35ª Bienal de São Paulo (2023) – Catálogo

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35ª bienal de são paulo

coreografias do impossível

catálogo

(orgs.) diane lima grada kilomba hélio menezes manuel borja-villel



35ª bienal de são paulo coreografias do impossível


Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam


35ª bienal de são paulo coreografias do impossível


ahlam shibli → 52 aida harika yanomami, edmar tokorino yanomami e roseane yariana yanomami → 54 aline motta → 56 amador e jr. segurança patrimonial ltda. → 58 amos gitaï → 60 ana pi e taata kwa nkisi mutá imê → 62 anna boghiguian → 64 anne-marie schneider → 66 archivo de la memoria trans (amt) → 68 arthur bispo do rosário → 70 aurora cursino dos santos → 72 ayrson heráclito e tiganá santana → 74 cabello/carceller → 80 carlos bunga → 82 carmézia emiliano → 84 castiel vitorino brasileiro → 86 ceija stojka → 88 charles white → 286 citra sasmita → 90 colectivo ayllu → 92 cozinha ocupação 9 de julho – mstc → 94

benvenuto chavajay → 76 bouchra ouizguen → 78

daniel lie → 100 daniel lind-ramos → 102 davi pontes e wallace ferreira → 104 dayanita singh → 106 deborah anzinger → 108 denilson baniwa → 110 denise ferreira da silva → 112 diego araúja e laís machado → 114 duane linklater → 116 edgar calel → 118 elda cerrato → 120 elena asins → 122 elizabeth catlett → 285 ellen gallagher e edgar cleijne → 124 emanoel araujo → 126 eustáquio neves → 128 flo6x8 → 130 francisco toledo → 132 frente 3 de fevereiro → 134 gabriel gentil tukano → 136 george herriman → 138 geraldine javier → 140 gloria anzaldúa → 142 grupo de investigación en arte y política (giap) → 144 guadalupe maravilla → 146 ibrahim mahama → 154 igshaan adams → 156 ilze wolff → 158 inaicyra falcão → 160 januário jano → 162 jesús ruiz durand → 164 john woodrow wilson → 287 jorge ribalta → 166 josé guadalupe posada → 168 juan van der hamen y león → 170 judith scott → 172 julien creuzet → 174


kamal aljafari → 176 kapwani kiwanga → 178 katherine dunham → 180 kidlat tahimik → 182

m'barek bouhchichi → 190 mahku → 192 malinche → 194 manuel chavajay → 196 margaret taylor goss burroughs → 288 marilyn boror bor → 198 marlon riggs → 200 maya deren → 202 melchor maría mercado → 204 min tanaka e françois pain → 206 morzaniel ɨramari → 208 mounira al solh → 210

leilah weinraub → 184 leopoldo méndez → 289 luana vitra → 186 luiz de abreu → 188

nadal walcot → 220 nadir bouhmouch e soumeya ait ahmed → 222 nikau hindin → 224 niño de elche → 226 nontsikelelo mutiti → 228 patricia gómez e maría jesús gonzález → 230 pauline boudry / renate lorenz → 232 philip rizk → 234 quilombo cafundó → 236 raquel lima → 238 ricardo aleixo → 240 rolando castellón → 242 rommulo vieira conceição → 244 rosa gauditano → 246 rosana paulino → 248 rubem valentim → 250 rubiane maia → 252 sammy baloji → 260 santu mofokeng → 262 sarah maldoror → 264 sauna lésbica por malu avelar com ana paula mathias, anna turra, bárbara esmenia e marta supernova → 266 senga nengudi → 268 sidney amaral → 270 simone leigh e madeleine hunt‑ehrlich → 272 sonia gomes → 274 stanley brouwn → 276 stella do patrocínio → 278 tadáskía → 280 taller 4 rojo → 282 taller de gráfica popular → 284 taller nn → 290 tejal shah → 292 the living and the dead ensemble → 294 torkwase dyson → 296 trinh t. minh-ha → 298 ubirajara ferreira braga → 300 ventura profana → 302 wifredo lam → 304 will rawls → 306 xica manicongo → 308 yto barrada → 310 zumví arquivo afro fotográfico → 312


ensaios

residências artísticas

redes

grada kilomba → 12 hélio menezes → 14 manuel borja-villel → 20 diane lima → 28 hagar kotef → 42 gladys tzul tzul → 96 rizvana bradley e denise ferreira da silva → 148 tiganá santana → 212 ilenia caleo → 254 leda maria martins → 314

auá mendes juliana dos santos mario lopes natali mamani queen gloria "mama g" simms xadalu tupã jekupé

ëntun fey azkin (território mapuche) nls / new local space (jamaica) sertão negro (brasil)


colaborações

cartas institucionais

+

abigail campos leal ana longoni barbara copque beatriz martínez hijazo carles guerra cíntia guedes claudinei roberto david pérez déba tacana emanuel monteiro fernanda carvajal getsemaní guevara heitor augusto horrana de kássia santos igor de albuquerque isabel tejeda josé antonio sánchez juliana de arruda sampaio kaira cabañas kênia freitas kike españa luciana brito luciane ramos silva marco baravalle maria luiza meneses mario gooden miro spinelli natalia arcos salvo nicole smythe-johnson oluremi onabanjo omar berrada pérola mathias phillipe cyroulnik rafael garcía renato menezes rocío robles tardío rossina cazali sara ramos sol henaro sylvia monasterios tarcisio almeida tatiana nascimento thiago de paula souza

josé olympio da veiga pereira → 336 margareth menezes → 337 itaú cultural → 338 instituto cultural vale → 338 bloomberg → 339 sesc são paulo → 339

biografias → 330 créditos → 340 agradecimentos → 344 parceiros → 346 créditos fotográficos → 348 créditos da publicação → 352


