segundo movimento | publicação educativa – 35ª Bienal de São Paulo

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nontsikelelo mutiti é artista visual e educadora, nascida no Zimbabwe. Está comprometida em elevar o trabalho e as práticas do passado, presente e futuro de comunidades negras, através de uma abordagem conceitual no design, publicações e práticas de arquivo. Atualmente é diretora dos estudos de pós-graduação em design gráfico na Yale School of Art, EUA.

Colagens originais de Nontsikelelo Mutiti para o projeto audiovisual Pain Revisited [Sofrimento revisitado], 2015. A obra reimagina o corpo negro em sofrimento como agente de potencialidade através da arte e da colaboração. A obra, em sua duração total, contém imagens adicionais criadas por Nontsikelelo Mutiti e Dyani Douze. A trilha sonora foi produzida por Dyani Douze. Disponível em: <nontsikelelomutiti.com/2017/01/23/pain-revisited-excerpt/>. Acesso em: abr. 2023.


meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas


Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam


meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas

Publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo – coreografias do impossível

O título desta publicação é uma composição de frases de autoria de Rosana Paulino registradas durante a visita da equipe de Educação ao seu ateliê em março de 2023. Entre os conteúdos da publicação, foram inseridas ainda outras frases registradas durante essa visita.


As publicações educativas da Bienal de São Paulo incorporam o compromisso da Fundação Bienal de promover a democratização do acesso à arte. Pensadas e desenhadas a fim de lançar múltiplas questões e reflexões sobre a mostra, essas publicações servem como um valioso recurso para educadores, estudantes e pessoas que desejam fazer despertar – ou cultivar – o valor da arte contemporânea em públicos cada vez mais numerosos e diversos. Para a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, a publicação foi cuidadosamente projetada para ser apresentada em três volumes, lançados em três tempos diferentes, com propostas que se complementam. Os dois primeiros servem como um instrumento de trabalho para o curso de formação de mediadores e ações de difusão que antecedem a grande mostra do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, enquanto o terceiro volume será organizado de modo a servir de base para as ações de educação durante as exposições itinerantes que acontecerão em 2024, quando recortes da mostra paulistana serão apresentados para cidades do Brasil e do mundo. Essas publicações são fruto do esforço colaborativo entre a curadoria e a dedicada equipe permanente da Fundação Bienal. Elas oferecem aos mediadores, professores e educadores as ferramentas necessárias para envolver e preparar os leitores e visitantes. Os conteúdos e suas muitas vozes explo-

ram a estrutura conceitual da mostra, que se constrói em torno do trabalho curatorial de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Cada volume – ou movimento, como foram batizados – oferece ensaios e conversas sobre temas contemporâneos, exercícios de poética, gestos criativos e novas sensibilidades, ao mesmo tempo que conta com descritivos contextuais sobre as obras e seus artistas, fornecendo informações e compartilhando resultados de uma equipe devotada à pesquisa de arte e educação. Lançado em abril de 2023, o primeiro movimento recebeu o instigante título aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo, frase da poeta e acadêmica Leda Maria Martins. A presente publicação, que vem a público às vésperas da abertura, também guarda em seu nome uma reflexão: meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas, palavras emprestadas da artista Rosana Paulino. Se pensados em conjunto, como devem ser, os títulos podem ser entendidos como uma chave de leitura para o trabalho que a Fundação Bienal de São Paulo vem desenvolvendo com diligência, isto é, uma coreografia coletiva para a apresentação de mais uma mostra atual, plural e histórica.

José Olympio da Veiga Pereira Presidente – Fundação Bienal de São Paulo


Compartilhando da histórica missão do Ministério da Cultura do Governo Federal de promover o crescimento do campo cultural e torná-lo mais acessível, além de fomentar a economia criativa, a Bienal de São Paulo chega agora a sua 35ª edição com mais um projeto curatorial inovador e afinado com as questões mais urgentes de nossa época. Esta é uma marca na trajetória deste evento, cujo objetivo sempre foi o de receber um público amplo e mostrar o que há de mais atual no mundo das artes, ao mesmo tempo que promove a sustentabilidade e os direitos humanos, essenciais para o fortalecimento de uma cultura cada vez mais cidadã. Desde a sua primeira edição, em 1951, a Bienal de São Paulo tem ocupado um lugar de prestígio na cultura nacional que vai muito além de suas exposições. Sua consistente continuidade ao longo dos anos foi responsável por formar e capacitar trabalhadoras e trabalhadores da cultura nos mais variados campos, como educadores, críticos de arte, montadores, arquitetos, produtores, editores, comunicadores, designers e tantos outros ofícios, com cada projeto impactando direta e indiretamente um contingente extraordinário de pessoas, famílias e vidas. Dentre os impactos da mostra, é importante destacar a impecável atuação educativa da Bienal. Cada uma de suas edições cria as condições necessárias para se alcançar novos públicos e fomentar o

conhecimento crítico de novos visitantes de todas as idades. Com uma equipe de Educação permanente, a Fundação Bienal de São Paulo desenvolve cursos livres, ações de mediação e programas de formação para educadores e mediadores, além de produzir as publicações educativas, ferramentas de trabalho imprescindíveis para projetos artístico-pedagógicos. Nesse quadro colorido e múltiplo da Bienal de São Paulo, são criadas oportunidades para aprendermos mais sobre nós mesmos, apreciarmos a diversidade do mundo e celebrarmos a cultura. Para o Governo Federal, aqui representado pelo Ministério da Cultura, não há união nacional sem arte, e não há arte sem democracia. Vamos festejar mais uma Bienal de São Paulo. Viva a arte!

Margareth Menezes Ministra da Cultura do Brasil


Há 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem contribuído para a valorização da cultura de uma sociedade tão complexa e heterogênea como a brasileira. Além de todo o trabalho envolvendo pesquisa, produção de conteúdo, mapeamento, incentivo e difusão de manifestações artístico-intelectuais, a organização firma parcerias com outros agentes alinhados a essas preocupações – como a Fundação Bienal de São Paulo. Com a volta do fluxo de atividades, eventos e mostras após o período mais duro da pandemia de Covid-19, o ic empenha-se em proporcionar ao público programações que contemplem tanto o espaço físico (a sede em São Paulo) quanto o virtual. Na área de artes visuais, destacam-se as exposições Tunga – conjunções magnéticas (2021-2022), Bispo do Rosário – eu vim: aparição, impregnação e impacto (2022) e Um século de agora (2022-2023). Aliás, a reunião de obras de Tunga, realizada em conjunto com o Instituto Tomie Ohtake, ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (apca). Já no quesito on-line, vale mencionar as mostras virtuais Filmes e vídeos de artistas, que traz produções audiovisuais de caráter experimental, e Livros de artista na coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem uma apreciação detalhada. Ambas estão hospedadas em itaucultural.org.br. Ainda no site e no canal do IC no YouTube, há uma série de conteúdos voltados para crianças e adultos, de oficinas e podcasts a colunas e reportagens. A Escola IC, a Enciclopédia Itaú Cultural de arte e cultura brasileira e o programa Ocupação Itaú Cultural também reforçam o empenho da organização em apresentar diversos modos de fruição, acesso a informações e construção de saberes. Prezando pela diversidade de formatos, pensamentos e subjetividades, o IC continua fomentando o fazer criativo e crítico no Brasil e do Brasil, pois sabe que aí reside um dos grandes encantos deste país. Itaú Cultural

O Instituto Cultural Vale tem a alegria de fazer parte da realização desta 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível e de seu programa educativo, que nesta edição experimenta novos formatos e abordagens. Diante da proposta curatorial de criar um “espaço de experimentação aberto às danças do inimaginável”, como definem os curadores, nos unimos a essa iniciativa que conecta arte e educação, expande o acesso à cultura e aproxima estudantes, professores e famílias de vivências interdisciplinares. Com uma curadoria conjunta, horizontal e diversa, a Bienal – maior exposição de arte contemporânea do hemisfério Sul – nos convida a pensar a arte como exercício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como espaço de aprendizado. Nesse sentido, também se conecta ao propósito do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para aprender, refletir, desenvolver novos olhares e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em todo o Brasil. Instituto Cultural Vale


A Bloomberg se orgulha de patrocinar coreografias do impossível, a 35a edição da Bienal de São Paulo. Há mais de uma década temos apoiado as excepcionais exposições de arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo no Parque Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. A edição deste ano continua a tradição de apresentar instalações de arte cativantes e provocativas, que são gratuitas e abertas ao público. Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e às novas ideias se estende através do apoio de longa data às artes, que, segundo acreditamos, constituem um caminho importante para motivar cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a empoderar artistas e organizações culturais para atingir novos públicos. Bloomberg

Diante das incessantes questões da humanidade, talvez valha a pena conviver um pouco mais com algumas perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que permitam escavar e construir proces­ sualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de nós mesmos. O encontro entre arte e educação – ambas entendidas como campos do saber – permite a torção do tempo e do espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutralidades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de inferir o real e nele interferir? Ela permite (re)povoar imaginários, descompassar o estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e pessoas, e assim talhar a realidade com narrativas que articulem o individual e o coletivo, de modo processual e coerente em relação às questões que atravessam a existência. É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e a Fundação Bienal, por meio da 35ª Bienal de São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida em fomentar experiências de convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício da alteridade. Esta parceria, que se constitui e se renova há mais de uma década, tem resultado na promoção de projetos como exposições simultâneas, encontros públicos, seminários e formações para educadores, bem como a consolidada mostra itinerante com recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e proposições se integra à perspectiva institucional da cultura como um direito e concebe, junto a uma das maiores mostras do país, um horizonte acessível para a arte contemporânea no Brasil.

Sesc São Paulo


12 correspondências entre vozes, uma carta para seguir conversas equipe de educação

20 quais movimentos compõem as coreografias do impossível? diane lima, grada kilomba, hélio menezes e manuel borja-villel

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nós não temos um drama, temos uma luta para tocar: conversa entre rosana paulino e sueli carneiro

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desviar para se encontrar: reflexões com base no livro the lesbiana’s guide to catholic school geni núñez

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gesto: coreografar a palavra – lambe-lambe equipe de educação

52 sauna lésbica por malu avelar com ana paula mathias, anna turra, bárbara esmenia e marta supernova

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53 58 de fora para dentro, de dentro para fora trinh t. minh-ha

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72 denilson baniwa

76 �am e maldoror: descolonização como beleza e ação kênia freitas

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84 gesto: audiodescrições poéticas equipe de educação

85 86 aurora cursino dos santos e ceija stojka

89 94 créditos

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90 kapwani kiwanga

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rosana paulino Da série Jatobá, 2019 Aquarela, grafite sobre tela 65 × 50 cm Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo Foto: Isabella Matheus


é necessário que a gente comece a pensar o conhecimento de outras maneiras. conhecimento em roda, conhecimento embaixo de uma árvore, conhecimento das plantas, conhecimento que coloque o sujeito dentro da natureza e não acima dela.


correspondências entre vozes, uma carta para seguir conversas

equipe de educação da fundação bienal


caminhar sem perceber levar uma vida só não se pode escolher aquilo que dá o nó de todos os desejos impossível viver só não se deixe implicar busque tornar possível a proposta de rimar ler um verso sensível poderás compreender o que é impossível1

Voltei!

Continuo sendo…2, e hoje sou feita de mais vozes.3 Mas não sou maior que antes. Dos desejos que me criaram, o de ser grande não é o que mais me instiga. Prefiro continuar fragmentada, ser muitas partes juntas e poder existir apenas como encontro. E, em grande parte, é sobre isso que gostaria de falar com você nesta mensagem. As vozes que me constituem carregam a memória de cantos, risos e prosas dos vários encontros que aconteceram desde o primeiro movimento. E, como você já sabe, páginas escritas nem sempre dão conta do vivido, daquilo que se inscreve no tempo e no corpo. Mas, aqui, minhas vozes vão contar algo sobre os encontros que tornam este

1/ Versos inspirados na literatura de cordel, criados com base em respostas da equipe de Educação às perguntas lançadas pelo coletivo curatorial da 35ª Bienal em meados de 2022. 2/ Meu nome é um gesto. Um intervalo, algo entre aquilo que foi, o que é e ainda será. As vozes que me criaram ainda não me nomearam. E não é porque os nomes não importem para elas. Pelo contrário! Trata-se de exercitar o convívio com aquilo que é vivo e, por isso, muda constantemente. Aquilo que tem, ao mesmo tempo, muitos nomes e nenhum. 3/ Quando a publicação aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo estava prestes a entrar na gráfica e vivíamos o toró de ideias para este movimento, Meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas, celebramos a chegada de mais vozes à equipe de Educação. Dos ritornelos das experiências de mediação em Bienais, vêm Bruna e Tai.


movimento − assim como o anterior e aquele que ainda virá − uma realidade, e você também poderá ver registros e reflexões desses momentos nas encruzilhadas.4 No final de abril colocamos nosso bloco na rua. Contamos com a presença de uma abre-alas de respeito − Leda Maria Martins. Ela e Thiago Vinicius de Paula da Silva dançaram e grafaram no tempo os saberes corporificados das pessoas presentes no Pavilhão da Bienal. Trem sujo da Leopoldina, Correndo correndo, Parece dizer: Tem gente com fome, Tem gente com fome, Tem gente com fome... Thiago deu corpo e voz à palavra de Solano Trindade, poeta que dá nome à Agência Popular que trabalha para que as pessoas que habitam a periferia não existam apenas para servir à cidade, mas sejam reconhecidas como um corpo de direitos e desejos. Vamos tentando criar as formas circulares porque o espaço em si não as cria. [...] O "eu" não é o principal, o principal é sempre ‘nós’. Não um ‘nós’ abstrato. Um "nós" com quem danço, rio e me alimento.5 Assim falou Leda, que, em vez de trazer uma resposta a nossas inquietações sobre tempo, memória e ancestralidade, preferiu riscar o salão, promovendo um encontro entre a materialidade proposta pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012) e a imaterialidade do canto ecoado pelo coro de pessoas que preencheu o vão central do Pavilhão da Bienal.

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4/ Encruzilhada é um espaço virtual, no site da 35ª Bienal, dedicado aos caminhos da equipe de Educação decorrentes da publicação educativa da 35ª Bienal, em seus encontros com públicos diversos, agregando contribuições que ampliem e cruzem pesquisas, conteúdos, referências, experiências, vozes e gestos que ainda desconhecemos. “Lugar radical de centramento e descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação”, evocando as palavras de Leda Maria Martins em Afrografias da memória (Perspectiva, 2021). 5/ Você pode assistir ao lançamento da publicação educativa no canal da Bienal de São Paulo no YouTube: https://youtu.be/G_Ug-3SgyKc.


Seguimos no sábado, 13 de maio de 2023, quando mais vozes chegam para dar corpo à coreografia das ações de difusão da 35ª Bienal. Performamos a re/estreia dos encontros presenciais no Pavilhão da Bienal com um desejo: abandonar as formas, romper com métodos e viver a experiência de trocas, de imaginações e possibilidades, a partir da e com a publicação educativa. Uma roda, três pandeiros e o encontro com artistas e pensadoras que colaboraram com o enredo do primeiro movimento. Seguimos também com ações on-line, contando com professoras, educadoras, pesquisadoras e pessoas interessadas de todas as regiões do país, além de participantes de antigos carnavais, que compuseram equipes de mediação em outras Bienais, e muitos que se somaram à roda agora. Cada encontro transformou-se em uma encruzilhada de pessoas, corpos, vozes e saberes, de Leda a Rosana Paulino.

◗ A apoteose de uma escola de samba geralmente é vista em seu desfile, mas queremos contar um pouco sobre o que precede a festa. O barracão é o principal espaço de fabulação das agremiações carnavalescas. É um espaço no qual se constroem a coletividade, laços de solidariedade e infinitas possibilidades; nós o reconhecemos, portanto, como um espaço de educação. “Cinza-chumbo." Essa era a cor da tarde em que a equipe de Educação da Bienal visitou o ateliê de Rosana Paulino. Chovia havia dias, e notícias de pessoas mortas e desaparecidas no litoral norte de São Paulo ainda chegavam. Naquele momento, as “águas de março” não inspiravam nenhum lirismo, nenhuma contemplação. Pirituba com chuva ou sem chuva é assim: se vacilar é o fim!6 Rosana não precisou de versos de seus vizinhos RZO para lembrar que as nuvens carregadas traziam más notícias. E não era apenas o volume da chuva, que persistiu e derrubou a energia elétrica. Para a artista, os temporais daquele mês de março eram também recados da natureza, que sinalizam sua destruição e a morte em nome do progresso. As grandes obras do homem branco no mundo.

6/ Versos da canção “Real periferia”, do grupo de rap RZO. Disponível em: https://youtu.be/ tm7_wGQMGuE. Acesso em: 16 jun. 2023.


Voltávamos a Pirituba em um sábado à tarde quando começamos a especular com mais força sobre aquilo que ainda não conhecíamos mas chamávamos de segundo movimento. Um beija-flor apareceu para lembrar que Rosana Paulino tinha sido homenageada no ano anterior pela escola de samba Beija-flor de Nilópolis, representando as artes visuais em um carro alegórico com outras personalidades negras. As fantasias da ala das baianas traziam patuás inspirados nos trabalhos artísticos de Paulino, reconhecimento que também vinha de sua presença na Bienal de Veneza e agora chega à Bienal de São Paulo, em que Rosana vai exibir seus trabalhos pela primeira vez. Na comida de santo ninguém põe a mão, ela é sagrada, meu pai, ela é sagrada!7 Dessa vez, o dia estava ensolarado, e, apesar de ser sábado, vivemos um almoço de domingo, em um quintal, temperado pelo cheiro da moqueca preparada por Pai Alcides8 e embalado pelo som de pássaros, carros e do trem que liga as zonas leste, sul e norte da cidade de São Paulo. Só nas estações, Quando vai parando, Lentamente, Começa a dizer: Se tem gente com fome, Dai de comer… Se tem gente com fome, Dai de comer… Mas o freio de ar, Todo autoritário, Manda o trem calar: Psiuuuuu...9

7/ Durante o encontro entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, a artista entoou essa reza para lembrar que a comida preparada para o santo é sagrada e que se realiza sempre como um ato de partilha.

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8/ Baiano vindo de Salvador, profissão cozinheiro, também trabalhador do Museu Afro Brasil Emanoel Araújo. Tem um terreiro de candomblé, o Ilê Axé Ajagun Fifaia, em Perus, região noroeste do município de São Paulo. 9/ Ver poema na íntegra em Zenir Campos Reis (org.), Poemas antológicos de Solano Trindade. São Paulo: Nova Alexandria, 2011, p. 58.


