Se você fica na comunidade, você é cobrado: “ah, mas você tem que tentar alguma coisa, tem que sair, tem que estudar”. Se você sai, você também é cobrado. Se você briga, você é cobrado, porque tem que resolver de forma amorosa. Se você não briga, você é cobrado. Por que você está construindo e o quê? O que você está desconstruindo, o que você está somando? Chega uma hora que você fala “ah, eu só queria estar aí”, sabe?

regina A gente tomou a atitude e falou: “vamos fazer o boletim de ocorrência sim”. Chegou lá na delegacia e a gente falava que era um boletim de ocorrência sobre discriminação racial, e eles queriam colocar outra coisa. A gente ficou lá até eles acharem o artigo onde se enquadrava. Conseguimos mais ainda; a gente conseguiu que a cidade se levantasse em favor. Que todo o mundo fosse lá. Pessoas que a gente nem esperava, até o prefeito, até o delegado, acabaram se posicionando pela primeira vez em favor da comunidade em relação ao que aconteceu.

A gente ser visto como macumbeiros por conta das ervas que a gente usa ainda dentro da comunidade, que a gente preserva pra fazer um chá, pra fazer um tempero, pra fazer o próprio alimento. Hoje criaram as farmácias vivas. E o que são? São as ervas que as nossas ancestrais sempre cultivaram. Então, está tendo uma controvérsia aí. Porque eles tentam nos demonizar, mas acabam usando o que é nosso, só trocando o nome. A gente também tem que ficar muito esperto para não deixar que se apropriem do que é nosso e trocarem o nome. Por isso, dentro da nossa comunidade, a gente ensina hoje aos nossos jovens a serem protagonistas das suas histórias. E dos seus saberes também.

sandra Sou professora, sou indígena guarani também. Entendo essas preocupações. O Conselho Tutelar entra muito nas aldeias hoje pra dizer o que você tem que fazer e o que você não pode fazer, isso tem que ter um cuidado também. Isso é muito importante para nós, inclusive para pesquisarmos como indígenas. Existe essa confusão muito grande exatamente pelo processo da colonização. Porque, aí, o outro diz pra você: “Isso aqui não pode, isso aqui pode”. Eu acho engraçado que hoje todo o mundo fala que até certas idades não pode fazer coisas. Fiz recentemente um debate sobre isso, sobre o Mato Grosso do Sul especificamente, e tem uma antropóloga não indígena, Juruá, estudando sobre isso. Sou também antropóloga, pesquiso também sobre influência, e aí quem chamaram para fazer consultoria para discutir com juízes, inclusive, pessoas de fora, pessoas brancas, mas não me chamaram, não chamaram outro pesquisador indígena. Tem muita pesquisadora fazendo pesquisa. Mas não chamam os quilombolas pra discutir o que é essa infância quilombola. Eu sei, de modo geral, o que é a infância guarani, porque eu escutei muito os mais velhos. Escutei, e também vivenciei isso. Nós, indígenas pesquisadores, pode ser quilombola também, que fazemos essa ponte. A gente tem que pesquisar aqui, e a gente tem que pesquisar aqui também. Eu acho que isso é uma forma de a gente, hoje, fortalecer o nosso meio. De fazer

esse debate que é mais específico. Muitas das vezes para a gente entender essa questão de o que é essa infância guarani. Infância guarani de uma comunidade guarani do Espírito Santo, eu escuto a comunidade falando. Eu escuto de lá de Santa Catarina, que também tem uma outra realidade.

A criança não tem mais direito de pescar, de fazer roça, porque está cheio de eucalipto. É diferente também das crianças de Angra dos Reis, elas ainda têm rio na aldeia, vão pescar, vão aprender, vão fazer roça, vão fazer casa com a comunidade. Então, depende também do contexto de cada lugar. Eu acho que isso cabe à própria comunidade trazer a partir das suas necessidades, do seu contexto local. A luta, o que nós ensinamos hoje, não é a universidade que vai dar para a gente. A gente precisa levar da nossa comunidade. A gente precisa entender o que a gente de fato quer.

Para concluir a minha fala, eu quero muito agradecer mesmo. Fiquei muito feliz e emocionada também. Acho que quando a gente trata de educação, saúde, conhecimento, a continuação da nossa existência como quilombola, como indígena, como outras comunidades que lutam pelo mundo, na verdade, é lutar pelo seu território. Lutar pelo seu chão. A nossa educação está no fazer do dia a dia. Isso não é só o desafio na escola ou de outras pessoas, é nosso desafio como todos ou todas. É um desafio mesmo, porque, na vida, a gente tem que escutar o outro. Eu sempre falo que a dança de esquiva, dançar no iraijá, nós ensinamos isso. Porque é um caminho que a gente constrói através da dança, através da nossa esquiva. Porque a esquiva também faz parte do nosso fortalecimento.

É isso que a gente precisa compreender do outro, o que é o outro, o que [o outro] traz. Acho que isso também requer um tempo

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maior, porque a escola tem um padrão: “Ah, em certo tempo você vai terminar tal coisa”. Acho que isso não leva ao conhecimento do outro. Fortalecer o conhecimento do outro não é só na escola. É um direito da humanidade que a gente precisa estar juntos pra poder de fato abraçar a nossa causa, as nossas diversas causas, que isso faz parte da nossa vida. Acho que isso é importante para a gente sempre continuar respeitando essa especificidade de cada um, que é um desafio muito grande. Mas nós somos artistas, nós somos sabedores, criadores das coisas, das artes. Eu me lembro que, recentemente, a gente falou do que é a floresta para cada um. Cada um de nós tem a sua floresta dentro de si. Às vezes, falta chão para a gente criar algo que é importante para cada um.

regina Mais uma vez, eu agradeço estar aqui. Agradeço também esse apoio de vocês para a gente se expressar e contar um pouco da nossa história.

cintia Eu, mais uma vez, muito agradecida pela oportunidade. Me reconheci muito em várias falas, estou muito feliz e fortalecida. É importante pra gente honrar quem veio antes. E é importante nos fortalecer e fortalecer a galera que está vindo aí. Grata pela escuta.

cintia aparecida delgado é representante cultural do Quilombo Cafundó, guia de turismo social e produtora cultural. Descendente do extinto Quilombo do Caxambu, iniciou o trabalho de resgate e manutenção da cultura quilombola em 2002, desenvolvendo atividades de preservação da cultura local. Atua como membro do conselho de turismo da cidade de Salto de Pirapora (SP) e desenvolve trabalhos de energização e autocuidado com a magia das ervas desde 2020.

regina aparecida pereira é filha de Teodoro Martins Pereira, quilombola mulungo da Bahia. Em 2003, conheceu seu companheiro, o griô Marcos Norberto de Almeida, bisneto de Joaquim Congo, descendente direto da Comunidade que deu origem ao Quilombo Cafundó e presidente da Associação Remanescente de Quilombo Kimbundu do Cafundó, passando a atuar ativamente na comunidade e do processo de regularização de suas terras. Ali fundou o grupo Mulheres Quilombolas do Cafundó, Grupo de Jovens, Grupo da Agricultura e o Grupo Turi Vimba. É membro do conselho de turismo e Secretária no Quilombo Cafundó, compositora, jongueira e artesã.

sandra benites (ara rete, em guarani) é pesquisadora, curadora e ativista de origem Guarani Nhandewa. Atual diretora de artes visuais da Fundação Nacional de Artes (Funarte), também é membro do conselho curatorial da 35ª Bienal – coreografias do impossível.

gesto: relatos de mediação

ERÊS – UMA COREOGRAFIA QUE COMEÇA NA IMAGINAÇÃO

pietra de ofa cunha serra

Por onde começa nosso caminhar? Por onde anda nossa imaginação? Por onde anda nossa criança?

Nas minhas visitas temáticas, trouxe os ritmos de São Luís do Maranhão, como bumba meu boi, reggae, doutrinas de encantaria1 e tambor de crioula.

Criei, dentro do Pavilhão da 35a Bienal, um caminho feito por erês. Essa palavra, de origem iorubá, significa brincar, ação que remete quase imediatamente às crianças.

Para que seus familiares e seus erês pudessem, a partir desse movimento, serem corpos em movimento, que a partir das músicas regionais estivessem ligados por um fio de ancestralidade a São Luís do Maranhão, mas também com algumas obras da exposição.

A infância é sagrada, é nela que mora a imaginação, é nela que começam as primeiras formas de arte, seja através de um castelo de areia, de um pedaço de papel e giz de cera, ou de uma dança pela 35ª Bienal, coreografando o impossível.

A infância e a educação andam juntas, e a imaginação está impregnada em cada passinho. O imaginário da criança nos torna leves, é ele que faz as crianças imaginarem bananas com cabelo nos desenhos da obra da Tadáskía.

É ouvindo o som do reggae no trabalho de Carlos Bunga que a criança se lembra de que a capoeira é ritmo ancestral e, nessa pedagoginga, ela começa a se conectar com a sua imaginação. Seus pezinhos descalços em um chão rosa agora são somente um.

Que possamos, a partir das nossas crianças, aprender que a imaginação é um caminho bonito, com cheiro de terra molhada, que é nela que mora uma sabedoria antiga, que está ligada por todos nossos antepassados.

Por onde anda o nosso caminhar? Por onde anda nossa imaginação? Por onde anda nossa criança?

Registros da visita com obra de Rosana Paulino ao fundo (abaixo).

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“A FILHA QUE VIRA UMA ANCESTRAL DA MÃE” − A BELEZA DE UM CORO

regiane ishii

Em dezembro de 2022, fui com a equipe de educação ao lançamento de Vidas rebeldes, belos experimentos, 1 que teve a presença da autora Saidiya Hartman em conversa com a curadora Diane Lima. As trocas foram em torno da transformação dos termos do possível, dos gestos que revelam o que está em jogo, das histórias contadas a partir do interior do círculo. “A beleza do coro” é o penúltimo capítulo desse livro. Lembro da avidez pelo mundo que essa leitura intensificou, uma conexão com a demanda visceral por ler outras mulheres que senti durante o puerpério. Em 2019, em uma tarde de leitura enquanto amamentava, a cabeça do meu filho apoiada em meu braço esquerdo, senti meu coração acelerando na busca por bater no mesmo ritmo que o dele.2 A vulnerabilidade emocional também vem com um ardor intelectual. Uma intensidade que pode acontecer com a leitura, a preparação de uma visita mediada, a escrita.

Começamos a visita na Cozinha

Ocupação 9 de Julho − MSTC. Perguntei como tinha surgido o interesse das participantes pela proposta da visita: uma mãe destacou a importância da avó no cuidado de seus filhos, uma filha compartilhou a experiência de luto e cuidado de sua mãe, outra relatou a influência da não linearidade do mover das águas em sua vida. Ali, lemos o sonho de Anderson Feliciano, em que ele era o avô de seu avô.3 Em roda, entre as faixas “o doméstico é político” e “quem ocupa cuida”, vimos uma fotografia de Carmen Silva, líder do MSTC, e Preta Ferreira, uma de suas oito filhas. No meio do círculo, a criança Jojô mexe no cesto de alimentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Os trinta minutos de A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta, foram assistidos nzessa coletividade. Foi a primeira vez que assisti a essa obra, na íntegra, como parte de um

coro. Aline diz: “Estou grávida da minha mãe”, “Uma última respiração sua atravessou o cordão umbilical e saiu dos meus olhos em forma de lágrimas”, “Se eu soubesse teria soprado um par de pulmões no lugar do seu útero”. Quando me levantei e me dirigi à saída da instalação, vi Martina sentada no chão, amamentando Manu. Dali, elas não seguiram mais o trajeto da visita.

Logo em frente, nossa roda foi cercada pelas Mulheres-mangue (2023), de Rosana Paulino. Ali, retomamos a força da fala da artista e de Sueli Carneiro.4 Jojô escala Bel, sente fome e elas retornam para almoçar na Cozinha. A última obra do trajeto proposto é Museum of Dance (Mother Loves to Dance) [Museu da dança (Mãe ama dançar)] (2021), de Dayanita Singh, dedicada aos retratos de Mona Ahmed. Destaco um livro5 que está sobre a escrivaninha que compõe a instalação. Nele, Ahmed diz: “Eu sou o terceiro sexo, não um homem tentando ser mulher”. A mãe é Mona Ahmed, e a filha, Ayesha. Elas são algumas das filhas, avós e mães que compõem as políticas do movimento da mostra. Entreguei às participantes uma lista de obras com outras (Ahlam Shibli, Archivo de la Memoria Trans, Frente 3 de Fevereiro, Inaicyra Falcão, Quilombo Cafundó, Sarah Maldoror, Sauna Lésbica…) e, certa-

mente, há outras. Nós estamos em todos os lugares.

A experiência de uma visita mediada é lacunar e imprevisível. Pode haver fome, peito, leite, lágrimas de emoção, choro de irritação. A textura de um tijolo. A possibilidade de uma menina escalar um parlamento! Ali, depois da visita, na obra de Ibrahim Mahama, Bel e Martina se reencontram. Elas trocam experiências de parto. Lembro do trecho de nossas “Correspondências”, do primeiro movimento: “Gestar e parir como uma coreografia, uma experiência de entrega dentro de um contorno”.6 Foi uma honra ter me entregado ao contorno da 35ª Bienal.

Registros da visita na Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC (acima) e na instalação de Aline Motta (abaixo).

em
tecer pertencimento
com
trabalhar
rede,
conversa
carmen silva

Ocupação 9 de Julho – MSTC.

Foto: Edouard Fraipoint

Olá, eu sou Carmen Silva,1 líder do Movimento Sem Teto do Centro – mstc. Eu sou uma mulher preta. Tenho a minha origem no Recôncavo Baiano. Sou filha de militar e de uma empregada doméstica. Eu vim para São Paulo na década de 1990 por um motivo que acho que todas as mulheres da minha idade têm vontade de fazer e, às vezes, não têm coragem: fugir para não morrer na mão do feminicida. Como filha de militar, fui criada dentro de um sistema patriarcal e machista. Então, na minha adolescência, achava que ter a liberdade era sair daquele convívio opressor. Eu ansiava pela liberdade de sair, de curtir. Achei que me casando resolveria o meu problema. Não façam isso, quem for ler isso, pelo amor de Deus, não façam. E então, na minha época — isso também não é uma época tão remota, isso acho que, até hoje, nas famílias nordestinas acontece —, a mulher, ela não poderia ser separada. Por mais que apanhasse, tinha que apanhar e ficar tranquila, porque mulher separada não condiz com as famílias nordestinas. E, aí, eu tomei a coragem, vim para São Paulo por um apelo, o apelo da sedução de vir para uma grande metrópole, onde a gente pensa que vai resolver todos os nossos problemas, que é moradia, trabalho e tudo isso que não passa por políticas públicas.

1/ Relato concedido por Carmen Silva à equipe de educação da Bienal, em 25 de novembro de 2023, na Cozinha Ocupação 9 de Julho − mstc, na 35ª Bienal.

Chegando aqui em São Paulo, me senti uma refugiada no meu próprio país. Xenofobia pelo meu sotaque, talvez pela minha cor. Vi que São Paulo era uma cidade hostil. Vim para casa de amigos, vi que estava incomodando, fui parar nas ruas; das ruas, fui para o albergue. Chegando no albergue, fui para o movimento de moradia. Chegando no movimento de moradia, passo a quebrar paradigmas. E o primeiro paradigma quebrado foi comigo mesma. Percebi que, estando aqui, estando em qualquer outro local, eu teria o mesmo sentimento de refúgio como eu tive aqui em São Paulo. Primeiro, que tudo passa pela falta efetiva de políticas públicas no âmbito de habitação.

O que é direito fundamental muitas vezes passa distante e não é tão percebido pelas pessoas de baixa renda. No movimento de moradia, notei também que quem estava do meu lado tinha os mesmos problemas que eu, até maiores que os meus. E a minha quebra de paradigma é que eu começo a entender que tinha que trabalhar em rede, dentro de um conceito de coletividade. Passo a entender que pertencer a um território é muito importante. O pertencimento é aquele em que você, de fato, tem um convívio com o lugar. Mas o convívio não é só o convívio de ir e vir, é o convívio de participação, também, na vida, em um entendimento social, espacial e econômico.

Passo a ter esse entendimento, participando de conferências e de audiências públicas. Passo a entender a percepção urbanística, também, da cidade. E, participando disso tudo, eu começo também a contestar. Como mulher, contesto e mobilizo. Passo a contestar uma cidade vazia, um vazio urbano. Eu estava na região central, tinha essa percepção desses vazios, e as pessoas morando distantes, porque ainda naquela época era recente um programa

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habitacional da Luiza Erundina,2 baseado em mutirões.

As pessoas gastavam mais tempo dentro de um transporte público do que propriamente dentro de sua casa. E, além disso, passo também a compreender o racismo ambiental. Pelo endereço, você tem as oportunidades de trabalho, de estudo, de muitas coisas — acessibilidade de fato. Nessa minha contestação, começo a questionar que não quero morar tão longe e que não acho justo o trabalhador morar longe de seu local de trabalho. Na época, eu até brincava: “Olha, Chitãozinho e Xororó têm dinheiro para comprar um helicóptero e levar a filha para estudar, eu não tenho. Então quero morar perto da escola”.

Começamos a ocupar a região central de São Paulo. Ocupar prédios ociosos, sem função social da propriedade e com duas motivações bem sérias. Primeiro, a necessidade das famílias. Segundo, para colocar na pauta a questão da moradia como um seio onde a família possa se estruturar para ter dedicação, trabalhar, estudar, ter dignidade, educar os filhos e, principalmente, se educarem. Porque as oportunidades começam quando você tem, de fato, o refúgio da sua moradia, e não em locais tão distantes. Tenho que morar onde eu tenha escola,

2/ Luiza Erundina é uma política brasileira. Entre outros cargos, foi prefeita de São Paulo entre os anos de 1989 a 1992, e, em 2022, foi eleita deputada federal pelo psol

transporte, parque, cinema, teatro, assistência em saúde. Esses são os anfitriões da moradia. Sem esses eixos, não adianta só morar. Aí, eu passo também a discutir a questão urbana, a geopolítica urbanística de São Paulo.

No ano de 1995, começamos a fazer as primeiras ocupações na região central da cidade de São Paulo. Nessas ocupações, a gente compreendeu, sim, que era possível o trabalhador de menor renda morar na região central. E então, as oportunidades vêm, que é a questão do emprego, é a questão de você ter oportunidade de colocar um filho na escola, ter creche, ter acesso à saúde, que são bens. Que isso é primordial para a dignidade de qualquer ser vivo. E aí damos continuidade.

Em 1997, eu ocupo, junto com outras pessoas, o prédio que hoje é a Ocupação 9 de Julho. Em 2 de novembro de 1997, a gente ocupa um prédio. E é importante ressaltar que nós nunca ocupamos nenhum imóvel que tivesse função social. Todos os imóveis que ocupamos, ocupamos para fazer a denúncia da falta efetiva de moradia, e também por uma questão de dizer que um prédio vazio, abandonado, além de ser uma questão de segurança, é uma questão também de saúde pública. Porque, dentro desses imóveis vazios, tem muito lixo, muitos seres microscópicos que nós nunca imaginaríamos que estavam ali. Então, tem retorno da meningite, da tuberculose. Nós não podemos descartar que a questão dos anos 1980, com o surto de HIV, fez com que o bacilo de Koch fosse se multiplicando. Então, questões de saúde que estavam erradicadas voltam por isso, né? Fora a questão da segurança, um local vazio, ermo, não tem segurança para quem mora, para quem está do lado e tampouco para quem é transeunte naquele local. E nós ocupamos para colocar a pauta da moradia.

A moradia é um direito fundamental, mas ela não pode deixar de ter outros direitos sociais. E quando a gente ocupa, a gente traz pessoas que vivem pagando aluguéis caríssimos.