coreografias do impossível

diane lima

grada kilomba

coreografias do impossível ganha forma a partir de um exercício conceitual que se reflete em nossa própria formação e prática curatoriais. Nós nos reunimos para criar um grupo horizontal, sem a hierarquia de um curador-chefe ou a homogeneidade de um coletivo. Trata-se de um modo de coreografar que considera nossas diferentes trajetórias, formações, áreas de atuação e que, sobretudo, buscou criar estratégias que nos permitissem encarar os desafios institucionais e curatoriais inerentes a um projeto desta envergadura. Expandir os processos colaborativos e as nossas perspectivas foi o que nos motivou a conceber um conjunto de interlocuções, que vão desde a lista de participantes e grupos e espaços – que nos ofereceram exemplos de gestão alternativa para os modos vigentes – até pesquisadoras e práticas de aprendizagem não necessariamente ligadas aos campos convencionais do conhecimento. Houve também muito diálogo com a dupla de assistentes de curadoria, composta por Sylvia Monasterios e Tarcisio Almeida, e com o conselho curatorial, formado por Omar Berrada, Sandra Benites, Sol Henaro e Thomas Lax. Como veremos nos diversos textos que compõem este catálogo, tal princípio espiralar se irradia pela seleção de obras e por todas as demais estruturas que organizam uma Bienal, como o projeto de arquitetura e expografia, o programa de educação e mediação, além do próprio convite à leitura deste material. Concebido como um tramado de vozes, ou uma “trança” de mundos – como nos incita a pensar a artista e educadora Nontsikelelo Mutiti, que assina a identidade visual da 35ª Bienal de São Paulo –, este projeto editorial reúne um grande conjunto de autoras e autores que aceitaram o desafio de atualizar, reler, traduzir ou desenvolver pensamentos e diálogos inéditos, os quais ampliam as formas de conceber as coreografias do impossível. Essa trama, que se faz como um fluxo, é constituída por quatro ensaios assinados individualmente pela equipe curatorial, por textos referenciais e por um coro de ensaios críticos comissionados, dando corpo ao perfil dos 121 participantes. Já no espaço expositivo, fez-se uma coreografia de percursos, como define o Vão, escritório responsável pelo projeto de arquitetura e expografia das coreografias do impossível, sem temas e categorias cronológicas. É uma proposta capaz de nos fazer sentir no corpo o que as mudanças de fluxos e as intervenções no prédio produzem, como a inversão dos pavimentos, uma ilusão criada pelo envelopamento do vão central – uma das estruturas mais emblemáticas do projeto original de Oscar Niemeyer –, e um desenho expográfico que arranja uma sequência de movimentos que aceleram, atrasam, pausam e sugerem diferentes velocidades,

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hélio menezes

manuel borja-villel

encadeando ritmos e contrapontos distintos, para além da escala monumental do Pavilhão. Essas coreografias de narrativas trazem grande centralidade ao trabalho formativo realizado pela equipe de educação da Fundação Bienal, especialmente pelo desafio de criar ferramentas de mediação que nos ajudem a elucidar, com o público, o modo como tais percursos desafiam, na prática, as relações com o tempo e o espaço. O modo como a equipe conta o seu percurso nos três movimentos – nome que se deu às publicações educativas que vão se complementando e se revelando ao longo da construção das coreografias do impossível – é também um bom exemplo do modo como o conceito se irradia. Por meio da fabulação de um amplo programa de estudos e convites para diferentes artistas e pesquisadoras, a equipe entende que os diferentes procedimentos educacionais são ferramentas de liberação e liberdade, ou mesmo um chamado, no qual as práticas artísticas, intelectuais e políticas se tornam fundamentais na construção de conhecimentos baseados em troca, compartilhamento e experimentação. Desenvolvemos também uma rede de programas de residências artísticas, formada por New Local Space (Kingston, Jamaica), Sertão Negro (Goiânia, Brasil) e Ëntun Fey Azkin (Wallmapu, Território Ancestral Mapuche). Esses espaços e iniciativas autônomas são circuitos que fomentam arte, educação e novos modelos de gestão, além de proporcionarem formação e redistribuição de acessos para a cena local, tendo em vista as crises e os impactos sociais e econômicos que esses territórios enfrentam. Acreditamos no papel de plataformas como as Bienais na construção de processos formativos, de pesquisa e de fortalecimento de movimentos coletivos. Acreditamos também que, junto às discussões que nosso projeto propõe, podemos contribuir para a manutenção e a consolidação de redes de solidariedade como a Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC, que está presente na 35ª Bienal tanto como participante quanto como responsável pela alimentação. As coreografias do impossível contam ainda com uma extensa programação pública, composta por ativações, performances, mesas, conversas, exibições de filmes, oficinas e laboratórios ao longo da exposição. O que essas práticas, que coreografam o impossível em seus locais, podem gerar quando postas em diálogo aqui? Que rupturas e encontros, consensos e dissensos, essa reunião pode criar? Para nós, essas perguntas têm um papel central. Elas possibilitam inventar e descobrir novas e desconhecidas coreografias.


planta do terceiro andar

espaço fechado

espaço aberto

planta do segundo andar

espaço fechado

espaço aberto


imagem: Vão Arquitetura


c-o-r-e-o-g-r-a-f-i-a-s grada kilomba

o que é coreografia? o que é uma coreografia? o que são coreografias? e o que são as coreografias do impossível? o que é impossível? o que é o impossível? e a impossibilidade? pode uma coreografia contornar o impossível? como se define coreografia? como uma arte? como um desenho? como uma escrita? um movimento? ou uma dança? é a coreografia, a arte de dançar? ou arte de desenhar um movimento que se dança? a arte de escrever um movimento? de desenhar um conjunto de movimentos? a sequência destes? em todas as suas parcelas e frações? a grafia de um movimento? a grafia de um movimento, que irá compor uma dança? a grafia, que descreve como uma dança irá ser feita? antecipando-a?

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tempo? podemos, assim, abstrair a ideia de coreografia? tempo lento? tempo rápido? tempo devagar? tempo fragmentado? tempo parado? pode uma mesma coreografia variar, segundo o tempo em que se dança? permitindo várias interpretações? criando múltiplas danças? danças, antes inimagináveis? danças, que ultrapassam o poder da imaginação? ou daquilo que se imaginou? ou que foi imaginado para nós? pode uma coreografia interromper o impossível? e pode uma coreografia ocupar o impossível? espaço? espaço vazio? espaço cheio? espaço horizontal? espaço vertical? espaço diagonal?


como se ocupa o espaço para uma coreografia?

o que é impossível? o corpo?

presente? ausente? longe? perto?

o corpo impossível?

pode a coreografia atravessar as noções de espaço? da mesma forma que atravessa as noções do tempo? criando infinitas danças?

a negação de um corpo? ou o desejo deste? a violência contra um corpo? ou o desejo reprimido? a recusa de um corpo? ou a obsessão por ele?

atravessando o impossível? apesar da impossibilidade?

pode a coreografia desmantelar o impossível?

e o corpo? quem dança a coreografia?

criando múltiplas danças? em múltiplas variações? em múltiplas formas? e em múltiplos corpos?

será, então, a coreografia a escrita do corpo? e o corpo, o centro da coreografia? o corpo? o corpo físico? o corpo, e não o objecto? o corpo possível? quem é possível? quem é impossível? e quem se torna uma impossibilidade?