Rosana Paulino e Sueli Carneiro nos convidaram para seguir com o atrevimento de sonhar, em roda, no encontro coletivo, esgarçando as im/ possibilidades de educação como uma dança de fuga ao pé de árvores. Um quintal cercado de plantas que alimentam, curam e, como dirá Rosana, são “medicina”. Assim como outros espaços, se faz por e com a presença visível ou não de seres além-de-humanes.10 Quintal que se prepara para gestar o Instituto Rosana Paulino e, como os barracões das escolas de samba, também é espaço de educação. As conversas com Rosana Paulino e Sueli Carneiro, a reflexão de Trinh T. Minh-ha sobre a representação da Outra/do Outro, o debate sobre instituições totais mobilizado por Kapwani Kiwanga, a prática artística de Denilson Baniwa fundamentada nos povos originários, a imaginação radical da Sauna lésbica… Esses são alguns componentes desse enredo do segundo movimento, que invariavelmente nos levou a um espaço muito caro. Tornou-se impossível não coreografar com o espaço da escola, e, quando escolhemos a escola, nos somamos a uma luta por um direito adquirido, que é o acesso à educação pública, gratuita, de qualidade e que tenha a diversidade como eixo estruturante. Assim, convidamos professoras e educadoras parceiras para compor a publicação, valorizando a importância das relações institucionais que mantemos, entre outras, com o Centro Paula Souza, com as diretorias de ensino da Secretaria Estadual de Educação e com a Secretaria Municipal de Educação, especialmente a Divisão de Ensino Fundamental e Médio, o Núcleo de Gênero e Diversidade e o Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais. Diante das provocações em torno da educação que Rosana Paulino e Sueli Carneiro generosamente nos ofertaram, decidimos conversar com as educadoras, entender as violências presentes e como afetam toda a comunidade escolar. Nesse encontro, contamos também com um trecho do livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School [Guia lésbico para escolas católicas], de Sonora Reyes, aqui comentado pela psicóloga e pesquisadora Geni Núñez em “Desviar para se encontrar”. Geni toma o livro como um convite a pessoas de quaisquer orientações sexuais para que repensem seu fazer e seu lugar no mundo. Nosso desejo era ouvir as educadoras, e assim transmutamos suas palavras em frases que, por fim, compuseram os cartazes lambe-lambe 10/ Seres além-de-humanes são bactérias, fungos, plantas, animais, minerais, espíritos e ancestrais, parceires de trabalho de Daniel Lie, que podem ser visíveis ou não. A parceria entre elus amplia as pesquisas de Lie em torno dos efeitos da migração e dos estudos queer.


presentes neste movimento. A oficina compõe um dos gestos11 da publicação. Os lambe-lambes são só o começo e podem ser aplicados em muitas outras escolas a que essa voz que fala e escreve pode chegar. Sabemos que ao longo da história não foram poucos os ataques à educação pública e aos corpos que a compõem. Mulheres, pessoas negras, dissidentes sexuais, pessoas com deficiência e povos indígenas encontram na escola um espaço que, muitas vezes, reforça a vivência de uma cidadania incompleta. Por outro lado, esses grupos se assumem como seres sociais e históricos, e a escola precisa acompanhar esse movimento, repensando as condições materiais e simbólicas que o espaço escolar oferece. Aqui você também encontrará vozes que se tornaram gestos. Criamos uma audiodescrição poética, com a Mais Diferenças.12 Partimos do encontro entre duas mulheres e artistas que, apesar das distâncias territoriais e temporais, tiveram a vida atravessada por violências históricas e dialogam por meio de suas poéticas. Imaginamos o encontro de Aurora Cursino dos Santos com Ceija Stojka, pensando em compartilhar o resultado com pessoas videntes e não videntes. Outro encontro foi registrado nas películas da cineasta Sarah Maldoror (1929-2020), ao visitar o ateliê de seu amigo, o artista cubano Wifredo Lam (1902-1982). Incluímos uma sequência de fotogramas do filme Wifredo Lam com reproduções dos desenhos do artista para o livro Fata Morgana e convidamos a crítica e curadora de cinema Kênia Freitas para um exercício de fabulação em torno desse encontro.

◗ E mais pessoas, também com trajetórias diversas e nascidas de diferentes diásporas, chegarão para coreografar o im/possível com base no dis-

11/ Os gestos se exprimem mediante ações poéticas/pedagógicas que convidam os públicos a ativar o livro por meio de reflexões, expressões e experiências nas possibilidades de escritas, reescritas, rasuras, oralidades e imaginações radicais. Para mais informações, acessar: “Correspondências entre vozes, uma carta para abrir conversas”. Disponível em: https://35. bienal.org.br/correspondencias-entre-vozes-uma-carta-para-abrir-conversas/. Acesso em: 16 jun. 2023.

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12/ A Fundação Bienal conta com a consultoria da Mais Diferenças na concepção e implementação do projeto de acessibilidade e inclusão na 35ª Bienal. Agradecemos especialmente Carla Mauch e Ana Rosa Bordin Rabello pelo entusiasmo e pela ideia de experimentar uma audiodescrição poética na publicação educativa. A Mais Diferenças é uma organização que assessora, pesquisa e compartilha conhecimento, práticas e materiais relacionados à educação e à cultura inclusivas, tendo como princípios básicos a acessibilidade e a garantia dos direitos das pessoas com deficiência.


senso, para viver o inesperado do que virá a ser a 35ª Bienal,13 compondo a equipe de mediação. Tomando a encruzilhada como metodologia, nosso desejo é que as educadoras tensionem modos diversos do fazer poético/ pedagógico e que, na dança com mais de uma episteme, surjam gestos que ainda desconhecemos. Eu sou…, já fui… e, ainda, estou sendo… De nascedouros possíveis, atravessando o rosa-azul, imaginando se existisse uma Sauna lésbica, incluo um novo aceno, desejando um até logo. Desfruto do imprevisível do que se dará nestas páginas, vislumbrando encontros na exposição para assim sonhar, compor um novo enredo e voltar a brincar nos terreiros.14 Da equipe de Educação da Fundação Bienal, formada hoje por: André Leitão, Bruna de Jesus, Danilo Pera, Diana de Abreu Dobránszky, Giovanna Endrigo, Regiane Ishii, Renato Lopes, Simone Lira, Tailicie Nascimento e Thiago Gil Virava. 13/ A ser realizada de 6 de setembro a 10 de dezembro de 2023, no Pavilhão da Bienal, no Parque Ibirapuera, São Paulo. 14/ Em 2024, a itinerância da 35ª Bienal − coreografias do impossível chegará a territórios que ainda desconhecemos, na boa companhia do terceiro movimento da publicação educativa.


quais movimentos compõem as coreografias do impossível?

diane lima, grada kilomba, hélio menezes e manuel borja-villel


Para a 35ª edição da Bienal de São Paulo, as publicações educativas estão sendo realizadas de modo processual, por meio de edições que se complementam e se revelam ao longo da construção das coreografias do impossível. Nossa proposta é que este conjunto de movimentos – modo como denominamos os volumes que compõem a série – seja um convite e um chamado à ação, em que as práticas artísticas se tornam fundamentais na construção de conhecimentos que se baseiam em troca, compartilhamento, experimentação e estudo. Com a chegada deste segundo movimento, a noção espiralar que fundamenta o projeto da 35ª Bienal transborda o pensamento teórico e constrói, na prática, as nossas metodologias. São ferramentas que não somente nos ajudaram a criar narrativas para a exposição, mas, também, nos levaram a repensar as formas de produção e de transmissão dos conhecimentos produzidos até agora. Essa aprendizagem se reflete no título-pensamento da artista Rosana Paulino, que diz meu modo de pensar é um pensar coletivo / antes de estar em mim já esteve nelas.1 Nessa reflexão, a artista, para além 1/ Composição de frases de Rosana Paulino registradas em visita da equipe de Educação da Fundação Bienal de São Paulo ao ateliê da artista, em 10 de março de 2023.

de apresentar uma ideia acerca dessas metodologias, reforça como essa ideia foi criada e enunciada a partir de um encontro proposto coletivamente com a pensadora Sueli Carneiro e a equipe de Educação da Fundação Bienal, em uma tarde de sábado. Em meio aos desenhos de Paulino, repletos de mulheres búfalas, jatobás e imagens de seu livro ¿História natural? (2016), aprendemos que é possível pensar um “conhecimento que coloque o sujeito dentro da natureza e não acima dela”.2 Os espaços espirais, nos quais a natureza e a ancestralidade são protagonistas, são também os caminhos que Daniel Lie escolhe para questionar o “cistema” hegemônico heteronormativo e a “ótica a partir da qual a humanidade é hierarquicamente entendida como o centro” 3. Através da instalação Outres, na qual seres não humanos e mais-que-humanos habitam e deslocam a centralidade humana, Lie questiona: “Como pensar agência, como pensar direitos, como pensar essa outra perspectiva de seres além de humanes enquanto seres humanos ainda não têm, totalmente, direitos humanos?” 4 Esse modo categórico, determinista e binário que a linearidade do tempo ocidental e o pensamento moderno impõem entre a razão e o sentir, humanidade e natureza, corpo e mente, também está em suspenso na escrita da pensadora e psicóloga guarani Geni Núñez, que expande os debates

2/ Ibid. 3/ Transcrição de trechos da entrevista de Daniel Lie concedida à equipe de Educação, realizada no Pavilhão da Bienal em 14 de março de 2023. Ver p. 55 deste volume. 4/ Ibid.


acerca de um ideal normativo de gênero e de sexualidade. Foi a partir do diálogo com o livro The Lesbiana's Guide to Catholic School, da escritora Sonora Reyes − romance que narra a história de uma garota mexicana queer de dezesseis anos e as descobertas sobre sua sexualidade em uma escola católica −, que Núñez aceitou o desafio de escrever um texto5 que abordasse criticamente como a naturalização das diferenças entre os sexos, baseadas em uma definição biológica, faz da heterossexualidade, supostamente, a única e legítima forma de amar e se relacionar. Um “normal” que causa impacto na vida profissional, nas escolhas pessoais, nos comportamentos cotidianos e na saúde mental de jovens e adultos LGBTQIAP+ no ambiente escolar. Como questiona Paulino: “Será mesmo a ciência a luz da verdade”? 6 Esse tensionamento aparece em Sauna lésbica, projeto que integra a lista de participantes da 35ª Bienal, ao propor um exercício de imaginação radical que pergunta: “Imagine se existisse uma sauna lésbica?" Por meio dessa interrogação, a Sauna nos estimula a romper com os estereótipos e com aquilo que poderíamos imaginar − mas 5/ Ver p. 38-47 deste volume. 6/ Ver p. 29 deste volume.

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que a obra, por sua capacidade disruptiva, arrisca, tensiona e subverte. Essas iniciativas que se somam a muitas outras, como a oficina de lambe-lambe realizada com professores e educadores, e que deu voz ao cartaz sim LGBTQIAP+ · na escola · em todo lugar. Esse gesto reaproximou a equipe de Educação da Bienal do Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, com o intuito de pensar ações que ampliem os modos de abordar gênero e sexualidade nas escolas. Ações que têm como objetivo evitar reações semelhantes às que descreve Geni Núñez, quando nas primeiras linhas do seu texto exclama: “Como queria ter lido isso antes!” 7 Considerando que a violência é fundante na construção daquilo que acreditamos ser o “diferente”, a artista, cineasta e pesquisadora Trinh T. Minh-ha problematiza o modo como representamos esse “outro” no cinema e no audiovisual. No texto “De fora para dentro, de dentro para fora”,8 a autora apresenta diferentes perspectivas sobre o que significa “colocar-se na pele do outro”, mostrando como a diferença “representa um problema, senão uma ameaça, em termos de classificação e de controle”.9 Esses sistemas de regulação encontram ressonância na obra pink-blue [rosa-azul] (2017), da artista Kapwani Kiwanga, em que as luzes rosa e azul transcendem seus significados normativos e escondem sofisticadas tecnologias de vigilância. 7/ Ver p. 39 deste volume. 8/ Ver p. 58-71 deste volume. 9/ Ver p. 66 deste volume.

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A importância de pensarmos os direitos dos povos indígenas é destaque nos “dispositivos artísticos pensando a educação como coletividade”, criados por Denilson Baniwa.10 Em sua ação, o artista disponibiliza QR codes inspirados em grafismos indígenas que nos levam a informações relacionadas a seu projeto para a 35ª Bienal. Assim como esse trabalho pode ser encontrado na plataforma on-line movimentos, também é possível acessar a audiodescrição poética, realizada em colaboração com a Mais Diferenças, na qual apresentamos, para videntes e não videntes, as obras de Aurora Cursino e de Ceija Stojka. Essas são pintoras que, apesar de terem vivido em épocas distintas, encontraram na expressão artística modos de “retirar do silêncio o relato do horror”, combinando “memória e imaginação em imagens e palavras”.11 Olhando para os trânsitos afro-atlânticos, convidamos a pesquisadora e curadora Kênia Freitas para refletir a respeito de outro encontro. Dessa vez, entre os artistas Sarah Maldoror e Wifredo Lam, “uma aliança forjada há mais de três décadas entre utopias surrealistas e revolucionárias de toda parte e de lugar nenhum − Guadalupe, Cuba, China, 10/ Ver p. 72-75 deste volume. 11/ Ver p. 86-89 deste volume.

França, Argélia, Angola e tantos outros lugares por se reimaginar e libertar”.12 Mediante uma “fabulação crítica”,13 Freitas nos ajuda a aprofundar como se daria o encontro entre o cinema e as artes visuais, bem como entre “sonhos e lutas de descolonização como beleza e ação”. Com base nesse amplo trabalho de pesquisa realizado com o Educativo, dos intensos debates feitos a partir dos textos, das prazerosas mas também desafiadoras sessões de criação e dos enfrentamentos que foram necessários para sustentar aquilo em que acreditamos, fica nosso agradecimento às autoras, artistas e pensadoras que aceitaram o desafio de atualizar, reler, traduzir ou desenvolver os pensamentos e diálogos inéditos reunidos nesta publicação. A gente se despede com a força do que ficou das paredes da memória da conversa entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, quando esta última, antes de partir, deixou as pistas para o nosso próximo movimento: “nós não temos um drama, temos uma luta!” 12/ Ver p. 76-83 deste volume. 13/ Referência ao conceito amplamente elaborado pela pensadora Saidiya Hartman.


nós não temos um drama, temos uma luta para tocar: conversa entre rosana paulino e sueli carneiro


rosana paulino Paraíso tropical, 2017 Impressão digital sobre papel, linoleogravura, ponta seca e colagem 48 × 33 cm Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo


O texto a seguir foi elaborado a partir de recortes da conversa que a equipe de Educação e o coletivo curatorial da 35ª Bienal acompanharam entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, ao lado das ervas de axé e debaixo da romãzeira citadas pela artista. Ali, nos alimentamos das reflexões partilhadas, e também da deliciosa moqueca de Pai Alcides. rosana paulino Estar aqui, num território diferente, estar aqui neste terreiro. Quando eu falo que não vou só fazer um texto, não vou só falar na Bienal, tem que vir para cá, ter o barulho do trem passando, ter esse jardim de vó que está cheio de plantas de axé. Essas são outras formas de se aproximar do mundo, são outras formas de conhecimento. Trazer as pessoas para cá, em vez de só escrever um texto. É importante estarmos aqui. E você, Sueli, fala no seu livro1 das outras formas de conhecimento, de outras epistemologias, de apagamentos epistemológicos. sueli carneiro É, eu falo muito dos saberes sepultados, da negação da nossa condição de sujeito cognoscente, da negação da nossa condição de sujeito cognitivo. Há uma dúvida metafísica sobre nossa educabilidade, que foi

1/ Sueli Carneiro, Dispositivo de racialidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

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colocada pelos pensadores. Grandes filósofos colocaram dúvidas a esse respeito, inclusive se nós tínhamos alma, não é? Mas, ao mesmo tempo, eu tenho uma inquietação: de quanto precisamos da legitimação desses pensadores? Isso é uma dúvida, coloco como um problema. Ah, está bem. Tem que ocupar o espaço, tem que estar presente aqui, tem que buscar reconhecimento lá e, sobretudo, nas instâncias que nos negam esse reconhecimento. Agora, será que é só disso que precisamos? Será que esse é o único horizonte utópico possível para alcançarmos a legitimação no universo das instituições brancas? Se essas instituições foram tão perversas, se foram tão deletérias, será que somos capazes de transformá-las a ponto de que, dentro delas, possamos realmente restituir tudo o que nos foi tirado? O que nos foi tirado de dignidade humana, excelência humana? Gosto muito da ideia de que, para além disso, é preciso encontrar as nossas próprias formas de legitimação. Eu acho que os povos que foram oprimidos na dimensão que nós fomos têm a obrigação de se pensarem como novos agentes civilizatórios. Isso significa ir muito além dessa civilização sob a qual estamos todos submetidos. Muito além do que ela nos ofereceu como possibilidade para o humano, e não apenas o que foi feito conosco. Mesmo a classe hegemônica tem muitas razões para estar insatisfeita se fizer uma reflexão séria sobre o que resultou desse processo civilizatório. Que mundo é esse? Sobretudo o mundo que nós herdamos, que o colonialismo produziu, que é o mundo no qual estamos, hoje. Nós, povos que fomos destituídos – pretos, indígenas e outros grupos –, mas que somos portadores de outras visões de mundo, de outros valores e outros princípios, talvez tenhamos como responsabilidade


ainda maior produzir aquilo que o [geógrafo] Milton Santos [1926-2001] chamava de universalidade empírica,2 forjada pelo intercurso de todas as possibilidades culturais que a humanidade produziu. rosana Mas como a gente faz isso? Como a gente coloca essas novas visões? sueli Primeiro precisa sonhar, não é? Como eu sou bem mais velha que você, eu sempre digo, eu sou daquela geração que disse: “Sejamos realistas, queiramos o impossível!” Então, primeiro precisa sonhar. rosana Isso é maravilhoso, primeiro precisa sonhar, e então tem as estratégias também, não é? Como é que a gente faz? Entra por dentro e tenta esse posto de poder, tenta modificar dali, come pelas beiradas…? sueli São várias as estratégias. A nossa gente teve táticas de todo tipo para chegar até aqui, depois da mais brutal experiência que um 2/ Universalidade empírica é um conceito desenvolvido por Milton Santos que parte de categorias de análise territoriais, valorizando assim a racionalidade produzida e observada nos próprios territórios. O objetivo é promover o avanço de técnicas contrárias às encontradas nos sistemas de valores totalizadores impostos pela cosmovisão europeia. Para saber mais, ver o livro de Milton Santos Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2001. [N.E.]

grupo humano sofreu, que foi o que nós passamos. Nenhum outro grupo humano passou por algo tão brutal como o que aconteceu com o tráfico transatlântico, com a escravização de tantos milhões de africanos e de seus descendentes. Nós pulamos uma fogueira que ninguém pulou. E, para chegar aqui e ainda existir, tivemos que desenvolver diferentes táticas, múltiplas táticas, da confrontação direta a uma série de outras possibilidades de suposta aceitação, de tergiversação. Foram múltiplas táticas, os historiadores são prenhes em nos fornecer essas diferentes modalidades de resistência que nós desenvolvemos. E eu acho que, agora, quando temos essa massa crítica que você menciona… quando você chegou, anos atrás, não havia, mas hoje temos artistas como essas pessoas, esses negros todos que estão nesses novos circuitos em que não estávamos, e temos que cobrar deles. “Tá bom, está bonito, legal, mas e então?” Por isso eu quero que a senhora fale desse espaço, do Instituto Rosana Paulino. Quando eu falo em “espaços de legitimação”, é disso que eu estou falando. rosana A ideia é daqui a dois anos estar com o espaço, que é o Instituto Rosana Paulino, e a biblioteca vai ser o coração desse lugar. Isso é porque nós temos que pensar novas imagens, o Brasil tem que ter acesso ao que é produzido pela diáspora, porque hoje nós não temos, as coisas não entram aqui. Uma coisa que eu não tinha falado pra você ainda é sobre o café com os professores, trazer professores de escolas públicas, uma vez por mês, pra tomar um café no Instituto, e que esse seja de fato um local de trabalho de arte. Esse é um dos sonhos, e colocar essa biblioteca aberta para jovens pesquisadores, professores, jovens que são servidos pela linha do trem.