Para vocês terem uma ideia, a região central de São Paulo é cheia de cortiços. O cômodo de um cortiço tem três metros quadrados. As pessoas hoje falam das novas construções feitas no Centro, de dezenove metros quadrados, vinte metros quadrados, mas tem famílias aglomeradas morando em três metros quadrados. Esses três metros quadrados estão no metro quadrado mais caro que a cidade de São Paulo tem. Um morador de um cortiço paga novecentos reais, 1.200 reais, e muitas vezes ele recebe um salário-mínimo. E isso deveria ser o mote para chamar a atenção para a questão real da moradia. Em bairros inteiros, como Santa Cecília, Bixiga, Baixada do Glicério, Campos Elíseos,3 encontramos essa exploração nos cortiços, que são explorações muito altas. Então, a gente vai, com o tempo, também, colocando na pauta não só a extensão da moradia, mas também a qualidade de vida das pessoas. E, aí, a gente vê que é necessário, em um contexto de movimento, não só lutar pela moradia, mas também por todos os outros direitos, e assegurar, garantir direitos, e um deles é o da alimentação.

A alimentação é imprescindível. As nossas crianças [da Ocupação 9 de Julho], elas não precisam ir para a escola para se alimentar, elas se alimentam com as três refeições diárias. É primordial. As nossas crianças, se vocês chamarem para se aglomerarem, elas jamais fazem fila. Se você notar, com as crianças que estão em situação de rua, quando alguém chama a primeira, é uma fila. As nossas, não. As nossas ficam dispersas, alegres, bagunçando demais... Isso é uma percepção, inclusive, que foi motivo de estudo. Nem eu tinha percebido isso, foi motivo de estudo do Hospital das Clínicas, uma ala do hospital, que trata de questões de saúde mental, fez um estudo com várias crianças de ocupações. E eles tiveram essa percepção, de que as crianças que estão em situação de rua, quando você chama, montam uma fila. As nossas, não. Elas estão em um ambiente tão saudável que qualquer roda de conversa, para elas, é normal. Mesmo que vocês chamem para dar um brinquedo, jamais vão fazer fila. E conforme essa percepção, também, a gente vai amadurecendo como liderança.

3/ Bairros localizados na região central do município de São Paulo (sp).

No ano de 2000, com outras mulheres, criamos o Movimento Sem Teto do Centro –mstc. Nós fundamos o mstc com a premissa de que nós participássemos junto de uma rede, inclusive descentralizando o poder público, participando de todos os conselhos que o poder público tem, porque a participação popular dentro de um conselho, dentro do poder público, é importantíssima. As decisões, mesmo que a gente não possa deliberar, por seu caráter consultivo, se pode opinar. É muito importante, inclusive, que isso não fique só nos movimentos sociais, que isso também se estenda para toda a sociedade civil.

É muito importante que participem do Conselho de Habitação, Conselho de Idoso,

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Conselho de Transporte, Conselho Tutelar, e outros espaços institucionais. Agora mesmo, nós estamos na revisão do uso e do parcelamento de solo, que é como nós vamos dirimir a cidade. O que vai ser feito do solo da cidade? É muito importante que as pessoas participem. E isso a gente vai aprendendo com o tempo, dentro dessa participação, né? Porque, como liderança, o meu papel é fazer o papel do advocacy. 4 Tenho que negociar, tenho que fazer o diálogo com toda a sociedade civil, com o poder público e privado, porque senão eu não tenho devolutiva das pessoas. E a nossa maior ansiedade é conseguir se adequar aos programas habitacionais. São programas que nós temos que estar aptos a entrar, programas regulatórios, inclusive, que temos que estar aptos a entrar em editais, a preparar essas famílias, porque quando elas chegam até nós, chegam com uma incompreensão até da falta de documento. E nós temos uma desinformação, e os movimentos procuram trabalhar com essa informação. Não é só colocar a pessoa para morar, é também uma educação cidadã.

carmen silva é urbanista social. Fundadora e liderança do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC) e da Cozinha Ocupação 9 de Julho, atua também como chefe da assessoria de Participação Social e Diversidade no Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Governo Federal.

4/ O termo em inglês advocacy refere-se ao ato de apoiar, promover ou defender uma causa ou questão, normalmente com o objetivo de provocar uma mudança positiva. Quem realiza a advocacy trabalha para influenciar a opinião pública, as políticas e as decisões em favor da causa que escolheram. No caso de Carmen Silva, a advocacy que ela realiza se refere à luta por moradia.

Registro da conversa.

Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

a gente começou a perceber que tudo que a gente passava, os valores que a gente passava para as nossas crianças, acabava sendo desconstruído quando eles chegavam na escola.
Frase de Regina Aparecida Pereira registrada em conversa com a equipe de educação.
aí a gente percebeu que o problema não era só as nossas crianças, a gente tinha que começar a educar o município.

gesto: bienal nas escolas

SOBRE O SILÊNCIO ENTRE IMAGINAR O POSSÍVEL E NOMEAR O IMPOSSÍVEL renato

lopes

Este relato é sobre uma experiência de deslocamento. De fato, são quase 35 quilômetros que separam o Pavilhão Ciccillo Matarazzo da EE Dr. Antônio Pereira Lima. Mas, se é certo que a distância produz diferenças, o que se produz a partir da diferença? Relembrando o encontro que tive com uma turma de nono ano nessa escola, a ideia de deslocamento recebeu um sentido mais profundo, que não se reduz a uma experiência no espaço físico e convoca educadoras/educadores e instituições a elaborarem coreografias complexas que envolvem tempo, espaço e afetos coletivos e singulares.

Como imaginar o possível? Como nomear o impossível?

Essas perguntas foram levadas a um grupo de alunos do nono ano da EE Dr. Antônio Pereira Lima, em Parelheiros, no extremo sul da cidade de São Paulo. Na verdade, além dessas, foram apresentadas também outras quatro perguntas trazidas pelo coletivo curatorial da 35ª Bienal, no início das conversas sobre a publicação educativa.1 Mas, ao trabalhar especificamente com essas questões, havia dois objetivos: incentivar a turma a imaginar uma realidade para além daquela em que nos encontramos naquele momento e nomear os obstáculos ou as impossibilidades para criar outras realidades.

o plano

Por algum tempo me perguntei se, do ponto de vista desses objetivos, essa atividade poderia ser definida como um fracasso ou não. Eu já sabia que, nesses casos, a régua para medir sucesso ou fracasso passa longe da precisão, mas somente depois entendi que são muitas as maneiras de nomear o impossível e/ ou imaginar o possível. E elas são tantas e tão variadas que os silêncios que aquela turma partilhou − com o que pudemos conversar naquela tarde − foram uma aula que nunca

tive sobre o atravessamento dos afetos não só nos processos criativos, mas em nossa expressão como pessoas no mundo.

A ação foi idealizada em colaboração com o assessor André Leitão, que não pôde estar presente na escola em virtude das demandas da exposição. Por essa razão, contei com o apoio de Giovanna Endrigo, assistente de educação da Fundação Bienal, uma companhia divertida e cuidadosa. Além de Giovanna e eu, o grupo que visitou a escola era formado por Marli Virtz e Luma Nunes, ambas da Diretoria de Ensino –Região Sul 3. Fica aqui nosso agradecimento a elas pela escuta generosa em todos os momentos.

Estruturado em três etapas, o encontro tinha um primeiro momento, que consistia em uma leitura coletiva das seis perguntas disparadoras da publicação, seguida de uma roda de apresentação, na qual cada pessoa dizia seu nome e escolhia uma das perguntas para comentar. Concluída essa rodada, era então o momento de uma apresentação concisa sobre as Bienais de São Paulo, para então tratar de coreografias do impossível, o coletivo curatorial e alguns artistas. A última etapa era trazer de volta as perguntas “como imaginar o possível?” e “como nomear o impossível?”, e, a partir delas, discutir nossa presença naquele espaço-tempo e especular outras formas de existir, outros lugares para estar, levando em conta os impedimentos e as impossibilidades. Com base nisso, poderíamos registrar nossas ideias, criar frases, desenhos e acolher todo tipo de manifestação criativa do grupo.

o encontro

Quem chega à EE Antônio Pereira Lima − e se depara com o verde, as chácaras e, principalmente, o silêncio que domina a paisagem da estrada do Jusa − pode facilmente cair na tentação de se questionar se ainda está [dentro dos limites da] na maior cidade do país. Nossa chegada, com um pequeno atraso, não impediu uma recepção calorosa por parte da

direção. Na sala de aula, a turma2 já estava à espera e, mesmo sem saber muito sobre o que seria a conversa, ofereceu um simpático acolhimento.

Durante as duas primeiras etapas, a ação transcorreu sem nenhum sobressalto. Não foi difícil estabelecermos uma conexão e, enquanto falava de conceitos e mostrava imagens das obras projetadas, conseguia observar e interagir com as reações da turma. Repeti e expliquei o sentido de certas palavras quando reconheci testas franzidas. Demonstrei compreender alguns trocadilhos e olhei com ar de desaprovação em uma ou outra brincadeira de tom mais ofensivo entre colegas de turma.

Mas algo mudou quando chegamos à última parte, quando disse que então era a turma que iria falar. Veio o silêncio, o primeiro da tarde. Depois, quando perguntei se estavam em silêncio por conta de dúvidas em relação às duas perguntas (“como imaginar o possível?” e “como nomear o impossível?”), um pequeno caos se instalou na sala de aula. As questões que tínhamos lido havia alguns instantes se tornaram incompreensíveis. Foi só depois de algum tempo e com a ajuda de Luma que resumimos os atos “imaginar o possível” ou “nomear o impossível” com relações que podemos ter com os nossos sonhos. Imaginar o possível seria como pensar nas etapas para realizar nossos sonhos, enquanto nomear o impossível seria reconhecer os impedimentos para que isso pudesse acontecer.

Mais um silêncio.

Foi quando um professor disse algo como:

— Eu sei por que isso acontece. Eu cresci aqui, já fui como eles. Acontece que a gente fica isolado. Tudo é tão longe, que a gente fica assim. Não consegue imaginar uma coisa além disso.

Outro silêncio.

Eu ouvi o professor e fiquei tocado. Por um instante, sua fala rompeu o silêncio circundante, o silêncio da estrada do Jusa, que pode facilmente caracterizar aquele lugar

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como lugar distante. Isso me fez lembrar de minha trajetória em uma escola semelhante àquela, em uma periferia semirrural que sempre me fez sentir distante do lugar onde as coisas reais acontecem na cidade...

a discordância

Enquanto tudo isso acontecia, e ninguém olhava, um aluno de boné vermelho balançava a cabeça de um lado para o outro. Era evidente o incômodo dele ao ouvir a opinião do professor e seu susto quando percebeu que eu o tinha visto. Primeiro, confesso que fiquei incomodado com a recusa dele, que atrapalhou a minha experiência estranhamente reconfortante de identificação com o professor. Depois, quando percebi o susto do rapaz, tomei consciência do quanto meu olhar tinha um potencial coercitivo. Foi então que, ainda olhando para ele, perguntei à turma se todos ali concordavam com o que o professor havia dito sobre a distância atrapalhar nossa capacidade de sonhar. A minha surpresa foi que não foi só o aluno de boné vermelho que manifestou discordar dessa tese, mas várias outras pessoas ao redor.

Só restava perguntar o que, de fato, os impedia de sonhar ou de falar de seus sonhos. A resposta de uma aluna veio numa voz baixa: vergonha. E boa parte da turma pareceu concordar com isso. Professores presentes protestaram, dizendo que conheciam o comportamento daquelas figuras o suficiente para contestar a presença desse sentimento na turma. Será que o significante vergonha tinha o mesmo sentido para todas as pessoas naquela sala? Ainda me questiono sobre isso. Entendi que a vergonha não impedia as pessoas da turma de sonhar, apenas de partilhar desejos e aspirações na coletividade. É interessante como, a partir disso, a Bienal e as coreografias do impossível ficaram de lado. Na última parte do nosso encontro, decidimos fazer algo que estava entre uma pesquisa e uma votação para definir o que sustentava o silêncio a respeito dos sonhos de jovens de uma turma de nono ano da EE Dr. Antônio Pereira Lima.

deslocamentos

A lousa se tornou uma espécie de placar. Além da Vergonha e da Distância, o Medo e o Dinheiro eram candidatos a silenciadores da turma, mas não demorou muito para que dinheiro fosse desclassificado. Marli argumentou que ele seria um rival forte demais para essa competição. Para ela, o Dinheiro sempre seria considerado o maior problema para as pessoas empobrecidas em uma sociedade capitalista. Aparentemente, toda a turma concordou e, então, a votação continuou tendo o Dinheiro como hors concours. Quem mais poderia ser, ao lado do Dinheiro, o silenciador de sonhos?

A vitória da Vergonha foi fácil, a maioria dos presentes a escolheu como aquela que impediu a turma de falar sobre seus sonhos naquele dia. Houve protestos por parte de alguns professores. “Mas vergonha de quê? Será que é assim que boa parte dessa gente se comporta no rolê?” Independentemente do resultado daquela pesquisa/eleição, foi evidente a mudança no clima da turma. Um mal-estar recebeu um nome, e todos pareciam aliviados, e então houve espaço para brincadeiras e a surpresa com a rápida passagem do tempo. Concluída essa edição do projeto Bienal nas Escolas,3 tenho a impressão de que o principal desafio é o de realizar deslocamentos radicais. Um tipo de deslocamento que consegue também indagar o interesse na dis-

tância e naquela/e que está distante. Quando se vai a outro território, a intenção é criar laços ou, apenas, romper fronteiras? Um projeto busca ser múltiplo, variado ou apenas maior, mais conhecido? Como realizar deslocamentos na dimensão espacial e, ao mesmo tempo, acolher e criar vínculos que deslocam também os afetos e o discurso sobre nossa realidade comum? Esse relato existe agora como a consciência desse desafio e, sobretudo, como um agradecimento ao aprendizado com que a comunidade da EE Dr. Antônio Pereira Lima nos presenteou.

Registro da votação para definir o que estava por trás do silêncio sobre os sonhos dos jovens da turma.

gesto: relatos de estágio

O FOGO OU A ÁGUA PODEM

DESTRUIR TUDO O QUE VOCÊ TEM giovana lira

Liguei pra uma conhecida e perguntei: “Você não vai pra escola hoje?”. Ela disse que naquele dia iria ficar em casa porque precisava ter certeza se a água ia consumir tudo o que ela tinha dentro do barraco. O pior de tudo foi ela ter tido a certeza de que sim, a água contaminada ia consumir até a última peça de roupa dela.

“Quais histórias vocês têm ouvido ultimamente?” Faço a pergunta e aviso que a sala em que vamos entrar é uma sala que conta histórias. Nisso, escuto de alguém: “Que pergunta difícil…”. Eu sei. De qualquer modo, todos entram e fazem o que eu já imaginava, fazem fotos. Fazem muitas fotos. Observam as obras com os olhos arregalados e com uma expressão facial de dúvida. Eles ficam encantados, porque a escola faz poucos passeios. A verba escassa não permite.

Cinco minutos se passam e eu peço pra que uma roda seja feita. Todos se sentam e eu pergunto o que eles observaram na sala. “Pô, é uma parede cheia de fotografia. Tem várias pessoas em cada quadradinho.” “É? E como são essas pessoas nos quadrados?” “São, em grande parte, pretas.” Plim. “Tem pessoas velhas e tem pessoas novas.” Plim. Preciso me conter porque a linha de raciocínio sendo seguida me deixa animada. “E nos tecidos?” “Parece que os tecidos tão contando histórias.”

Falo sobre Rosana Paulino e sua obra intitulada Parede da memória (1994-2015). Proponho um exercício de contação de histórias. Pode ser qualquer história, contanto que seja de família ou que eles considerem importante. Histórias são compartilhadas pelos alunos e, dentro delas, insiro a história de Arthur Bispo do Rosário. Um menino chamado Tales se expressa corporalmente, como quem precisa falar antes que esqueça o que custou a pensar. “Sabe o Pico do Jaraguá? Então,

há um tempo atrás, lá era terra indígena. Tinha muitos indígenas lá. O tempo foi passando e a gente (da favela) foi ocupando esse lugar. Mas, assim, não que a gente tenha expulsado eles. Eles continuam lá, só que em grupos menores.” É um coletivo que insiste em ficar. Nesse momento, eu entendi de fato o que respondi quando me perguntaram na entrevista o que era mediação pra mim. “É a construção de uma ponte entre dois mundos que podem ser distintos ou iguais.”

Naquele dia tive mais certeza do que eu sempre pensei. Que, quando me formasse, daria aula só em escola pública, porque sei que lá existem singularidades formadas no mesmo contexto que o meu. Em um contexto que o ensino é de difícil acesso. Que o básico não é garantido. Que a escola não leva a gente a passeios porque a grana é curta. Que estar em uma Bienal é a coreografia mais impossível de se realizar.

Grupos como esse e mediações como essa me fazem sentir que as duas horas no transporte público valeram a pena. Mas houve dias em que essas duas horas não foram bem aproveitadas. Vieram grupos/ pessoas que não tinham o mínimo de interesse em me ouvir ou ouvir a pessoa que ali também mediava comigo. Nesses grupos, eu entendia que existem ouvidos que não escutam e bocas que sempre mandam.

Acredito naquele ditado que se pá nasceu na periferia: o mundão dá dessas. Num dia, você atende um grupo com o qual a identificação transborda e, no outro, atende um grupo que nem consegue olhar no seu olho. E tá suave, porque, quando o mundão dá dessas, é pra servir de aprendizado, tá ligado?

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POR AQUI IKE (COM STANLEY BROUWN)

henrique vidigal

Mapa com registro de todas as visitas realizadas pelo estagiário Henrique Vidigal, em dupla com outras pessoas da equipe de estágio. Estão traçados os caminhos e obras percorridos durante a 35ª Bienal.

ike por aqui ike (com stanley brouwn), 2023 nanquim sobre fôlder-mapa da 35ª Bienal de São Paulo 34 × 47,5 cm

zumví: o arquivo que conserva as memórias de resistências negras

josé carlos ferreira dos santos filho

Lázaro Roberto visita o espaço dedicado ao Zumví

Arquivo Afro Fotográfico na 35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível

Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

As famílias negras no Brasil não têm muitos registros, principalmente o pessoal da minha geração dos anos 1970 para trás… lembro de ir com minha irmã, que era um pouco mais velha do que eu, tirar uma foto, a gente juntava um dinheiro, se arrumava todo pra fazer a foto, mas [isso] não era habitual entre os pretos.1

Lázaro Roberto Ferreira dos Santos

Na Bahia existe uma imensa produção de imagens publicadas com caras negras anônimas e sobre a cultura negra, mas, em sua maioria, não são registradas informações de quem são essas pessoas. Mas quando os negros assumem a autoria na fotografia? Você conhece algum fotógrafo negro ou alguma fotógrafa negra?

Talvez José Ezelino, Januário Garcia, Walter Firmo, Bauer Sá, Lita Cerqueira, Eustáquio Neves, Rita Cliff, Jônatas Conceição, Lázaro Roberto, Raimundo Monteiro e Aldemar Marques, entre outros. Porém, no Brasil, existe uma grande lacuna quanto à produção intelectual negra no campo das imagens.

Na maioria das vezes, os fotógrafos negros e negras caem no ostracismo por não conseguirem espaço no cenário cultural para expor suas obras ou publicarem livros, por perderem seus

1/ Conforme entrevista concedida por Lázaro Roberto Ferreira dos Santos ao autor, em Salvador (ba), em 20 de agosto de 2015.

arquivos por falta de armazenamento correto ou serem obrigados a doá-los para instituições públicas e privadas que têm mais equipamentos técnicos de conservação e armazenagem.

resistências negras

O surgimento do Bloco Afro Ilê Aiyê em 1974, há cinquenta anos, e principalmente seu primeiro desfile no Carnaval de Salvador de 1975, causou um grande alvoroço na sociedade baiana, pois trazia em todos os aspectos o discurso racial engajado de forma latente, na voz, na indumentária e no movimento dos corpos. Além disso, o nome dado ao novo bloco, Ilê Aiyê, em uma leitura livre do idioma iorubá, significa mundo negro. Segundo Lázaro Roberto Ferreira dos Santos:

E naquela época de 1974 a 1979, com a fundação do movimento negro, a gente tava presente participando. Era só descer aqui a ladeira que eu ia ver o ensaio de Ilê. E tudo isso sem ser fotógrafo nem nada, mas tudo isso já vinha trazendo questionamento negro: “O que é isso?” na minha cabeça, de perceber que a gente é negro.2

Em 1978, temos um segundo marco da cronologia do mundo negro brasileiro. Surgiria na capital do estado de São Paulo o Movimento Negro Unificado (mnu), fruto da convergência de dezenas de organizações políticas negras de alguns estados brasileiros. Toda essa força foi fundamental principalmente para a ruptura do pensamento da democracia racial no país, a criação do Dia Nacional da Consciência Negra,

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2/ Ibid.

o surgimento da leis n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (que torna obrigatório o ensino de história africana, afro-brasileira e indígena) e n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, conhecida como lei de cotas, a presença de parlamentares negros na Constituinte, a criminalização do racismo, a titulação das terras quilombolas e o direito ao voto pelos analfabetos – a maioria deles, negra.