atravessando as várias noções de tempo, espaço, presença e corpo? o que são as coreografias do impossível? e o que é a 35a Bienal de São Paulo? o revelar dos impossíveis? o afirmar das possibilidades perante o impossível? ou a revelação daquilo que sempre foi possível? revelando múltiplas possibilidades? Berlim, 20 de junho, 2023


coreografias do impossível, encruzilhadas do tempo hélio menezes

Aprendi desde cedo que Tempo é outro nome do inquice Kitembo, deus do infinito, ser que habita e atravessa todos os seres e tempos. Entidade que habita e se faz corpo em árvore sagrada. Um Tempo a quem se dá de comer. Sua gemelaridade com os tempos indetermináveis dos ciclos naturais e mais-que-humanos e o consequente colapso da sequencialidade como dimensão ontológica do tempo encarnam, me parece, uma possibilidade interessante e radical de alteração do rijo binômio tempo-espaço. Uma capacidade inerente de desnarrar histórias pelo próprio movimento no/do tempo. Em cadência similar, a pensadora Leda Maria Martins vem sugerindo que o tempo pode ser experienciado pelo princípio do movimento: uma curva que gira, vai e re/volta, embaralha a cronologia, conjuga rememorar e devir como verbos siameses. A autora nos relembra que se pode vivenciar tempos fora da mecânica linear, irredutíveis à ideia moderna (ou seja, à ideia colonial) de um encadeamento sequencial ou progressivo. Um tempo ontologicamente vivido com e como corpo. E que encontra tradução em sistemas linguísticos e de pensamento para os quais a separação entre ética, estética, corpo, tempo e vida carece de força explicativa. Como Leda ensina: numa das línguas Banto do Congo, o kicongo, o mesmo verbo, tanga, designa os atos de escrever e de dançar, de cuja raiz deriva-se, ainda, o substantivo ntangu, uma das designações do tempo, uma correlação plurissignificativa. Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo e como tempo as temporalidades curvilíneas.1 Ntangu. — Tanga — Matanga — Tango — Matanza. Escrever, dançar n/o tempo. Essas coreografias de retornos, movimentos do impossível, são entendidas no contexto dessa 35a Bienal 1/ Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, p. 81.

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de São Paulo como temporalidades que se realizam em episteme a cada movência que busca escapar à rigidez deste mundo dilacerado pela cotidianidade dos ritos e práticas de violência total. E que tornam a ideia de vida plena e justa um acontecimento impossível. Um horizonte inalcançável, há pelo menos cinco séculos, para os mesmos e cada vez mais numerosos condenados da terra.2 Um mundo contra o qual, afinal, se impõem as tentativas, tão inadiáveis quanto improváveis, de gingar e escapar, recusar, fazer frente, reverter e reparar as consequências desses mesmos contextos que tornam a vida de uns mais impossível que a de outros. Essas compreensões espiralares do tempo, que o percebem e o concebem como um saber localizado e corpori­ficado, matriz de toda motricidade e, portanto, de toda possibilidade, lastreiam e encontram eco nas coreografias do impossível. O desejo de reunir e propor relações entre um conjunto de práticas artísticas e sociais que reivindicam outras cosmopercepções do tempo, que tratam de coreografar outras configurações de mundo — não obstante lidarem com a impossibilidade como condição —, foi baliza para as pesquisas que resultaram nesta 35a Bienal, bem como nos ensaios e nas imagens que compõem esta publicação, agora disponível para sua leitura. São vários, e mesmo infinitos, os tempos aqui em jogo: há o tempo onírico, e sua capacidade de transmutação para acessar outros planos e mundos, de que nos conta Mãri hi [A árvore do sonho], do diretor Morzaniel Ɨramari; o tempo ancestral das mulheres-mangue de Rosana Paulino, poderosas figuras em forma de raízes e árvores antropomórficas, onde vida, lama e renovação se indistinguem; o tempo telúrico da cerâmica, desenterrando histórias de exploração mas também de cura, como nos ensinam Marilyn Boror Bor e Simone Leigh, ou ainda M’barek Bouhchichi, ao suprimir a distância entre os versos de Dave the Potter, a letra de M’barek Ben Zida e a escrevivência de Conceição Evaristo. Há o tempo-sem-tempo de quem vive “no tempo da cap-

2/ Frantz Fanon (1961), Os condenados da terra, trad. Lígia Fonseca e Regina Salgado Campos. São Paulo: Zahar, 2022.


tura”, como relata Stella do Patrocínio em seus Falatórios;3 o tempo que habita na dobradiça da re/memória com o delírio, de que nos contam Aurora Cursino e Ubirajara Ferreira; o tempo do horror e seus efeitos encarnados, sobre o qual é impossível narrar (mas ainda assim dele se fala), como o fez Ceija Stojka. Há o tempo de um tempo que finda, como o da “Marcha do Silêncio”, promovida pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional em 21 de dezembro de 2012 — dia em que o mundo acabou, de acordo com o calendário maia. O tempo vagaroso de semear e o tempo incerto da colheita, propostos pela horta de milhos crioulos, e insubmetíveis à monocultura, que Denilson Baniwa aterra nesta Bienal; o tempo de re/de/composição dos fungos, plantas e outros seres além-de-humanes, em ciclos de longa duração em que vida e morte são marcadores indistinguíveis, como Daniel Lie sugere. Há o tempo cumulativo dos “objetos encontrados e desimportantes”, coletados por Rolando Castellón ao longo da sua vida na Nicarágua e Costa Rica; o tempo e a dança maquínicos, em seus vínculos umbilicais com o colonialismo-capitalismo industrial, que Warp Trance [Trama em transe], de Senga Nengudi, Tales of the Copper Cross Garden: Episode I [Contos do jardim de cruzes de cobre: Episódio I], de Sammy Baloji, e Sumidouro nº2 — diáspora fantasma, de Laís Machado e Diego Araúja, apreendem e decodificam. Há o tempo do luto e da reconstrução (impossível, embora inevitável) de laços de parentesco inter/rompidos, como em A água é uma máquina do tempo, de Aline Motta, que embaralha histórias coloniais afro-atlânticas e histórias familiares de morte e escrita de si; ou como na Palestina sob o olhar de Ahlam Shibli, povoada por imagens de mártires e jovens assassinados, tanto na rua como nos espaços domésticos, retratados na série Death [Morte]. Há o tempo dos pés andarilhos, dos jeitos de corpo que vão e desvão entre Senegal, França e Brasil, como remarca a coreógrafa Ana Pi, em parceria com Taata Kwa Nkisi Mutá Imê, sacerdote-chefe da Casa dos Olhos do 3/ Stella do Patrocínio, Reino dos bichos e dos animais é o meu nome, org. e apres. Viviane Mosé. Rio de Janeiro: Azougue, 2001.