É um local muito legal porque é estratégico, a todo momento a gente escuta o trem passando, tem esse eixo das estações Francisco Morato, Perus, mas também é fácil para o pessoal da zona leste, que desce na estação Barra Funda. A ideia é ter um instituto construído neste local. Esta casa que está aqui, a gente vai botar abaixo, mas manter o jardim, e a parte de trás fica também. sueli Que é medicina! rosana Exatamente, isso é medicina, é curativo em todos os sentidos. É curativo para a alma, é curativo porque me conecta com a minha ancestralidade pelo jardim. E aqui atrás, manter as árvores, porque o meio ambiente é necessário, e eu acho que os povos de matriz africana, indígenas, ribeirinhos, quilombolas têm um conhecimento e a chave para a gente sair desse caminho da extinção. “A natureza é a medida de todas as coisas.” — Rosana Paulino rosana Tem uma história engraçada que eu vou contar para vocês. Eu fui para o Bellagio Center, da Fundação Rockefeller, na Itália. Do meu quarto eu via as montanhas; de um lado, os Alpes italianos e, do outro, os Alpes suíços. Só que meu quarto ficava um pouco afastado, um local onde havia três palácios,

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era um projeto muito interessante, porque era gente de todo o mundo, de áreas diferentes, pensando ao mesmo tempo. Fiquei um mês lá, tinha matemáticos, antropólogos, artistas visuais, cineastas, pensando como a educação pode colaborar com a arte. Eu estava em um prédio que não era o prédio central e eu tinha que atravessar um jardim, uns dez minutos andando. Era um jardim italiano, e eu tinha que passar por ele todo santo dia. Aquilo foi me dando um desespero tão grande, que nem eu sabia o que estava acontecendo; eu tinha que passar pelo jardim e começava a me sentir mal, a me sentir fisicamente mal, a ficar desesperada. Até que um dia eu acordei e pensei: “Eu estou sentindo falta de mato, eu estou sentindo falta da Mata Atlântica, eu estou sentindo falta de um espaço de natureza que não seja tão organizado e que não tenha essa arrogância”. Porque, por mais bonito que fosse o local − e era lindo −, era um jardim renascentista, era aquela ideia de domar a natureza. E nisso eu me percebi. Acho que foi uma experiência muito forte, eu percebi como realmente ser uma pessoa negra vai muito além; essa relação com as plantas, essa relação em que você não se coloca acima da natureza é que estava me pegando. Então isso modificou todo o meu trabalho. Lá no Bellagio eu fiz uma série, Paraíso tropical (2017) [p. 25]. Então, voltei para o Brasil e fiz aquele álbum que eu mostrei,3 e assim começou a mudar a direção do meu trabalho. Percebi que essa afrodescendência ia muito além de questões políticas, da cor da pele, mas era a maneira como eu me colocava dentro

3/ Referência à primeira visita da equipe de Educação da Bienal ao ateliê de Rosana Paulino, no dia 10 de março de 2023, quando a artista mostrou e comentou diversos trabalhos, entre eles o álbum ¿História natural? (2016).


da natureza também. Então entrou em choque – uma coisa que eu estava comentando outro dia no ateliê – essa ideia europeia de que o homem é a medida de todas as coisas. A natureza é a medida de todas as coisas para quem vem do grupo do qual eu venho. Você não vai tirar do alecrim ou da espada-de–são-jorge uma folha sem pedir autorização. Isso me pegou muito. Então, quando eu vou pensar o ateliê e o instituto, por menor que seja, isso [a natureza, as árvores] vai ficar aqui. Lógico que vamos trocar algumas plantas, atrás vamos mexer porque tem terreno, mas, se eu não tiver também esse espacinho, não tem sentido para mim. Eu mudo, deixo de ser quem sou, muda a minha relação com o mundo, não é? sueli Muito lindo, obrigada por compartilhar isso conosco. Muito legal! rosana Eu que agradeço a escuta, para mim foi muito potente, mudou o meu trabalho; então passam a aparecer nele os elementos da natureza, com muita força. Eu olhava aquilo e pensava: “Eu quero mato, eu quero Mata Atlântica!” Começa nesse ponto o olhar atento de ser tão parte da natureza, de estar tão embrenhada ali, que é outra maneira de pensar o mundo. Primeiro, vou trabalhar essa dimensão da ciência e da planta, essa arrogância da ciência que classifica, que nos classifica, que classifica nossa interação com a natureza

como algo primitivo. Vou discutir se a ciência é a luz da verdade. E com perguntas, sempre: “A ciência é a luz da verdade?” Porque a ciência nos classifica como primitivos. A nossa relação com a natureza é diferente, mas de maneira nenhuma é primitiva. E é isso que pode salvar, inclusive, o mundo; cada vez mais fui me dando conta disso, de que essa arrogância, esse outro modo de lidar com a natureza, colocou a gente na beira do abismo. E, agora, quem vai nos tirar dali? Isso vai proporcionando outras dimensões também, quando olho o feminino negro e vou pensando como esse dito universal, que a psicologia coloca, não nos cabe. Não cabe em mulheres que têm um arquétipo como o meu, que sou filha de Ogum com Iansã, não tem como. Nenhum arquétipo da psicologia tradicional que conhecemos vai dar conta de uma mulher filha de Ogum com Iansã, sol em áries e lua em leão! Então vou procurar outras maneiras de me colocar do ponto de vista da psicologia. Assim, nascem, primeiro, as mulheres árvores, como a Senhora das plantas [2019]; do fato de eu ser obviamente filha de Ogum com Iansã nascem as Búfalas [2019]. As Búfalas são muito adolescentes, muito desafiadoras, eu diria que a Senhora das plantas é a mulher lá dos seus 50 anos... E aqui no parque onde eu caminho, o Parque do Jaraguá, tem um jatobá com quase 500 anos. Ele tinha uma plaquinha muito antiga que dizia: “Este Jatobá tem cerca de 450 anos”. Mas essa placa devia ser da década de 1990. E as Jatobás me lembraram as grandes Iabás, as grandes senhoras, donas do conhecimento, que mantiveram as comunidades negras unidas. As primeiras mulheres árvores que nasceram foram as Jatobás [2019]. Depois delas, eu gosto muito da ideia do mangue, onde tem


aquelas raízes aéreas que vão se interconectando, então eu pensei em continuar essa pesquisa das mulheres árvores, que são as mais antigas, que são as grandes senhoras, com esse elemento de interligação, porque essas raízes do mangue vão todas se entrecruzando, vão se interligando. E o mangue é um local muito importante porque é berçário, é um local de vida e de morte; tudo começa ali, tudo termina ali. O mangue tem uma dimensão cósmica muito bonita. Então eu pensei: quero levar essa experiência das mulheres árvores para o mangue. Já faz um tempo que estou viajando para o mangue, faz mais de dois anos que eu estou perseguindo o mangue, e essa dimensão de vida e de morte, para mim, é a sabedoria que existe nesse espaço tão especial representado por essas raízes que vão se interligando. É como se essas mulheres, mães, as grandes Iabás, fossem essas raízes que vão interligando as vivências negras. “Eu consigo montar uma aula grande a partir de uma folha.” — Rosana Paulino rosana Quando falo que a escola está produzindo natimortos, é porque estamos à beira de um desastre climático. E quando falo que temos que nos sentar novamente debaixo da árvore, isso não é uma coisa romântica, é uma maneira de nos apropriarmos do

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mundo, inclusive usando a tecnologia que temos. Por exemplo, atrás de você há umas folhas de tapete-de-oxalá. É preciso descondicionar esse olhar que só se direciona para a lousa, que só vai ali para a frente, que só vai para aquela pessoa que dá as informações. Eu consigo montar uma aula grande a partir de uma folha e pergunto: “Que folha é essa?” Pego esses aplicativos de reconhecimento de planta, vou lá, fotografo. “Que planta é essa, para que ela serve, ela tem alguma utilidade além do jardim?” “Se ela é tão conhecida, se ela é boa para o estômago também... se ela tem um princípio químico, que princípio é esse? Por que ela entra na digestão, como é que ela entra na digestão? Tradicionalmente, para que essa planta é usada? Quem utiliza essa planta, que povos fazem isso?” “Se usar para banho de Oxalá, é tapete-de-oxalá o nome dela; se usar para orixá, como é essa representação? Como é essa história?” Tudo isso apenas a partir de uma folha! É descondicionar esse olhar que só recebe. Descondicionar esse olhar e voltar a deixar as crianças fazerem as perguntas; é uma das principais virtudes do ser humano, fazer perguntas. E, na escola, colocam um sentadinho atrás do outro, e ai de quem sair dali e perguntar uma coisa que não está lá! A gente tem que trazer de volta essa capacidade de olhar, essa capacidade de fazer perguntas. Nada melhor que sentar debaixo da árvore e ficar ali. sueli Eu não tenho muito o que acrescentar em relação ao que a Rosana já colocou, mas acho que tem um contexto e uma realidade que estão além do que estamos discutindo. Vivemos num país que forma pessoas que têm nível de graduação, de pós-graduação, que têm canudo, mas são analfabetas políti-


rosana paulino Da série Jatobá, 2019 Aquarela, grafite sobre tela 65 × 50 cm Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo Foto: Isabella Matheus


cas, são reacionárias, são conservadoras, são totalmente descompromissadas em relação a este país. Os maiores índices de escolaridade são das pessoas que apoiaram os últimos quatro anos [2019-2022] que nós vivemos, que é chamada a elite educada, a elite letrada do país, que sustentou um governo genocida, um governo excludente, um governo negacionista, um governo anticiência. Temos que pensar nisso. A escola está produzindo esse tipo de coisa. Sempre haverá um professor heroico, uma professora heroica, sempre existiram e sempre existirão os heroicos na educação, mas, no grande contexto, a ambiência escolar tem sido essa. Hoje a educação está controlada por forças ideológicas e políticas que são contrárias à emancipação das mulheres, que demonizam nossas culturas, nossas manifestações culturais. É dessa escola que estamos falando também. Seja ela escola pública, seja ela escola de elite, o Brasil está péssimo naquele indicador que avalia o desempenho dos alunos das classes superiores,4 ou seja, é ruim para todos isso. Então, é dessa educação que estamos falando, uma educação que não cria para a cidadania, muito ao contrário, é nesse contexto que a gente luta. Assim, a pergunta última é: “De qual educação este país precisa?” Que seja crítica,

4/ ENADE (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes). [N.E.]

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que permita que sujeitos críticos se desenvolvam, que possibilite que cidadãos sejam formados, e que tenham respeito pelos valores básicos da democracia, do Estado Democrático de Direito. Pois o que assistimos é exatamente o contrário disso. Há menos de uma semana, aquilo que estava circunscrito à experiência do norte, nos Estados Unidos, parece que vai começar a proliferar por aqui também, essa coisa da violência da escola.5 O supremacismo é uma ideologia que prospera na sociedade brasileira; num país de maioria negra existe um supremacismo que se espraia aqui; está tudo junto com a educação. Então, acho que tem um pano de fundo nesse contexto que precisa da nossa atenção, e talvez precisemos de recursos outros para podermos fazer o enfrentamento, a disputa de corações e mentes para valores progressistas, republicanos. A pandemia foi a pá de cal sobre essa situação e assim se projeta uma década de esforço sério e responsável para poder dar conta do prejuízo que foram esses últimos anos. Eu venho da escola pública, acho que nós pertencemos às últimas gerações de escola pública de qualidade, que permitiu que pessoas como nós nos tornássemos quem somos. Mas essa escola não existe mais, com tudo que ela nos ofereceu de possibilidade para desenvolver uma visão crítica da sociedade, ter bons professores, poder acessar uma literatura de muito valor e que você pudesse também problematizar, exercitar sua inquietação diante do mundo, perguntando, questionando, problematizando. Pelo que tenho ouvido, essa escola não existe, ela não está aí. Então a escola que está 5/ Sueli refere-se ao episódio ocorrido na Escola Estadual Thomazia Montoro, Vila Sônia, São Paulo, SP, em 27 de março de 2023. [N.E.]


aí não está formando Rosanas Paulino a todo momento, não está, não. Por mais importante que seja a educação, é sim, mas desde que não seja essa que está formando essas pessoas que são os letrados da sociedade que fazem escolhas anticidadãs, escolhas reacionárias, escolhas conservadoras, que penalizam a maior parte da população deste país. Na primeira viagem que eu fiz aos Estados Unidos, percorri o circuito black. Escolhi visitar um conjunto de organizações e assim fiz, na costa leste, na costa oeste. Tudo o que eu pude conhecer de organizações e instituições negras, eu visitei. E voltei de lá com uma convicção: de que um dos principais desafios que nós temos − estou falando de movimento social − é construir organizações que sejam sólidas, perenes. Não havia naquela época − isso há cerca de trinta anos − uma organização negra que tivesse conseguido sobreviver na sociedade por mais de cinquenta anos no Brasil. Então, acho que esse é um desafio que temos: construir organizações sólidas para nossa gente, que tenham como missão institucional alavancar o processo de desenvolvimento da nossa gente. O desenvolvimento político, o desenvolvimento educacional, ideológico, em todas as dimensões. Precisamos ter essas organizações como referência, organizações que também afirmem nossa identidade, que nos afirmem culturalmente, que demarquem a diferença que nós queremos fazer e a diferença

de projeto que temos para oferecer a este país. E acho que isso só se faz com organização, não se constrói isso sozinho, mas com instituições. Por isso, além de criar a minha, eu participo da criação de inúmeras outras, então, tenho uma absoluta crença nessa ideia. rosana Somos duas! Já vai ajudar a criar aqui também. sueli Pode contar comigo, sou boa nisso! “Há muitas formas de educar.” — Sueli Carneiro sueli E não é só a escola que educa hoje. Eu tenho essa oportunidade também, de construir – inclusive currículos que nos interessem − utilizando ferramentas de que dispomos. Tem uma experiência que estou acompanhando de fora, embora eu esteja diretamente implicada nela. É uma experiência que a Casa Sueli Carneiro está realizando. O nome dessa instituição é Sueli Carneiro, mas não sou da direção, não sou do Conselho, tem meu nome e eu doei meu acervo pessoal para a casa. Ela realiza periodicamente cursos de formação. Esse último curso6 que está sendo oferecido tem quatro professores: Edson Cardoso, de Salvador; Muniz Sodré, eu e a Conceição Evaristo. É um curso on-line. A previsão era oferecer a 2 mil pessoas. Tivemos 15 mil inscritos. Mas o que isso significa? É uma demanda reprimida que temos, pessoas que querem esse tipo de conhecimento e que não

6/ Curso on-line gratuito “Ler o Brasil”, promovido pela Casa Sueli Carneiro de novembro de 2022 a maio de 2023. Mais informações em: https://casasuelicarneiro.org.br/curso/ler-o-brasil/. [N.E.]


vão encontrar na escola, às vezes sequer na universidade. Tem 11 mil dessas pessoas que estão fixas, que estão acompanhando sistematicamente o curso. Há alguma coisa nisso. Eu tenho sonhado com a possibilidade de ministrar cursos de filosofia em praça pública, voltar para a tradição filosófica mais arcaica, que era na res publica, o debate filosófico, levar para a ágora. Como diz uma professora [Yara Frateschi] no posfácio do meu livro Dispositivo de racialidade, a filosofia ocidental nasce − para Sócrates e Platão − do espanto.7 Ela [Yara Frateschi] afirma que a minha filosofia nasce da minha perplexidade diante do absurdo que é nossa vivência como negros, esses corpos submetidos a tanta violência. Essa perplexidade somada à indignação nos leva a pensar de um modo completamente diferente, fora da caixinha. Uma atitude de insurgência, porque é a condição para afirmar nossa dignidade humana e contrariar tudo o que o racismo diz sobre nós. Há muitas formas de educar. Tem uma escola, ela está lotada de problemas; nós temos que lutar para que ela se torne a escola de que precisamos, mas não temos de ficar esperando essa escola possível acontecer para tomarmos providências. Há uma série de ações que podem ser desenvolvidas. As ONGs fazem isso

o tempo todo; a lacuna, a ausência de bibliografia negra na universidade, o movimento social proveu essa lacuna. Eu li Abdias [Nascimento], eu li Lélia Gonzalez, eu li Amílcar Cabral, tudo em troca-troca de livro de militante. Eu sempre conto esta história: há quinze anos, chegou na minha organização, a Geledés, uma professora, chefe de departamento de pós-graduação em uma universidade do Canadá. Ela chegou ao Geledés e disse: “Vocês são a minha última chance”. Eu perguntei: “Sim?” Ela continuou: “[Vocês são] A última chance de eu encontrar um livro de Abdias Nascimento, porque eu revirei as universidades brasileiras e não encontrei em lugar nenhum os livros desse autor. E isso é algo absolutamente incompreensível para mim, porque, para nós, ele é considerado a maior expressão do pan-africanismo nas Américas!” Portanto, nós temos um país que consegue operar isto: o epistemicídio!8 E o epistemicídio é isto: apagar do universo da universidade uma figura com a importância e a dimensão de Abdias Nascimento. “Para que serve o racismo?” — Sueli Carneiro

7/ Dispositivo de racialidade, op. cit., 2023. [N.E.]