Esses marcos históricos políticos e culturais têm gerado uma produção imensa de documen-

tos – cartazes, panfletos, jornais, revistas e, principalmente, fotografias. Entretanto, onde estão armazenadas todas essas memórias negras?

O cultne,3 no Rio de Janeiro, e o Zumví Arquivo Afro Fotográfico são entidades do mundo negro que se dispuseram a essa finalidade.

lázaro roberto: o lente negra da bahia

Mestre de capoeira em aula para crianças na Comunidade Novos Alagados, Salvador (BA), 1993. Acervo Zumví Arquivo Afro Fotográfico.

Foto: Lázaro Roberto

Lázaro Roberto Ferreira dos Santos, conhecido como Lente Negra, é fotógrafo, arte-educador e militante do movimento negro brasileiro desde meados dos anos 1970. Nascido e criado no bairro da Fazenda Grande do Retiro em Salvador, em 1958, há mais de quarenta anos vem registrando as pessoas dessa cidade. Na

3/ Instituição que detém o maior acervo audiovisual de cultura negra da América Latina. Em 2023, foi reconhecida como Patrimônio Cultural Material do Município do Rio de Janeiro (rj).

adolescência, Santos esteve engajado em movimentos sociais de oposição à ditadura militar em seu bairro. Chamado Grupo Experimental de Arte da Fazenda Grande (Geafraga), o carro-chefe desse grupo era o teatro, com ênfase na crítica social, estando ligado à Igreja católica, em companhia de padres progressistas. O grupo realizava o Festival de Arte da Fazenda Grande, para o qual vinham pessoas da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (ufba). Foi em um desses festivais que ele se encantou pela fotografia, em uma exposição sobre o cangaço, em preto e branco, do fotógrafo Antônio Olavo.4

A partir desse momento, Santos se arrisca pelo universo da fotografia em parceria com o amigo Geremias Mendes,5 que já possuía uma câmera fotográfica profissional. Dois jovens de periferia queriam fazer a arte cara que estava fora dos seus padrões de vida. Juntos, começaram a comprar livros, revistas, trocar conhecimento com outros fotógrafos.

Em 1989, Santos conseguiu comprar uma máquina mais profissional, a Pentax Asahi Spotmatic, que é responsável por 90% de seu

4/ Antônio Olavo fez parte do grupo FotoBahia, que inicialmente foi uma exposição com vários fotógrafos de contextos diversos e, posteriormente, se transformou em um movimento de luta por direitos trabalhistas para a profissão de fotógrafo.

5/ Geremias Mendes é ator, foi diretor da Federação de Teatro Amador da Bahia e é fundador do grupo de teatro Olodum.

acervo analógico com filmes 35 milímetros. Nesse ano, fez cursos profissionalizantes na área, que foram fundamentais para o domínio da técnica da fotografia, bem como o pontapé inicial para o trabalho de documentação. Após dez anos registrando a população negra da cidade mais negra fora do continente africano, ele percebeu que os fotogramas, após serem retirados da máquina, com o tempo precisavam de um armazenamento específico porque, a qualquer descuido, poderiam ser contaminados por fungos ou se deteriorarem completamente.

O conselho que eu dou para quem está criando um arquivo fotográfico, por exemplo, eu venho da fotografia analógica, então é muito mais difícil, pelo menos eu penso assim, porque é um material físico que você tem que guardar para proteger, protegendo da umidade, principalmente. Você tem que botar pelo menos num local seco, arejado, e estar sempre olhando, no caso da fotografia analógica, porque esses cuidados que eu tive durante toda a minha vida de fotografia e tenho até hoje, embora sempre enfrentando problema com a temperatura, com o tempo, umidade, essa coisa toda.6

Com o passar do tempo e com a busca pelo aperfeiçoamento, Santos criou um método de organização de seu acervo e dos acervos que chegam às suas mãos. A umidade sempre foi um vilão para os fotogramas, principalmente os coloridos, que logo perdem sua emulsão quando submetidos à variação de temperatura, por sua vez, os foto-

6/ Entrevista concedida por Lázaro Roberto Ferreira dos Santos ao autor, op. cit.

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gramas em preto e branco são mais resistentes a essa variação. Assim, Santos nunca se resumiu ao registro fotográfico; com a visão futurista e consciente do papel político de seu trabalho, se aquilombou com outros fotógrafos para lutarem juntos pelo direito de salvaguarda de seu acervo e dos acervos de outros fotógrafos.

o zumví arquivo fotográfico: um quilombo visual brasileiro

O Zumví Arquivo Fotográfico foi idealizado em 1990, por Santos, Aldemar Marques e Raimundo Monteiro, três jovens negros das periferias de Salvador, em um contexto histórico adverso, logo após o fim da ditadura militar e no momento da redemocratização no país. Mas quais foram os percalços encontrados por esses três jovens negros que almejavam produzir uma arte que era típica de pessoas de outras classes sociais e raça?

Santos e Monteiro usavam o cabelo estilo rastafári e eram parceiros políticos da luta antirracista, encontrando na arte da fotografia uma maneira de expressar suas respostas ao sistema. Antes de se reunirem, ambos já realizavam o trabalho de registro de forma amadora havia alguns anos e tinham acumulado fotografias de diversos aspectos do cotidiano afrodescendente da Bahia. Monteiro era fotógrafo lambe-lambe no centro da cidade de Salvador, Santos e Marques se conheceram no

curso profissionalizante de fotografia do Senac, em 1990. O objetivo dos idealizadores era fazer fotografia documental ou fotojornalismo. Segundo Santos:

Mas eu me lembro muito bem que a gente queria fazer documentação e memória. Fazer fotografia hoje para o futuro, era assim que a gente dizia. A gente não tinha grana, só tinha câmera fotográfica, mas foi um período muito fértil, como eu trabalhava com os padres progressistas, tinha muita relação com povo de movimento social. Fizemos um pequeno folder e distribuímos nas comunidades, nas reuniões mensais dos movimentos sociais, o Zumví teve uma certa visibilidade, aí foi o momento que o Zumví mais atuou foi nos anos 1990.7

Tudo girava em torno dos campos da documentação e da memória. “Fotografar hoje para o futuro”, era assim que eles pensavam. Com esse propósito, acabaram criando um Quilombo Visual, arquivo de memórias imagéticas dos grupos sociais negros, em grande medida sintonizado ao esforço documental de outros coletivos e grupos no Atlântico Negro. O trabalho com os movimentos sociais de áreas distintas contribuiu para agregar diversos parceiros ao trabalho realizado por eles. Além dos três fundadores, podemos observar a presença de mais duas pessoas no folder. Do lado direito, no quadro onde está escrito coordenação em letra maiúscula, em negrito, estão os nomes de Maria Araújo e Geremias Mendes. Foi muito importante saber da presença de uma mulher na construção desse arquivo. Maria Araújo chegou

7/ Ibid.

por intermédio de Marques; ela era estudante de sociologia na Universidade Federal da Bahia e trouxe contribuições no campo das ciências sociais e escrevendo textos e projetos. A concepção do nome Zumví é algo interessante de conhecer:

Quando eu criei o Zumví naquela época, a fotografia automática estava muita em evidência, então, nada mais é do que o poder da lente Zum! É a capacidade que a lente Zum de buscar a realidade que está longe para perto, então ficou assim, Zum da lente Zum, eu não quis colocar em inglês, coloquei em português de besouro, que também pode ser um eco que se reproduz, o que a gente estava querendo é a visibilidade da

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cultura negra. Então ficou uma palavra criada Zumví. “Zum” da lente e “vi” do olho. Eu também queria uma palavra fotográfica.8

Na página ao lado, fôlder elaborado para distribuição em comunidades e reuniões mensais dos movimentos sociais. Na imagem, os coordenadores Aldemar Marques, Lázaro Roberto, Maria Araújo e Raimundo Monteiro. Acervo Zumví Arquivo Afro Fotográfico.

O pesquisador Jorge do Espírito Santo na primeira sede do Zumví Arquivo Afro Fotográfico, no Bairro da Ribeira, Salvador (BA). Acervo Zumví Arquivo Afro Fotográfico.

Foto: Lázaro Roberto, 1990

Ao longo de sua existência o Zumví esteve localizado em diversas sedes. A equipe começou o trabalho de maneira improvisada, fazendo reuniões, laboratório de fotografias e estúdio fotográfico, os móveis: mesas, cadeiras e armários expostos na imagem da primeira sede foram doados e comprados pelos fotógrafos. A localização distante do centro de Salvador dificultava a visibilidade e o acesso ao estúdio. Em 1995, foi solicitado outro espaço na igreja de São Miguel, no bairro do Pelourinho, centro de Salvador.

8/ Ibid.

Naquele momento a entidade não conseguiu se autofinanciar nem criar meios de sobrevivência para todos os fotógrafos continuarem produzindo. Como um quilombo, eram criadas várias estratégias de resistências, principalmente por meio do escambo para continuar produzindo. Segundo Santos, ele ainda levou o projeto para a sede do Movimento Negro Unificado (mnu), no Curuzu, bairro da Liberdade, por volta dos anos 2000, onde não permaneceu por muito tempo, pois existia uma

grande insegurança. Por duas vezes a sede foi arrombada na madrugada. Assim, ele não pensou duas vezes e levou todo o material para sua residência, no bairro da Fazenda Grande do Retiro.

Atualmente, Santos vem tocando o acervo com uma nova equipe,9 e em 2021 o acervo passou a se chamar Zumví Arquivo Afro Fotográfico.10 Depois de uma campanha de financiamento coletivo e do apoio do artista plástico Totonho, que cedeu o espaço, a instituição permaneceu por dois anos na ladeira do

9/ A partir do ano de 2013, venho contribuindo com Santos na manutenção do acervo, na pesquisa e no trabalho executivo da instituição. Também contamos com uma produtora executiva e dois estagiários que atuam conosco.

10/ Sugestão da equipe que administra as redes sociais da instituição.

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Carmo na forma de uma galeria, comercializando cópias de suas fotografias.

Ao longo do tempo, vem recebendo outras doações, como a do poeta e militante Jônatas Conceição da Silva, que, em 2006, chamou Santos em sua residência e doou todo seu acervo de imagens, vindo a falecer em 2009. Esse material é composto de 1.618 fotogramas em preto e branco e coloridos. Desde 2016, o fotógrafo Rogério Conceição Espírito Santo vem contribuindo com doações de seu material fotográfico. Recentemente, a advogada Meire Cazumbá da região do Quilombo Rio das Rãs, de Bom Jesus da Lapa (ba), doou parte do seu acervo pessoal feito nessa comunidade nos anos 1980.

A partir de 2014, começamos a digitalizar o acervo por meio de editais de digitalização de acervos privados. A partir de então, foram digitalizados cerca de dez mil fotogramas.

Por meio da garra e da persistência de Santos, o Zumví acabou criando uma nova estética fotográfica e uma maneira própria de organizar seu acervo, o que pôde ser contemplado na 35ª Bienal − coreografias do impossível. Para ele, qualquer pessoa com boa vontade pode tomar a iniciativa de cuidar de seus acervos fotográficos pessoal e familiar. Não são necessárias muitas técnicas elaboradas, apenas manter em lugares distantes da umidade e da água. E sempre vigiar os fungos. Desse modo, mais famílias negras terão mais memórias imagéticas preservadas.

josé carlos ferreira dos santos filho é mestre em história profissional da África, da diáspora e dos povos indígenas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Atua como diretor de relações institucionais do Zumví Arquivo Afro Fotográfico.

Vista de obras do Zumví Arquivo Afro Fotográfico na 35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

gesto: relatos de mediação

OFICINA DE IMAGINAÇÃO PARA XICA MANICONGO

malu bandeira, nivea matias silva e yala silva

91 × 1 (× 3)

Xica, você tá aqui? Xica? Onde você está? Te busquei entre estas paredes brancas e não encontrei, para além de alguns documentos, nada mais me contava sobre você, senão aquilo que eu mesma inventei sobre essas ausências. Algo in/esperado ocorreu, ouvi de Xica nos meus sonhos na noite passada, Manicongo sussurrava nos meus ouvidos para chegar preparade no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, pois sabia que o que me esperava era um ebó que cura, transforma e impulsiona, ela chegou trazendo cores para 35ª Bienal.

Fecho os olhos e desenho seu rosto, delineio seus olhos, nariz, boca, sorriso. Imaginar você é o que eu tenho de possível para nós nesse momento? Perguntar, ouvir, conversar, encontrar, andar e sentar, rodopiar, subir e descer, e até se entediar. O que está vestindo? Posso ver? Tenho um par de brincos e um bracelete, acho que combina com seu look, quer provar? Pensei em passarmos o dia juntas; nesta coreografia, escolhemos o caminho do afeto, de tudo o que nos afeta, de tudo o que nos transforma. Esse caminho repleto de encruzilhadas desaguaram no mesmo propósito, encontrar você, Xica. Um almoço, talvez? Bater palmas de feliz aniversário em seu quarto, por cada novo ciclo, este e os que ainda estão por vir, e que venham muitos, muitos, e muitos anos de vida.

Se precisar, podemos sair, andar no parque, escolher uma árvore pra deitar, fazer uma entrega, flores, perfume, maquiagem, bijuterias, valerato de estradiol 6 mg, acetato de ciproterona 50 mg, unhas postiças, espelhos, retratos. Tudo aquilo que pode uma travesti começa pelo gesto de desenhar um corpo imaginário possível. Somos aquilo que há pouco tempo não existiria, não fosse pelo simples desejo de experimentar ser. Xica, realeza do Congo, filha das ventanias, ventos que não permitiam

construções coloniais de gênero, raça e classe. Neste xirê de memórias, fomos convidades a estar em roda, nos olhando, movimentando nossas corpas em uma mesma coreografia, nos levando para caminhos de retorno em um outro tempo/espaço.

E o público? Algo in/esperado ocorreu durante a nossa visita temática para Xica Manicongo, a presença predominante de pessoas cis-hétero-brancas interessadas em sempre-já “saber mais” veio dar as costas à violência do arquivo colonial e a criar a sua própria matéria-sem-forma no espaço educativo da 35ª Bienal. O que ainda incomoda são os olhos que caminham sobre nós neste Pavilhão, fazem que não nos veem, mas nos fitam em cada poro, cada pedaço de pele, pelos, unhas. Eles não sabem nada sobre nós, tampouco imaginam, Xica, nossas desobediências os desafiam, já não sabem mais dançar.

Algo in/esperado ocorreu durante a nossa visita temática para Xica Manicongo. No dia 11/11/23 às 11h, no território que nomeiam “brasil”, corpografias dissidentes de gênero, sexualidade, raça e território se encontraram na coragem do colapso do Mito da Forma Eterna, como diz Castiel Vitorino Brasileiro em Quando o sol aqui não mais brilhar. Um espaço outro fora do tempo ModernoColonial criou-se em comunhão aos nosses amigues que estavam presen-

tes ali. Nos emocionamos quando nos encontramos na fuga.

Algo in/esperado ocorreu durante a nossa visita temática para Xica Manicongo.permanecer no mistério/ na imensidão do fracasso colonial/ nos pesadelos dos algozes/ nas miradas dos sonhos de olhos abertos/ na efemeridade da forma silenciosa do ser e estar no/do mundo/ na coragem de ser nada e tudo ao mesmo tempo/ como matéria disforme em constante expansão..:::>>>>>/...

Te vejo Xica

Me vejo em Xica Nós somos Xicas?

Caderno de anotações e cartas para Xica Manicongo e registros da visita na instalação do Archivo de la Memoria Trans.

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DE TABELA

andré leitão e danilo pera

Hoje tem futebol, tem show, tem festa

Meu ídolo matando bola no peito Marcando de testa, bem na boca do gol

trecho da canção “Hoje tem futebol”, de Cátia de França

Vai começar a visita temática de tabela, relações entre obras da 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível e o universo do futebol. Falamos ao vivo e em retrospectiva do Pavilhão da Bienal; a atmosfera no entorno se encontra como um belo domingo de futebol à tarde. Samba rolando com Preta Ferreira, acarajé, pastel e aquela cerveja gelada. Tudo isso é um oferecimento da Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC. É sempre bom lembrar: quem ocupa cuida!

Voltamos com imagens de dentro do Pavilhão.

O público vai chegando e encontrando seu lugar no Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), trabalho de Ibrahim Mahama que, em escala menor, muito se assemelha aos antigos estádios. Sem setorização, aberto ao público, é só chegar que a bola vai rolar.

Esse jogo não tem juiz, não tem certo e errado, nem esquema tático. É um jogo em que a ginga, o drible e o improviso estão liberados.

Alô, Ricardo Aleixo!

O que você me diz daí:

Geral:

O jo / go é tão // sujo / e você // (entre / bis // onho / e // biz / arro) // torce / justo // para / o juiz? 1

A bola já tá rolando e você nem percebeu. Bandeiras ao alto e estourando um “Jaider Esbell, presente”. Olha que beleza esse show de bandeiras que o público presencia: “Cozinhar é revolucionário”, “Sementes livres”,

“Território é direito”.

Toca daqui e toca de lá, Carmen Silva – camisa número 10 – pede a bola, mata no peito e manda um chute que é um golaço: “o Futebol é do Povo, salve as torcidas antifas!”

éééééééé gooooolllll!!! E que gol!

A torcida vai à loucura e todos querem jogar. Com os pés descalços na obra Habitar el color [Habitar a cor] (2018/2023), de Carlos Bunga, a tabelinha segue. O terreno irregular por conta do desgaste de três meses de exposição não nos impede de avançar e florear dribles para coreografar o impossível.

fim do primeiro tempo. 1 × 0

O segundo tempo já começa com um jogador grandioso pedindo a bola. Salve, Rubem Valentim, com suas vinte esculturas postadas esperando o adversário contra-atacar.

Posição inabalável, altiva, assim como Pelé, o Oxalá do futebol. Jogo chegando na hora de a “onça beber água”, “de quem tem mais garrafas vazias para vender”, “de separar os homens das crianças”...2

Mas nosso time joga junto, e uma criança, jogador das categorias de base, traz a presença de Vini Jr. em um momento importante da peleja – Zumví Arquivo Afro Fotográfico. Um lençol nos racistas que insistem em invisibilizar imagens positivas do povo negro. Golaço! Em uma tabela

de criança, Vini Jr. e Zumví Arquivo Afro Fotográfico.

éééééééé gooooolllll!!! E que gol!

E lá vem o bandeirão “Brasil negro salve” da torcida organizada contra o racismo, a Frente 3 de Fevereiro. Mas não existe jogo ganho de véspera, tampouco um vencedor que possa cantar vitória antes da hora. Ahlam Shibli nos mostra que a resistência do mais fraco é uma tática que pode incomodar o adversário mais forte.

Más que un equipo, todo un pueblo3 2 × 0. Acréscimo.

É com esse sentimento que a torcida desce a rampa do estádio e se aproxima do placar. Mas nesse jogo não tem o que marcar, apenas registrar.