Tempo que Fala — terreiro de candomblé cujo nome é já anúncio desse tempo que é tudo, menos estático. Outros artistas-coreógrafos, como Bouchra Ouizguen, Luiz de Abreu, Will Rawls, Inaicyra Falcão e a dupla Davi Pontes e Wallace Ferreira, participam da mostra com proposições que também trazem o corpo como veículo primeiro do tempo, e vice-versa, expandindo os diálogos (antiquíssimos e sempre atuais) entre os campos da dança, da música e das artes visuais. Seja na câmera de Maya Deren, que, ao filmar Chao-Li Chi numa dança-transe de rigor e exatidão, acaba ela mesma também dançando; seja nos movimentos compassados de Katherine Dunham, entre Áfricas, Caribes e Américas, desenvolvendo um vocabulário coreográfico influente ainda hoje em várias gerações de artistas, aqui, tempo e corpo são instâncias plenamente intercambiáveis. ●●● De uma perspectiva curatorial, pensar essas dobras do tempo das/nas expressões artísticas implicou também relocalizar o sentido de coreografia. Tomando-a em acepção alargada e poética, para além de sua historicidade disciplinar. Assim, requereu, consequentemente, contrariar a suposição de autenticidade de seu significado etimológico, liberando o olhar para os movimentos, realizados em um mundo que parece irresolúvel, por onde a improvisação e a criatividade desdobram novos e insuspeitos moveres. A coreografia era uma arte, uma prática de se movimentar mesmo quando não havia outro lugar para ir, nenhum lugar para onde fugir. Era um arranjo do corpo que escapava à captura, um esforço para tornar o inabitável habitável,4

4/ Saidiya Hartman (2019), Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, trad. Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 315.


conta Saidiya Hartman a respeito de Mabel Hampton, uma jovem corista negra do Harlem dos anos 1920, em um significado coextensível ao que esta Bienal enseja. “Em seu sentido mais amplo, a coreografia — essa prática de corpos em movimento — era um chamado de liberdade”.5 Nesse passo, coreografar o impossível conota as tecnologias sociais e práticas artísticas que buscam driblar a gramática da violência, referindo-se aos exercícios poéticos de resiliência, estratégias sociais, estéticas e curatoriais de evasão à norma; um convite permanente à fabulação de um porvir ainda desconhecido — apesar de toda inviabilidade. Uma meia-lua de compasso, como se diz na capoeiragem: a destreza de combinar uma manobra fugidia, no instante mesmo de sua realização, com um chute circular reverso, num jogo que é também uma dança, uma dança que também é uma briga.6 “Ao lado da derrota e do terror, haveria isso também: o vislumbre de beleza, o instante de possibilidade”,7 Saidiya reforça. O que é necessário para fazer surgir esses instantes? Que impactos a derrota e o terror podem gerar na linguagem? De que maneira artistas têm lido ou como vêm contornando os efeitos desses contextos impossíveis? Que proposições estéticas emergem de subjetividades insubmissas e estratégias coletivas de emancipação a partir, contra e a despeito da ruína? Além da reação combativa, da descrição figurativa e das políticas de representatividade, que outras formas expressivas a imaginação radical pode despertar, para além das expectativas de resistência por meio da frontalidade responsiva? “O que queremos, afinal, da linguagem? Tudo, tudo que nos permita ser no mundo sem que nossas costas se curvem”,8 na formulação de Edimilson de Almeida Pereira. Sob outras lentes, o termo coreografia convida ainda a 5/ Id., ibid., p. 322. 6/ Referência à letra da canção “Capoeira de benguela”, de Paulo César Pinheiro, do álbum Capoeira de besouro. Gravadora Quitanda, 2010. 7/ Saidiya Hartman, “Vênus em dois atos”, trad. Fernanda Silva e Sousa e Marcelo Ribeiro. ECO-Pós, Rio de Janeiro, v. 23, n. 3, pp. 12-33, 2020, p. 24. 8/ Edimilson de Almeida Pereira, Um corpo à deriva. Juiz de Fora: Macondo, 2020, p. 147.

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refletir sobre o risco, sempre à espreita, do apresamento dessa mesma liberdade bailarina pelos dispositivos de condução de corpos (não quaisquer corpos, todos sabemos) e da codificação de movimentos disruptivos, não raro convertidos em mercadoria. Isso tanto por meio das relações interpessoais hierarquizadas por marcadores sociais da diferença (raciais, de classe, gênero, sexualidade et alii), quanto pelo Estado, pelo Capital e suas derivadas instituições de vigilância e de controle (as da arte, especialmente). A ilusão e a irrealidade da liberdade de an/dança, de movimentar-se de modo verdadeiramente livre, é característica fúnebre desses tempos de claridade extrema em que vivemos. Dessa modernidade-colonialidade engendrada pelo tráfico transatlântico de gente e de destinos, pelos deslocamentos forçados e pelas barreiras de contenção, ideias regulatórias de fronteira e divisões racializadas do espaço, campos de concentração e de refugiados, políticas de encarceramento e manicomialização de dissidências sexuais e de gênero, grilagem e disputa de terras, das consequências irreversíveis do racismo ambiental — dos estertores, enfim, de um mundo que agoniza. Ou melhor, de certos mundos impossíveis que coabitam n/o mundo. Lugares físicos e simbólicos que vêm sendo tomados como espaços de expropriação e de destruição há longa data e mais aceleradamente que outros, e que, não obstante, são lugares de resistência e de fabulação. Refiro-me ao lago Atitlán, rodeado por três vulcões e incontáveis camadas do tempo — o tempo maia, o tempo colonial (ainda tão vivo), o tempo repressivo do estado e da sociedade guatemaltecos, o tempo do neoliberalismo extrativista —, e que serve de cenário e protagonista para Oq Ximtali, de Manuel Chavajay — uma coreografia de barcos de pesca em movimento sincronizado, gerando um instável círculo quase perfeito. Esses mundos impossíveis também se encontram na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujo monte Roraima brilha em multicor nas telas de Carmézia Emiliano, a despeito da invasão e do garimpo ilegais que ameaçam com contaminação e chumbo a possibilidade de vida na região; nos locais de exílio permanente, de que nos conta Mounira Al Solh; nos bares de e para mulheres lésbicas funcionando no centro de São Paulo,