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8/ Epistemicídio é um conceito criado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos para nomear o processo de apagamento e de morte das epistemologias, dos modos de compreender o mundo dos povos colonizados. Ou seja, é resultado das ideologias de dominação empregadas pelo imperialismo e pelo colonialismo a fim de manter o controle e a hegemonia sobre os povos colonizados. Para Sueli Carneiro: “O conceito desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos torna possível apreender o processo de destruição da racionalidade, da cultura e da civilização do Outro, que aconteceu e acontece no Brasil”. Ibid, p. 87.


sueli Mas o dispositivo9 não é meramente negativo, ele é também produtivo. Pois produz, inclusive, resistência. Então, essa é uma dinâmica que envolve todas as estratégias de assujeitamento, mas que também envolve as dinâmicas de resistência. Porque você nunca deixa o dispositivo, rigorosamente nunca sai dele; a resistência é quase uma política de redução de danos e de criação de janelas de oportunidade no contexto dessa mecânica, dessa engenharia, dessa coisa que se move se retroalimentando e às vezes engasgando e permitindo um salto de qualidade. Eu disse um milhão de vezes que a saída do mito da democracia racial produziria o agravamento do conflito racial porque o mito da democracia racial tinha uma etiqueta. A primeira estratégia politicamente correta que existe no Brasil é o mito da democracia racial, porque ele conformou uma cena para este país, que é inclusive vendida internacionalmente, e que tinha um princípio: enquanto todos funcionarem de acordo, vai dar certo. Acontece 9/ De acordo com o pensamento de Foucault, filósofo francês com o qual Sueli Carneiro dialoga para a elaboração de suas teorias, dispositivo é um conjunto de elementos variados a partir dos quais pode-se compreender o funcionamento de organismos reguladores e produtores de vida, mas que nem sempre compõem um regime de visibilidade, nem sempre são revelados. Por exemplo, qual a concepção de Estado para a organização do homem em meio à sociedade? Quais os mecanismos que regulam o funcionamento do Estado? O dispositivo não possui um formato único ou normativo, depende do contexto, do conjunto de normas e enunciados ao qual é empregado. [n.e.]

que nós desafinamos no meio desse caminho e nossa resistência começou a nos levar a problematizar, a questionar, dizer que não, aquilo não era democracia racial, era mito. Não era democracia racial, era farsa, era falácia. Esse discurso foi nos empurrando para a necessidade de reconhecer as desigualdades raciais e os remédios para corrigir isso. E isso culmina em quê? Estamos falando de remédios: a questão das cotas é um ponto de inflexão nesse debate, um ponto de inflexão na medida em que o combinado não vale mais. E a branquitude veio para cima de nós, com tudo. Alguém se lembra do que foi o debate sobre as cotas? Quanto nós apanhamos? Não foi fácil, foi um verdadeiro pelourinho eletrônico10 aquilo o que aconteceu. É dessa tensão que a mudança surge, e ela virá mais rápido e mais consistente quando nós, como sujeitos políticos coletivos, tensionarmos e pressionarmos. É o que sempre digo, está tudo muito bem, está tudo muito bom, mas o movimento de direitos civis, as conquistas, a derrubada da segregação racial foram na rua, como movimento coletivo. Nelson Mandela permaneceu quase trinta anos 10/ Refere-se sobretudo ao debate anticotas após a aprovação do PL 73/1999, a lei de cotas, e do PL 3.198/2000, o Estatuto da Igualdade Racial. Parte da sociedade posicionou-se contra as leis que asseguravam vagas para estudantes negros acessarem o Ensino Superior, uma das políticas de reparação aos povos negros e escravizados no passado. Podemos compreender o posicionamento anticotas como um evento sintomático do racismo, presente nas mais diversas camadas sociais. Manifestos a favor e contra as cotas raciais, redigidos e divulgados em 2008, foram assinados por diversos representantes da sociedade civil. Em resposta ao manifesto contra as cotas raciais, os movimentos negros articularam-se mais uma vez em defesa delas, na época aplicadas na UNEB, na UnB, na UERJ e em fase de expansão nas demais universidades federais e estaduais. Os debates foram acalorados, principalmente devido à adesão de intelectuais ao manifesto anticotas, cenário ao qual Sueli se refere em sua fala. Ambos os manifestos podem ser lidos em www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u18773.shtml. Acesso em: 23. jun. 2023. [N.E.]


na prisão. Foi necessário criar um instrumento político para dar conta daquela luta que levou décadas. Não será o protagonismo individual que construirá a transformação. A política é uma ação que se faz no coletivo e acho que essa tensão, a capacidade de vitória que temos, depende disso, do nível de organização política e da capacidade de pressão e de incidência política. Foi assim em todo lugar, está tudo muito bom, temos gente na universidade, produzindo, mas a luta política é travada de outro modo, precisa de instrumento político e de ação coletiva. Considero que esse é o desafio que temos como coletividade. Para que serve o racismo? Não quero mais conversar aqui “Ah, porque nós não somos inferiores... porque o branco disse... etc.” Esse é um sistema que foi criado para permitir uma construção de grupo racialmente privilegiado à custa da opressão de outro. É para isso que ele serve, é para isso que foi feito. Qualquer outra conversa é bobagem, e minha tentativa é colocar esse debate onde ele nunca está, no âmbito das relações de poder neste país. Penso, sobretudo, que temos a obrigação de lutar em defesa de nossa dignidade humana, não importa se houver horizontes ou não. Nossa obrigação é lutar; nossa dignidade humana se afirma recusando o que esse

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dispositivo11 nos oferece ou nos impõe. Se seremos vitoriosos ou não, não importa, nosso único caminho é a luta contra todas as formas de assujeitamento. Porque é essa rejeição a tudo o que o assujeitamento diz que garante que somos seres humanos. É a rejeição radical a isso. Nós não temos um drama, temos uma luta para tocar; não há um drama existencial, se quisermos viver, temos que lutar. Eu sempre digo para os meninos pretos: a maior insurgência que vocês podem realizar é se manter vivos, façam isso a qualquer preço. O que está sendo dito o tempo todo é: “Está bom, há uma emergência de um fenômeno, o colonialismo institui uma coisa”; e essa coisa fundamental é a supremacia branca. Mas isso se desdobra em muitas coisas. No plano jurídico institui sujeitos soberanos e subalternos. Qual é o papel da educação nisso? É nesse ponto que entra o epistemicídio, quando a educação é um instrumento de reprodução desse saber dominante, desse saber opressor, desse saber que nos exclui da dignidade humana, que nos exclui da humanidade. Ao discutirmos a lei n. 10.63912 nos termos em que ela foi concebida, percebemos o esforço

11/ Nesse ponto da argumentação, Sueli Carneiro nos apresenta a elaboração de um dispositivo específico, o dispositivo racial. Esse conceito foi defendido em 2005 na sua tese de doutorado, A construção do outro como não-ser como fundamento do ser, em que relaciona a noção de dispositivo foucaultiana à questão racial, ao buscar compreender os mecanismos que legitimam o racismo. Disponível em: https://repositorio. usp.br/item/001465832. Acesso em: 15 jun. 2023. [N.E.] 12/ Lei que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira. Fruto de uma intensa mobilização dos movimentos negros pela valorização da cultura e da história afro-brasileira no ambiente escolar, essa lei foi instituída no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2007). Em 2008, a legislação foi alterada (atual 11.645/08) com o intuito de abarcar os conhecimentos dos povos indígenas. [N.E.]


gigantesco que alguns professores, alguns diretores, alguns coordenadores pedagógicos faziam para implementá-la. Uma coisa é termos o direito de conhecer a história da África, da cultura afro-brasileira. Mas tão importante quanto isso seria fazer a leitura crítica do que foi a construção da civilização ocidental, do que foi o processo colonial do ponto de vista do conhecimento. Tudo o que foi forjado ali. Se a celebração da nossa negritude em sala de aula não caminhar paralelo a uma desautorização da antropologia kantiana,13 que afirma que nós somos naturalmente inferiores, não vai funcionar! Chega, não é? 13/ A antropologia kantiana é um conjunto de teorias do filósofo alemão do século 18, Immanuel Kant. De acordo com os seus argumentos, a antropologia deve ser apreendida da observação empírica do objeto de análise. No seu livro, Antropologia de um ponto de vista pragmático, encontramos uma série de análises produzidas da observação das civilizações humanas, algumas consideradas em sua época como selvagens, também de acordo com as teorias iluministas que o influenciaram. Em Dispositivo de racialidade (op. cit., 2023, p. 91), Sueli Carneiro discute a antropologia kantiana. Após comentar as categorias racistas utilizadas pelo filósofo para descrever civilizações ameríndias, africanas e asiáticas, ela afirma: “A negação da plena humanidade do Outro, o seu enclausuramento em categorias que lhe são estranhas, a afirmação de sua incapacidade inata para o desenvolvimento e aperfeiçoamento humano, a destituição da sua capacidade de produzir cultura e civilização prestam-se a afirmar uma razão racializada, que hegemoniza e naturaliza a superioridade europeia. O Não Ser assim construído afirma o Ser. Ou seja, o Ser constrói o Não Ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de características definidoras do Ser: autocontrole, cultura, desenvolvimento, progresso e civilização”. [N.E.]

rosana paulino é artista visual, pesquisadora e educadora, com doutorado em artes visuais pela Universidade de São Paulo e especialização em gravura pelo London Print Studio. Sua obra dialoga com questões sociais, étnicas e de gênero, com foco especial nas mulheres negras da sociedade brasileira e nos vários tipos de violência sofridos por essa população devido ao racismo e ao legado duradouro da escravidão. Entre outras exposições, seu trabalho esteve na mostra principal da 59ª Bienal de Veneza (Itália) e na 21ª Bienal Videobrasil (São Paulo, SP). sueli carneiro é filósofa, escritora e ativista do movimento feminista e do movimento negro no Brasil. Doutora em educação pela Universidade de São Paulo, é cofundadora, coordenadora executiva e coordenadora da área de direitos humanos do Geledés – Instituto da Mulher Negra. Publicou, entre outros livros, Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil (Selo Negro, 2011), Escritos de uma vida (Letramento, 2018) e Dispositivo de racialidade: A construção do outro como não ser como fundamento do ser (Zahar, 2023).


desviar para se encontrar: reflexões com base no livro the lesbiana’s guide to catholic school

geni núñez


Acompanhar a narrativa do livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School [Guia lésbico para escolas católicas], de Sonora Reyes,1 me tocou profundamente. É uma daquelas leituras que, ao concluir, pensamos: “Como queria ter lido isto antes! Como teria sido incrível, quando adolescente, poder ler cada uma dessas palavras!” Independentemente do grau de identificação que cada leitor(a) possa ter com as personagens, esse livro é um convite precioso a pessoas de quaisquer orientações sexuais para que repensem seu fazer e seu lugar no mundo. Pensando em um bordado entre literatura e teoria, buscarei compartilhar neste texto um pouco da artesania que essa obra suscitou em mim. Peço desculpas por dar spoilers da história e por fazer um resumo tão sucinto dela, uma síntese que em nada faz justiça à delicadeza dos detalhes, à ternura de cada cena e à emoção que senti ao longo de toda a narrativa. Mas não tenho a pretensão ou a presunção de fazer um resumo do livro; o objetivo é discutir alguns pontos como pistas para pensarmos nossas práticas profissionais, rumo a horizontes mais potáveis de existência. O livro conta a história de Yamilet, de sua família, amigos, amores, de suas angústias e alegrias. Ela é uma jovem de 16 anos, que tem 1/ The Lesbiana’s Guide to Catholic School foi escrito por Sonora Reyes, neta de imigrantes, queer, que frequentou por anos uma escola católica. Nova York: Balzer & Bray, 2022.

um irmão, Cesar, quase da sua idade. Ambos vivem com a mãe nos Estados Unidos, pois o pai foi deportado para o México. É uma família de origem indígena mexicana, que enfrenta o racismo em suas diferentes dimensões, na precarização financeira, no racismo institucional e na saúde mental, mas que também experiencia o cruzamento dessas violências com outras opressões, como a lesbofobia e a bifobia. A história se inicia com a mudança de escola de Yamilet e seu irmão, por ocasião de uma bolsa que ele havia ganhado por seu excelente desempenho escolar. Enquanto a escola anterior era pública e precarizada, a nova escola é privada e católica, com uma estrutura muito maior; os alunos, em sua maioria, são pertencentes à elite branca da cidade. Uma das primeiras impressões de Yamilet ao chegar ao novo colégio é justamente que ela podia contar nos dedos a presença de colegas não brancos. Isso significava, portanto, que ela e esses outros colegas estavam em uma posição de hipervisibilidade, o que provocava nela desconforto e desgaste emocional. Por outro lado, é justamente nesse grupo de colegas não brancos que ela encontra amparo para sua existência, por meio dos vínculos que constrói com Bo (uma menina amarela) e David (um menino indígena Navajo), bem como com outros colegas brancos antirracistas, como Amber. Nessa escola, ela passa por uma série de situações de violência institucional por parte de algumas professoras e colegas, que adiante retomarei. Pouco antes de ingressar na nova escola, Yamilet havia sofrido uma grande decepção amorosa, e, por conta disso, sua tristeza e sua mágoa ainda estavam latentes. Ela havia se declarado à sua melhor amiga, Bianca, que a rejeitara. A dor de Yamilet não era apenas em razão da não reciprocidade do sentimento,


mas pelo modo como Bianca externara sua negativa. Bianca a fizera se sentir inadequada, suja, predadora, simplesmente por ser lésbica. Diante dessa situação traumática, ao ingressar na nova escola, Yamilet segue determinada a ser o mais heterossexual possível. Além disso, ela teme a reação dos pais, tem medo de ser expulsa de casa se descobrirem sua sexualidade, sobretudo porque, na sua idade e naquele contexto, ela não tinha condições financeiras para morar sozinha e se sustentar de maneira autônoma. Yamilet ajuda a mãe fazendo e vendendo artesanato e, aos poucos, faz uma pequena reserva para caso seja expulsa de casa. Mesmo sendo muito próxima de Cesar, Yamilet se surpreende ao descobrir que o irmão é bissexual e tem uma relação amorosa com Jamal, e também que muitos dos conflitos dele na escola anterior se justificavam pela bifobia que ele sofria. Solidária ao irmão, Yamilet e Jamal simulam ser um casal, para que a mãe não desconfie de nada. O vínculo entre Cesar e Yamilet é muito bonito e profundo, e eles se apoiam e se fortalecem inúmeras vezes. É Cesar o grande encorajador para que Yamilet se declare para Bo, a menina por quem ela se apaixona. Apesar do apoio do irmão, a todo o tempo Yamilet sofre a ansiedade e a angústia por viver no armário, e só consegue de fato se declarar para Bo muito mais tarde − um momento muito terno e

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sensível, quando é correspondida pela amiga e pode, finalmente, vivenciar a alegria de sua afetividade/sexualidade. Emocionalmente mais próxima do pai, Yamilet imaginava que a reação dele seria muito mais acolhedora que a da mãe, que era mais rigorosa com ela e, da sua perspectiva, destinava a ela menos carinho e atenção que ao irmão. Além disso, a mãe era uma cristã muito mais fervorosa que o pai, que era um ativista descrente de vários pressupostos religiosos. Apesar de sua expectativa, o pai não a ampara, ao contrário, mostra-se distante, deslegitima sua sexualidade associando-a a uma fase, por fim se afastando dela. A mãe, para sua surpresa, acolhe-a e também seu irmão de modo generoso e amoroso, reforçando que “se a Bíblia diz que não devo amar meus filhos, então a Bíblia está errada”. Essa sensibilidade da mãe foi acentuada por uma situação extrema, de ideação suicida de Cesar, ocasião em que ela se dá conta do quanto é importante proporcionar essa escuta e amparo aos filhos. o que é o armário? No senso comum, a noção de armário está muito relacionada a uma ideia de encobrimento, sobretudo quando se trata da vida sexual das pessoas LGBT. O vocabulário em torno desse tema costuma trazer ideias como saída e entrada, dentro e fora (do armário), bem como referências a assumir-se ou a confessar-se. A pesquisadora de estudos de gênero Eve Kosofsky Sedgwick (1950-2009) conceitua armário como uma espécie de “segredo


aberto”,2 um dispositivo de regulação da vida das pessoas lgbt, aparato com regras contraditórias e coercitivas, que borram as fronteiras entre privacidade, escolha, público e privado. Ao contrário do que é compreendido no senso comum, o armário vai muito além de uma simples divisão entre dentro e fora. É comum que uma mesma pessoa LGBT possa estar fora do armário em algumas relações e não em outras; para algumas pessoas da família, talvez consiga dizer, para outras, não. Também no ambiente escolar e/ou de trabalho, é possível que haja relações nas quais encontre maior ou menor encobrimento da sexualidade. Mesmo alguém que, a princípio, estaria fora do armário para a maioria de seu círculo social pode novamente ser colocada em situação constrangedora quanto a isso; basta mudar de bairro, de cidade, de escola, e é como se tivesse que iniciar do zero todo o trabalho emocional. No caso de Yamilet, uma das primeiras pessoas a quem ela conta ser lésbica é o colega Hunter, com quem ela não tem uma relação estreita de intimidade e confiança, mas, por conta das circunstâncias, ele acaba ocupando esse lugar daquele que escuta sua fala. Por mais que ela pensasse muito sobre isso, sobre quais

2/ Ver Eve Kosofsky Sedgwick, “A epistemologia do armário”, Cadernos Pagu, Quereres, v. 28, pp. 19-54, 2007. Disponível em: https://ieg.ufsc.br/storage/articles/October2020// Pagu/2007(28)/Sedgwick.pdf. Acesso em: 26 maio 2023.

seriam as condições ideais para partilhar, não foi possível ter esse controle completo. Apesar de seus receios, Hunter, o colega branco heterossexual e rico, não a julgou nem a expôs. Mas o pai, alguém que ela amava e em quem confiava, não reagiu desse modo. Dessa forma, percebemos que, por mais que se busque controlar e prever as situações, é sempre uma aposta, há sempre certo risco. Assim como Yamilet, muitas pessoas lgbt se culpam pela reação violenta que porventura recebam de outrem, como se o problema tivesse sido o momento de contar, o modo de contar, a quem contar. Na verdade, assim como “o racismo é uma problemática branca”,3 a lesbofobia também é uma problemática de quem é lesbofóbico. O dilema do armário da sexualidade só se apresenta em virtude das violências de gênero. Não constitui uma escolha livre, uma honestidade em se assumir ou não, mas mostra quanto essa decisão é relacional. Como cobrar de alguém que nos diga algo se não produzimos minimamente um espaço de escuta? Nem sempre o que temos a dizer é algo fácil de ser dito, seja pelo conteúdo, seja por nosso receio de desagradar, entre tantos outros motivos. Por temer a reação do outro, suas chantagens, distorções, ameaças e punições, muitas pessoas adiam ou atenuam o que têm a dizer. E nem sempre é fácil se afastar; existem dependências financeiras e emocionais de toda ordem. Antes de apenas cobrar que o outro diga a verdade, é preciso averiguar se existe mesmo alguma abertura para a escuta.