Vistas das obras da Frente 3 de Fevereiro (acima) e de Will Rawls (abaixo).

celebrar o desvio

conversa com anna luisa de castro e geni núñez

Registro de parte do encontro que ocorreu em 16 de novembro de 2023, com Anna Luisa de Castro, coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, e Geni Núñez, ativista indígena guarani, escritora, psicóloga e poeta, sobre o texto de Geni no segundo volume da publicação educativa, no qual ela comenta o livro de Sonora Reyes, Guia para lésbicas na escola católica,1 e traz reflexões sobre gênero e sexualidade. O encontro fez parte do programa de ativações proposto pela equipe de educação na 35a Bienal e ocorreu no espaço da obra Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), de Ibrahim Mahama.

anna luisa de castro Todo o mundo aqui, eu posso afirmar, tem um processo de identidade, de gênero e de sexualidade. Vou trazer um conceito que a gente sempre fala, que é o patriarcado. Quem está no topo desse patriarcado, desde que o mundo é mundo? Em especial aqui, pra gente, depois de 1500. Quem está ali nesse topo? O capital não quer que o prazer seja para todo o mundo, não quer que a qualidade de vida seja para todos. Até porque é esse caos do capitalismo que mantém as relações. Certo? Paulo Freire, quando fala pra

gente em oprimido e opressor, 2 dá uma pista muito importante. Ele diz, de certa forma, que a revolução vai se dar pelos oprimidos. O conceito de interseccionalidade precisa ser chamado o tempo todo. Raça, gênero, sexualidade. A gente entender essa perspectiva no contexto da nossa dimensão, da nossa saúde, da nossa existência, do ser quem somos. Só que, pra gente ajustar isso, eu tenho que fazer de um modo fino, porque, senão, fica só discursivo e não atravessa a nossa subjetividade. E eu ouvi de estudante assim: “Ai, professora, a gente não tá falando pra pegar, levar pra casa, é só respeitar”. Bom, isso não é respeitar, porque quando eu coloco: “Ah, eu convivo com vocês”, isso é tolerar, talvez. Mas, pra levar minha casa, eu escolho a pessoa branca. Escolho a pessoa cis-heteronormativa. Desculpe, isso não é respeitar. Porque você está hierarquizando ainda.

“celebrar a possibilidade

do desvio”

1/ Sonora Reyes, Guia para lésbicas na escola católica, trad. Jana Bianchi. Itapevi: DarkSide, 2023.

— Geni Núñez geni núñez: Pensei em compartilhar com vocês o porquê desse uso que escolhi pro título do texto, de desviar. Eu não sei se todo o mundo conhece essa palavra de quando, por exemplo, dizem que alguém “sai da Igreja” — e, aqui, estou falando de igrejas de matriz cristã —, que essa pessoa se tornou um desviado. Celebrar a possibilidade do desvio é também pensar que, muitas vezes, o fracasso desse projeto é a melhor coisa que pode nos acontecer, apesar também das violências que acompanham esse gesto. Uma das fontes da minha pesquisa, do meu ativismo, tem sido esse movimento de escuta dos mais velhos,

2/ Paulo Freire, Pedagogia do oprimido. 84. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

Registro do encontro entre Geni Núñez e Anna Luisa de Castro para a conversa.

Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

mas também de análise de alguns documentos que desmistificam várias das fake news que a gente escuta. Uma delas é de que as resistências dissidentes da hetero-cis-norma seriam algo recente. Em uma das cartas que eu analiso, de 1551, uma carta do missionário Pero Correia,3 ele diz o seguinte: “Cometem o pecado contra a natureza, de maneira que se lhe chamarem de mulheres, podem se sentir tão ofendidas que atirarão flechadas”. Esse é o primeiro registro histórico que encontrei da recusa de nossos ancestrais de serem designados como mulheres ou como homens. Nessa pesquisa, o que fui percebendo é que não querer ser chamada de mulher e ser chamada de homem envolvia uma recusa de não ser chamada de cristão, porque a ideia de homem e mulher é profundamente atravessada — essa ideia de homem e mulher de verdade pela heteronorma. A gente vai ver que essa ideia de que alguém que se afasta dessa hetero-cis-norma é menos homem, não é homem de verdade ou não é mulher de verdade, ressurge no cotidiano hoje, mas vem de muito longe. Ler esse livro [Guia para lésbicas na escola católica] foi uma experiência bem intensa para mim. Eu me senti identificada em vários momentos com a personagem. A minha família também sofreu a evangelização, a catequização, e eu fui doutrinada para ser uma missionária com o meu povo. Fico contente de imaginar que deu um pouco errado, mas a ideia era justamente que eu fosse mais um soldado dessa ideologia, né?

Quando a gente pensa nessa questão de infância e juventude, nas pesquisas que eu tenho feito nessas cartas jesuíticas, há vários trechos em que se coloca a ideia de proprie-

3/ Pero Correia, “Cartas avulsas: 1551-1568”, in Cartas jesuíticas II. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1931.

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dade. E a ideia de propriedade também estava posta nas crianças. Essa ideia de que pai e mãe teriam o direito de fazer qualquer coisa com aquela criança, porque o pai e a mãe seriam os donos dessas crianças. Isso não é algo que aparece em nossos povos, essa ideia de posse, de propriedade de outra pessoa. Eu me lembro de uma discussão, há alguns anos, sobre a Lei da Palmada — acho que ficou conhecida assim —, que um amplo setor da sociedade se posicionou contrário a ela. Isso tudo entra em um campo muito complexo, no qual essas pessoinhas são a ponta mais vulnerável das violências da hetero-cis-norma. Nesse livro, a gente acompanha percursos em que essa jovem, a protagonista, começa a fazer uma poupança para tentar se preparar, caso seja expulsa de casa. E eu falo aqui também como alguém da psicologia, do trabalho emocional imenso de uma criança, de um jovem, ter de ficar pensando na possibilidade de ser expulso de casa por não obedecer a essa ordem dominante.

Pensar a questão do armário, por exemplo, que, no âmbito da escola, tem a sua incidência, me faz lembrar de uma frase da nossa liderança, que disse que foi um processo muito longo para que as lideranças espirituais aceitassem a entrada da escola nas aldeias. Elas diziam que, se as escolas fossem implementadas nas aldeias, seria a mesma coisa que se fosse a Igreja. Percebem que essa estrutura — eu até me lembro de uma expressão, que é

grade curricular, a ideia de escola como (grade) presídio, manicômio, a ideia de pecado, doença e crime são muito íntimas entre si, né? Poder ler esse livro foi também uma maneira de acolher esses anseios no sentido de que muitas das produções de literatura, de cinema, de séries trazem esse elemento catastrófico nas narrativas lésbicas e isso, muito mais do que uma descrição da realidade, é uma maldição. De que você deve acompanhar aquela narrativa e pensar o seguinte: “Olha o que acontece com quem é do jeito que você é”. É uma profecia de uma catástrofe gigantesca de abandono parental, de expulsão, de dificuldade de se manter na escola. Tem até um termo que o professor Rogério Junqueira usa que, em vez de falar evasão escolar, pensar em expulsão escolar, 4 como algo que, nessas crianças e nesses jovens, descentraliza a responsabilidade por se manterem em um contexto no qual, muitas vezes, é extremamente angustiante se manter. Essa história consegue, ao mesmo tempo, nomear muitas dessas violências e complexidades, sem, no entanto, reduzir toda a experiência à violência, sem reduzir toda a possibilidade de experimentação sexual ao medo, à dor e ao trauma. Não sei se aconteceu com vocês também, mas, na escola em que eu fui alfabetizada, diziam que era para grafar o deus cristão com maiúscula e os outros deuses com d minúsculo. Então, essa norma hegemônica do gênero aparece em uma gramática que é normativa para além das regras gramaticais. Quando se pensa nessa família, é muito raro que, nessa sociedade dominante, a criança esperada seja uma criança trans, uma criança desviante da

4/ Ver também: Berenice Bento, Na escola se aprende que a diferença faz a diferença, in: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, vol. 19: p. 548-559, 2011.

hetero-cis-norma. E isso é muito pesado para uma criança e um jovem lidarem, saber que as pessoas que seriam o seu lugar de amparo, de acolhimento, são justamente aquelas que lhe dizem que você só vai ser amado se não for quem você é. Parece que um dos desafios que o livro traz muito bem é pensar que essas violências talvez não ocorram apenas em nome do ódio, da raiva, da violência, mas em nome do amor, em nome do bem, em nome da salvação.

“no chão da sala de aula”

Anna Luisa de Castro

anna Vamos começar falando do currículo, que é a divisão que eu trabalho e aquilo que, de certa forma, está sendo implementado em uma escola agora, na Educação de Jovens e Adultos (eja), mas que é algo muito complexo, porque quando a gente fala de currículo, o que é esse currículo?

Ele tem várias dimensões. E é inegável pensar em Secretaria Municipal de Educação, rede estadual de educação de São Paulo e, quiçá, no mundo. A gente trabalha em uma perspectiva de currículo que não é pós-crítica, não é pós, ela é uma perspectiva de Sacristán,5 de Pacheco,6 que

5/ José Gimeno Sacristán, professor de didática e de educação escolar, autor de diversos livros sobre currículo escolar.

6/ José Pacheco, pedagogo e antropólogo, um dos fundadores da Escola da Ponte, estruturada em modelos não tradicionais de ensino e de educação.

é um currículo, vamos dizer assim, prescrito, e ele tem uma dimensão governamental, inclusive. Então, é importante a gente falar disso. Mas existem outras dimensões, inclusive nessa perspectiva de Sacristán, que é aquele currículo que é apresentado, aquele currículo que é traduzido através de livros, de apostilas, e aquele currículo que chega ali na sala de aula. Inclusive tem uma nomenclatura da qual eu não gosto, que é o currículo oculto, porque, na verdade, ele não é oculto. Mas talvez seja o currículo possível, o currículo da emergência, o currículo que acontece ali no dia a dia, no chão da sala de aula. Vamos começar pelo livro didático. Tem vários trabalhos que falam do livro didático. Eu até costumo dizer, sou de exatas, estou aqui pra falar disso. E por quê? Sou de exatas, mas quando eu estou na escola, quando eu estou na educação, eu sou de humanas. Não existem ciências exatas, física, química, biológica dentro de uma unidade educacional. Existe ciências humanas, porque eu estou lidando com o ser humano, naquela perspectiva da integralidade, de buscar a equidade e a inclusão. E, assim, mesmo em um livro de matemática, é em cima, talvez, de figuras, de desenho, como isso é apresentado, como uma criança vê, quando aparecem, por exemplo, pessoas pretas no livro? Em que circunstâncias essas pessoas pretas aparecem, se aparecem? Em que circunstância aparece a pessoa branca? Eu vou falar de uma profissão, medicina, por exemplo. Qual é a cor da pessoa que aparece [representando um médico/médica]? Qual é o gênero? Isso já traz pistas que são violentas. Quando a gente não pensa, não tem essa maturação ali, já começa o erro.

Agora, indo pra dimensão da sala de aula. Vamos pegar a nossa primeiríssima infância. É quando, talvez, não tenha tanto material escrito.

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Mas não tem currículo? Tem, tem currículo. Tem, tem o fazer do dia a dia. E, às vezes, pode acontecer o quê? Que essas violências não aconteçam de forma tão explícita. E é por isso que eu falo, a nossa missão não é simples, porque a gente tem que enxergar profundamente, fazer uma autocrítica profunda. O que pode, o que não pode, que corpos são, vamos dizer assim, desviantes, e que corpos não são. Alguns corpos que não têm lugar, que são considerados desviantes, o que foge da cis-heteronormatividade. Vou falar pra vocês, que não sabem o que é Sistema de Gestão Pedagógica. É um sistema da Secretaria Municipal de Educação, no qual professoras e professores registram o acompanhamento da vida escolar dos estudantes. E é nesse currículo que está a complexidade também. Porque desde a primeiríssima infância a gente já vai fazendo essa separação extremamente nociva. Só acredito em uma mudança quando eu colocar a minha subjetividade também à prova. Fazer de fato diferente.

Tem pesquisas, inclusive, que indicam que o nosso país é o que mais consome pornografia trans e lésbica também, mas trans em especial. E uma das coisas que acontecem desde a primeiríssima infância é essa marcação excessiva de gênero que prejudica todas as crianças. Seja chá de bebê, as cores dos brinquedos, chá revelação, que já começa ali com essa história. Isso é nocivo a todas as crianças, porque os papéis de gênero já começam ali. E não adianta eu só

falar de colocar todo o mundo pra brincar com as panelinhas de madeira, todo o mundo pra empurrar carrinhos, se, depois, quando eu saio do muro verde [sigo com os mesmos estereótipos de gênero e sexismos...]. A escola é integral, é pra todo mundo, é pra profissionais da educação também. Então, não adianta você emular, fingir uma desconstrução e achar que vai colocá-la na prática, porque não vai. Então é pensar também nas divisões, falar sobre as divisões que a gente faz na aula de educação física, na fila. E também concordo, não é evasão, porque evasão é uma comunicação violenta. Você está atribuindo o problema à vítima. Isso é exclusão.

“dar um passinho pra trás pra buscar mais gente que ficou”

geni Estava aqui pensando o quanto a ideia de criança-problema também faz parte desse currículo. Pensando na minha área, uma questão que eu queria compartilhar é que, às vezes, aquela criança ou aquele jovem que se expressa de uma maneira raivosa, explosiva, é rapidamente patologizado. No entanto, em muitos casos, não aceitar e se desorganizar de um contexto que é violento é algo muito saudável que essa criança está fazendo. Há também toda uma demonização da raiva, como se fosse algo horrível de expressar. Até me lembro de uma frase do Frantz Fanon, que diz que a raiva, nesse contexto, não pode ser uma granada colada no corpo.7 De algum modo, a gente precisa movimentar isso. Tem aquela frase assim: “para que um grupo minoritário avance, o outro não precisa recuar”.

7/ Frantz Fanon, Pele negras, máscaras brancas, trad. Renato da Silveira. Salvador: edufba, 2008.

Eu acho que precisa sim... vocês devem lembrar da discussão do kit gay. Há alguns anos, participei de um projeto chamado Papo Sério,8 que era de discussão de gênero nas escolas, e a gente teve acesso a uma prévia desse material, que sequer chegou a ser distribuído, mas era um material que tinha algumas problemáticas, sim, só que o kit que nunca saiu das escolas desse currículo é o kit cis-hetero. Não basta só pensar nessa ideia de uma inclusão, de acrescentar esses debates quase como se fosse um apêndice, um anexo, coisas que pessoas muito boas fazem, sem que haja uma implicação da hegemonia. Então, há, sim, que se recuar nessa maneira de apresentar o universal do humano como branco, cis, sem deficiência, magro.

Outro ponto que fiquei pensando, que também ecoa na cosmogonia do meu povo, na nossa espiritualidade, é que uma das práticas que desde 1600 já tem registro no nosso povo eram as práticas de desbatismo guarani. Nessas práticas, o primeiro gesto que a liderança espiritual fazia era devolver nosso nome em guarani. A gente diz até hoje que nosso nome verdadeiro é o nome em guarani. Como esperar que as pessoas fiquem confortáveis e queiram viver de maneira plena se elas não

8/ Projeto de extensão na área da educação, articulando gênero, sexualidade, diversidade e direitos humanos, que ocorreu na Universidade Federal de Santa Catarina (ufsc) entre 2007 e 2015.

têm direito ao próprio nome? E ter direito ao próprio nome, inclusive se elas quiserem mudar esse nome outras vezes. Uma das perguntas que às vezes se faz é a seguinte: “Não é uma fase? Você tem certeza que vai ser sempre desse jeito?”. E então, até nos processos do Sistema Único de Saúde (sus) há esse tipo de exigência. Isso é uma péssima lição para as crianças e os jovens, de que só vale aquilo que é imutável, né? Então, vamos supor que seja uma fase. É digno que seja, no tempo que for. Quando penso essa questão do currículo, penso muito também na importância de ter uma fluidez desse movimento que acompanhe e que dê o direito à experimentação.

E outro ponto que eu anotei é que há uma assimetria de poder nisso tudo. Quando a gente vê as figuras parentais, as figuras na escola, são pessoas que têm o direito de expulsar, o direito de reprovar, o direito de excluir. Pensar nessa assimetria é o primeiro passo. Não supor que é tudo horizontal e linear quando há uma marcação institucional e estrutural que vai além dos próprios indivíduos. Fico pensando muito nessa ideia de que, para lidar com essas violências, a gente não precisa apostar em uma ideia de independência, de autossuficiência. A gente continua precisando de vínculo, de apoio, de amparo. Mas talvez o que precise mudar nesse currículo seja o direcionamento. Onde a gente busca esse tipo de comunidade, de amparo, de família, de afeto, né? Eu até me lembrei de uma das oficinas, que era para o terceiro ano, e uma das dinâmicas que nós fazíamos era a seguinte: o que é homem de verdade? E então as crianças falavam uma série de atributos, e eu lembro que uma criança falou assim: “Se homem de verdade é aquele que se casa com mulheres, tem filho, tem família, então o papa não é homem, professora?”. E achei ótimo

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pensar também as ferramentas que as crianças têm de elaboração, de criação, de invenção, suas maneiras de trazer significados. A pedagogia pela punição foi trazida nesse processo civilizatório colonial, e os missionários ficavam indignados que as famílias guaranis ensinavam só pela brincadeira. E aí eu fico pensando quanto esse movimento de brincadeira não deveria ser algo circunscrito à infância, mas a toda a nossa experiência de sexualidade e de existência. Isso envolve também outra relação com a arte. Quando o jovem se interessa por essa dimensão artística rapidamente é recriminado, de que isso não dá futuro, não dá vida, não dá dinheiro. No entanto, às vezes, esse é o jeito não só de a pessoa ter um trabalho, mas é um jeito de ela continuar viva, né?

anna Antes de qualquer coisa, eu preciso falar: a escola é um recorte da nossa sociedade e, por isso, é, sim, racista; é, sim, machista; é, sim,

LGBTfóbica. Não dá pra negar, porque são as pessoas que estão ali. Ao mesmo tempo, essa escola que é de fato insegura para algumas crianças, tem sido, talvez, a única opção para muitas delas. E é importante a gente falar. É trabalhar juntos, entender que precisamos atender essa diversidade. A diversidade sou eu. Não por ser uma mulher trans, mas porque sou uma pessoa. Se a gente fala de diversidade, então é todo o mundo aqui. É pensar por que historicamente a gente tem corpos que foram considerados desviantes. E a gente precisa olhar com atenção para isso. A invisibilidade de corpas lésbicas começou quando a gente remonta a Stonewall, em junho de 1969;9 ali, tudo começou. Quando a gente fala “a história”, a gente esquece que, na história, no navio que veio pra cá com pessoas escravizadas, tinha perspectivas, inclusive trans, e que simplesmente são ignoradas. Às vezes é dar um passinho pra trás, mas é dar um passinho pra trás pra buscar mais gente que ficou.

geni Acho que essa violência do racismo institucional é algo que provoca uma exaustão imensa. Porque já demora para existirem essas oportunidades e, quando existem, ainda não tem esse mínimo amparo. Eu penso que alguns movimentos têm acontecido por isso, mas ainda são insuficientes, muito incipientes. Ao mesmo tempo, as ações afirmativas são fundamentais, mas me preocupa também o quanto, por vezes, parece ser o único caminho. Isso me lembrou uma fala do Ailton Krenak ao contar que, com a Constituição de 1988, a promessa era de que em

Registro da conversa entre Anna Luisa de Castro e Geni Núñez na instalação de Ibrahim Mahama.

Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

9/ A Revolta de Stonewall, em 1969, foi marco político e cultural para movimento lgbtqiapn+, quando travestis, pessoas trans, drag queens, lésbicas, majoritariamente racializadas e latinas se revoltaram contra as violências policial em Stonewall Inn, bar em Nova York que recebia constantes e violentas batidas policiais.

até quatro anos todas as terras indígenas seriam demarcadas. Todas essas leis foram elaboradas não para serem cumpridas, exceto aquelas que dizem respeito à punição de nossos parentes, porque, para eles, a política pública de encarceramento, essa funciona, né? Pensar também o quanto o Estado oferece essas migalhas e então começa essa série de disputas por elas, que, propositadamente, são insuficientes. Uma experiência a partir das iniciativas do nosso povo, das quais eu faço parte, de que tem esse caminho pelas demarcações por meios jurídicos, tem a equipe de advogados, mas tem ao mesmo tempo as autodemarcações. Esse processo de poder ir além do Estado nessas lutas é algo que eu fico pensando, como a gente pode exigir e ocupar esses lugares sem essa espera que nos violenta tanto? O que a gente pode pensar coletivamente para que não seja mais uma questão de poderem escolher ou não se nos dão esse direito.