fotografados por Rosa Gauditano nos anos 1970, em plena ditadura militar; referem-se também aos espaços arquitetônicos e abstratos do pensamento composicional negro, como define Torkwase Dyson; aos espaços de vigilância e encarceramento, metaforizados por Kapwani Kiwanga em pink-blue [rosa-azul]; às somatizações advindas do trauma da patrulha e da morte que rondam as rotas de travessia migratória, das quais nos recorda Guadalupe Maravilla. Ou, ainda, às paisagens abstratas de Deborah Azinger, compostas de cabelo crespo e dos azuis de um Caribe não idílico; às plantations açucareiras da República Dominicana, reimaginadas por Nadal Walcott em desenhos onde o trilho do trem se encontra com trabalhadores, danças e seres fantásticos; aos campos de algodão e seu papel no controle colonial britânico sobre o Egito, a que nos remete Woven Winds — The Making of an Economy — Costly Commodities [Ventos entrelaçados — A formação de uma economia — Commodities custosas], de Anna Boghiguian. Essa cartografia impossível, onde se localiza boa parte das proposições artísticas que dão corpo à 35a Bienal de São Paulo, não resulta de um movimento curatorial expansivo, nem de uma busca enciclopédica pelos quartos de despejo9 do mundo. Tampouco faz residência, embora boa parte dos participantes desta Bienal proceda dessa região austral do mundo, no chamado Sul Global — conceito que, desprovido de uma analítica da racialidade10 como princípio ordenador das iniquidades fundantes da modernidade, acaba por escamotear desigualdades “internas” irreconciliáveis, tornando-se demasiado abrangente. Esses espaços impossíveis aos quais nos referimos se situam, antes, nos territórios nativos, existenciais, espirituais e ancestrais que encontram maneiras de coreografar o impossível em que vivem, concebendo seus próprios instrumentos, movimentos e linguagens. Territórios que 9/ Carolina Maria de Jesus (1960), Quarto de despejo: diário de uma favelada. 10. ed. São Paulo: Ática, 2019. 10/ Sueli Carneiro, Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. São Paulo: Zahar, 2023; Denise Ferreira da Silva, Homo Modernus:para uma ideia global de raça, trad. Jess Oliveira e Pedro Daher. Rio de Janeiro: Cobogó, 2022.

se localizam em protestos das ruas, em suas esquinas e encruzilhadas — e que se realizam no encontro entre a linguagem escrita e a linguagem visual de modos e geografias os mais diversos: nos mais de 30 mil registros do Zumví — Arquivo Afro Fotográfico, um arquivo que guarda a produção de Lázaro Roberto, Rogério Santos, Aldemar Marques, Jônatas Conceição, Geremias Mendes, Lúcio Guerreira e Raimundo Monteiro, fotógrafos negros atuantes na Bahia desde 1980; nos cartazes do Taller NN, no Peru dos anos 1980; no Taller 4 Rojo, em meio ao conflito armado colombiano dos anos 1970; no ativismo visual do Taller de Gráfica Popular e seus processos coletivos de criação, no México dos anos 1940; nos tecidos e ações de rua do Colectivo Ayllu; nas faixas e lambe-lambes da Cozinha Ocupação 9 de Julho – mstc. Territórios impossíveis se estendem às aldeias e a seus enunciados de florestania, uma possibilidade de vida cidadã dentro da floresta, como propõe Ailton Krenak,11 e se pode inferir dos desenhos fantásticos e “eróticos” de Gabriel Gentil Tukano; da filmografia das práticas cotidianas realizada por Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana Yanomami; bem como da Floresta de infinitos, povoada por inquices, orixás, caboclos, bichos e humanos encantados, proposta por Ayrson Heráclito e Tiganá Santana. Territórios que se coadunam ao quilombo, simultaneamente, espaço e operação ética, “a continuidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso. Uma possibilidade nos dias da destruição”,12 na feliz definição de Beatriz Nascimento — e que ressoa no arquivo vivo do Quilombo do Cafundó. Essas coreografias do impossível acontecem, elas mesmas, em um território impossível chamado Brasil. E em um contexto igualmente impossível — nos quatro anos que antecederam esta 35a Bienal, 570 crianças Yanomami foram mortas por contaminação por mercúrio, desnutri11/ Ailton Krenak, Futuro ancestral, pesq. e org. Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. 12/ Maria Beatriz Nascimento, Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias de destruição, org. e ed. União dos Colectivos Pan-Africanistas (UCPA). São Paulo: Filhos da África, 2018, p. 190.


ção e fome neste país, segundo dados do Ministério dos Povos Indígenas.13 Esse, entre outros tantos e inumeráveis impossíveis que se cotidianizam neste lugar, choca especialmente pela reencenação do momento seiscentista de invasão europeia — o loop de um tempo que jamais passou. Como canta Gilberto Gil: “aqui é o fim do mundo”.14 A urgência e a persistência de tais questões levaram estas coreografias do impossível a pôr em relevo uma série de artistas, coletivos, personagens históricos, arquivos, poetas e organizações sociais, movidos pela possibilidade radical, como propõe Denise Ferreira da Silva, de “pensar o mundo Outra-mente”.15 Implicados em movimentos de criação de entre-espaços e entretempos, ainda que efêmeros, férteis à prática de geração e transmutação de vida. Que atendem “ao mandato ético de desafiar nosso pensamento, de liberar nossa imaginação e dar boas-vindas ao fim do mundo como nós o conhecemos, isto é, a descolonização, que é o único nome adequado à justiça”,16 ainda nos termos de Denise. ●●● Como numa coreografia de retornos, as obras apresentadas nesta 35a Bienal foram concebidas entre o século 17 e 2023 — embora as proposições e provocações que ensejam, em diálogo e relação, excedam e invalidem tais datações. E se realizam em múltiplas linguagens, trafegando entre o cinema, as artes visuais, a música, a arte ritual, a dança e a poesia, entre outras que mal se encaixam nas categorias mais ou menos habituais. 13/ Ministério dos Povos Indígenas, “Presidente Lula convoca ação emergencial interministerial na TI Yanomami”. , 20 jan. 2023. Disponível em: www.gov.br/povosindigenas/pt-br/assuntos/noticias/2023/01/presidente-lula-convoca-acao-emergencial-interministerial-na-ti-yanomami . Acesso em: 7 jul. 2023. 14/ “Marginália II”, canção de Gilberto Gil e Torquato Neto, do álbum Gilberto Gil, 1968, São Paulo, Philips Records. 15/ Denise Ferreira da Silva, op. cit. 16/ Id., Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo: Crocodilo, 2021, p. 198.

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Esse conjunto possibilita destacar, quero crer, o intenso trânsito entre linguagens, realçando experimentações formais que embaralham as delimitações, por exemplo, entre artes visuais, arquivo e práticas de resistência. Como não lembrar do cinema-palco de Marlon Riggs, ousando declamar poemas de amor entre bichas pretas e pessoas vivendo com hiv, em plenos anos 1980? Ou da “câmera dos despossuídos” de Kamal Aljafari, expandindo a possibilidade de fazer cinema utilizando-se de filmagens improváveis, feitas por câmeras de segurança, registradas pelo exército de Israel ou comissionadas por agências de publicidade do Estado? As maneiras expandidas de diálogo entre diferentes linguagens encontram guarida também nas instalações “cinematográficas” de Kidlat Tahimik, onde as histórias de Igpupiara e Syokoy, seres das mitologias indígena-brasileira e filipina, são contadas por meio de assemblages em tudo similares a um roteiro de filme. Cineastas como Sarah Maldoror, Amos Gitaï, Leilah Weinraub e Trinh T. Minh-ha; poetas como Gloria Anzaldúa, Ricardo Aleixo e Raquel Lima — para quem os campos das artes visuais, do corpo e da escrita caminham de mãos dadas —, são outros exemplos de práticas que se desenvolvem em trânsito. Tal diversidade guiou a proposta curatorial de organizar os trabalhos em vizinhanças expográficas que privilegiam afinidades sensíveis, conexões de ordem mais propriamente poética do que guiadas por aproximações em núcleos temáticos, por tipos de linguagem, propriedades formais ou matéricas. Tampouco por orientação cronológica. São arranjos que permitem realçar outras genealogias do contemporâneo, trançados que não foram incorporados ou subsumidos à teleologia constitutiva da história da arte, e que fazem encontrar, por exemplo, as amarrações, torções e telas-corpo do vocabulário escultórico de Sonia Gomes, os inextricáveis tramados de cordas e tecidos das densas composições de Judith Scott, com as linhas, verga­ lhões, poesia e dança amalgamados nas instalações de Julien Creuzet. E, por isso, se declinam na configuração de um espaço expositivo avesso à linearidade, composto de ritornelos, reaparições imprevistas; sem um trajeto predeterminado ou um sentido ideal de direção.