3/ Entrevista com Grada Kilomba, “‘O racismo é uma problemática branca’, diz Grada Kilomba”, Carta Capital, 30 mar. 2016. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/ politica/201co-racismo-e-uma-problematica-branca201d-uma-conversa-com-grada-kilomba/. Acesso em: 26 maio 2023.


Na história de Yamilet, ela temia ser expulsa de casa, não ter mais o amor dos pais; receava também ser ainda mais perseguida na escola. Nenhum desses receios deixa de ter alguma correspondência com a realidade; de fato, em muitos casos, é o que acontece. Portanto, não se podem diminuir os anseios de uma pessoa no armário, nem julgá-la pelo tempo que precisa para tomar suas decisões, especialmente quando se trata de um jovem, de uma adolescente, que tem com sua família uma relação de dependência financeira e emocional muito mais profunda do que um adulto. Por outro lado, nessa tentativa de antecipar tudo, corremos o risco de preencher as palavras da outra pessoa, de pressupor que ela não conseguirá lidar com isso, escutar ou acolher, mas, em alguns casos, podemos nos surpreender. Ao contar para a mãe, Yamilet recebe carinho e amparo, algo que ela estava certa de que não receberia. Inclusive, essa empatia e sensibilidade não estão associadas diretamente ao grau de instrução, à geração ou afins; há muitas pessoas pouco escolarizadas que têm abertura para a escuta, ao passo que alguns, com formação acadêmica, perpetuam as discriminações. É importante sinalizar isso, porque alguns desses argumentos podem reforçar o racismo, que atribui a pessoas brancas, ricas e escolarizadas uma evolução moral, enquanto associa pessoas

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empobrecidas (em geral não brancas) à prática dos mais diversos preconceitos. Em todo caso, o tempo em que Yamilet permanece no armário para a mãe, para o pai, para a colega por quem é apaixonada, é um tempo de muita angústia. De maneira que não falar também é um processo que não se faz sem custos. Por vezes, até mais altos do que aqueles da realidade de sair do armário. Diante disso, percebemos que, contrariamente ao que se pode pensar, a situação do armário não deve ser individualizada. Inclusive, mesmo que a pessoa escolha permanecer no armário, ela pode ser, a qualquer momento, arrancada dele. Esse tipo de invasão do tempo e da privacidade amedronta pessoas lgbt, receosas de dar pinta de sua sexualidade. A cena da polêmica, da chacota, da vergonha e da humilhação é performada por pessoas lgbtfóbicas que, dessa negativação, positivam sua heterossexualidade como “normal”, como “natural”, como única forma correta de existência. Por isso, repito, o armário é uma estrutura que fortalece a norma da heterossexualidade. Em todo esse percurso há um desgaste emocional imenso produzido pela lgbtfobia; afinal, algum heterossexual pensa constantemente em como confessar que é hétero? Que pessoa heterossexual tem receio de ser expulsa de casa se falar da sua heterossexualidade? Ou de não ser mais amada pelas pessoas mais importantes de sua vida? Todo esse custo emocional, invisível por vezes, faz com que crianças e jovens sejam simbolicamente expulsos da escola. No caso de Yamilet e Cesar, as faltas, o sono, o cansaço, eram consequências das violências que sofriam, ainda que, por parte da instituição, eles fossem os “alunos-problema”. Nesse caso, o que se percebe é que a instituição escolar era o problema, era a escola que contribuía para a


evasão dos alunos todas as vezes que impunha a todos uma única fé, uma única sexualidade e um modo único de estar no mundo. Quando jovens não se veem no currículo de maneira positiva, quando são invisibilizados e sua presença só é notada de forma negativa, quando não há comprometimento, apoio e solidariedade em relação às violências que vivem, como desejar continuar nesse espaço? É impossível que uma imposição dessa ordem não traga nenhum efeito − pode ser na forma de adoecimento, de explosão de raiva (como ocorre com Yamilet e Cesar), de insegurança em se posicionar, de enfraquecimento de vínculos, autoestima, autoconfiança etc. Assim, o sofrimento dos jovens LGBT não deve ser usado como uma prova de que precisam da cura gay, considerando que o que lhes impinge sofrimento é justamente a lgbtfobia, e é isso que precisa ser elaborado, erradicado. Esses sentimentos vividos pelas personagens do livro, o receio de serem expostos, organizam a polêmica em torno do armário, que funciona como uma espécie de pedagogia e como um ensinamento (ameaça) público a outras pessoas LGBT, em uma tentativa de dissuadi-las de serem o que são (porque não basta estar escondido, você poderá ser descoberto, o seguro mesmo é não ser). Assim, há um prazer específico em ex-

por a sexualidade das pessoas lgbt contra a vontade delas, ao mesmo tempo que há uma recusa em aceitar sua autoenunciação.4 Quando pensamos em nossa experiência como pessoas indígenas, também há algo em comum que se repete. É frequente nos chamarem de “índios”, de maneira pejorativa, para nos envergonhar, para que seja algo risível. Mas quando dizemos: “sim, sou indígena”, contestam, dizendo que não existem mais indígenas hoje. É como se a única maneira boa de ser indígena ou de ser LGBT fosse não sendo indígena e sendo heterossexual, um apagamento. O que há em comum nessas lógicas é a imposição de um tempo, de um marco temporal que nos coloca sempre fora/longe de como e onde deveríamos ser e estar. Também por isso, quando uma pessoa indígena se afirma lgbt, é comum que haja um duplo estranhamento temporal. Se, por um lado, o racismo anti-indígena só pensa a existência de indígenas no passado, por outro, a norma heterossexual tenta desqualificar as dissidências de gênero dizendo que são coisa da moda, que são apenas uma fase passageira. Nessa ideia de moda, o que se coloca é a tentativa de dizer que aquilo seria algo recente e, portanto, falso. Já a heterossexualidade, não seria coisa da moda, visto que seria atemporal, natural, verdadeira. É como se a heterossexualidade fosse o original e as dissidências fossem as cópias. Em verdade,

4/ Geni Daniela Núñez Longhini, Mãe (nem) sempre sabe: Existências e saberes de mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais. Dissertação de mestrado. Florianópolis: Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2018. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/ bitstream/handle/123456789/189944/PPSI0782-D.pdf?sequence=-1&isAllowed=y. Acesso em: 26 maio 2023.


nossas existências indígenas e lgbt são contemporâneas e, embora alguns termos sejam mais recentes, a diversidade de práticas sexuais existe desde que existem pessoas no mundo. Em nosso território, o primeiro caso conhecido de uma vítima dessas violências é o de Tibira, condenado à morte no século 17 por cristãos colonizadores, que introduziram seu corpo em um canhão, exigindo até o último momento que Tibira se arrependesse e pedisse perdão por seus pecados. Mas aqui cabe, assim como Yamilet, nos questionarmos: por que devemos pedir perdão por algo que não é errado? Por que pedir desculpas e autorização para existir à nossa maneira? Há quem diga que Deus ama o pecador, não o pecado. Mas não há como separar nossa sexualidade e nossa afetividade de quem somos. Para os colonizadores, nossos ancestrais não eram considerados humanos, e por isso não eram definidos como homens e mulheres. Só era considerado humano quem se convertesse, quem se tornasse cristão. Não fosse assim, seria considerado selvagem, bárbaro. Nessa interpretação normativa, Deus tinha criado o homem para a mulher, de maneira que ser homem e ser mulher de verdade era ser heterossexual. Até hoje observamos esse raciocínio, quando dizem que os homossexuais são mulherzinhas e as lésbicas são machorras, maria joão etc. Em 1551, o missionário Pero Correia registrou em uma carta seu incômodo com nossas

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ancestrais, que não queriam ser chamadas de mulheres, porque não eram heterossexuais: E cometem o pecado contra a natureza, de maneira que há muitas mulheres (sic) que usam armas e seguem todos os ofícios como se não fossem fêmeas. Mantêm namoro com outras mulheres com quem se dizem casadas e a maior injúria que se lhes pode fazer é chamá-las de mulheres. De tal forma que quem lhes disser algo poderá correr o risco de que lhe atirem flechadas.5 Nossas ancestrais já entendiam que ser marcada como mulher era algo muito além de uma descrição meramente biológica, era o anúncio de um roteiro, no qual se deveria ser heterossexual, mãe, submissa ao marido, e assim por diante. Por isso, antes de se colocar na posição de quem concorda ou discorda, de quem perdoa ou não, de quem aceita ou repudia, é necessário um questionamento anterior: não deveríamos ter o direito de concordar ou discordar de algo que não diz respeito ao nosso próprio corpo. Se a ideia que temos de homem e de mulher de verdade, do que é família, do que é pecado, não acolhe outras existências, não são elas que devem se encaixar em nossas categorias, somos nós que devemos revê-las. Algumas pessoas dizem que são contrárias às sexualidades não hétero porque elas não seriam “naturais”. Para a religião dominante, apenas o sexo reprodutivo seria válido aos olhos de Deus, por isso até hoje o Vaticano

5/ “Cartas avulsas: 1550-1568", in Cartas jesuíticas II. Rio de Janeiro: Officina Industrial Gráfica, 1931


proíbe o uso de preservativos, porque entende que eles já anunciam que aquele sexo será apenas por prazer. Assim, o principal incômodo com práticas sexuais de pessoas lgbt deriva do fato de acontecerem somente por motivos de prazer. Há um equívoco nisso, pois pessoas lgbt também podem praticar sexo reprodutivo, mas é outra questão que se coloca: é pouca coisa praticar sexo por prazer? Por que algo prazeroso é considerado não natural? Aqui tem-se um ponto central: são nossas ideologias que inspiram nossas práticas. Por exemplo: nós, povos indígenas, não queimamos as casas de reza alheias, não consideramos os deuses alheios como algo demoníaco, como espiritualidades que devem ser destruídas. Diante disso, não constitui um esforço respeitar as diversidades cosmogônicas, culturais. Mas quem acredita que apenas seu deus é verdadeiro, que somente sua fé é universal e que todos devem se submeter a ela poderá se sentir mais facilmente incomodado ao ver que nem todos acreditam em seus pressupostos. Da mesma forma, quem considera que existe apenas um tipo de família válido, apenas um tipo de sexualidade, poderá se sentir desconfortável em observar a multiplicidade. A colonização é um sistema de monoculturas, da fé, dos afetos, da sexualidade. Não admite a concomitância, vê a diversidade como algo a ser dizimado.

nós também somos o céu Diante de tudo isso, talvez o maior desafio seja justamente que essas lógicas de monocultura atuem em nome do bem, do amor, da salvação, da caridade. E, em nome desse amor, agem de maneira discriminatória. Esse é um aprendizado muito bonito do livro em questão, o quanto é poderoso e nutritivo nos abrirmos a olhar e a perceber as pessoas que dizemos amar, não pelo que gostaríamos que fossem, mas pelo que são. Essa é uma obra que, ao mesmo tempo que nomeia as violências, também faz questão de validar as resistências, as delicadezas, os pequenos gestos (invisíveis para tantos), que reafirmam silenciosa mas ruidosamente nossas identidades. Eu dei início a este texto dizendo que queria ter lido algo assim quando era jovenzinha. Mas como o tempo circula e se movimenta, de alguma forma ler essa história hoje também consegue acolher os outros tempos que já vivi. Consegue dizer, nessa máquina do tempo que é a memória, que está tudo bem se apaixonar pela amiga, que não tinha nada de errado sentir o coração acelerando, os olhos brilhando e o sorriso abrindo quando eu a via. Que tenho, que temos o direito a viver nossos amores, nossos desencontros, do tamanho que eles são, sem o agigantamento das opressões, sem tanto medo de errar, de decepcionar. Como me disse uma vez o mestre quilombola Nêgo Bispo: “tudo que é reto mente”; não há um único caminho, nem uma única verdade a ser seguida. Por isso, benditos sejam os desvios que nos fazem reencontrar com nós mesmas.


Já não quero ir pro céu nem pro inferno, minha paixão é pela terra (que também sou). Dizem que querem nos perdoar, eu pergunto: de quê? Dizem que querem nos salvar, mas não estamos perdidos, nunca estivemos Quando as águas do rio me banham, me banham de graça, não me perdoam de nada, não me consideram suja de pecado nenhum O céu também é a terra, também faz parte dela O céu tá aqui pertinho Ele chove em mim, em nós Vejo daqui suas cores do dia, tarde, noite e madrugada Quando as gotas do orvalho hidratam as folhas, também há nelas um pouco de céu Quando as flores e frutas crescem, há nelas um pouco de chuva No néctar que a borboleta toma há um pouco de nuvem Em toda chuva, um pouco de rio Em todo rio, um pouco de céu O céu não é oposto da terra Céu não é paraíso, nem terra é inferno Nem o inferno é aqui nem o paraíso é lá Céu e terra são parte da mesma dança que transcende tanto a salvação quanto a condenação Não quero ir para o céu, nós somos o céu.


geni núñez é ativista indígena guarani, escritora e psicóloga. É doutora pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Florianópolis, SC), mestre em psicologia social e graduada no curso de psicologia pela mesma universidade. É co-assistente da Comissão Guarani Yvyrupa, membro da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos(as) (ABIPSI), membro do Observatório da Kuñangue Aty Guasu Guarani Kaiowá e membro da Comissão de Direitos Humanos (CDH) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP).


gesto: coreografar a palavra – lambe-lambe Em uma manhã no início de maio, realizamos com um grupo de professoras e educadoras uma oficina. O encontro foi criado a partir de uma urgência e de um desejo, a urgência de iniciar um diálogo e uma escuta sobre a violência nas escolas e o desejo de criar um conteúdo para o segundo movimento da publicação educativa com as professoras. Convidamos nove participantes1 e compartilhamos alguns textos para nortear a conversa, prévias dos conteúdos do segundo movimento: um capítulo traduzido por nós do romance The Lesbiana’s Guide to Catholic School [Guia lésbico para escolas católicas], de Sonora Reyes, e trechos da deliciosa conversa que acompanhamos entre Rosana Paulino e Sueli Carneiro, duas professoras que nos provocaram a refletir sobre as práticas e as responsabilidades na área da educação. Apesar dos desafios, empolgadas com o encontro, uma dinâmica acolhedora fluiu e gerou frases para a criação de cartazes lambe-lambe: › a escola é nascedouro › sim LGBTQIAP+ · na escola · em todo lugar A primeira frase foi criada em diálogo com o texto de Reyes e o contexto do ambiente escolar trazido pelas participantes. A segunda frase surgiu em diálogo com a afirmação de Rosana Paulino de que “a escola forma natimortos”, provocando nas pessoas uma resposta contrária, combativa e inspirada na paisagem ambiental que a artista insere em seus trabalhos. Essas educadoras coreografam mais do que palavras ou desejos, mas questões caras a todas que compõem um potente espaço de formação e que precisam enfrentar as violências promovidas institucionalmente no aparato escolar. Assim, compartilhamos por QR code o resultado da oficina para expandir as discussões e convidar mais pessoas para a dança.

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1/ As participantes presentes atuam em diferentes instituições ligadas à área da educação. São elas: André de Pina Moreira, Anna Luisa de Castro, Daniela Livia da Costa Esposito, Eva Santos, Júnior Azhura, Lucilia Guerra, Luma Nunes, Marli Virtz e Rosângela Castro de Jesus. Com frequência, parcerias com as instituições nas quais as participantes trabalham são viabilizadas, com o objetivo de construir e realizar ações de formação.


em outras palavras: o tempo, em sua dinâmica espiralada, só pode ser concebido pelo espaço ou na espacialidade do hiato que o corpo em voltejos ocupa.

o corpo dança o tempo [...]

Trazer novos significados para o espaço escolar e dar potência para que as juventudes se descubram, se expressem e construam conhecimento com protagonismo e independência é um caminho possível. – Lucília Guerra2

a sim escola lgbt qiap+ na escola em é nasce-- todo nasce douro. lugar. douro. 2/ Relato de Lucília Guerra, diretora do Centro de Capacitações do Centro Paula Souza, sobre como a oficina a fez refletir sobre a violência nas escolas.

Leia o QR code para acessar os arquivos digitais dos lambelambes acima e imprimi-los e distribuí-los como quiser.


rosana paulino ¿História natural?, 2016 Livro de artista composto por técnica mista sobre imagens transferidas em papel e tecido, linoleogravura, ponta seca e costura 31,5 × 42,5 × 33,5 cm Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo



sauna lésbica por malu avelar com ana paula mathias, anna turra, bárbara esmenia e marta supernova

malu avelar Sauna lésbica, 2019 Instalação no Valongo Festival Internacional da Imagem (2019) Foto: Marina Lima


imagine se existisse uma sauna lésbica Em 2019, durante a residência PlusAfroT, em Munique, Alemanha, Avelar divide inquietações e um intenso esgarçar de textos com outras artistas, germinando assim o desejo por um espaço de trocas. Nesse mesmo ano, no Valongo Festival Internacional da Imagem, em Santos (SP), Avelar propõe a primeira edição da instalação Sauna lésbica, como movimento coletivo para a celebração de afetividades de pretas, lésbicas e sapatões. Um espaço prazeroso, seguro e provocativo para experienciar a política, o espiritual e o profano, para amar e acolher. Com base em conversas, oficinas e festas, a obra é coreografada por pessoas que a ocupam, em uma impermanência proposital. Na 35ª Bienal, o projeto inicia seu coro a partir das vozes de mais quatro artistas, engendrando a potência do erótico como linguagem de resistência. Um cuíerlombo,1 Sauna lésbica se realiza no encontro com e entre todas as im/ possibilidades de ser. Construção coletiva que, no limite das brechas, transborda urgências de cuidado e de cura com base em processos imaginativos de feitura do mundo.