“como é que a gente consegue imaginar o pensamento e a razão como algo que passa pelo joelho, pelo ombro, como que desloca também a ideia de corpo”

anna A questão do corpo, principalmente na educação da cidade de São Paulo, que é promovida pelo município, eu acho que dialoga muito, porque a gente trabalha com corpos, não dá pra gente falar de um currículo que

não olhe para as materialidades e pro corpo na primeiríssima infância. Precisamos colocá-lo à prova, porque a impressão é que todos os corpos vão bailar, menos o meu. Assim, a gente tem o corpo que está com medo, o corpo que não quer se afetar, o corpo que não quer se envolver. O corpo... E esse mesmo corpo, tem momentos em que ele se afeta, tem momentos em que ele não se afeta, tem momentos em que ele acaricia, tem momentos em que ele traz uma outra expressão. É isso, né? A expressão corporal está intimamente ligada com a nossa educação infantil na primeiríssima infância, e acho que precisa ser mais bem estudado e pontuado, inclusive nos nossos currículos. A gente precisa partir, sem sombra de dúvida, desse lugar também da subjetividade. Porque a gente se engana quando acha que apenas o objetivo vai resolver; não irá resolver.

geni Fiquei lembrando de uma fala do parente Anastácio Kaiowá.10 Ele diz que a Terra é um ser vivo e tudo que é vivo precisa de descanso. E eu fiquei pensando que alguns dos efeitos do cansaço e da exaustão, que a gente às vezes não atribui, mas que tá ali conectado, é a tristeza, é o estresse, é a sensação de impotência. Então, eu fico pensando muito em como a gente pode fazer essas lutas tendo essa lembrança de que a gente precisa de descanso e que a gente não dá conta de tudo. Não é porque a gente não dá conta de tudo que não dá pra fazer nada também. Uma das falas mais comuns contra nossos povos é que nós seríamos preguiçosos. Essa ideia de que quem não se sujeita a essa lógica capitalista colonial é preguiçoso, acho muito irônico,

10/ Também conhecido como Anastácio Peralta, liderança indígena Guarani Kaiowá, com experiência na área de Recursos Florestais e Engenharia Florestal.

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porque, se alguém fosse preguiçoso, deveria ser quem escraviza e não quem é escravizado, certo? Fiquei pensando de novo em uma frase do Frantz Fanon, ele diz que o mundo colonial é dividido em compartimentos. Às vezes, parece que essa crítica da mentalização, da racionalização é substituída por uma corporificação. Só que é parte do mesmo problema, porque mente e corpo são esquemas binários da mesma divisão. Então, fico pensando como é que a gente consegue imaginar o pensamento e a razão como algo que passa pelo joelho, pelo ombro, como que desloca também a ideia de corpo... Isso também de considerar que o corpo se encerra na pele é algo que a respiração nos lembra de que temos um tamanho muito além e muito aquém do que se coloca, né? Toda centralização, seja no amor romântico, seja no trabalho, vai nos adoecendo de alguma forma. Até queria encerrar com uma fala de uma parenta Kerexu Yxapyry,11 que sempre comenta que as pessoas dizem: “Índio só quer saber de terra, sombra e água fresca”. E ela diz: “É pouca coisa?”. E eu acho muito bonito, porque às vezes a parte do currículo, do pensamento, da reflexão é a sombra e a água fresca.

anna luisa de castro é professora de matemática e ciências da RMESP desde 2004. Atua na Divisão de Currículo da Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, onde coordena o Núcleo de Gênero e Diversidade. Doutora em educação para a ciência pela Unesp, mestre em educação matemática pela Universidade Bandeirante de São Paulo e licenciada em ciências exatas pela USP. geni núñez é ativista indígena guarani, escritora e psicóloga. É doutora pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis, SC), mestre em psicologia social e graduada no curso de psicologia pela mesma universidade. É co-assistente da Comissão Guarani Yvyrupa, membro da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos(as) (ABIPSI), membro do Observatório da Kuñangue Aty Guasu Guarani Kaiowá e membro da Comissão de Direitos Humanos (CDH) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP).

11/ Liderança indígena guarani, mãe, professora, pesquisadora e gestora ambiental. Atualmente é secretária de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas.

gesto: relatos de mediação

GÊNERO: ENTRE PESSOAS, DOCUMENTOS E OUTRAS ESPÉCIES

gabri gregório floriano e iberê terra oliveira

“Qual seu nome e quais pronomes você utiliza?” Foi assim que escolhemos iniciar a conversa. Essa escolha refletia os lugares de onde partia a visita: lugares inquietos, mediante a partilha de desconfortos e estranhamentos entre duas identidades transmasculinas que trabalhavam lado a lado. De certa forma, perguntávamos aquilo que gostaríamos que nos perguntassem.

Era importante que o convite ao diálogo seguisse, desde o início, o princípio de um compromisso com a escuta e o respeito às identidades que ali se dispunham a estar. Por ser uma visita que propunha tensionar impressões e expandir nossas relações com a ideia de gênero, o acolhimento dos corpos visitantes e de suas expectativas quanto ao tema era nosso principal desejo. Imaginar um rosto, reivindicar um nome, subverter lógicas de pertencimento e elaborar novas definições para arquivo e memória eram algumas das intenções que permeavam a visita.

todo mundo tem nomes mais verdadeiros que escapam aos papéis os nomes que lhe deram por amor os nomes que lhe deram por temor os nomes que lhe deram por (não) fazer parte os nomes que lhe deram aos sussurros os nomes que lhe deram aos gemidos os nomes que lhe deram aos berros os nomes que se dão no silêncio, na madrugada, quando longe dos olhares1

O que nos mobilizaria a propor um diálogo entre a figura masculina colonizadora (Antonio de Erauso, presente no retrato por Juan Van der Hammen e na videoinstalação de Cabello/Carceller) e uma figura feminina escravizada (Xica Manicongo)? Tensionar lugares preestabelecidos se torna necessário nesses momentos de construção coletiva em que traçamos

novas compreensões de ser e de estar no mundo, reconsiderando essas identidades negadas. Ao propormos pensar novas definições para arquivo e memória − que sejam diferentes daquelas que a história oficial elenca em sua metodologia de apagamentos −, deparamos com novas maneiras de interpretar documentos.

Ao perguntarmos aos visitantes que significado tinham as palavras arquivo e memória, suas respostas desenhavam relações quase antagônicas. Enquanto o arquivo era algo externo, um lugar estático e aproximado de “algo que a gente guarda, mas não mostra”, como disse Pedro, a memória “existe dentro de mim, como se ela estivesse distribuída em partes do meu corpo e eu pudesse acessá-las nesses lugares. Percebo a memória na minha pele, no meu estômago, nos meus pés e em todos os meus sentidos. A memória é corpo”, como afirmou Júlia.

A instalação do Archivo de la Memoria Trans foi, desse modo, crucial para que surgissem novas interpretações de palavras que compõem nossos vocabulários. Dispostos pelas paredes e no chão, os formatos de documentação constroem uma composição homogênea e não hierárquica. Entre fotografias pessoais, cartas e notícias de jornais que se sobrepõem umas às outras, a complexidade identitária que se

constrói coletivamente se evidencia de maneira sensível, rompendo a lógica de registro de um arquivo estático. O espaço foi acessado de forma dinâmica pelos visitantes, que se sentiram acolhidos por sua estética relacionada muito mais a um quarto de adolescente, colorido e afetivo, do que a uma reserva técnica que cataloga e acumula registros que não dialogam com ninguém.

Construir novas conexões e historicizar delimitações fizeram parte dessa mobilização assentada na mediação, bem como traçar novos contornos que circunscrevem vivências múltiplas. Estabelecer diferentes possibilidades de contato; reivindicar outras formas de estar no mundo; compartilhar desejos e angústias; tudo isso fez parte do que sempre foi um convite ao encontro.

Detalhe da instalação do Archivo de la Memoria Trans (acima). Registro da visita (abaixo).

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MANTO DO INVISÍVEL: MISTÉRIO E MEMÓRIA EM PRODUÇÕES

TÊXTEIS mira lima

na curva do vento em fuga da captura óptica, da armadilha da identidade nesse momento preguei os olhos no escuro

mirei a gente reluzindo ouro coberta em manto

despistando cheiro entendimento derrubando o cavalo do prestígio em queda cadente

¡mira! lá estrella en el ciello faz um pedido

A materialidade têxtil esconde/revela complexas tramas entre corpo e território. Trançamos na coletividade o que imaginamos de um manto do invisível: que, de certa forma, seja uma bandeira/procissão para nossas demandas invisibilizadas, mas, ao mesmo tempo, não revele nossas identidades e, desse modo, sejamos incapturáveis.

Em Sonia Gomes, desatamos os nós da garganta para poder começar a falar. Ou, ao menos, começar a chorar ao resgatar as memórias afetivas com nossas avós costureiras e refletir a respeito da cadeia invisível de exploração da terra e de pessoas da indústria da moda, que produz roupas feitas para não durar. Semear outras relações de respeito com a memória de um material categorizado como lixo.

De Judith Scott a Arthur Bispo do Rosário, localizamos a centralidade dos trabalhos no fazer manual e não apenas no objeto final. O fazer têxtil colocado como arteterapia não legitima o status de artista para certos corpos. Ou, ao menos, não durante suas vidas, até que suas linguagens sejam capturadas como a mais nova estampa publicitária.

Ao final da mediação, assim como as práticas de cuidado e de construção de família do Colectivo Ayllu, ativamos o gatilho: quando passamos um tempo juntos, tecendo o impossível e descosturando fronteiras, bordamos

outro tempo. A partir de retalhos de outras visitas e de material de descarte da indústria têxtil, nos sentamos no chão e em roda para que cada pessoa fizesse sua parte desse manto, costurando, amarrando, alfinetando, escondendo retalhos de forma intuitiva, guiadas por seus pedidos: cada um fez um pedido silencioso, que realizou através da dança de um dos participantes da visita, que levantou presença junto ao manto com seu corpo pelo Pavilhão da Bienal.

¡mira! lá estrella en el ciello faz um pedido

Registros da visita. Abaixo, o grupo entre obras de Judith Scott.

na capoeira você nunca sabe, mas você nunca deixa de saber.

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Frase de Antônio Bispo dos Santos registrada em conversa com a equipe de mediação da 35ª Bienal. Foto: equipe de mediação no Pavilhão Ciccilo Matarazzo.
você sempre ensina, você sempre aprende.

gesto: curso de formação

O curso de formação da equipe de mediação da 35ª Bienal, composta de auxiliares, estagiárias e mediadoras, ocorreu no período de junho a agosto de 2023.

Organizamos sete encruzilhadas,1 ciclos de estudos dos projetos de artistas, coletivos e participantes, além do aprofundamento teórico das referências curatoriais, atividades práticas e visitas a espaços culturais.

Como Leda Maria Martins ensina, as encruzilhadas são um enclave metodológico de cruzamentos, encontros de mais de uma cultura e de mais de uma episteme. Tornar possível o impossível, diante dos

trabalhos expostos, das vivências e dos repertórios presentes, e ativados pelas pessoas mediadoras.

No curso, contamos com a participação de diversas vozes: abigail Campos Leal, Agência Solano Trindade, Ahlam Shibli, Aline Motta, Allan da Rosa, Anne Lafont, Daniel Lie, Denilson Baniwa, Diane Lima, flo6x8, Geni Núñez, Hélio Menezes, Luana Vitra, Mais Diferenças, Manuel Borja-Villel, Nêgo Bispo, Philip Rizk e Tadáskía.

encruzilhada 1

Retomar as histórias das Bienais de São Paulo, do Pavilhão Ciccillo Matarazzo e do Parque Ibirapuera, e apresentar o projeto da 35ª Bienal

encruzilhada 2

Discutir noções de museu, objeto e memória, considerando a violência constitutiva dos arquivos e as im/possibilidades das narrativas

estudo de artistas participantes

Denilson Baniwa, Edgar Calel, Gabriel Gentil Tukano, Inaicyra Falcão, Nontsikelelo Mutiti, Pauline Boudry / Renate Lorenz, Rommulo Vieira Conceição e Simone Leigh

Ahlam Shibli, Aline Motta, Castiel Vitorino Brasileiro, Daniel Lie, Denise Ferreira da Silva, Edgar Calel, Emanoel Araujo, Frente 3 de Fevereiro, Guadalupe Maravilla, Marilyn Boror Bor, Rosana Paulino, Santu Mofokeng, Sauna Lésbica, Sidney Amaral e stanley brouwn

encruzilhada 3

Discussão sobre alteridade e linguagens artísticas

encruzilhada 4

Apresentação do conceito de pensamento composicional negro, a partir de Torkwase Dyson, e reflexão sobre construções políticas de espacialidade

encruzilhada 5

Discussão sobre educação e instituições, partindo de suas impossibilidades e possibilidades

encruzilhada 6

Discussão sobre as políticas do movimento, circulação de pessoas, objetos e ideias presentes na arte contemporânea

encruzilhada 7

Criação de coreografias de mediação, retomadas de conceitos e percursos no Pavilhão da Bienal.

Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, Bouchra Ouizguen, Carmézia Emiliano, Davi Pontes e Wallace Ferreira, Geraldine Javier, Leilah Weinraub, MAHKU, Nadir Bouhmouch e Soumeya Ait Ahmed, Rosa Gauditano, Stella do Patrocínio, Tejal Shah e Trinh T. Minh-ha

Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá Imê, Deborah Anzinger, Ellen Gallagher, Ibrahim Mahama, Julien Creuzet, Luana Vitra, Marlon Riggs e Quilombo Cafundó

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., Archivo de la Memoria Trans, Arthur Bispo do Rosário, Aurora Cursino dos Santos, Ceija Stojka, Denilson Baniwa, Juan van der Hamen y León, Judith Scott, Kapwani Kiwanga, Ricardo Aleixo, Tadáskía, Xica Manicongo e Zumví Arquivo Afro Fotográfico

Amos Gitaï, Anna Boghiguian, Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC, Philip Rizk, Sarah Maldoror, Senga Nengudi e Wifredo Lam

Benvenuto Chavajay, Charles White, flo6x8, Raquel Lima, Sonia Gomes, Ubirajara Ferreira Braga, Ventura Profana e Will Rawls

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Nós nos encontramos em ações on-line e presenciais, caminhamos por um Pavilhão em transformação. Assumimos a circularidade na mediação. “É assim em tudo o que se faz na circularidade, porque o saber é circular. E se o saber é circular, ele vai passando de pessoa em pessoa, ou vai seguindo a partir de cada pessoa”, como afirmou Nêgo Bispo.

Durante o curso, alteramos algumas encruzilhadas e, com a exposição

aberta, refletimos sobre e amadurecemos aquilo que até então estava despercebido ou pouco aparente, o que somente com a vivência diária no espaço expositivo emergiu.

Bibliografia completa e registros das participações convidadas do curso de formação da equipe de mediação podem ser acessados na seção movimentos do site da 35ª Bienal.

referências teóricas participações convidadas e +

Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo: coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023. Naine Terena de Jesus, Fernanda Pitta e Regina Teixeira Barros

Bruno Pinheiro, Denise Ferreira da Silva e Valentina Desideri, Françoise Vergès e Saidiya Hartman

coletivo curatorial da 35ª Bienal

Édouard Glissant, Leda Maria Martins, Muniz Sodré, Sandra Benites e Trinh T. Minh-ha

Aline Motta e abigail Campos Leal

+ indicação de visitas às exposições: Favela raiz, Museu das Favelas; Retratistas do morro, Sesc Pinheiros; Mulher esqueleto, de Lidia Lisbôa, Sesc Pompeia; Terra de gigantes, Sesc Guarulhos; Escola Panapaná, de Denilson Baniwa, Pina Luz; XINGU: presente!, Biblioteca Parque Villa-Lobos; Museu Afro Brasil Emanoel Araujo; Tempos fraturados, MAC-USP

Nêgo Bispo

Nêgo Bispo, Malcon Ferdinand e Torkwase Dyson

+ visita à Agência Solano Trindade

Carmen Mörsch, Geni Núñez, Sonora Reyes e Sueli Carneiro Mais Diferenças, Allan da Rosa e Denilson Baniwa

Anne Lafont e Hagar Kotef

Saidiya Hartman

Anne Lafont, Geni Núñez, Luana Vitra, Tadáskía

Ahlam Shibli, Daniel Lie, flo6x8 e Philip Rizk

Frase de Sandra Benites registrada em conversa com a equipe de educação.
lutar pelo seu chão. a nossa educação está no fazer do dia a dia.

gesto: djunta mon

DJUNTA MON NAS COREOGRAFIAS DO IMPOSSÍVEL thiago gil virava

29 de abril de 2023 “No contexto das artes negras, das comunidades negras, das culturas negras que habitam todas as quebradas, habitam todos os terreiros de reinado, os terreiros de jongo, os terreiros de candomblé [...] só é arte, gente, se for um bem. Mas não um bem em mercadoria. Um bem que é uma oferenda. Um benefício para o coletivo.”1

Esse trecho da fala de Leda Maria Martins no evento de lançamento do primeiro movimento da publicação educativa ressoaram diversas vezes nas ações de difusão que realizamos ao longo de 2023, reproduzidos na voz da autora. Sempre produzindo atravessamentos e reações, como a de uma professora da rede municipal de Cubatão (SP), que me procurou depois do encontro para dizer que, enquanto ouvia a fala de Leda, percebeu que estava chorando sem entender por quê. Já havia entendido.

Em poucas palavras, Leda Maria Martins traça uma teoria estética que reposiciona o conceito de arte e o modo como podemos nos relacionar com a arte.

Abro este relato dessa forma por dois motivos. Primeiro, porque acredito que a relação que surgiu entre as pessoas que formam o Coletivo Djunta Mon e a equipe de educação da Bienal se guiou inspirada por esse reposicionamento proposto por Leda Maria Martins. Segundo, porque no mesmo dia em que ouvi aquelas palavras dela, conheci Paulo Rafael da Silva e Rosseline Tavares, que estavam na plateia, também se encantando com a sabedoria da Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Reinado do Jatobá. Naquele momento, partilhando o café oferecido depois do encontro, trocamos contatos visando a uma futura colaboração.

25 de julho de 2023 Ao redor da mesa na cozinha da sede da Soweto − Organização Negra,2 localizada na rua Silveira Martins, na Sé, parti-

lhando outra vez um café, aquela primeira conversa começou a tomar forma mediante um projeto redigido por Paulo e Rosseline para uma caminhada em territórios sem chão, buscando fortalecer a memória coletiva das populações negras e os movimentos sociais na região da Baixada do Glicério. Além de saber mais sobre o projeto de Educação Patrimonial e Ambiental Baixada do Glicério Viva, realizado por Rosseline, eu e Danilo Pera, assessor da equipe de educação, conhecemos Alva Helena de Almeida, presidenta da Soweto, Luzia Rosa e Maria Baú, atrizes que integram o coletivo Sá Menina,3 da Vila Nhocuné, Zona Leste de São Paulo; Marquinhos, artista da pintura mural que trabalhava na decoração da nova sede da Soweto; o poeta Romildo Ibeji e outras pessoas que foram até lá para nos encontrar e imaginar o que a equipe de educação da Bienal e o Coletivo Djunta Mon poderiam coreografar juntos. Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo, nosso primeiro movimento da publicação educativa, circulou na mesa, com muitos desejos e ideias. Nos tempos e nas possibilidades das coreografias do impossível, algumas danças se inscreveram. Outras, quem sabe, irão se inscrever nos volteios de outros tempos.