“O tempo, em sua dinâmica espiralada”, conta Leda, “só pode ser concebido pelo espaço ou na espacialidade do hiato que o corpo em voltejos ocupa. Tempo e espaço tornam-se, pois, imagens mutuamente espelhadas”.17 O projeto de arquitetura para a 35a Bienal, desenvolvido em parceria com o escritório Vão, privilegiou, assim, a construção de uma dinâmica entre espaços amplos e delimitados, alternando movimentos de contração e de abertura, sístoles e diástoles. O partido arquitetônico se inspira fundamentalmente nas formas curvilíneas do edifício — o mezanino e vão central. Os contornos desses espaços, quando somados, resultam em um corpo arquitetônico que busca desobedecer à ortogonalidade estruturante do Pavilhão, funcionando de modo invertido em cada pavimento. Em um andar, a periferia externa ao espaço oco é repleta de salas fechadas; no outro, o espaço central é ocupado por galerias fechadas, enquanto seus arredores se abrem em um amplo espaço não seccionado. Buscamos desdobrar esse conceito também nos locais de convivência e de encontro que permeiam o espaço das coreografias do impossível. Projetos de natureza gregária, que funcionam a um só tempo como instalação, lugar expositivo e espaço aberto a encontros — como o Assay, proposto pela dupla Nadir e Soumeya; os tetraedros re/des/montáveis que conformam Metafísica dos elementos — O E/Studio, de Denise Ferreira da Silva; o Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas], de Ibrahim Mahama; e a Sauna lésbica, organizada por Malu Avelar com Ana Paula Mathias, Anna Turra, Bárbara Esmenia e Marta Supernova —, são exemplos dessas diástoles que se espalham entre os andares expositivos. O mesmo se pode dizer da presença da Cozinha Ocupação 9 de Julho – mstc — a partir de suas formas espirais e tecnologias coletivas de governança, gestadas no prédio homônimo ocupado pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (mstc), em São Paulo —, que cria um entre-espaço no qual se fundem comida, cultura visual das ruas, o debate­-em-prática do direito à cidade e à ali-

mentação de qualidade, resultante de uma cadeia produtiva responsável. Tais propostas curatoriais decorrem de uma compreensão de nosso grupo — composto de minhas colegas Diane Lima, Grada Kilomba, meu colega Manuel Borja‑Villel e eu —, em diálogo com os assistentes curatoriais Sylvia Monasterios e Tarcisio Almeida, como uma tentativa de desarranjar as estruturas verticais de poder e seus modos imperativos de funcionamento. Deriva desse encontro uma concepção das coreografias do impossível como uma Bienal — na forma de exposição, publicações, residências artísticas, programa público de debates, ações performativas, mediações e ações educacionais e redes de colaboração com espaços autônomos de arte e pensamento — que é também uma plataforma para práticas de redistribuição, um laboratório aberto à experimentação, aos exercícios de gestão coletiva. Uma encruzilhada, nos termos de Leda Maria Martins, outra vez:

17/ Leda Maria Martins, op. cit., p. 134.

18/ Ibid., p. 51.

a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emerge dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam — nem sempre amistosamente — práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim.18 Nem sempre amistosamente, as coreografias do impossível podem, quero acreditar, revolver o chão sobre o qual se assenta este mundo em colapso. Alterando-lhe o ritmo, revertendo-lhe a cadência, essas encruzilhadas do tempo realizam o impossível: trazem outra vez ao baile o tudo-pode-ser dos tempos ainda não vividos.


seis momentos para um tempo outro manuel borja-villel

1. Cairo. 14 de março de 1932. A pedido do rei Fuad I, do Egito, um importante congresso internacional é organizado para discutir e documentar as tradições sonoras do mundo árabe. Depois de conquistar a independência do Reino Unido em 1922, o governo egípcio está empenhado em afirmar sua identidade mostrando uma história que se diferencie da inglesa e que sirva como um exemplo de modernização para a cidadania. A convenção contou com a participação de acadêmicos e músicos do Magrebe e do Oriente Médio, como Muhammad Fathi, Ali Al-Darwish, Rauf Yekta Bey e Mohamed Cherif, além de compositores europeus como Béla Bartók e Paul Hindemith. Uma das conclusões mais importantes dessa reunião foi solicitar que se restringisse a improvisação e que se padronizasse seu sistema de afinação, que não era temperado. O delegado do governo no congresso, Muhammad Fathi, recomendou que os grupos musicais da região usassem instrumentos ocidentais, que ele acreditava terem qualidades expressivas superiores. Se a música vernácula egípcia havia produzido o que um comentarista britânico chamou de “terrible sounds” [sons horríveis], agora a harmonia estava garantida. A reinvenção constante das regras também foi limitada, favorecendo a normatização e o controle estatal. Alterava-se a narrativa, reivindicava-se o nacional, mas mantinha-se a conformação do pensamento ocidental. Isso permitiu a participação, desde que ocorresse conforme parâmetros preestabelecidos e pretensamente científicos de ordenação e classificação − e também de posse e destruição.1 Sabemos que os processos de descolonização não têm sido sempre bem-sucedidos e que, inclusive, podem levar a períodos contrarrevolucionários. Assim, é essencial saber por que fracassaram e analisar suas causas e consequências. Daí resulta a relevância do que o pensador marroquino Abdelkebir Khatibi (1938-2009) denominou “crítica dupla”, ou seja, o questionamento contínuo da razão colonial e de nossa posição em relação a ela. 1/ Agradeço a Philip Rizk por compartilhar comigo sua pesquisa sobre essa conferência.