1/ tatiana nascimento articula o quilombismo de Beatriz Nascimento (1942-1995) e Abdias Nascimento (1914-2011) em seu artigo “da palavra queerlombo ao cuíerlombo da palavra” (2018). Trata-se de um processo de construção por meio e com base na palavra "quilombismo", fazer mítico no qual nos reinventamos, não só apesar do silenciamento colonial, mas contra ele. Diz respeito a reorganizar a história “a partir de nossas próprias narrativas ancestrais, desenterradas da memória que as histórias mal-contadas guardam, florescidas na pungência que nossos corpos e desejos brotam de Erzulie Dantor a Vera Verão – reorganizar nossa própria história, nossa própria narrativa, nossa própria subjetividade”. “da palavra queerlombo ao cuíerlombo da palavra”, Palavra preta!, 12 mar. 2018, p. 4. Disponível em: https://palavrapreta.wordpress. com/2018/03/12/cuierlombismo/. Acesso em: 16 jun. 2023.

malu avelar é artista interdisciplinar e pesquisadora. Desde a infância, tem a trajetória marcada pela dança. Após uma formação inicial em danças hegemônicas na cidade de Belo Horizonte (MG), vai para São Paulo (SP), onde integra diferentes coletivos. Sua produção é atravessada pelo corpo em trânsito e por processos políticos do Brasil. Transmitindo espiritualidades, conflitos e imaginações, Avelar rompe com discursos socialmente cristalizados.


daniel lie

daniel lie Non-Negotiable Condition [Condição inegociável], 2021 Instalação site-time specific, composta de tecido de algodão tingido com cúrcuma, tecido de juta, lama, sementes, vasos de cerâmica de terracota, matéria orgânica à base de plantas, água, flores, cordas de fibra natural, cogumelos-ostra e entidades sem nome 14 × 15 × 8 m Vista da exposição em Metabolic Rift, Atonal Festival, Berlim, Alemanha (2021) Foto: Daniel Lie


Transcrição de trechos da entrevista de Daniel Lie concedida à equipe de Educação, realizada no Pavilhão da Bienal, em 14 de março de 2023. “Para mim, a importância de trabalhar em parceria, tanto com pessoas humanas quanto com seres além-de-humanes, é entender que a gente faz parte de um ecossistema maior, mas, principalmente, retirar, questionar, criticar essa hierarquia que coloca a humanidade no topo. E todo esse ecossistema que é essencial para nossa existência acaba virando algo objetificado, secundário. Então tem uma pergunta: Como se relacionar com esses seres? Como perceber? Como entender a comunicação/ relação e o que essa comunicação/relação me traz, o que muda? E aí, estando no Brasil, onde as questões humanas são muito degradantes, em algum momento da minha jornada eu pensei: como pensar agência, como pensar direitos, como pensar essa outra perspectiva de seres além-de-humanes enquanto seres humanos ainda não têm, totalmente, direitos humanos? Então, acho que as coisas vão se retroalimentando.”

◗ “A instalação [Outres] responde especificamente ao lugar em que ela está. Os seres invisíveis ao nosso olhar começam a se apropriar dessa instalação e viver, e vão ser seres do andar da Bienal, invisíveis, que não têm nome, que são impossíveis de nomear.”

daniel lie vive e trabalha em Berlim, Alemanha. Em sua prática artística conta com a colaboração de parcerias a quem elu chama “além-de-humanes”: bactérias, fungos, plantas, animais, minerais, forças invisíveis, ancestrais e seres impossíveis de nomear. Ao propor a criação de ambientes e temporalidades específicas em espaços expositivos, busca possibilitar às pessoas humanas, por meio de nossos canais multissensoriais, um lugar de experimentação e de meditação. Lie sugere a expansão do entendimento de ecossistema ao questionar o cistema hegemônico e a ótica a partir da qual a humanidade é hierarquicamente entendida como sendo o centro. No projeto apresentado para a 35ª Bienal de São Paulo, o protagonismo é além-de-humane: com o passar do tempo, diferentes cheiros e mudanças nos aspectos físicos da obra se mostram presentes, estabelecendo um diálogo e uma relação entre essas existências, os seres invisíveis que habitam o Parque Ibirapuera, o Pavilhão da Bienal, e nós. Com base nessa proposta de experiência e, consequentemente, por meio de emoções, de pensamentos, existências e visões apagadas da história, é possível ter acesso a outros tipos de conhecimento? Desconstruir e desaprender a normatividade, quebrando conceitos duros e binários, é o que propõe Outres (2023).


Frase de Rosana Paulino registrada em conversa com a equipe de Educação.


eu sou um trem que não cabe no ocidente.


de fora para dentro, de dentro para fora

trinh t. minh-ha


todas as imagens deste ensaio: trinh t. minh-ha Reassemblage [Remontagem], 1982 Stills de filme, 16 mm 40’


Um objetivo constantemente reivindicado por quem “busca revelar uma sociedade para outra” é “capturar o ponto de vista do nativo” e “compreender a visão dele acerca do mundo dele”. Provocando muita discórdia, em termos de metodologia e de abordagem, entre especialistas nos campos da antropologia e do cinema etnográfico na última década, esse objetivo é também, de diferentes maneiras, caríssimo a muitas e a muitos de nós que consideramos nossa a missão de representar e de ser intérpretes fiéis de outras pessoas. A determinação de ver as coisas da perspectiva dos nativos constitui uma ideologia definida de verdade e autenticidade, e se encontra no centro de todas as discussões polêmicas sobre “realidade” e sua relação com “beleza” e “verdade”. Trazer à tona a questão de representar a Outra/o Outro é, portanto, retomar incessantemente a questão fundamental entre ciência e arte, documentário e ficção, universal e pessoal, objetividade e subjetividade, masculino e feminino, de-fora e de-dentro [outsider e insider].1

1/ Ao longo deste texto, serão utilizadas as variações pessoa-de-dentro/alguém-de-dentro/de-dentro como tradução para insider, e pessoa-de-fora/alguém-de-fora/de-fora para remeter ao termo em inglês outsider. [N.T.]

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Frequentemente, o conhecimento sobre algo leva à ilusão de se ter o conhecimento Há muitos anos, a antropóloga e cineasta estadunidense Zora Neale Hurston (1891-1960) escreveu sobre como lhe impressionava a ausência de curiosidade anglo-saxã acerca da vida interna e das emoções de pessoas negras e, de modo mais geral, sobre quaisquer povos não anglo-saxões. Apesar de hoje isso ainda persistir, há uma tendência de reafirmá-lo de outra forma, dizendo que impressiona mais a reivindicação geral de “especialistas” ocidentais que se interessam somente por esse aspecto da vida do Outro, e por quase nada além disso. O objetivo final agora é “desvendar a percepção do eu [self] do javanês, balinês ou marroquino”, supostamente mediante as definições que esses grupos têm de si. Às vezes, parece que as coisas mudaram drasticamente, quando, na verdade, podem apenas ter assumido aparências opostas, como costumam fazer, ao embaralhar as cartas e despistar as pessoas. A mudança que parte da exterioridade inconveniente para a interioridade intrusiva e a corrida pelos supostos valores ocultos de uma pessoa ou de uma cultura deram origem a uma forma de um legitimado voyeurismo (não reconhecido como tal) e a uma arrogância sutil – ou seja, a pretensão de enxergar ou dominar a mente dos outros, cujo conhecimento, supostamente, esses outros não detêm; e a necessidade de definir e, portanto, restringir, provendo-lhes assim um padrão de autoavaliação do qual eles necessariamente dependem. Conflitos psicológicos, e demais elementos idiossincráticos, tornam-se sinônimos de profundidade (palavra-chave para a metafísica ocidental), ao passo que a experiência interna é reduzida à subjetividade, são sentimentos e opiniões pessoais.


“Como é ser racializada como eu?”2 Como é ser branco como você? Para que um filme sobre a Outra/o Outro seja bom e sério, deve mostrar algum tipo de conflito, pois, com frequência, é assim que o Ocidente define identidades e diferenças. Para muitos cineastas que se orientam pela ciência, ver, ironicamente, ainda significa acreditar. Mostrar não é mostrar como posso vê-lo, como você pode me ver e como somos percebidos – o (nosso) encontro –, mas sim como você se vê e representa sua espécie (na melhor das hipóteses, por meio de conflitos), o Fato por si só. A autenticidade factual depende profundamente das palavras e dos testemunhos da Outra/ do Outro. Para validar um trabalho, torna-se, portanto, mais importante provar ou evidenciar como essa Outra/esse Outro participou da composição de sua própria imagem; daí, por exemplo, a proeminência das séries de entrevistas e das talking-heads,3 estratégias de testemunho oral em práticas de documentário. Essa abordagem é frequentemente chamada de “dar voz”, embora essas “vozes” jamais formem, de fato, a Voz do filme, pois são utilizadas como artifícios de legitimação cuja autoridade aleatória, convenientemente dada e desvalorizada, serve, com frequência, para compensar a Ausência fílmica (ausência de imaginação ou 2/ Em inglês, “How It Feels To Be Colored Me”, título original de um artigo de Zora Neale Hurston. Constitui provavelmente uma resposta ao que ela sentia que os brancos de seu convívio sempre queriam lhe perguntar. In Alice Walker (org.), I Love Myself When I Am Laughing. Old Westbury, NY: The Feminist Press, 1979, pp. 152-155. 3/ Em português, literalmente, “cabeças-falantes”. É um estilo de vídeo em que uma pessoa é filmada da cintura para cima, encarando a câmera. A estratégia causa a impressão de que a pessoa filmada está se dirigindo à pessoa que assiste a ela. [N.T.]

de verossimilhança, por exemplo). O poder cria suas restrições, porque o Poderoso é também, necessariamente, definido por aquele que Não Tem Poder. Assim, o poder precisa ser compartilhado (“antropologia compartilhada” é uma noção que tentaram aplicar por aí) para que seu efeito possa continuar a circular; mas compartilhado só parcialmente, com muita cautela, e sob a condição de que seja dado, e não tomado. Um antropólogo famoso expressou a crise existente em seu campo de atuação quando escreveu: “Onde ficamos quando não podemos mais reivindicar algum tipo de proximidade psicológica ou identificação transcultural com nossos sujeitos?”4 Certamente o homem precisa manter vivo seu papel. Afinal, em todo erro há sempre alguma verdade. [...] é uma questão de grau, não de oposição polar [...] O confinamento a conceitos próximos-à-experiência deixa o etnógrafo inundado de imediatismo e enredado em vernáculo. O confinamento a conceitos distantes-da-experiência o deixa preso a abstrações e sufocado em jargões. A verdadeira e única questão [...] no caso dos “nativos” – você não precisa ser um para conhecer um – é quais papéis os dois tipos de conceito desempenham na análise antropológica.5 No entanto, “colocar-se na pele de outra pessoa” não é algo fácil. O risco que o homem teme para si e para os seus parceiros é o de “atravessar a montanha”. Para tanto, ele assume a tarefa de

4/ Clifford Geertz, Local Knowledge. Nova York: Basic Books, 1983, p. 56. 5/ Ibid., p. 57.


aconselhar e treinar seus seguidores para o distanciamento no campo, para que permaneçam no lado vitorioso. Nesse contexto, o ato de dar deve sempre ser determinado “com referência ao que, à luz do conhecimento e da experiência ocidental, temperados pelas considerações locais”, achamos que é melhor para eles.6 E, assim, garantir que absorveremos os segredos Deles/Delas, sem jamais entregar os Nossos. O truque é não se envolver em correspondências espirituais internas com seus informantes. Por preferirem, como o restante de nós, considerar como deles as próprias almas, eles não ficarão muito interessados em se envolver em tais correspondências, de qualquer maneira. O truque é desvendar o que diabos eles pensam que estão fazendo.7 A consequência natural desse raciocínio é o casamento arranjado entre “distante-da-experiência” e “próximo-à-experiência”, entre a objetividade científica e a subjetividade nativa, entre o input de alguém-de-fora e o output de alguém-de-dentro. Para atingir a noção mais íntima e oculta acerca do eu [self] da Outra/do Outro, o homem precisa contar com uma forma

6/ Earl of Evelyn Baring Cromer, Political and Literary Essays, 1908-1913. (1913) Freeport, NY: Books for Library Press, 1969.

de interdependência (neo)colonial. E como, nesse modelo, compartilhar sempre significa dar pouco e obter mais do que um pouco, a necessidade de informantes acaba se transformando em uma necessidade de discípulos. Precisamos treinar pessoas-de-dentro para que possam se ocupar de Nossas preocupações e torná-las úteis formulando o tipo certo de Pergunta e proporcionando o tipo certo de Resposta. Portanto, a pessoa-de-dentro ideal é o sujeito psicologicamente detector-de-conflitos e resolvedor-de-problemas que representa a Outra/o Outro para o Mestre8 de maneira fidedigna, ou, mais especificamente, que conforta a relação eu-outro do Mestre em sua implementação de relações de poder, colhendo dados aproveitáveis, cuidando da própria vida/ do próprio território, e ainda assim oferecendo a diferença que se espera dele. O sistema do “Negro de estimação” 9 (por Zora Neale Hurston) A todo homem branco deverá ser permitido ter um Negro de estimação. Sim, ele poderá pegar um homem negro para si para cuidar e estimar, e esse Negro será perfeito aos olhos dele. Nem o ódio entre as raças de homens nem as condições de discórdia nas cidades muradas farão esmorecer o orgulho e o prazer que sente por seu Negro.10

7/ Clifford Geertz, op. cit., p. 58.

8/ “Master”, no original, se refere ao mestre antropólogo, cientista, e não ao senhor colonial (também “master” no inglês). [N.E.]

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9/ No original, "The 'Pet Negro' System". [N.T.] 10/ Zora Neale Hurston, “How It Feels To Be Colored Me”, op. cit., p. 156.


[...] quando tudo é descontado, prevalece o fato de que gente branca do Norte e do Sul promoveu Negros – geralmente sob a ideia de “representar o Negro” – com pouca consideração pelas habilidades da pessoa promovida, mas de forma alinhada ao sistema “de estimação”.11 O apartheid impede qualquer contato entre pessoas de raças diferentes que possa minar a ideia de diferença essencial.12 Uma perspectiva de alguém-de-dentro: a palavra mágica que contém o selo de aprovação. O que pode ser mais autenticamente outro que a outridade da Outra/do Outro em si? Contudo, cada fatia de bolo fornecida pelo Mestre traz consigo uma faca de dois gumes. Os africânderes dizem prontamente: “Você pode tirar o homem negro do mato, mas não pode tirar o mato do homem negro”. O lugar do nativo é sempre bem delimitado. O fazer fílmico culturalmente “correto” quase sempre insinua que os africanos mostram a África, os asiáticos, a Ásia, e os euro-estadunidenses… o Mundo. A outridade tem leis e interdições próprias. Portanto, se “você não

11/ Ibid., p. 160. 12/ Vincent Crapanzano, “A Reporter at Large”, The New Yorker, 18 mar. 1985.

pode tirar o mato do homem negro”, esse mato é constantemente fornecido de volta a ele, e, no fim das contas, é esse mato que ele deve transformar em seu território exclusivo. E ele pode fazer isso completamente ciente de que uma terra infértil está longe de ser um presente, pois, no desdobramento dos processos de desigualdades de poder, as mudanças exigem que as regras sejam reapropriadas para que o Mestre seja derrotado em seu próprio jogo. O doador pretensioso gosta de dar partindo da premissa de que está na posição de pegar de volta o que deu quando quiser, ou sempre que a pessoa que recebeu ousar ou vir a ultrapassar os limites de suas condições. No entanto, aquele que recebe não vê presente nenhum (consegue imaginar um presente que é tomado de quem o recebe?), mas apenas dívidas que, mesmo depois de pagas, permanecerão sendo sua propriedade, mesmo que o conceito de propriedade (de terras) lhe seja alheio, um conceito que se recusou a assimilar. Por meio das reações e expectativas do público a respeito de seus trabalhos, cineastas não brancas/os13 são frequentemente informadas/os e lembradas/os dos limites territoriais em que devem permanecer. Uma pessoa-de-dentro pode falar com autoridade sobre sua cultura e é considerada uma fonte de autoridade nesse assunto – não necessariamente como cineasta, mas meramente como alguém-de-dentro. Esse ato automático e arbitrário de imbuir a pessoa-de-dentro de conhecimento legitimado sobre seu patrimônio cultural e seu ambiente apenas exerce seu poder quando se trata de uma questão de validação de poder. É uma inversão paradoxal da mente colonial: o que Alguém-de-fora

13/ No original, non-white. [n.t.]


espera de Alguém-de-dentro é, de fato, a projeção de um sujeito onisciente que esse Alguémde-fora costuma atribuir a si e à sua espécie. Nessa relação eu-outro não reconhecida, no entanto, o Outro/a Outra sempre permaneceria à sombra do eu, portanto não-realmente-não-exatamente “onisciente”. Uma pessoa branca que realiza filmes sobre o povo Goba do Zambeze ou sobre o povo Tasaday da floresta tropical das Filipinas não parece surpreender ninguém, mas uma pessoa do Terceiro Mundo que faz filmes sobre outros povos do Terceiro Mundo jamais deixará de ser passível de questionamentos para muitos. Imediatamente, surge a questão da escolha do assunto. Às vezes, por curiosidade, e, na maioria das vezes, por hostilidade. O casamento não se consuma, pois o casal não é mais “de-fora-de-dentro” [outside-inside] (objetivo versus subjetivo), mas algo entre “de-dentro-de-dentro” (subjetivo no que já é designado como subjetivo) e “de-fora-de-fora” (objetivo no que já é reivindicado como objetivo). Sem conflito real. Diferença, sim, mas diferença Dentro das fronteiras de suas terras, eles dizem Domínio branco e a política de divisões étnicas Quaisquer tentativas de desfocar a linha divisória entre alguém-de-fora e alguém-de-dentro provocariam – com razão – ansiedade, senão raiva. Nesse caso, direitos territoriais não estão sendo respeitados. A violação de limites sempre

levou ao deslocamento, pois as zonas entre-lugares são terrenos movediços sobre os quais caminham pessoas (duplamente) exiladas. Não Você/ não como Você. A subjetividade de Alguém-dedentro (compreendida como horizonte afetivo limitado – o pessoal) é a mesma área sobre a qual o Alguém-de-fora objetivo (compreendido como horizonte imparcial ilimitado – o universal) não consegue reivindicar autoridade plena, mas graças à qual ele segue validando seu papel indispensável, reivindicando agora o que lhe é devido por meio de um conhecimento científico “interpretativo”, mas ainda um conhecimento científico totalizante. A antropologia é a ciência da cultura vista de fora.14 Portanto, se nativos estudassem a si mesmos, dir-se-ia que estariam produzindo história ou filologia, não antropologia.15 [...] somente um representante de nossa civilização pode, de maneira detalhadamente adequada, documentar a diferença e ajudar a criar uma ideia do primitivo que não seria construída pelos próprios primitivos.16 A interdependência não pode ser reduzida a mera questão de escravização mútua. Ela também consiste na criação de um território que não pertença a ninguém, nem mesmo a

14/ Claude Levi-Strauss, “Anthropology: Its Achievements and Future”, Current Anthropology, n. 7, 1966, p. 126.