14 de setembro de 2023 A articulação do Coletivo Djunta Mon nos levou da Sé para o Jardim Fontalis, Zona Norte de São Paulo. De uma reunião virtual com os professores Rodrigo Pignatari e Ricardo Yuzo Nakanishi, da EMEF Hipólito José da Costa, surgiu uma etapa do nosso projeto Bienal nas Escolas. Renato Lopes, também assessor de nossa equipe, e eu fomos até a EMEF Hipólito para apresentar o que é a Bienal e algo das coreografias do impossível para um grupo de cerca de vinte estudantes que participam dos projetos desenvolvidos por Rodrigo e Ricardo. Sabíamos que a poesia habitava as vidas daquele grupo e que o dia de nossa ida era o dia do Slam da Hipólito. Nas impossibilidades do tempo e das distâncias geográficas, perdemos o Slam, mas recebemos o acolhimento, a escuta e o interesse

dessxs jovens poetas pelo que existe dentro daquela caixa de concreto no Ibirapuera, a quase trinta quilômetros dali. Levamos também a poesia de Ricardo Aleixo e Maurinete Lima, com as ações da Frente 3 de Fevereiro. A palavra coreografada em performances e intervenções antirracistas na cidade. Presenças nas coreografias do impossível, enfrentamentos com as muitas dimensões físicas e simbólicas do genocídio da população negra periférica, vivências que surgem com força nas vozes afiadas dxs poetas do Jardim Fontalis.

24 de outubro de 2023 Parte de nossa proposta com o projeto Bienal nas Escolas é não apenas ir aos territórios de escolas distantes do Parque Ibirapuera para contar sobre a Bienal, mas também criar condições para que essas escolas visitem a mostra. No caso da EMEF Hipólito, com a parceria dos professores Rodrigo e Ricardo e da coordenação da escola, percebemos que era possível imaginar algo mais. Djunta mon. Juntar as coreografias do impossível. Trazer o Slam da EMEF Hipólito para a 35ª Bienal como ativação proposta pela equipe de educação. Pensar uma colaboração com a Cozinha da Ocupação 9 de Julho que não se resumisse ao oferecimento do almoço (o que não é pouca coisa), mas que fosse uma aproximação desse grupo com o trabalho realizado pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC), na luta por muitos direitos: moradia, cultura, educação, alimentação. Nossa parceira dentro da Cozinha, Cacá Mousinho, abraçou a ideia com

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Allan da Rosa durante o encontro.

entusiasmo, o que nos possibilitou construir um programa para que um grupo de cerca de quarenta estudantes permanecesse na 35ª Bienal das 10h às 16h, participando de uma oficina e de um almoço no espaço da Cozinha, explorando as coreografias do impossível em duas visitas com a equipe de mediação e ocupando o Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), projeto do artista Ibrahim Mahama, com uma mostra de curtas realizados pelos estudantes em projeto coordenado pelo professor Rodrigo e uma edição especial do Slam da Hipólito.

“Eu digo que sou, eu digo que é SAGAZ, VORAZ, INSÓLITO, SLAM DO HIPÓLITO!”

Para quem quiser conhecer mais a poesia do Jardim Fontalis, Poesias libertárias. Soltando versos e rimas é o título do livro organizado por Walkiria dos Santos e Ricardo Yuzo Nakanishi, que reúne a produção dos jovens poetas da EMEF Hipólito e alguns dxs versos que ressoaram no Pavilhão da Bienal.

11 de novembro de 2023 A caminhada pelas regiões da Sé, da Liberdade e da Baixada do Glicério vem sendo uma prática de educação patrimonial e antirracista realizada regularmente por algumas das pessoas que participam do coletivo Djunta Mon, como Rosseline, Paulo Rafael e Romildo. Foi por meio dessa prática que Paulo e Rosseline buscaram se aproximar da 35ª Bienal, ao nos enviar a proposta de ação Caminhada Educativa em Territórios sem chão. O título da proposta parte de uma frase de Thiago Vinícius de Paula, em seu texto “um sentido”, escrito para o primeiro movimento da nossa publicação educativa. Vale lembrar: “A gente que vive na quebrada toca o impossível toda hora. A gente coreografa uma dança sem chão, a gente toca o tambor, a gente se aquilomba para tentar superar nossa própria extinção todo dia”.4 Da periferia para o centro, as danças sem chão, o toque dos tambores, o aquilombamento seguem nas coreografias para tocar o impossível a todo momento.

Coreografar possibilidades é brincar através da música, do futebol de várzea, do samba, da poesia, do canto, da festa, da tiririca, da ginga, do tambu, do bumbo, da umbigada, da graça e da malícia, da fantasia, da alegoria do sonho, do desejo de seguir imaginando. É o corpo da mulher preta no terreiro que busca o movimento, a ancestralidade, o fluxo e a impermanência da gira.

É confrontar radicalmente os regimes de verdade sugerindo patrimônios incômodos, museus vivos. É estabelecer relações com humanos e não humanos, com o sagrado, bichos, plantas e minerais. Tia Ciata e Madrinha Eunice se encontraram em quintais e encruzilhadas, exu-zando pro samba como se fosse um blues. E como já dizia a outra madrinha, a Elza: Exu nas escolas e nas rezas.5

De vários encontros, a caminhada em territórios sem chão foi tomando corpo. Em um domingo de manhã, Dia dos Pais, nos encontramos na estátua de Madrinha Eunice, na praça da Liberdade, passamos pela Capela dos Aflitos, falamos de São Chaguinhas, seguimos para a encruzilhada de cinco caminhos, onde terminam as lanternas orientais e começam outras histórias.

Descemos, chegamos à União Social dos Imigrantes Haitianos, na Vila dos Estudantes, onde encontramos Jean Wilnick Cadet e conhecemos o trabalho da Rádio TV Citadelle. Depois, na rua dos Estudantes, encontramos o bailarino, coreógrafo, percussionista e contador de histórias Aboubacar Sidibé, imigrante da Guiné Conacri, que nos apresentou o trabalho desenvolvido pelo Centro Cultural da Guiné pelo fortalecimento das tradições e culturas dos imigrantes de diferentes nações do continente africano no território da Baixada do Glicério. O tempo todo, a caminhada foi pontuada pelas informações e histórias trazidas por Rosseline e Paulo, pelas memórias trazidas por Suelma Deus, secretária geral da Soweto, e pelas palavras manejadas habilmente nas performances poéticas sempre impressionantes de Romildo.

A potência dessa caminhada em territórios sem chão nos atravessou com força. E o cruzamento dos caminhos de nossos estudos da obra do educador e escritor Allan da Rosa, que participou do curso de formação para a equipe de mediação, levou a

Vista da escultura da sambista Madrinha Eunice, durante o encontro.

um novo (re)encontro. Djunta Mon com Allan da Rosa nas coreografias do impossível. Zanzar: águas de caminhos pretos. Em seu canal do Instagram, da Rosa registrou:

Cismar, Zanzar. Pedagoginga.

Hoje com a @sowetoorganizacao negra, o movimento @baixadadoglicerioviva, coçando o educativo da 35° @bienalsaopaulo

Teoria Suada. Rua escola. Imaginário da boca do estômago. Maloca Studies. Arte/Educação em Ninhos e Revides.

Cismar com a modernagem e a eugenia que basearam essas metrópoles. Cismar com as prosas entre quem desejava erguer castelos alforriados e quem na vadiação se protegia dos cacetes. Suas estéticas de jogo, de charada, de finta, de coro. De grave e distorção, de rodeio e ponteira.

Cismar com a paisagem urbana e a rural e os incêndios, namoros e sequestros de barões contemplados do alto tomado das igrejas, lugares de cazuá e de cafua. Cismar com a alfabetização subterrânea nas confrarias negras. Com os clarins e os dedilhados dos barbeiros sangradores que tomavam as escadarias dos festejos. Com o surrealismo preto antes da palavra surrealismo brotar no norte. Com a imaginação de navalha rasgando mundos invisíveis e trançando reinados. Com Madrinha Eunice e a Lavapés. Com a segunda-feira dia dos aflitos, das velas e da estia apaziguando antigas tretas de morte.

Zanzar e pensar as correntes de vento socorrendo fugitivos mutilados e vingativos. Zanzar e ganhar o sol que fervia as latas de fezes carregadas na cuca dos Tigres, os linha-de-frente da desgraçada limpeza da cidade. Zanzar pelas pontes dos tachos de bolinho de peixe do rio Anhanga assados por Sinhanas e Avelinas. Zanzar entre os largos dos enforcados daqui da

Liberdade e os quadros pintados por militares ingleses com as forcas haitianas nos pescoços militares franceses.

Educação de sensibilidades. Perguntar pra ficção o que ela cozinhou das mentirosas memórias que se acreditam (mesmo) verídicas.6

2 de dezembro de 2023 Tarde de sol iluminando e aquecendo o Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas], de Ibrahim Mahama. Coreografando danças sem chão com o Coletivo Djunta Mon e grande elenco: Almir Rosa como mestre de cerimônias sem cerimônias; o locutor Osmar Santos, homenageado da tarde por suas coreografias de cura por meio da pintura; a performance de Luzia Rosa e Maria Baú trazendo à cena um encontro entre Carolina Maria de Jesus e Carolina Noémia de Sousa; Renato Gama cantando “Neguinha Sim!”; o mestre-sala Claudio Adão riscando o chão com seus passos flutuantes no dia do Samba; uma palinha do sarau da EMEF Hipólito; a apresentação do minidocumentário sobre a Baixada do Glicério, dirigido por Lúcio Telles; Romildo Ibeji, Marcelo Lemos e Lucas Scaravelli, poetas da Soweto, coreografando palavras lidas e improvisadas; os tambores, cantos e danças ancestrais da Guiné Conacri, com Aboubacar Sidibé.

Nesse ponto, me deparo com o limite deste relato, com a impossibilidade de alinhar palavras que expressem a energia que circulou entre as pessoas que participaram de algum modo, por todo ou por algum tempo, dessa celebração das danças sem chão pelo Coletivo Djunta Mon. Prefiro passar a palavra a Romildo Ibeji e a Paulo Rafael, mesmo que nestas linhas não sejamos tocados pela beleza de suas vozes e corpos em performance.

No QR code, a poesia de Romildo e a palavra de Paulo Rafael no Centro Cultural Viela em Dia de Lua somam-se a outros registros que documentam as coreografias de danças sem chão que uniram a equipe de educação da Bienal e o Coletivo Djunta Mon.

Oficina de dança da Guiné Conacri com Aboubacar Sidibé.

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gesto: relatos de mediação

AQUI, ONDE DESÁGUA O RIO camila padilha gomes

água mole em pedra dura tanto bate até que fura Neste cubo de concreto, as janelas são amplas e possibilitam olharmos para fora, mas será possível uma presença que perfure as paredes do Pavilhão? A estrutura branca, as pilastras extremamente calculadas, a parede que apaga os rastros da terra e da feitura manual dos trabalhadores que aqui estiveram, é possível tornar essas paredes porosas?

“Você sabe o que existia aqui antes de ser parque?” Ypy-ra-ouêra, 1 palavra que tem origem no tupi-guarani com significado próximo a pau podre, nomeia a região por ser uma área de brejo. Então, se aqui é lugar fértil de encontro de águas, começar uma conversa perto do rio, trazer sua presença para o meio da roda, pode nos aproximar de outras camadas. O córrego do Sapateiro foi o condutor, colocado no centro como corpo de resistência. A água mole que ainda bate, que dança, que curva, que corre, que umedece, que coreografa.

Seis envelopes guardavam trechos de falas de artistas da 35ª Bienal. Utilizar essa metodologia foi intencionar metaforicamente um mergulho coletivo no rio e no que ele poderia nos contar, como se pudéssemos mexer na terra do fundo, ver a água ficar barrenta e ela então nos contar novas histórias.

água mole em pedra dura tanto bate até que ocupa

Nós nos encontramos com o trabalho de Ibrahim Mahama,2 adentramos o Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), e ocupamos seus degraus… A obra nos contata com a feitura dos elementos ali dispostos: o barro que é moldado, os tijolos que são dispostos, as madeiras que são cortadas e conectadas, o ferro que foi extraído. O que se faz no coletivo é também utilizado coletivamente, as mãos que fazem também podem continuar transformando esses espaços,

mesmo aqueles anteriormente arquitetados pelo pensamento colonial.

Denilson Baniwa nos convida a entrar em sua obra Kaá (2023), plantação de milho feita em conjunto com pessoas do povo Guarani. Ao observarmos as pedras com desenhos que misturam animais e objetos da modernidade, conversamos sobre como aquele tipo de registro foi e ainda é considerado algo primitivo, algo de um tempo imemorial, ao mesmo tempo em que “o que se inscrevia em pedras geralmente eram leis, aquilo que não podia esquecer”. O artista escolhe contar histórias da cosmogonia do povo Baniwa e do contato com os brancos neste formato: escrever em pedra, relembrar, não esquecer, grafar em um material da natureza.

água mole em pedra dura tanto bate até que…

O último movimento do trajeto: o que se abre em roda do lado de fora do Parque se abre novamente no trabalho de Edgar Calel.3 Em Xar – Sueño de Obsidiana [Sonho de Obsidiana], (2020-2022), o artista caminha pelo Pavilhão acionando a tecnologia da transmutação, ativando os sentidos de seu corpo como onça, para entrar em contato com um tempo anterior. Em Nimajay Guarani (The Big Guarani House), [A grande casa guarani] (2023), ele nos transporta

para um espaço que, inicialmente, contrasta com o Pavilhão: as paredes de barro, o movimento dos corpos, o fogo, a música, todos esses elementos em uma movimentação que flui a partir e através da coletividade.

A finalização não poderia ser em outro espaço que não na série Mulheres-Mangue (2023), de Rosana Paulino. Se nos propomos a aprender com a coreografia do córrego do Sapateiro, que deságua e molha esta área que ainda se quer como várzea, caminhamos até esse trabalho que coloca o mangue como espaço central de aprendizado, de beleza, inspiração e enigma. O mangue é, ao mesmo tempo, espaço de decomposição e berçário, assim como a várzea. Lugares de encontro de muitas espécies, tecnologias de comunicação, convivência coletiva e funcionamento de grandes ecossistemas. Voltar o olhar ao mangue inspira a voltar o olhar para a várzea que esteve aqui neste território.

Registro da visita em obra de Denilson Baniwa.

coçumba no nosso dialeto é ouvir, mas é além de ouvir. coçumbar é ouvir e entender. primeiro eu coçumbo , pra depois eu cupopiar. cupópia é a fala, é a conversa.
Frase de Cintia Aparecida Delgado registrada em conversa com a equipe de educação.

eu ouço, entendo, e depois coloco isso em prática, depois falo. e esse é um dos saberes mais ricos dos povos tradicionais, dos povos quilombolas. para você aprender dessa forma, você tem que estar ali sempre.

gesto: relatos de mediação

VADIAÇÃO DO IMPOSSÍVEL − UMA VISITA MEDIADA PELA

CAPOEIRA ANGOLA

bruno costa dos santos, kennedy maciel da silva, nivea matias silva e rose mara kielela

Abre as portas minha gente que o povo de Angola chegou – Mestre Topete

Iê!

A roda da 35ª Bienal − coreografias do impossível começa com uma ladainha. Cantando, fizemos nossos primeiros movimentos impossíveis.

Agô Senhora Menina

Agô ya ago bàbá

No Ilê estou chegando Quero dizer Mojubá

[...] Com ajuda de Xangô

Peço licença a vovó

Peço licença a vovô, camaradinha – Mestre Moraes

A capoeira mediou nossos corpos. Os berimbaus, pandeiros, agogôs, reco-recos, atabaques, nossas corpas e vozes nos acompanharam, preenchendo o espaço do Pavilhão Ciccillo Matarazzo.

Ê maior é Deus, pequeno sou eu.

[...] Na roda da capoeira Grande e pequeno sou eu

– Mestre Pastinha

Estabelecemos a canção como diálogo, como modo sensível de gerar “estranhamentos férteis” no encontro com as obras, como soprou o educador e angoleiro Allan da Rosa, em seu encontro conosco.1 O jogo de perguntas e respostas, dançado, tocado e cantado reinou.

Ao abrir da boca de Bruno dos Santos, Kennedy Maciel da Silva, Rose Mara Kielela e Nivea Matias, de companheires da Escola de Capoeira Angola Resistência (ECAR), de Mestre Topete e visitantes, saíram histórias de tempos espiralados em coreografias de retornos. Como foi entoado por Leda Maria Martins: “o que no corpo e na voz se repete também é episteme”.

Giramos esses tempos em torno da obra-árvore, baobá, kalunga de Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá Imê. Demos a volta nela, da mesma forma como giraram nossos ancestrais ao redor dos baobás, dessa vez não para esquecer, mas sim para lembrar. Seguimos cantando pelos trabalhos de Kidlat Tahimik, Denilson Baniwa, Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC, até Torkwase Dyson, onde o toque de iúna ressoou de maneira fúnebre, circulando o espaço. Passando entre suas torres, encontramos um jogo de dentro, jogo pequeno, jogo fechado, de difíceis movimentos, contidos mas também soltos, livres mesmo nas limitações de tempo, espaço, amor e dor.

Subimos pelo vão central do Pavilhão e encontramos o trabalho de Rosana Paulino, em meio às raízes do mangue. Quanto tempo demora para subir a rampa da 35ª Bienal vadiando Capoeira Angola?

Continuamos o caminho no ritmo do afoxé, saudando o Templo de Oxalá (1977), de Rubem Valentim. A força das matas se fez presente na Floresta de infinitos (2023), de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana, que evoca Oxóssi e os caboclos. Passando pela obra de Castiel Vitorino Brasileiro, relembramos o Decreto 847, de 11 de outubro de 1890, presente no Código Penal brasileiro, no qual constava a proibição da capoeira, do samba e de práticas religiosas de matriz africana.

Xô Xô meu canário

Meu canário é cantador – domínio público

Passando pela Frente 3 de Fevereiro, junto à Inteligência ancestral (2023), videoinstalação inspirada na vida, obra e memória de Maurinete Lima, e no Zumví Arquivo Afro Fotográfico, cantamos e questionamos a dita “história oficial do Brasil”, afirmando o protagonismo da luta da abolição. Finalizamos no Quilombo Cafundó, aquilombades. Juntes, descemos para a obra de Ibrahim Mahama.

Jogar e tocar no vão do Pavilhão foi emocionante para todes que

participaram cantando, batendo os instrumentos e a palma, respondendo ao coro. Exercemos nosso direito à opacidade saindo dos campos de entendimento pela razão e evocando as cosmopercepções presentes, saberes de vida incorporados, ancestrais diários. Nossa visita fluiu como um rio entre e dentre as obras, nessa terra alagada de paus podres do Ibirapuera. O Pavilhão foi ocupado pela roda que gira em espiral.

Adeus, povo bom adeus Adeus, eu já vou me embora Pelas ondas do mar eu vim Pelas ondas do mar eu vou me embora

– domínio público

Registros da visita, ao redor de obra de Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá Imê (centro).

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UMA JORNADA PARA A FLORESTA DE INFINITOS

lia yokoyama emi e ricarda wapichana

“Uma jornada para a Floresta de infinitos” é como desaguar num rio de emoções. Tratar de cada momento dessa jornada é manter vivas as experiências. A proposta tem início com a mediadora Lia, em suas narrativas lúdicas, proporcionando o envolvimento com gestos, andanças, explorando as expressões corporais, a imaginação, coreografando os corpos no tempo e no espaço desta Bienal. A mediadora Ricarda Wapichana, com suas vestes tradicionais, já está pronta, aguardando nas obras do MAHKU, o Movimento dos Artistas Huni Kuin, que têm cores vibrantes, geometrias sagradas e temas que traduzem suas cantorias. Paramos para ouvir Ricarda entoar uma canção tradicional do povo Wapichana chamada “Wakunaykian aizii”, uma forma de dizer que estamos felizes celebrando o parixara. Após o canto, uma narração de “Basne Puru Yuxibu: História da aranha encantada”,1 do povo Huni Kuin, contou como a aranha levou seus conhecimentos através da tecelagem e dos algodões coloridos e, depois, resolveu deixar somente os algodões brancos.