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A derrubada da dominação, a subversão ela mesma, depende do ato decisivo de voltar-se infinitamente contra as próprias fundações e as próprias origens, aquelas origens minadas por toda a história da teologia, do dom divino e do patriarcado, se é possível definir assim as contribuições permanentes e estruturais desse mundo árabe. É esse abismo, esse desconhecimento de nossa decadência e nossa dependência, que deveria ser trazido à luz, de algum modo nomeado em sua destruição e transformação para além de suas possibilidades.2 Em um artigo intitulado “What it Means to Curate for My Native American Community” [O que significa fazer curadoria para minha comunidade nativa norte-americana], a pesquisadora e ativista Tahnee Ahtone, do povo KiowaMuscogui-Seminola, se pergunta acerca da forma como as culturas indígenas foram incluídas nos museus estadunidenses.3 Ela não duvida das boas intenções de seus colegas, mas questiona se havia uma vontade real de mudar as estruturas. Ahtone lamenta que os curadores indígenas muitas vezes sejam forçados a desenvolver suas carreiras em um sistema que é alheio aos costumes e às formas de fazer de suas comunidades. Quando alternativo ou independente é usado apenas como um estilo, ele não designa nada fora da cultura convencional. Uma visita a algumas das feiras, exposições e museus de arte confirma isso. O racismo é denunciado, a racialidade é reivindicada, mas essa crítica tende a se referir a padrões estabelecidos, que não apenas não questionam o que torna o racismo possível, mas o revalidam. Isso não implica uma mudança de paradigma, pois a dominação permanece intacta. Quando certas abordagens 2/ Abdelkebir Khatibi, Plural Maghreb: Writings on Postcolonialism (1974). Londres: Bloomsbury Academy, 2019, pp. 26-27. Tradução nossa. 3/ Tahnee Ahtone, “What it Means to Curate for My Native American Community”. Hyperallergic, dez. 2021. Disponível em: hyperallergic. com/702775/what-it-means-to-curate-for-my-native-american-community/. Acesso em: 2 jul. 2023.


se tornam moda, quando uma obra de arte se torna um produto separado do contexto no qual teve origem, quando não entendemos que somos todos parte de um ecossistema compartilhado no qual nada é nosso, quando se valida a separação sujeito-objeto, a relação senhor-escravo se mantém, independentemente de as imagens retratadas serem afro-americanas ou de povos autóctones. Trata-se de transformar a história, não apenas de se lembrar dela. Isso requer a reformulação da governança das instituições, compreender o papel do artista em cada sociedade e reconhecer que não podemos falar do fato artístico de uma perspectiva moderna, ou seja, como se fosse um objeto universal e infinitamente intercambiável. Não devemos nos esquecer de que em algumas línguas indígenas, como a maia, a palavra arte sequer existe. Para se referir à prática artística, as línguas maias usam outros termos que têm a ver com a cura, a biosfera, a tradição ou o que é feito com as mãos, e que se aplicam a coisas que pertencem a todos e, portanto, são inseparáveis de sua comunidade e de seu território. Da mesma forma, para as culturas iorubás, o prazer estético não está separado da funcionalidade de suas canções ou de suas danças, de seus artesanatos, de suas esculturas, suas representações simbólicas, suas ciências ou música. Como nos relembra Leda Maria Martins, enquanto no Ocidente o triunfo do econômico sobre o espírito imaginativo possibilitou a terrível ruptura entre a vida e a arte, para os iorubás o prazer estético se agrega e não se dissocia de uma compreensão ética fundamental, constitutiva de todas as qualidades do fazer.4 Isso implica uma mudança radical com relação às formas eurocêntricas de colecionar, ordenar, exibir e explicar.

4/ Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, pp. 70-71.

2. Londres. 1º de maio de 1851. O Crystal Palace, a fantástica arquitetura de Joseph Paxton (1803-1865), é inaugurado no Hyde Park. Com ele, pode-se dizer que tem início o fenômeno das grandes exposições, que substituíram as feiras locais, aproveitando a ocasião para evitar a desordem e os distúrbios sociais que elas provocavam. Sob o olhar hipnótico do espetáculo, serviram para regenerar as cidades e fortalecer o orgulho nacional, construindo um senso de unidade enganoso entre classes e grupos desiguais. As grandes mostras surgiram logo após o que, aparentemente, era seu oposto: o panóptico, que foi imposto a partir do século 18 no sistema prisional ocidental. O Crystal Palace era aberto, não se baseava no confinamento nem em uma visão unidirecional. Do lado de fora, era possível ver o que ocorria em seu interior, e, do lado de dentro, podia-se distinguir o que acontecia no exterior. O olhar tornou-se onipresente e a vigilância externa deixou de ser essencial, porque tudo estava disponível para todos. Assim como na prisão, o controle era exercido pelo sujeito sobre si mesmo. O espectador observava de um local que pretendia ser neutro. Ao serem atravessados por uma perspectiva única, os corpos não existiam como tais, mas eram transparentes. Entretanto, essa transparência ocultava os conflitos e tornava impossível distinguir os mecanismos por meio dos quais os enunciados eram produzidos, interpretados e distribuídos. Com a modernidade, a experiência deixou de ser uma irrupção do desconhecido, tornando-se cativa de um design geral totalizante que causava a perda das esferas relacionais e performativas. No sistema cognitivo de muitos povos, as palavras são investidas de eficácia e de poder. Para isso, elas se expressam por meio de circunlocuções, das diferentes sonoridades da voz e do movimento do corpo. Elas não apenas representam uma coisa, elas são a própria coisa. Elas contêm aquilo que evocam. Ao contrário do que a modernidade acreditava, o conhecimento não é guardado apenas em bibliotecas, museus, arquivos ou monumentos oficiais, mas constantemente revivido e recriado por


meio de repertórios orais e corporais, gestos e hábitos.5 Esse caráter performativo permeia as obras exibidas em coreografias do impossível. Em seu sentido etimológico, o substantivo coreografia significa inscrição no espaço. Os gregos, cuja cultura foi menos a origem da civilização ocidental do que a continuidade de uma série de conhecimentos que já existiam no Oriente e na África, distinguiam dois termos para se referir ao lugar: topos e chora. O primeiro responde a uma noção aristotélica que é estática e envolve a dissociação entre agente e espaço. É possível mover-se livremente pelo espaço, mas não sair dele, pois o espaço é sempre idêntico. Por outro lado, chora é um conceito platônico que implica uma relação dinâmica entre ser e lugar, não há separação entre um e outro. Ambos formam uma dança de encontros e deslocamentos, que nos ensinam a nos relacionar com o que sabemos e, sobretudo, com o que ignoramos sobre nós mesmos e sobre os outros. A hegemonia da escrita sobre outros modos de comunicação foi absoluta a partir do século 16. Apontemos uma coincidência histórica notável: a publicação na Espanha, em 1492, ano da chegada dos espanhóis à América, da Gramática de Nebrija, que foi fundamental para transformar a língua em um instrumento de controle e de conquista. A regulamentação, então recém-introduzida, evitava variações constantes e foi fundamental na tentativa de suprimir os conhecimentos considerados heréticos e indesejáveis pelos europeus.6 Soletrar ou grafar um conhecimento é sinônimo de uma experiência que encontra seu local de inscrição no corpo em performance, não no domínio de uma linguagem escrita alfabeticamente. Muitos dos participantes da 35ª Bienal, como Tejal Shah, Niño de Elche, Pauline Baudry e Renate Lorenz ou Ellen Gallagher e Edgar Cleijne, projetaram instalações que vão além do binômio cubo branco/caixa preta. Elas se transformam continuamente, incentivam a mobilidade consciente do público e exi5/ Ibid., p. 40. 6/ Ibid., p. 34.