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15/ Ibid. 16/ Stanley Diamond, “A Revolutionary Discipline”, Current Anthropology, n. 5, 1964, p. 433.


seu “criador”. A outridade torna-se uma diferença crítica que empodera quando não é dada, mas sim recriada. Definida com os critérios recém-formados da Outra/do Outro. O cinema imperfeito é subversivo, não porque a ciência contribua para a purificação da arte, ao “permitir que nos libertemos de tantos filmes fraudulentos, ocultos sob o que tem sido chamado de mundo da poesia”;17 não porque, “quanto mais granulada [a imagem], melhor a política”; tampouco porque uma tomada trêmula, desfocada e mal enquadrada seja mais verdadeira, sincera e autêntica do que uma tomada considerada “bonita” e tecnicamente perfeita (tremer a câmera também pode ser uma técnica); mas sim, eu diria, porque não existe imperfeição (absoluta), pois a perfeição só pode se construir por meio da existência de sua Outra imperfeita. Em outras palavras, a perfeição é produzida, e não meramente dada. Os valores que mantêm o conjunto dominante de critérios no poder são simplesmente ineficazes em uma estrutura na qual não são mais obedecidos. Pessoas não ocidentais podem ou não querer realizar filmes sobre suas sociedades. Seja qual for sua escolha, a questão seguramente não é estabelecer uma oposição às práticas dominantes, pois “oposição” no contexto unidimensional das sociedades modernas, de modo geral, significa fazer o jogo do Mestre. Durante anos, Eles têm dito, com um cuidado muito paternalista: “África para os africanos”; “Nós deveríamos incentivar as pessoas do Terceiro Mundo a fazer filmes sobre seu próprio povo”; “Nós gostaríamos de ver asiáticos na perspec-

17/ Julio García Espinosa, “For an Imperfect Cinema”, in Michael Chanan (org.), Twenty-five Years of the New Latin American Cinema. Londres: BF1/Channel 4 Television, 1983, pp. 28-33.

tiva dos asiáticos”; ou Nós queremos “ensinar pessoas de uma cultura diferente da nossa a fazer filmes que retratem a cultura delas e elas mesmas da forma que elas achem melhor” (para que Nós possamos coletar dados sobre o processo fílmico etnográfico indígena e mostrar o povo Navajo pelos olhos do povo Navajo aos nossos colegas da área).18 Novamente, isso é o mesmo que afirmar que uma perspectiva não branca é desejável porque ajudaria a preencher um vazio que os brancos agora estão dispostos a deixar mais ou menos vazio para diminuir a pressão crítica e proporcionar a ilusão de certa incompletude que necessita da contribuição da pessoa nativa para ser mais completa, mas que, em última instância, depende da autoridade branca para alcançar qualquer tipo de completude real. Essa missão caridosa ainda é considerada correta por muitos, e, apesar das diversas mudanças de aparência pelas quais passou ao longo dos anos, a imagem do branco colonial salvador parece mais perniciosa do que nunca, pois agora opera por meio do consentimento. A antropologia indígena possibilita que a antropologia branca continue a antropologizar o Homem. A antropologia é a atual base de cada discurso pronunciado por sobre a cabeça da pessoa nativa. Os “retratos” de um grupo produzidos pelo observador como alguém-de-fora e pelo observador como alguém-de-dentro serão diferentes, assim como serão relevantes em contextos distintos. A consci-

18/ Ver Sol Worth e John Adair, Through Navajo Eyes. Bloomington: Indiana University Press, 1972.


ência desse fato subjaz ao apelo recente: “Tem que ser [uma pessoa nativa] para entender [uma pessoa nativa]”.19 A questão não é simplesmente “corrigir” as imagens que brancos têm de não brancos, nem reagir à mente territorial colonial simplesmente revertendo a situação e estabelecendo uma oposição que, na melhor das hipóteses, espelhará as atividades e as preocupações do Mestre. (Há pouco tempo, por exemplo, alguns antropólogos franceses falaram em treinar e trazer antropólogos-discípulos do continente africano para estudar aspectos culturais de vilarejos remotos na França. Mais uma vez, deixe que Eles – a quem Nós ensinamos – Nos estudem, pois isso também é informação, e é assim que a roda antropologizante se mantém girando.) Mas, em vez disso, a questão é rastrear e expor a Voz do Poder e da Censura, quando e onde ela surja. A diferença essencial possibilita a seus adeptos se apoiarem com tranquilidade em sua gama de noções fixas. Qualquer mutação na identidade, na essência, na regularidade e até mesmo no espaço físico representa um problema, senão uma ameaça, em termos de classificação e de controle. Se você não consegue localizar a Outra/o Outro, como poderá localizar a si mesmo? 19/ Diane Lewis, “Anthropology and Colonialism”, Current Anthropology, n. 14, 1973, pp. 586-587.

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O senso de eu [self] de uma pessoa é sempre mediado pela imagem que ela tem do Outro/da Outra. (Por vezes, me perguntei se um conhecimento superficial acerca do Outro/da Outra, em termos de estereótipo, não é uma maneira de preservar uma imagem superficial de si mesmo.)20 Além disso, onde termina a linha divisória entre alguém-de-fora e alguém-de-dentro? Como ela deve ser definida? Pela cor da pele (nenhuma pessoa Negra deve fazer filmes sobre pessoas Amarelas)? Pela língua (somente o povo Fulani pode falar sobre o povo Fulani, pessoas do povo Bassari são estrangeiras aqui)? Por nação (somente vietnamitas podem produzir obras sobre o Vietnã)? Por geografia (na configuração Norte-Sul, o Oriente é Oriente e não pode se encontrar com o Ocidente)? Ou por afinidade política (Terceiro Mundo [fala] sobre Terceiro Mundo em oposição a Primeiro e Segundo Mundos)? E quanto às pessoas de identidades hifenizadas e realidades híbridas? (Vale a pena mencionar uma reportagem em uma edição da revista Time [1987], intitulada “A Crazy Game of Musical Chairs” [Louca dança das cadeiras]. Nessa reportagem breve e concisa, chama-se a atenção para o fato de que as pessoas na África do Sul – que são classificadas por raça e colocadas em uma das nove categorias raciais que determinam onde podem viver e onde podem trabalhar – podem ter sua classificação alterada se puderem provar que foram inseridas no grupo errado. Assim, em um anúncio de reclassificações raciais feito pelo ministro de Assuntos Internos,21 ficamos sabendo que: 20/ Vincent Crapanzano, op. cit. 21/ Ministry of Home Affairs. [n.t.]

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nove brancos se tornaram coloured,22 506 coloured se tornaram brancos, dois brancos se tornaram malaios, 14 malaios se tornaram brancos [...] 40 coloured se tornaram negros, 666 negros se tornaram coloured, 87 coloured se tornaram indianos, 67 indianos se tornaram coloured, 26 coloured se tornaram malaios, 50 malaios se tornaram indianos, 61 indianos se tornaram malaios [...] E a lista continua. No entanto, diz o ministro, “nenhum negro se candidatou para se tornar branco e nenhum branco se tornou negro”.)23 No momento em que a pessoa-de-dentro sai de dentro, ela não é mais uma mera pessoa-de-dentro (e vice-versa). Ela necessariamente olha de fora para dentro e de dentro para fora, simultaneamente. Como a pessoa-de-fora, ela se afasta e registra o que nunca soa para ela-a-pessoa-de-dentro24 como algo que valha a pena ou que precise ser registrado. Mas,

22/ Decidimos manter o termo coloured, como em seu contexto específico, para evitar comparações com o contexto brasileiro e não atribuir termos que não existem aqui. Para maior aprofundamento no tema, ver, por exemplo, Mohamed Adhikari (org.), Burned by Race: Coloured Identities in South Africa. Cidade do Cabo: UCT Press, 2013. Disponível em: https://library.oapen.org/bitstream/handle/20.500.12657/31443/1/628130.pdf. Acesso em: jun. 2023. [n.t.] 23/ Ibid. 24/ Her-the insider, no original. [n.t.]

diferentemente da pessoa-de-fora, ela também recorre a estratégias não explicativas e não totalizantes que suspendem o significado e resistem à conclusão. (Isso geralmente é considerado por pessoas-de-fora como estratégias de ocultação e de revelação parciais, destinadas a preservar segredos que só devem ser transmitidos às pessoas iniciadas). Ela se recusa a se reduzir a Outra e a reduzir suas reflexões ao mero raciocínio objetivo de pessoa-de-fora ou ao sentimento subjetivo de pessoa-de-dentro. Ela sabe, como a antropóloga-de-dentro Zora Neale Hurston sabia, que não é de-fora como o estrangeiro de-fora. Ela sabe que é diferente mesmo quando é Ele. Não exatamente a Mesma, nem exatamente Outra, ela se encontra naquele limiar indeterminado em que constantemente entra e do qual constantemente sai. Subvertendo a oposição dentro/ fora, a intervenção dela é tanto a intervenção de uma pessoa-de-dentro fraudulenta quanto a de uma pessoa-de-fora fraudulenta. Ela é essa Outra/Mesma Inapropriada que se move sempre com pelo menos dois/quatro gestos: o de afirmar “sou como você” enquanto persiste em sua diferença; e o de lembrar a si mesma “sou diferente”, enquanto desestabiliza toda definição de outridade a que tenha chegado.


É arrepiante pensar – saber que, por qualquer ação minha, receberei o dobro de elogios ou o dobro de culpa. É muito inquietante estar no centro do palco nacional, diante de um público que não sabe se ri ou se chora.25 Os coloured são muito emotivos, e não se pode confiar nos Bantos. Uma vez, um fazendeiro daqui perguntou a um capataz Banto, “Johnny, você daria um tiro em mim?” “Não, chefia, não daria um tiro no senhor”, disse Johnny. “Eu iria na casa do vizinho e daria um tiro no chefe de lá. E o encarregado dele viria atirar no senhor.26 A teoria por trás de nossas táticas: “O homem branco está sempre tentando saber demais da vida de alguém. Tudo bem. Eu vou botar um negócio na porta da minha mente pra ele brincar e mexer. Ele vai poder ler minhas palavras, mas não vai ler minha mente, não. Eu vou botar esse brinquedo na mão dele, ele vai pegar e ir embora. Aí eu vou dizer meus dizeres e cantar meus cantares”.27 25/ Zora Neale Hurston, op. cit., p. 153. 26/ Dora Herzog, “An Afrikaner”, apud Vincent Crapanzano, op. cit., p. 93. 27/ Zora Neale Hurston, op. cit., p. 83.

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[...] a única etnologia possível é aquela que estuda o comportamento antropofágico do homem Branco.28 Quer ela vire o lado de dentro para fora ou o lado de fora para dentro, ela é, como as duas faces de uma moeda, a mesma pessoa-de-dentro/de-fora impura, duas-em-uma. Pois dificilmente há uma parte de dentro essencial que possa ser representada de forma homogênea por todas as pessoas-de-dentro; uma pessoa-de-dentro autêntica aqui dentro, uma realidade absoluta lá fora, ou uma representante não corrompida que não possa ser questionada por outra representante não corrompida. A razão mais importante pela qual Negros não fazem mais a respeito da falsa “representação” pela lógica de estimação é que eles sabem por experiência que essa lógica está enraizada demais para ser mudada. Quem emprega essa lógica tem seus motivos, pessoais ou políticos. E sempre pode apontar para o beneficiário e dizer: “Vejam, Negros, vocês foram bem tratados. Não veem que eu dei um emprego importante a um membro de seu grupo?” As autoridades brancas presumem que o elemento Negro está satisfeito e não sabem o que fazer quando, mais tarde, descobrem que um grupo tão grande de Negros as acusa de indiferença e de trapaça. O amigo branco dos Negros resmunga sobre ingratidão e decide que é simplesmente impossível entender os Negros... são como crianças.29

28/ Stanislas Spero Adotevi, Negritude et negrologue. Paris: Union Generale d’Editions, 1972, p. 182. 29/ Zora Neale Hurston, “op. cit., p. 161.

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No contexto dessa Outra Inapropriada, são pouco relevantes perguntas como “Quão leal, como representante de seu povo, essa pessoa é?” (cineasta como alguém-de-dentro) ou “Quão autêntica é sua representação da cultura observada?” (cineasta como alguém-de-fora). Quando a magia das essências deixa de impressionar e intimidar, não há mais uma posição de autoridade com base na qual se possa julgar definitivamente o valor de verossimilhança da representação. Na primeira pergunta, o sujeito questionador, mesmo que seja alguém-de-dentro, não é mais autêntico e não tem mais autoridade sobre o assunto do que o sujeito a quem as perguntas dizem respeito. Isso não quer dizer que o “eu” histórico possa ser obscurecido ou ignorado e que a diferenciação não possa ser feita, mas esse “eu” não é unitário, a cultura nunca foi monolítica, e mais ou menos é sempre mais ou menos em relação a um sujeito julgador. As diferenças não existem apenas entre pessoa-de-fora e pessoa-de-dentro – duas entidades –, elas também operam dentro da pessoa-de-fora ou pessoa-de-dentro – uma entidade só. Isso nos leva à segunda pergunta, na qual a pessoa cineasta é alguém-de-fora. Enquanto a pessoa cineasta adotar uma atitude positivista e optar por ignorar as intersubjetividades e as realidades envolvidas, a verdade factual continuará sendo o critério dominante de avaliação, e a questão de saber se o trabalho dela representa com sucesso a realidade que reivindica continu-

ará a exercer seu poder. Quanto mais a representação se apoiar na verossimilhança, mais estará sujeita à verificação normativa. Para a Outra Inapropriada, entretanto, as perguntas previamente mencionadas parecem inadequadas; o critério de autenticidade perde sua pertinência. É como perguntar a alguém ateísta: “Quão fiéis às palavras de Deus são tuas palavras?” (com o entendimento de que a pessoa ateísta não se opõe, mas é in-diferente à pessoa crente). Ela [a Outra], que sabe que não pode falar deles sem falar de si mesma, nem falar da história sem envolver a própria história, também sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento de ir e vir da vida. A subjetividade que opera no contexto dessa Outra Inapropriada dificilmente pode ser submetida ao velho paradigma subjetividade/ objetividade. A consciência política aguda do sujeito não pode ser reduzida a uma questão de autocrítica que visa o autoaperfeiçoamento ou o autoelogio com o intuito de obter mais autoconfiança. Tal diferenciação é útil, pois a compreensão da subjetividade como “ciência do sujeito” faz parecer absurdo o medo da autoabsorção etnográfica. A consciência dos limites em que se opera não precisa levar a nenhum tipo de indulgência em parcialidade pessoal, nem à conclusão limitada de que é impossível entender qualquer coisa sobre outros povos, já que a diferença é questão de “essência”. Ao se recusar a naturalizar o “eu”, a subjetividade revela o mito do núcleo essencial, da espontaneidade e da profundidade como visão interior. Portanto, a subjetividade não consiste apenas em falar sobre si, seja de maneira indulgente ou crítica. Muitas das pessoas que concordam com a necessidade de autorreflexão e reflexão na produção de filmes consideram ser suficiente mostrarem-se operando na tela,


ou, ocasionalmente, indicar o próprio papel no filme e sugerir alguma melhoria futura para convencer o público da própria honestidade, pagando assim as dívidas com o pensamento liberal. Por isso, há agora um crescente número de filmes em que o público vê o narrador narrando, o cineasta filmando ou dirigindo e, como era de se esperar, as pessoas nativas – a quem se entrega, temporariamente, uma pequena câmera (geralmente uma super-8) ou um gravador – supostamente contribuindo para o processo de produção. Nesse caso, o que é apresentado como autorreflexão não é mais do que uma pequena fração – a mais convenientemente visível – das muitas possibilidades de demonstrar o trabalho da ideologia na qual pode se desdobrar essa “ciência do sujeito”. Em resumo, o que está em jogo é uma prática de subjetividade que ainda desconhece sua própria natureza constitutiva (por isso a dificuldade de extrapolar o par simplista de subjetividade/objetividade); desconhece seu papel contínuo na produção de sentido (como se as coisas pudessem “fazer sentido” por si mesmas, de modo que a função de quem as interpreta consiste somente em escolher entre as muitas leituras possíveis); desconhece a representação como representação (as inter-realidades culturais, sexuais e políticas envolvidas na feitura: da pessoa cineasta como sujeito; do sujeito filmado; e do aparato cinematográfico); e, por fim, desconhece a Outra Inapropriada dentro de cada “eu”.

Minha certeza de ser excluído por pessoas Negras um dia não é forte o suficiente para me impedir de lutar ao lado delas.30 O que, de fato, representa um desafio é a organização que consiste em uma associação íntima ou aliança entre negro, branco, indiano, coloured. Um grupo assim constitui uma negação da teoria de separação africânder, da lógica medieval de clã deles.31 [...] os modos estereotipados do comportamento japonês, de quietude, obediência e conformidade chocaram-se com as expectativas brancas de ser uma pensadora motivada, independente e ambiciosa. Quando estava com brancos, me preocupava se estava falando alto o suficiente; quando estava com pessoas japonesas, me preocupava se estava falando alto demais.32

30/ Do artigo do escritor sul-africano Breyten Breytenbach, “L’Aveuglement des Afrikaners”, Le Nouvel Observateur, 20-26 jun.1986, p. 48.

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31/ Ezekiel Mphahlele, The African Image (1962). Nova York: Praeger, 1966, p. 73. 32/ Joanne Harumi Sechi, “Being Japanese-American Doesn’t Mean ‘Made in Japan’”, in Dexter Fisher (org.), The Third Woman. Boston: Houghton Mifflin, 1980, p. 446.


Andando bem ereta e falando de maneira inaudível, tentei adquirir uma postura feminina-estadunidense. A comunicação chinesa era alta, pública. Somente pessoas doentes precisavam sussurrar.33 Quando escuto estudantes de minhas turmas dizerem “não somos contra gente iraniana que cuida da própria vida. Só somos contra gente iraniana ingrata que abusa de nossa hospitalidade fazendo protestos e falando mal de nosso governo”, eu sei que estão falando de mim.34

Publicado originalmente em J. Pines e P. Willemen (orgs.), Questions of Third Cinema. Londres: British Film Institute, 1988. [n.e.]