Na obra de Edgar Calel, apreciaram a arte do bordado e a arquitetura da Tekoa (casa guarani). Para tornar mais festiva essa jornada, realizamos uma roda para dançar e cantar o canto guarani mbya chamado “Ñande Mbaraete’i katu”,2 batendo os pés para sentir a vibração do chão e manter a conexão com a terra. Vivenciar e experimentar canções e danças ancestrais foi um convite para adentrar o plano de redescobertas de nossas histórias, identidades e ancestralidades indígenas. Prosseguimos para o deserto dos seis sóis da cura, de Guadalupe Maravilla. As crianças descobriram a brincadeira Tripa chuca,3 que servia de entretenimento para Maravilla. A regra é única, as linhas não podem tocar umas nas outras.

E, em poucos passos, chegamos à floresta. E todos ali estavam prepara-

dos para se aventurar na Floresta de infinitos (2023), de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana. Como orientam as tradições, todos disseram: “Agô, licença para entrar”. Foi emocionante presenciar esses canais de percepção para sintonizar o silêncio e ouvir o sutil vento soprando, levando-os para fora. Na saída da floresta, depararam com uma bela lagoa com os barcos em círculo, no vídeo de Manuel Chavajay. E, mais uma vez, ficamos com a contação de história de Ricarda: “O Grilo e a Onça”. Esses animais lutaram em defesa da Terra, e viveram dias intensos em rituais em meio à taquara, a floresta de bambus, e só o amor, a amizade e a cumplicidade superaram vários desafios em prol da mãe Terra. Um deles deixou pegadas e rastro de memórias onde nunca se apaga: no coração.

Aproximando-se do encerramento, percorremos a obra de Anna Boghiguian. Foi encantador observar as crianças apreciando o algodão que

a aranha, da história contada no início da visita, deixou. Na última obra, o chão rosa de Carlos Bunga, adultos e crianças puderam tocar a textura e a materialidade do trabalho. Assim, a pedagoginga, conforme o escritor Allan da Rosa menciona, é ter esse gingado das palavras, dos cantos, uma forma de aprender cantando, brincando juntos, experimentando e, principalmente, pela oralidade, aprender sem caderno e sem lápis. Por aqui ficam meus profundos agradecimentos à equipe de educação, aos participantes, às crianças e aos familiares que deram um brilho especial para que pudéssemos executar essa jornada na 35ª Bienal.4

Registros da visita em obras de MAHKU (acima), Ayrson Heráclito e Tiganá Santana (abaixo esq.) e Carlos Bunga.

gesto: relatos de mediação

DESCOLONIZAÇÃO CULTURAL NO CINEMA: QUEM CONTA NOSSA HISTÓRIA? cristina

mena

A 35ª Bienal reuniu várias obras que podem ser pensadas com base na formulação speak nearby (falar próximo) da cineasta Trinh T. Minh-ha. Diferentemente do speak about (falar sobre), bastante comum no cinema etnográfico, a artista apresenta uma perspectiva decolonial ao retratar uma cultura desconstruindo a lógica bipartida da objetividade científica e da subjetividade nativa. Quando não se evita essa polarização, criam-se fronteiras e limita-se a partilha, hierarquizando as culturas ao fazer um juízo de valor sobre elas.

Para começar a visita, partiu-se de uma rodada de discussão sobre os conceitos que Trinh T. Minh-ha expõe e a relação que esses estabelecem com a realidade contemporânea. Um exemplo, surgido durante a rodada, foi o curta-metragem Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès, baseado no livro Da Terra à Lua, de Júlio Verne. Nesse filme, de uma narrativa colonialista, reflexo do contexto

social no qual a obra foi produzida, há uma representação da dicotomia colono-nativo entre os cientistas que saem da Terra e os nativos da Lua. Dessa forma, mesmo que invadidos e assassinados, os “lunares” são retratados como selvagens e perigosos. Essa análise do conteúdo fílmico permitiu realizar paralelos com a colonização europeia e o neocolonialismo.

Procurando um contexto regional, o grupo assistiu ao filme Thuë pihi kuuwi: Uma mulher pensando (2023), dirigido pelos cineastas Aida Harika Yanomami, Edmar

Tokorino Yanomami e Roseane Yariana Yanomami. Filmado na comunidade Watorikɨ, no estado do Amazonas, a base da narrativa é uma mulher indígena fabulando sobre os efeitos do yãkõana, usado pelos xamãs para se conectarem com os xapiri, guardiões da floresta. Feito na língua yanomami, a narrativa traz cosmogonias do povo Yanomami e mostra o poder da autorrepresentação. Assim que o curta-metragem terminou, os visitantes foram convidados a compartilhar suas perspectivas da obra. Foi comentada a relação temporal da narratividade e, para muitos, era a primeira vez que assistiam a um filme realizado por indígenas.

Concluída a discussão, o grupo continuou caminhando até encontrar a instalação do escultor e cineasta independente filipino Kidlat Tahimik. A enorme obra, presente no andar verde, chamava a atenção dos visitantes. Como uma construção que interligava cinema e colonização, a análise dos diferentes detalhes da escultura possibilitou uma prolífera conversa sobre como o artista conseguiu materializar temáticas complexas, tanto em iconografia como em técnica e, ao mesmo tempo, fazer uma crítica iconoclasta repleta de matizes. Também foi possível estabelecer paralelos entre a sua instalação e a produção

fílmica, principalmente com o longa-metragem Mababangong bangungot [Pesadelo perfumado] (1977).

Finalmente, foi assistido um trecho do documentário Tongues Untied [Línguas desatadas] (1989), de Marlon Riggs, que retrata a comunidade gay negra nos Estados Unidos na década de 1980. Nele, pôde-se perceber a poesia como ferramenta de resistência. O grupo ressaltou as possibilidades criativas do discurso nascido da perspectiva pessoal, que procura conversar com o semelhante, e não focada na distribuição massiva.

A visita ainda não havia sido concluída quando a Bienal já estava terminando o atendimento ao público. Assim, finalizamos a visita conversando enquanto caminhávamos em direção à saída.

Vistas das obras de Trinh T. Minh-ha (acima) e de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami, Roseane Yariana Yanomami (abaixo).

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I

FAZER CABER, TRANSBORDAR CONVERSAS – VISITA COM EQUIPE DO MUSEU DAS FAVELAS

tailicie nascimento

No dia 16 de novembro de 2023, recebemos a visita de pessoas educadoras, estagiárias, pesquisadoras do Museu das Favelas, inaugurado em 25 de novembro de 2022, no centro da cidade de São Paulo. A visita passou por Marilyn Boror Bor, Maya Deren, Denilson Baniwa, Torkwase Dyson, Luana Vitra, Stella do Patrocínio, Quilombo do Cafundó, Rosana Paulino, M’barek Bouhchichi e por nós.

Eu sou muito medrosa, cínica, covarde, sonsa, injusta, eu não sei fazer justiça, não sei como faz justiça, eu não sei fazer1 – Stella do Patrocínio

Stella do Patrocínio silenciou a visita. Primeiro o desencontro − coisa que geralmente acontece quando chegamos no meio de uma conversa sem contextos. Depois, enquanto tudo se assentava em uma porosidade sempre curiosa, os corpos pareciam se esforçar em busca de fazer caber o que ela dizia. Deixá-la chegar. Por quase-cinco-minutos, ninguém parecia querer respirar. Medo de perder as palavras?

Difícil quando você não consegue ver aonde chega com as pessoas, se chega com elas, principalmente quando elas acham que precisam cumprir com espécies de correspondências operacionais sobre aquele encontro. Ah, protocolos de educação… Encontros entre pessoas que entendem o jogo e, por isso, tentam estabelecer cumplicidade…

Stella ficava em uma sala circular e escura, no andar azul. Para acessá-la, era inevitável encontrar o Templo de Oxalá (1977), de Rubem Valentim, seja por ser convidado a encarar as esculturas/presenças/totens, seja porque, desavisado, você ultrapassou a faixa que se fazia barricada de proteção acionada com o recurso vocal de quem ali trabalhava. — Não pode ultrapassar a faixa!

II

Quinta-feira quente em São Paulo. Paramos para beber água no ponto de distribuição da Sabesp2 que ficava no espaço da Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC. Ali, alguém falou sobre contradição. Uma visita é um eterno recalcular quando se está disponível para aquilo que está fora, aquilo que rompe as formas que condizem com performances já esperadas sobre encontros assim. Ficamos. Embaixo da faixa “Quem ocupa cuida”, conversamos sem tanta preocupação com as mais de mil e cem histórias que poderíamos testemunhar acontecer, afinal, de certa forma, elas estavam naquela conversa.

I

Saímos da sala, e Stella seguia ecoando, querendo falar, lembrei de Lélia Gonzalez, “O lixo vai falar, e numa boa”.3 Do lado de fora, todas foram imediatamente em busca da legenda, como se dela pudessem ser alimentadas de algo ainda sem nome para dar conta do incômodo de não saber. Mas sabiam sobre Stella, sabiam que um de seus verdadeiros nomes era reino dos bichos e dos animais, que Stella quer dizer estrela-do-mar, que ela queria dar a vida por alguém, fazer seu papel de doutora, que bala de hortelã é boa para a garganta e que ela queria “um maço de cigarro, caixa de fósforo, chocolate e biscoito de chocolate”.

III

O azul nos pegou antes mesmo que a decisão de nos aproximar fosse pactuada coletivamente. Linhas azuis abraçando as colunas brancas do Pavilhão, um chão-tapete-caminho, flechas, passarinhos. Anil? Como se respira o pulmão da mina? “Uma oração”, vai nos dizer Luana Vitra sobre seu trabalho.

A aridez do dia quente, naquele espaço também quente, some, para que falemos sobre tecnologias, sobre cura sem falar como, sobre oração sem reza nenhuma.

I

Deixei que fizessem suas leituras e, então, voltaram os olhos curiosos para mim, como se aquela expectativa que antes havia sido direcionada ao texto da legenda pudesse ser suprida por mim. Conversamos, como estávamos fazendo desde nosso primeiro “oi”, ainda no Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2023), de Ibrahim Mahama, no primeiro andar.

III

Como uma obra conta histórias e como contamos as histórias dela?

Vista da instalação de Luana Vitra.

educação ou

vigilância?

amador e jr. segurança patrimonial ltda.

Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda Foto: Everson Verdião, 2021

Costumamos escrever textos com uma voz empresarial. Anunciando serviços, propagandeando vantagens. Temos um site igualzinho ao de uma empresa de segurança privada. Nos vestimos com ternos, fazemos a barba e o cabelo, prezamos pela seriedade. Um broche em nossa lapela nos identifica: Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. Permanecemos no canto de uma exposição de arte, aparentemente vigiando, atentos. Mas, hoje, como vamos nos apresentar a vocês, gostaríamos de falar com outra voz.

A Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. é formada por nós, Antonio Gonzaga Amador e Jandir Jr., duas pessoas que se conheceram trabalhando como educadores em um museu. Mas, diferentemente de nossa profissão, na Amador e Jr. fazemos performances em que atuamos em instituições culturais sempre vestidos de terno, uniformizados como seguranças, no entanto fazendo coisas fora do comum. Isso propicia que as ações possam ser facilmente confundidas com o trabalho de um vigilante. Performances, portanto, que se fazem pouco visíveis, que prescindem do palco, que acontecem durante o dia todo em que a instituição funciona. Ora simples, como quando permanecemos de olhos fechados durante o horário comercial, ora notáveis, como quando deitamos no chão da galeria. E, enquanto há pessoas que parecem confusas

ao verem esses estranhos serviços, outras não percebem nada, de modo que uma das interações mais comuns é nos perguntarem, recorrentemente, onde fica o banheiro.

Assim, respondemos perguntas como essa enquanto seguramos cadeiras, esfregamos o rosto em janelas, nos deitamos, trabalhamos com dentes postiços de ouro, fazemos exercícios… Atos surreais e interações distraídas que, por mais estranhos que possam parecer, já experienciamos outras vezes, de outros modos, quando trabalhamos em museus e centros culturais, abordando visitantes.

Sobre isso, vale retomar: trabalhamos como educadores, sim, mas isso quase nunca excluiu o acúmulo de funções. Mesmo quando contratados para atuar como mediadores ou guias, costumeiramente nos vimos também com a responsabilidade de vigiar galerias, orientar os públi-

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cos e cuidar de obras de arte. Ocupações em que usar a voz é fundamental. Pois, se fazendo visitas falamos alto, perguntamos coisas e rimos, ao repreender determinadas ações, podemos nos aproximar e falar baixo, mas, se estivermos estafados ou distantes demais, talvez aconteça de elevarmos a voz, para dizer o que não pode ser feito.

— Ei, com licença, não é permitido fotografar com flash!

— Senhora, por favor, não toque na obra!

falar

Era 2014 e eu trabalhava em um centro cultural no Rio de Janeiro. Ali era só ficar dentro da exposição, seis horas por dia, seis vezes na semana. Não dava para sentar. Uma mediação bancária. Quando falavam comigo, normalmente era uma informação técnica. Quando eu falava com alguém, era uma atenção à norma. Às vezes, tentava começar uma conversa sobre a exposição. “Só tô dando uma olhadinha”; “Tô esperando o horário do cinema”; “Acho legal isso que vocês fazem, mas só tô procurando o banheiro”; “...”; essas eram algumas das respostas. Quando alguém estava a fim de trocar ideia, o que era nosso trabalho de mediação, era ótimo, mas raro. Ótimo, pois estava trabalhando naquilo que queria fazer. Ótimo, pois o tempo passava mais rápido. Na época, pensava em como mediar mais, como fazer o tempo passar. Eu comprava marmita na rua e comia em trinta minutos. Era para ser quinze minutos, mas conseguimos trinta. Nessas idas à rua, sempre se passa por gente que distribui panfletos. Sabe? Ouro, joias, religiosos, mundanos e muitos outros. Uma mediação bancária talvez possa ser iniciada na panfletagem. Mediação de panfletagem.

Funcionou assim: eu fiquei na porta da exposição segurando os fôlderes de visitação da mostra. Quando alguém entrava, eu entregava o fôlder e falava alguma permissão relativa à poética ou à temática da exposição. Por exemplo:

Exposição de fotojornalismo:

Falar – croqui, 2021 nanquim sobre papel, 21 × 29,7 cm.

— Olá! Queria informar que é permitido documentar a realidade.

Exposição de pintura moderna brasileira:

— Olá, tudo bem? Só avisar que é permitido pintar de maneira não acadêmica.

Exposição de patrimônio imaterial:

— Olá! Manifestações não materiais são permitidas por todo o ambiente.

Normalmente, as pessoas só agradeciam, sem perceberem nada. Vez ou outra, alguém não entendia e perguntava: “O quê?”, e o tempo passava mais rápido. O que nos lembra Falar (2021), um de nossos serviços. A premissa da performance é simples, uma instrução para que aconteça em qualquer país não lusófono, mesmo em certos países latinos é válido evitar a performance. Porque, quando abordados, devemos responder em português, interditando um tanto a funcionalidade servil que ordena alguns corpos em exposições de arte. Não à toa, no croqui que criamos para ilustrar a proposta, a frase dita pelo segurança é replicada por um “What?”, dito pelo visitante fora do quadro, assim como o “O quê?” ouvido por um de nós quando panfletou e disse absurdos dentro de uma das primeiras exposições em que trabalhou.

Por isso, aqui, entra o aspecto que gostaríamos de pontuar. Já havíamos notado, desde que começamos a Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda., que nossa escola

de performance foi o trabalho assalariado em que permanecemos de pé por muito tempo, atentos, vigilantes, aprendendo as brechas e os dribles possíveis, fundacionais a uma proposta performática, com nossos corpos implicados. Mas agora percebemos uma interdependência entre a Amador e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. e a prática da educação. Uma relação que fundou tanto algumas de nossas performances com base nas experiências como educadores – mesmo que extrainstitucionais, como a que descrevemos anteriormente –, como também algumas das nossas performances, posteriormente, inspiraram nossas práticas educativas.

vigilante

Por exemplo: era fim do mês, e precisava entregar a atividade que realizaria em um domingo, como parte da programação do museu. Como educador, entreter, mediar e controlar eram demandas requisitadas por diversos setores que, muitas vezes, discordavam quanto ao meu papel, contudo, sem que essas discordâncias resultassem uma definição clara, conjunta, do que significava educar em uma exposição. E, muito em razão disso, não estava certo se a ideia que tive seria acolhida, já que quis, simplesmente, me vendar, permanecendo disponível ao público.

Apesar do meu receio, as pessoas que visitaram meu trabalho em certo domingo à tarde viram, em uma exposição, um homem uniformizado, sentado no chão, com um tecido vendando seus olhos. Era eu, que consegui convencer meus superiores a realizar a atividade. Não foram poucas as pessoas que falaram comigo durante essa

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ação. Por não usar o recurso da visão, nos sensibilizamos sobre assuntos como meditação, interioridade, sobre nós mesmos como pontos irradiadores da constituição de sentido ao mundo. Em determinado momento, uma voz conhecida se aproximou de mim. Era o curador da mostra, que demonstrou entender a relação entre minha cegueira e o assunto que sua exposição suscitava, tão afeita ao que há dentro das coisas. Ali, tive a certeza de que represália nenhuma iria me afetar por parte do público ilustrado daquele museu. Que eu estava validado por mais

de um setor da instituição; quase em uma verificação em duas etapas, em uma contrarrevisão.

Vigilante – sobre os ombros de gigantes, 2021 curadoria: Raphael Fonseca.

Galeria Nara Roesler, São Paulo, SP. Foto: Flávio Freire

O que foi diferente de fazer a performance Vigilante (2019). Ficar de olhos fechados, quando se é um segurança, evoca insegurança, faz o público perceber o papel das pequenas retinas de um homem para seu conforto, até pode evocar a revolta de alguns, daqueles que não percebem uma performance acontecendo ali. Mas, para nós, a primeira experiência tinha sido lançada anos antes, na ação educativa que descrevemos. Sabíamos o que era ficar voluntariamente cego, ainda que a recepção a esse mesmo gesto fosse completamente diferente. Pois, quando vestidos de terno, a definição funcional é mais evidente: ela exige que vigiemos, acima de qualquer coisa. O que tem a ver com nossos olhos abertos.

Ronda, 2023

35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível

Foto: © Iza Guedes/Fundação Bienal de São Paulo

Imponderabilia institucional, 2023

35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível

Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

ronda

Mas também houve uma experiência inversa, quando uma de nossas performances foi reperformada em uma visita educativa. Em Ronda, realizamos uma única volta em todo o espaço expositivo durante o horário de funcionamento. Nela, o que acontece, normalmente, é que andamos vagarosamente.

Cofre, 2023

35ª Bienal de São Paulo − coreografias do impossível

Foto: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

Realizamos Ronda, pela primeira vez, em 2018. Em 2019, trabalhava em uma galeria em que uma instalação ocupava toda a sala. A instalação era um conjunto de móbiles coloridos, com formas geométricas e brilhantes que vinham do Carnaval, colocados no teto. O chão era revestido por um piso emborrachado dourado. A premissa do trabalho era provocar outras formas de estar naquele local, por meio dos elementos ali dispostos. Em uma visita educativa com estudantes do Ensino Fundamental II,

resolvi experimentar essa premissa com a performance: e se a gente andasse pela sala, observando ao nosso redor, com velocidades diferentes? E se a gente tivesse que chegar a determinado tempo no final da sala?

Fomos experimentando essas velocidades e tempos em nosso caminhar: chegar no fim da sala em um minuto. Agora, vamos voltar em três minutos. Repetir o trajeto em cinco. É possível fazer o trajeto em dez minutos? Cada estudante montou sua estratégia. Alguns andaram devagar, outros, em velocidade média, e, quase chegando ao final, esperaram o tempo passar. Teve gente que não quis participar, só ficou olhando a gente andar em diferentes velocidades.

Uma forma de educação pode habitar aí: as múltiplas formas criativas de resolução de problemas. Pois pensamos que a criatividade não é exclusividade da arte. E não só o patrão, o professor ou o supervisor nos ensinam. Quem já não teve, ou já não foi, aquele colega que mostrou como aliviar o cansaço do trabalho? Quando fui técnico em eletrônica, um amigo me ensinou como instalar um emulador do jogo Mario Kart no computador velho do trabalho. Era o patrão sair, começávamos a disputar corridas. Do mesmo modo: nessa turma de Ensino Fundamental II, diante do exercício proposto, certamente alguns ensinaram uma malandragem aos outros. Devemos andar lenta-

mente ou aproveitar a velocidade, parando estrategicamente para cumprir o mínimo, e não o máximo? A lentidão é uma lição nos ambientes fabris, mas uma lição dada pelos trabalhadores e alunos. Fazer menos, descansar, roubar o tempo que lhes foi roubado. Na escola, vale ressaltar ainda que estudantes ensinam uns aos outros a amplitude de possibilidades do próprio corpo. Lugar onde querem todos sentados, bolinhas de papel voam. Quando querem a educação física, a perna de pau inaugura a recusa.

imponderabilia institucional

Enquanto isso, nos oferecem água a cada momento. Pessoas nos mesmos lugares que nós, e no mesmo tempo, não obtiveram essa gentileza. Uma pessoa passa entre nós dois com muito ímpeto, divertindo-se muito. Ao passar, arranca o meu broche, derrubando-o no chão. Apenas aponta e diz “Caiu aí!”, e segue seu caminho divertido. Uma pessoa para à nossa frente, em silêncio, e nos observa. Depois de alguns minutos, diz: “Eu entendi tudo, muito bom”. Podemos perceber o pensamento rizomático em seu olhar. O que pode ser imponderável dentro de uma instituição? O que pode ser ponderável?

Nos processos de mediação das escolas-empregos pelas quais passamos, nos percebemos quase como uma lousa. Alguns talvez vejam Imponderabilia institucional (2023) – performance na qual ficamos, ambos, dentro de um detector de metais estilo portal, um de frente para o outro – e tantas outras de nossas performances como uma lousa vazia ou preenchida por equações complexas. A elas, falta um professor. Por sua vez, outros vão se perceber como o profes-

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sor. Entender, explicar e interagir se torna, então, a ação em sequência. Uma lousa é um objeto passivo. Não reage, mas suporta olhares escrutinadores, rasuras, apagadores, tapas acompanhados de gritos com palavras de ordem à turma. Mas a verdade é que não somos lousa nenhuma. Somos sujeitos no campo ampliado da educação, esse que acontece infrainstitucionalmente. E nossas conversas miúdas, nossas pequenas desobediências, se quisermos seguir com as analogias escolares, são a didática da vez. Para essas analogias, múltiplas formas de comunicação são fundamentais. Seja a verbal, a não verbal, o corpo em movimento, o olhar ou outra ainda não inventada. Um ponto transversal nesse processo de mediação é um exercício de escuta. Escuta literal, escuta com o corpo, escuta com o espaço, escuta de si, escuta coletiva. E é difícil escutar. Às vezes, estamos cansados, às vezes, já sabemos o que queremos dizer, às vezes, temos um roteiro a seguir, às vezes, eu tenho que entregar um trabalho amanhã. No entanto, é na escuta que podemos descobrir o fazer diferente, o fazer junto, o fazer do impossível. Isso é uma troca. Não é possível escutar sozinho. É um exercício coletivo, feito à surdina. É a palavra mediação. Aqui, nossas performances, nosso trabalho assalariado, nossas raivas, as posições de aprendizes e mestres, nós… Aqui, tudo isso se confunde. Inevitavelmente.

Amador e Jr. Segurança

Patrimonial Ltda. é uma série de propostas performáticas idealizadas e realizadas por Antonio Gonzaga Amador (Rio de Janeiro, Brasil, 1991. Vive no Rio de Janeiro) e Jandir Jr. (Rio de Janeiro, Brasil, 1989. Vive no Rio de Janeiro). Os artistas, camuflados como seguranças, questionam o papel dos corpos – marginalizados – de funcionários dentro de situações institucionais das artes através de ações inusitadas em espaços expositivos. Participou de exposições no Museu Paranaense (Curitiba, PR), Centro Cultural São Paulo (São Paulo), Museu da República e Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro).

gestos: notas

ERÊS – UMA COREOGRAFIA QUE COMEÇA NA IMAGINAÇÃO

1 Manifestação cultural presente em estados das regiões Norte e Nordeste do Brasil.

“A FILHA QUE VIRA UMA ANCESTRAL DA MÃE” − A BELEZA DE UM CORO

1 Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos: Histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. trad. Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022.

2 Algumas das reflexões presentes neste relato tiveram início no texto “Pero las madres sabemos que no − Um coro de leitoras”, escrito por Regiane Ishii para a plataforma elas escrevem . Disponível em: www.elasescrevem.org/pero-las-madres-sabemos-que-no-um-coro-de-leitoras/. Acesso em 2023.

3 Anderson Feliciano, “Uma paisagem habitada pelas infâncias do corpo", in Aqui numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo : coreografias do impossível . São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 34-39.

4 Rosana Paulino e Sueli Carneiro, “Nós não temos um drama, temos uma luta para tocar", in Meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo : coreografias do impossível . São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023.

5 Dayanita Singh, Myself Mona Ahmed . Zurique: Scalo Publishers, 2001.

6 “Correspondências entre vozes, uma carta para abrir conversas", in Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo, op.cit.

SOBRE O SILÊNCIO ENTRE IMAGINAR O POSSÍVEL E NOMEAR O IMPOSSÍVEL

1 As seis perguntas foram: O que é o impossível? O que é impossível? Como nomear o impossível? Como imaginar o possível? O que é possível? O que é coreografia?

2 Além de dezessete alunos, havia professores que acompanharam partes da ação, de acordo com sua disponibilidade.

3 O projeto Bienal nas Escolas promove encontros em escolas que não puderam visitar outras edições da mostra, e que estão distantes do Parque Ibirapuera. Na 35ª Bienal, em parceria com a Diretoria Ensino Sul 3, participamos da Orientação Técnica dos professores de arte e visitamos duas escolas de Parelheiros: EE Dr. Antônio Pereira de Lima e EE Hermínio Sacchetta. Ambas visitaram a 35ª Bienal depois dos encontros em sala de aula.

DE TABELA

1 Ricardo Aleixo, "Geral", in Pesado demais para a ventania . São Paulo: Todavia, 2018, p. 181.

2 Bordões populares ditos em um jogo de futebol.

3 Lema do time chileno de futebol cujo nome é Palestino.

GÊNERO: ENTRE PESSOAS, DOCUMENTOS E OUTRAS ESPÉCIES

1 Trecho do poema “ter muitos nomes v.3”, de Diana Salu, in Nina Maria, “Sete poemas de Diana Salu”. Ruído Manifesto, 20 out. 2023. Disponível em ruidomanifesto.org/sete-poemas-de-diana-salu/. Acesso em 2023.

CURSO DE FORMAÇÃO

1 A pedagogia das encruzilhadas (2019), de Luiz Rufino, nos acompanhou ao longo da formação. Em alguns momentos, convidamos e/ou evocamos no Pavilhão algo próximo de uma encruzilhada . Nas palavras de Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino, “as encruzilhadas são lugares de encantamento para todos os povos”.

DJUNTA MON NAS COREOGRAFIAS DO IMPOSSÍVEL

1 Encontro de lançamento da publicação educativa: primeiro movimento, com Leda Maria Martins e Thiago Vinícius de Paula, em 29 abril 2023. Disponível em: www.youtube.com/

watch?v=G_Ug-3SgyKc. Acesso em 2023.

2 Atuante há 32 anos, a Soweto − Organização Negra é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos para a defesa dos direitos da população negra. Para saber mais, acesse: www.soweto.org.br.

3 Criada em 2014, a produtora cultural Sá Menina tem o propósito de elaborar e executar projetos artísticos afrocentrados. Para saber mais, acesse: www.samenina.com.

4 Thiago Vinicius de Paula e Agência Solano Trindade, “ Um sentido", in Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo : publicação educativa da 35ª Bienal: coreografias do impossível São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 94.

5 Trecho da proposta de ação Caminhada Educativa em Territórios sem chão, por Paulo Rafael da Silva e Rosseline Tavares, para a 35ª Bienal.

6 Allan da Rosa, texto da postagem “Cismar, Zanzar. Pedagoginga [...]”. Instagram @darosaallan, 12 nov. 2023. Disponível em: www.instagram. com/p/CzhxIzuthqI/?img_index=1. Acesso em: 2023.

AQUI, ONDE DESÁGUA O RIO

1 Fez parte da pesquisa para a visita o livro Crônicas de São Paulo: Um olhar indígena (2004), de Daniel Munduruku, no qual o autor interpreta lugares da cidade a partir da influência indígena.

2 Citação de um dos envelopes da visita: “É importante reconhecermos realmente essa ideia de trabalho prolongado, o fato de que às vezes desfrutamos de nossas liberdades e autonomias às custas dos outros”, Ibrahim Mahama para Time Sensitive [Sensível ao tempo], em 27 de janeiro de 2020.

3 “No lugar onde moro, todas as manh ã s, quando acordo, encontro meus parentes em volta do fogo, naquele lugar quente que esfregamos nossas m ãos e esperamos que comece a ferver o café; enquanto isso acontece, h á sempre alguém da fam í lia que come ç a a compartilhar

imagens e cenas de sonhos que teve...”. Edgar Calel para Silo Residência Artística, 2018.

VADIAÇÃO DO IMPOSSÍVEL − UMA VISITA MEDIADA PELA CAPOEIRA ANGOLA

1 Encontro de formação da equipe de mediação da 35ª Bienal, realizado em 12/08/2023.

UMA JORNADA PARA A FLORESTA DE INFINITOS

1 “Basne Puru Yuxibu: História da aranha encantada", in Una Shubu Hiwea: Livro Escola Viva do povo Huni Kuin do rio Jordão São Paulo: Itaú Cultural, 2017. p. 44-46. Disponível em issuu. com/itaucultural/docs/publicacao_unashubuhiwea. Acesso em 2023.

2 Vídeo com versão de “Ñande Mbaraete’i Katu”. Disponível em www.youtube.com/watch?v=_5fE9Rwfyb8. Acesso em 2023.

3 Sugestão para o jogo infantil, conhecido em El Salvador como Tripa chuca, composto pela conexão de números com linhas que formam um padrão abstrato: uso de papel, canetinha, giz e carvão. Caso não tenha esses itens, pode ser usada a ponta do dedo, vareta ou galhos para riscar o chão ou a areia de praias e desertos.

4 Este texto é a transcrição do relato oral feito por Ricarda Wapichana à Lia Yokoyama Emi. Ambas mediadoras realizaram a visita em conjunto.

FAZER CABER, TRANSBORDAR CONVERSAS – VISITA COM EQUIPE DO MUSEU DAS FAVELAS

1 Medrosa − Ode à Stella do Patrocínio − Linn da Quebrada.

2 Em três espaços distribuídos pelo Pavilhão e na área externa conhecida como varanda , era possível que as pessoas encontrassem postos com distribuição de água tratada para o consumo.

3 Lélia Gonzalez, “Racismo e sexismo na cultura brasileira", in Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. São Paulo: Diáspora Africana, 2018, p. 193.

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o que é o impossível? o que é impossível?

o que é possível?

como nomear o impossível?

como imaginar o possível?

o que é coreografia?

fundação bienal de são paulo

Fundador

Francisco Matarazzo Sobrinho · 1898 –1977 presidente perpétuo

Conselho de administração

Eduardo Saron · presidente

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente

Membros vitalícios

Adolpho Leirner

Beno Suchodolski

Carlos Francisco Bandeira Lins

Cesar Giobbi

Elizabeth Machado

Jens Olesen

Julio Landmann

Marcos Arbaitman

Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa

Pedro Aranha Corrêa do Lago

Pedro Paulo de Sena Madureira

Roberto Muylaert

Rubens José Mattos Cunha Lima

Membros

Adrienne Senna Jobim

Alberto Emmanuel Whitaker

Alfredo Egydio Setubal

Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires

Angelo Andrea Matarazzo

Beatriz Yunes Guarita

Camila Appel

Carlos Alberto Frederico

Carlos Augusto Calil

Carlos Jereissati

Claudio Thomaz Lobo Sonder

Daniela Montingelli Villela

Eduardo Saron

Fábio Magalhães

Felippe Crescenti

Flavia Buarque de Almeida

Flávia Cipovicci Berenguer

Flavia Regina de Souza Oliveira

Flávio Moura

Francisco Alambert

Gustavo Ioschpe

Heitor Martins

Helio Seibel

Isay Weinfeld

Jackson Schneider

Joaquim de Arruda Falcão Neto

José Olympio da Veiga Pereira

Kelly de Amorim

Ligia Fonseca Ferreira

Lucio Gomes Machado

Luis Terepins

Maguy Etlin (licenciada)

Manoela Queiroz Bacelar

Marcelo Mattos Araujo

Miguel Wady Chaia

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Nina da Hora

Octavio de Barros

Rodrigo Bresser Pereira

Ronaldo Cezar Coelho

Rosiane Pecora

Sérgio Spinelli Silva Jr.

Susana Leirner Steinbruch

Tito Enrique da Silva Neto

Victor Pardini

Conselho fiscal

Edna Sousa de Holanda

Flávio Moura

Octavio Manoel Rodrigues de Barros

Conselho consultivo internacional

Maguy Etlin · presidente

Pedro Aranha Corrêa do Lago · vice-presidente

Andrea de Botton Dreesmann e Quinten Dreesmann

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Catherine Petitgas

Frances Reynolds

Mariana A. Teixeira de Carvalho

Mélanie Berghmans

Miwa Taguchi-Sugiyama

Paula Macedo Weiss e Daniel Weiss

Sandra Hegedüs

Conselho de honra

Alex Periscinoto

Heitor Martins

Jorge Eduardo Stockler

Julio Landmann

Luis Terepins

Luiz Diederichsen Villares

Manoel Francisco Pires da Costa

Roberto Muylaert

José Olympio da Veiga Pereira

Diretoria

Andrea Pinheiro · presidente

Maguy Etlin · primeira vice-presidente

Luiz Lara · segundo vice-presidente

Ana Paula Martinez

Francisco Pinheiro Guimarães

Maria Rita Drummond

Ricardo Diniz

Roberto Otero

Solange Sobral

Equipe

Superintendências

Antonio Thomaz Lessa Garcia · superintendente executivo

Felipe Isola · superintendente de projetos

Joaquim Millan · superintendente de projetos

Caroline Carrion · superintendente de comunicação

Superintendência executiva

Giovanna Querido

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Relações institucionais e parcerias

Irina Cypel · gerente

Daniel Rubim

Deborah Moreira

Laura Caldas

Raquel Silva

Victória Furbringer Bayma

Viviane Teixeira

Superintendência de projetos

Produção

Dorinha Santos · coordenadora de produção

Ariel Rosa Grininger

Bernard Lemos Tjabbes

Camila Cadette Ferreira

Camilla Ayla

Carolina da Costa Angelo

Manoel Borba

Nuno Holanda de Sá do Espírito Santo

Tatiana Oliveira de Farias

Educação

Simone Lopes de Lira · gerente de produção

Thiago Gil de Oliveira Virava · gerente de conteúdo

André Leitão

Bruna de Jesus Silva

Danilo Pera

Giovanna Endrigo

Regiane Ishii

Renato Lopes

Tailicie Paloma Paranhos do Nascimento

Superintendência de comunicação

Ana Elisa de Carvalho Price · coordenadora de design

Rafael Falasco · coordenador editorial

Adriano Campos

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Felipe de Melo Gomes

Francisco Belle Bresolin

Julia Bolliger Murari

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Jamilly Leite Santos · jovem aprendiz

Arquivo Bienal

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Ana Helena Grizotto Custódio

Anna Beatriz Corrêa Bortoletto

Antonio Paulo Carretta

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Júlia Maia Lisboa

Kleber Costa Timoteo

Marcele Souto Yakabi

Pedro Ivo Trasferetti von Ah

Raquel Coelho Moliterno

Sheila Virginia Rocha de Oliveira Castro

Thais Ferreira Dias

Leandro Melo · consultor de conservação

Aila Passeto Castro de Sousa · estagiária

Julia Schettini Alves · estagiária

Milena Ondichiatti Bessan · estagiária

Caroline de Paula Marques · jovem aprendiz

Jennyfer Fagundes de Farias · jovem aprendiz

Administrativo-financeiro

Finanças

Amarildo Firmino Gomes · gerente

Edson Pereira de Carvalho

Fábio Kato

Silvia Andrade Simões Branco

Eduarda Silva Espinola · jovem aprendiz

Gestão de materiais e patrimônio

Valdomiro Rodrigues da Silva Neto · gerente

Larissa Di Ciero Ferradas · coordenadora

Angélica de Oliveira Divino

Daniel Pereira

Sergio Faria Lima

Victor Senciel

Vinícius Robson da Silva Araújo

Wagner Pereira de Andrade

Planejamento e operações

Rone Amabile

Vera Lucia Kogan

Recursos humanos

Higor Tocchio

Juarez Fonseca dos Reis Junior

Matheus Andrade Sartori

Tecnologia da informação

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Jhones Alves do Nascimento Matheus Lourenço

35ª Bienal de São Paulo –coreografias do impossível

Curadoria

Diane Lima

Grada Kilomba

Hélio Menezes

Manuel Borja-Villel

Sylvia Monasterios · assistência de curadoria

Tarcisio Almeida · assistência de curadoria

Matilde Outeiro · assistência de curadoria 2022

Conselho curatorial

Omar Berrada

Sandra Benites

Sol Henaro

Thomas Jean Lax

Identidade visual

Nontsikelelo Mutiti

Sua avaliação sobre esta publicação e seus usos em diferentes contextos é muito importante para a Fundação Bienal de São Paulo. Você pode colaborar dedicando poucos minutos para responder algumas questões no formulário online no endereço:

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Para mais informações sobre a 35ª Bienal e conteúdos complementares da publicação educativa, acesse bienal.org.br

O título do terceiro volume da publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo –caminhar através da dança através da esquiva e de seus saberes seguimos aprendendo – é uma composição de frases de autoria de Sandra Benites, Regina Aparecida Pereira e Diane Lima.

patrocínio master

patrocínio

agência oficial

apoio

parceria cultural

realização

créditos da publicação

organização

Fundação Bienal de São Paulo

concepção

Equipe de Educação da Fundação Bienal de São Paulo com a consultoria de Dora Silveira Corrêa

Curadoria da 35ª Bienal de São Paulo

projeto gráfico

Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo

Nontsikelelo Mutiti

coordenação editorial

Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo

preparação e revisão

Sandra Brazil, Guilherme Ziggy

transcrição e revisão de áudios

Janaína Marcoantonio, Mariana Nacif Mendes

produção gráfica

Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo

créditos de imagens · gestos

p. 37: © Aline Braga/Fundação Bienal de São Paulo

p. 74-75, 83: Danilo Pera

p. 80, 81: © Iza Guedes/Fundação Bienal de São Paulo

p. 47: Renato Lopes

p. 87 (acima): Tailicie Nascimento

p. 60 (dir.): Yala Silva

demais fotos: © Levi Fanan/Fundação Bienal de São Paulo

tratamento de imagens e impressão Ipsis

papel

capa: Supremo 250g/m², miolo: Offset 120g /m²

famílias tipográficas

LL Circular, Bagatela

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As imagens e os textos reproduzidos nesta publicação foram cedidos por artistas, fotógrafos, escritores ou representantes legais e são protegidos por leis e/ou contratos de direitos autorais. Nenhum uso é permitido sem a autorização da Bienal de São Paulo, dos artistas e/ou dos fotógrafos.

Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores de direitos das obras reproduzidas, mas nem sempre isso foi possível. Corrigiremos prontamente quaisquer omissões, caso nos sejam comunicadas e comprovadas.

Distribuição gratuita

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Caminhar através da dança, através da esquiva e de seus saberes, seguimos aprendendo : publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo : coreografias do impossível. — 1. ed. — São Paulo: Bienal de São Paulo, 2024.

Vários autores.

ISBN 978-85-85298-87-6

1. Bibliografias e catálogos

2. Arte contemporânea

3. Arte contemporânea – Exposições

4. Bienais de São Paulo (SP) – Exposições

24-191957

CDD – 709.8161

Índices para catálogo sistemático:

1. Bienais de arte : São Paulo : Cidade 709.8161

Eliane de Freitas Leite – Bibliotecária – CRB - 8/8415

Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

caminhar da através dança

realização

da

através esquiva

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