33/ Maxine Hong Kingston, The Woman Warrior. Nova York: Vintage Books, 1977. 34/ Mitsuye Yamada, “Asian Pacific American Women and Feminism”, in Cherrie Moraga e Gloria Anzaldúa, This Bridge Called My Back. Watertown, Mass.: Persephone Press, 1981, p. 75.

trinh t. minh-ha é cineasta, escritora, compositora e professora. Leciona cursos com enfoque em teoria feminista, teoria do cinema e políticas culturais. Nascida no Vietnã, Trinh realizou filmes em diversos territórios, subvertendo convenções tradicionalmente empregadas em documentários etnográficos. Reassemblage [Remontagem] (1982) apresenta sua conhecida formulação speak nearby [falar perto], diferenciando-se do speak about [falar sobre]. Ao filmar o cotidiano de uma zona rural no Senegal, a voz off da diretora volta-se à sua prática cinematográfica e tenta desmantelar a exotização comum às epistemologias coloniais. Falar perto é reconhecer a lacuna. Ao renunciar à explicação da Outra/do Outro, a cineasta assume que não há solução a ser apontada: “Estou olhando em círculo, em um círculo de olhares”.35 No ensaio “De fora para dentro, de dentro para fora" (1988), Trinh também discute os jogos de poder e de legitimação que ocorrem quando perspectivas não brancas e identidades hifenizadas estão em circulação. Alertando sobre as armadilhas das hierarquias de conhecimento, ela questiona quem define o que é chamado de autêntico e as produções que acreditam estar dando a voz. Para a autora, a liberdade de se livrar de uma posição de autoridade surge como um campo de possibilidades. Quem era considerada a Outra sabe que “não pode falar deles sem falar de si mesma, nem falar da história sem envolver a própria história, também sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento de ir e vir da vida”.36 35/ Do filme Reassemblage, 1982, 36m55s. 36/ Trinh T. Minh-ha, De fora para dentro, de dentro para fora, p. 69 deste volume.


denilson baniwa

denilson baniwa tatu ruwá | alidari yekua | rosto de tatu, 2023 imagem digital


denilson baniwa yautí piréra | itsída ífli | casca de jabuti, 2023 imagem digital

denilson baniwa tamuatá piréra | oro ífli | casca de tamuatá, 2023 imagem digital


denilson baniwa yakaré ruwaýa | katíri itípi | rabo de jacaré, 2023 imagem digital


denilson baniwa vive e trabalha em Niterói (RJ). Pertencente ao povo Baniwa e nascido em Barcelos, cidade às margens do rio Negro no interior do Amazonas, Denilson define seus trabalhos como hackeamentos no sistema das artes e nas estruturas de poder. Ao articular imagens e perspectivas provindas de sua experiência de vida como Baniwa e como sobrevivente da violência colonial nas Américas, altera noções de história tanto em territórios invadidos quanto em países invasores. Algumas de suas obras reconstroem imagens iconográficas dos livros de história da arte e arquivos históricos, ora revelando, ora apagando elementos. O ativismo pelos direitos dos povos indígenas o levou a conceber “dispositivos artísticos pensando a educação como coletividade”. Nesta publicação, os QR codes presentes nas imagens inspiradas em grafismos indígenas – com títulos em nheengatu, baniwa e português, atribuídos por Francisco Baniwa – são entradas para a plataforma on-line Movimentos, onde é possível acessar informações relacionadas a seu projeto para a 35ª Bienal. A ideia é criar um canal de abertura e diálogo que será nutrido pelo artista ao longo da exposição, com a colaboração de Jerá Guarani, Francineia Baniwa, Aparecida Benjamin Baniwa e comunidades convidadas.


�am e maldoror: descolonização como beleza e ação

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wifredo �am Ilustração do artista para o livro Fata Morgana, de André Breton (1941) Sem título, 1940-1941 Lápis e nanquim sobre papel 31 x 24 cm Galerie 1900-2000, Paris © Wifredo Lam / AUTVIS, Brasil, 2023


Fundo preto. No compasso da batida dos tambores, as criaturas nos olham. Esculturas densas: meio humanas, meio mitológicas, meio bichos. Sombrias e imponentes, e, acima de tudo, estranhas. Belamente estranhas. As personagens aparecem e desaparecem em um jogo de sombra e luz, foco e desfoco. Com elas, aos poucos, nos olham também as pinturas em livros e em telas. Figuras de corpos alongados, com membros fragmentados, partes que se repetem e se sobrepõem. Aos poucos esses seres tomam forma – deixam a escuridão e ganham contornos –, pois foram brevemente capturados no curto filme de Sarah Maldoror gravado em 1980, em homenagem a Wifredo Lam. Nesse filme, a câmera de Maldoror se move simulando os movimentos desses seres estranhos, conduzindo o olhar de quem assiste a percorrer de diversas maneiras essas geografias corporais inesperadas – pernas que se transformam em braços, pés que são como cabeças. Por um breve instante, a voz over tenta se fixar – conta que Lam é pintor-escultor afrocubano, de pai chinês e mãe negra, um surrealista caribenho radicado na França. Descobrimos que a reunião das criaturas se deve a uma exposição de trabalhos do artista. Mas nada disso interrompe o fluxo de olhares que atravessam a tela. Nesses poucos minutos, de forma generosa, o filme de Maldoror aterra

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no contexto e deixa que as criaturas de Lam indaguem (e olhem) por elas próprias.

◗ Entre Maldoror e Lam, uma aliança forjada há mais de três décadas entre utopias surrealistas e revolucionárias de toda parte e de lugar nenhum − Guadalupe, Cuba, China, França, Argélia, Angola e tantos outros lugares por se reimaginar e libertar. Sonhos e lutas de descolonização como beleza e ação. Um cubano afro-asiático luta ao lado dos republicanos na guerra civil espanhola. Uma franco-antilhana, no Movimento Popular de Libertação de Angola. Ambos sem contornos e fronteiras. A arte é política e pessoal − e coletiva e andarilha. Habitada por poesia e criaturas estranhas e belas.

◗ 1956. A livraria Présence Africaine [Presença Africana] era um baobá africano e afrodiaspórico (re)plantado no meio do bairro parisiense Quartier Latin. Em sua grande sombra esbarravam-se jovens estudantes, artistas, escritores de África, do Caribe, das Américas. Entre os jovens discípulos do fundador do espaço cultural, o senegalês Alioune Diop (1910-1980), estavam Sarah Maldoror e sua trupe transnacional da companhia teatral Les Griots [Os griôs] − Ababacar Samb-Makharam (Senegal), Toto Bissainthe (Haiti) e Timité Bassori (Costa do Marfim). As histórias que esses jovens queriam contar passavam pelo desejo de construção de um teatro negro moderno − afirmando um lugar para as atrizes e os atores negros para além das personagens serviçais.


Se o jazz e as danças negras já habitavam a paisagem cultural de Paris, os griôs desejavam estabelecer um lugar para as artes dramáticas. (E ninguém iria supor, naquele momento, que dois dos griôs, Maldoror e Bassori, enveredariam anos depois para o campo do cinema.) Inexperientes e ambiciosos, os griôs lançaram-se então em cursos de atuação, formações pagas e públicas, ensaios e projetos. Nos intervalos, participavam das atividades regulares da Présence Africaine. Estiveram lá acompanhando as alegrias e desavenças do Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros em Paris. (Será que os griôs também pensaram como poderia ter sido se o escritor W. E. B. Dubois não tivesse sido impedido pelo governo dos Estados Unidos de viajar para o evento? Será que então os negros estadunidenses poderiam ter se sentido menos estadunidenses negros? Será que, anos depois, olhando para a famosa foto do encontro com os 63 delegados do Congresso e apenas uma mulher, Maldoror se ressentiu desse apagamento?) E como será que o já reconhecido Lam se sentiu ao ser abordado pelos inexperientes e ambiciosos griôs, quando encomendaram ao artista o cartaz da peça de estreia? Um cartaz de Lam para a peça Huis Clos [Entre quatro paredes], de Jean-Paul Sartre – eis uma chegada de impacto para

a recém-criada companhia de teatro negra. E que criaturas Lam pode ter inventado para esse cartaz? Obra que hoje é apenas uma menção em textos sem imagens do registro. Entre quatro paredes, quatro jovens negros reivindicavam sua possibilidade de também performar a crise existencial do sujeito moderno? Será que as criaturas eram fragmentos de pedaços desses sujeitos estilhaçados? Será que eram híbridos trans-humanos, nem bichos nem deuses?

◗ Anos mais tarde, Maldoror deixa Paris para estudar cinema em Moscou e depois fazer filmes por onde os sonhos de libertação estivessem pulsando. Lam permanece em Paris − fazendo surgir mais criaturas expatriadas, de toda parte.


wifredo �am Ilustração do artista para o livro Fata Morgana, de André Breton (1941) Sem título, 1941 Lápis e nanquim sobre papel 16,9 x 22 cm Coleção particular © Wifredo Lam / AUTVIS, Brasil, 2023


sarah maldoror Wifredo Lam, 1980 Stills do vídeo, 4’ Cortesia: Annouchka de Andrade & Henda Ducados


sarah maldoror Wifredo Lam, 1980 Stills do vídeo, 4’ Cortesia: Annouchka de Andrade & Henda Ducados


kênia freitas é curadora e programadora do Cinema do Dragão, Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC, Fortaleza, CE). Doutora em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), é pesquisadora independente com foco em afrofuturismo, cinemas negros, curadoria e crítica de cinema. Integra o Forúm Itinerante de Cinema Negro (FICINE).

sarah maldoror foi poeta e cineasta, tendo dirigido mais de vinte filmes de ficção e documentários. Seu primeiro curta-metragem, Monangambé (1968), vencedor do festival de Cannes, e o longa Sambizanga (1972) são baseados em obras do escritor Luandino Vieira. Em 1956, foi uma das fundadoras da companhia de teatro negra Les Griots, em Paris. wifredo lam foi um proeminente artista cubano conhecido por misturar distintas influências africanas, caribenhas e surrealistas. Sua obra incorporou uma fusão única de várias influências modernistas e explorou temas como identidade, espiritualidade e justiça social. O trabalho de Lam, feito predominantemente de pinturas, pode ser encontrado em coleções do mundo todo, incluindo de instituições como o Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, MoMA (Nova York), Centre Pompidou (Paris) e Tate Modern (Londres).


gesto: audiodescrições poéticas até aqui, Aurora e Ceija nunca se encontraram. nunca partilharam um quarto de hotel, uma cela de prisão, um vagão de trem ou uma mesa de bar. para chegar aonde estão agora, elas traçaram caminhos e viram paisagens muito diferentes, como as línguas em que cada uma contou a própria história. 85 84


talvez você saiba que esse lugar pode ser o de um livro ou de uma exposição de arte. Mas e se um encontro entre Ceija e Aurora também se der em um entrelugar, o meio do caminho entre o que se vê e o que se escuta? convidamos você a ouvir vozes que contam a história de duas artistas, descrevem suas obras e um encontro impossível… até aqui. Leia o QR code para acessar as audiodescrições poéticas criadas pela equipe de Educação, em colaboração com a Mais Diferenças.


aurora cursino dos santos e ceija stojka

aurora cursino dos santos Sem título, sem data Óleo sobre papel (frente e verso) 47,5 × 32 cm Coleção Museu de Arte Osório Cesar, Franco da Rocha Foto: Everton Ballardin / Fundação Bienal de São Paulo


ceija stojka Z6399, 1994 Pintura acrílica sobre papelão 70 × 100 cm Coleção Pinault, Paris Foto: Rebecca Fanuele


aurora cursino dos santos Sem título, sem data Óleo sobre papel (frente e verso da embalagem de chicletes) 49,6 × 44,8 cm Coleção Museu de Arte Osório Cesar, Franco da Rocha Foto: Everton Ballardin / Fundação Bienal de São Paulo

aurora cursino dos santos desenvolveu uma obra que combina memória e imaginação em imagens e palavras. Nascida em São José dos Campos (SP), cresceu sob a influência do pai, que a obrigou a se casar muito jovem. Com o fim da união − que durou apenas um dia −, deixou a cidade natal. Entre as décadas de 1910 e 1930, viveu em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde trabalhou como prostituta e empregada doméstica. Cursino entrou em contato com a pintura ainda na infância. Apreciava literatura, música popular e erudita. Ao frequentar a oficina do Hospital Psiquiátrico do Juquery, que teve entre seus criadores o psiquiatra Osório César (1895-1979) e a coordenação da artista Maria Leontina (1917-1984), Cursino produziu grande parte de suas obras. O cenário sombrio retratado pela artista em muitos de seus trabalhos constitui uma elaboração do trauma diante do machismo, da misoginia, do sexismo e dos violentos procedimentos aos quais foi submetida nesse hospital. Desde a década de 1940, suas obras foram exibidas em inúmeras exposições temáticas de arte e loucura, muitas vezes sem a devida atenção à potência crítica e à relevância técnica de seu trabalho. Privada de sua liberdade, Cursino faleceu no próprio Juquery. Os dados biográficos de Cursino são poucos e incertos, alguns partem de suas pinturas, outros se encontram em relatos de médicos psiquiatras. Assim, há a necessidade de uma leitura crítica das fontes dos dados, de reconhecer as violências presentes nos arquivos, e de conhecer a vida da artista a partir de outras temporalidades.


tradução: naquela época = 1945 naquela época eu me encontrei no meio deles sob a proteção da minha mãe. nada veio de fora nenhuma ajuda. por que sss

ceija stojka Sem título, 2003 Acrílica e guache sobre papel 41,7 × 29,4 cm Coleção Antoine de Galbert, Paris Foto: Diego Cestellano Cano

ceija stojka (pronuncia-se Tchaia Stoica) nasceu em 1933, em Kraubath, na Áustria. Era a quinta de seis filhos de uma família Roma,1 do povo Lovara, tradicionais comerciantes de cavalos na Europa Central. Recebeu o sobrenome Stojka de sua mãe, seguindo a tradição de seu povo. Quando tinha oito anos, seu pai foi levado pelos nazistas para o campo de concentração de Dachau, na Alemanha, onde foi morto no ano seguinte. Logo toda a família seria deportada para um campo de concentração destinado a ciganos, em Auschwitz-Birkenau. A violência racial que atingiu a família e a vida de Ceija é nomeada pelos Roma com o termo porajmos, palavra que descreve a perseguição e o extermínio de sua comunidade pelos nazistas. Libertada em 1945 do campo de concentração de Bergen-Belsen, a história de Stojka se tornou conhecida fora de sua comunidade em 1986, após seu encontro com a pesquisadora e cineasta austríaca Karin Berger. Seu testemunho tem início com um livro autobiográfico e com sua obra pictórica, composta de mais de mil desenhos e pinturas que rememoram o passado doloroso dos campos de concentração, mas que lembram também os momentos felizes vividos com a família antes da ocupação da Áustria. Pintando em pé na cozinha de seu apartamento nos subúrbios de Viena, usando pincéis e também os dedos, em muitos de seus trabalhos Stojka acrescenta textos na frente ou no verso das telas, aliando palavras a imagens em seu esforço de retirar do silêncio o relato do horror. Stojka faleceu em Viena, em 2013. 1/ Grupo étnico tradicionalmente nômade, que vive atualmente em diferentes regiões da Europa e cujos povos falam variações da língua romani.


kapwani kiwanga

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kapwani kiwanga pink-blue [rosa-azul], 2017 Tinta rosa Baker-Miller, tinta branca, luzes fluorescentes brancas, luzes fluorescentes azuis Dimensões variáveis Vista de exposição na The Power Plant, Toronto (2017) Cortesia da artista e Goodman Gallery, Cidade do Cabo, Joanesburgo, Londres / Galerie Poggi, Paris / Galerie Tanja Wagner, Berlim Foto: Tony Hafkenscheid


kapwani kiwanga é uma artista franco-canadense que vive e trabalha em Paris, França. Com base em uma ampla pesquisa fundamentada em arquivos de histórias esquecidas, a artista fabula/cruza narrativas históricas com a contemporaneidade, em uma multiplicidade de mídias, como escultura, instalação, fotografia, vídeo e performance. Kiwanga aborda a realidade que cerca e atravessa a população negra em diáspora e tensiona a normatividade eurocêntrica, reelaborando os sistemas de poder com sua produção artística. Assim, esboça estratégias de saída e coreografias de fuga e de liberdade, convidando o público a observar como as simbologias operam nas estruturas de opressão existentes. Em pink-blue [rosa-azul] (2017), a artista recria políticas de controle e de vigilância em que as luzes rosa e azul são utilizadas para influenciar o comportamento das pessoas. Pesquisas aplicadas nas celas de presídios demonstraram que o tom de rosa conhecido como Baker-Miller reduz a força muscular e diminui a frequência cardíaca e a respiração dos internos, enquanto as luzes azuladas, neon, utilizadas em banheiros públicos, dificultariam a identificação de veias e, assim, tenderiam a diminuir o uso de drogas intravenosas. A instalação também nos leva a outros campos de discussão, não somente em relação à arquitetura, mas também aos padrões normativos de gênero e sexualidade.


rosana paulino ¿História natural?, 2016 Livro de artista composto por técnica mista sobre imagens transferidas em papel e tecido, linoleogravura, ponta seca e costura 31,5 × 42,5 × 33,5 cm Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo



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créditos da publicação organização Fundação Bienal de São Paulo concepção Equipe de Educação da Fundação Bienal de São Paulo com a consultoria de Dora Silveira Corrêa Curadoria da 35ª Bienal de São Paulo projeto gráfico Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo Nontsikelelo Mutiti coordenação editorial Cristina Fino Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo

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preparação e revisão Sandra Brazil Tatiana Allegro transcrição e revisão de áudios Maria Cláudia Mattos tradução Bruna Barros e Jess Oliveira produção gráfica Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo tratamento de imagens e impressão Ipsis

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Meu modo de pensar é um pensar coletivo antes de estar em mim já esteve nelas: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo : coreografias do impossível. — 1. ed. — São Paulo: Bienal de São Paulo, 2023.

papel capa: Supremo 250g/m² miolo: Offset 120g /m²

Vários autores. ISBN 978-85-85298-81-4

famílias tipográficas LL Circular Bagatela

1. Arte contemporânea 2. Bienal de São Paulo (SP) 3. Mediações culturais 23-165096 CDD–707.4

Índices para catálogo sistemático: 1. Arte contemporânea : Exposições : Catálogos 707.4 Aline Graziele Benitez – Bibliotecária – CRB‑1/3129




Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

meu de modo pensar

é um pensar

coletivo realização


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