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gem uma ruptura com a camisa de força do dispositivo moderno, fugindo da transparência e do optocentrismo característicos dos “Palácios de Cristal”. Não há separação entre sujeito e objeto. Assim, as “paisagens” de Gallagher e Cleijne em Highway Gothic (2017) fazem parte de uma memória comum, não são experiências externas ao ser humano. Da mesma forma, o Auto Sacramental Invisible [Auto sacramental invisível] (2020), de Niño de Elche, inspirado em uma composição de 1949 do artista e inventor espanhol José Val del Omar (1904-1982), é material e místico. Esse é o caso de Between the Waves [Entre as ondas] (2021), de Tejal Shah, uma máquina desejante, na qual tempos e gêneros fluem e o ancestral é atual. Nela, se apresentam poemas e imagens que interrogam o espectador, devolvendo seu olhar a si mesmo, solicitando que reflita acerca de sua capacidade de percepção. As vozes, imagens e objetos nessas e em outras peças são fragmentos de um todo, sempre incompleto, que, a cada vez, tem de ser atualizado. Não são exibidos para que o visitante se reconheça neles, nem para explicar uma ordem superior, mas para introduzir elementos de ruptura em seu modo de ser e agir, gerando reconfigurações políticas e epistemológicas alternativas, unindo tipos muito diferentes de conhecimento. Assim, a Bienal não é organizada de acordo com afinidades temáticas, formais ou cronológicas. Um artista conceitual como stanley brouwn, que trabalhou na Europa na segunda metade do século passado, pode fazer sentido, por exemplo, com um artista estadunidense de quadrinhos do início do século 20, como George Herriman (1880-1944). Ou um espaço como a Cozinha Ocupação 9 de Julho – mstc pode se aproximar da dança butô do filme Meditation on Violence [Meditação sobre a violência], realizado por Maya Deren (1917-1961) em 1948. Essa coreografia, que reúne práticas artísticas eruditas e locais, propõe uma insurreição do conhecimento.


3. Pavilhão da Bienal, Ibirapuera. 6 de setembro de 2023. Uma mulher vestida com um traje tradicional maia de San Juan Sacatepéquez, Guatemala, está de pé sobre uma base de cimento cuja superfície ainda está fresca. À medida que o material seca, seus tornozelos afundam no cimento e ficam cobertos, e ela permanece como um monumento. Antes que o cimento se solidifique, ela desce do pedestal. Agora, não há nenhuma figura comemorativa. Uma placa em sua base parece assumir essa função. Nela se lê: “Liberdade para os rios, as colinas, as montanhas, as flores e os lagos!” A ação é uma recriação de uma peça intitulada Monumento vivo, que a artista de origem maia-caqchiquel Marilyn Boror Bor realizou na praça Central da Cidade da Guatemala, em 2021. Os memoriais estão na moda, tanto no que se refere à sua construção quanto à sua demolição. Uma tendência natural e lógica de qualquer sociedade reprimida é tentar derrubar os símbolos daqueles que a subjugam. Entretanto, uma coisa é remover, do espaço público, os monumentos dos repressores, outra, bem diferente, é amputar a história. Essa supressão é muitas vezes a maneira pela qual uma ordem de poder se camufla e sobrevive. Depois de 1989, a maioria dos países que constituíam o bloco soviético destruiu ou escondeu quase todos os monumentos referentes ao antigo regime. Isso não significa que a oligarquia tenha deixado de existir na Rússia e em outros países. Os grandes monopólios substituíram o aparato do Partido. O monumento de Boror não se destina a um ser superior que se eleva acima dos demais. Ele foi erguido para aqueles que aparentemente não têm história e para os não humanos. Ele propõe a ideia de uma sociedade na qual não há separação entre comunidade e território, e na qual nossos vínculos com outras espécies se reconfiguram. A sustentabilidade de nossas vidas está enraizada em uma política de cuidado e afeto, e se opõe à noção de crescimento indefinido que tem distinguido a sociedade ocidental há séculos. O testemunho que nos oferece esse monumento de Boror não está nem no centro nem fora dos conflitos. Sua verdade se baseia no fato de ele ser parte do problema. O

relato histórico também é história, não apenas crônica ou descrição. No pedestal permanecem as pegadas dos pés, da ação, o pódio se mantém, mas não a figura que oprime por conta do poder que detém; não é algo que se transmite ou que se exerce, ele só existe na ação.7 Dessa forma, a artista guatemalteca questiona tanto a linguagem da opressão quanto a opressão da linguagem. Ela propõe uma espécie de contra-história, expondo a maneira como as relações de poder ativam certos dispositivos de conhecimento e políticas de verdade. Esses dispositivos consistem na capacidade de contar a história de outras pessoas e, ao mesmo tempo, convertê-la na história definitiva dessas pessoas.8 Começar a história do continente que conhecemos como América com a chegada de Cristóvão Colombo não é o mesmo que iniciá-la com as comunidades que originalmente o povoaram, assim como começar a história da África com o fracasso do Estado africano não é o mesmo que começá-la com sua criação colonial. Boror denuncia o perigo da história única, porque não ser reconhecido por ela ou não aceitar seu reconhecimento condena a pessoa à não existência. Todas as exclusões, opressões, desprezos e espoliações derivam desse despejo. Mas também as heresias e as dissidências, as críticas e a criação de mundos insubmissos. Os “sem história” são tanto aqueles que são expulsos por ela quanto aqueles que resistem à sua captura. Assim foi com as civilizações que não entraram no que foi considerado a genealogia legítima da cultura ocidental. “Como suportar o nada? Como resistir não sendo?”, pergunta Marina Garcés no epílogo da edição em espanhol do livro de Chimamanda Ngozi Adichie, O perigo de uma história única.9

7/ Michel Foucault, Genealogía del racismo. Madri: Las Ediciones de la Piqueta, 1992, p. 28. 8/ Chimamanda Ngozi Adichie, El peligro de la historia única. Barcelona: Penguin Random House, 2019, p. 19. [Edição brasileira: O perigo de uma história única, trad. Júlia Romeu. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.] 9/ Ibid., pp. 43-44.


4. Chiapas. 21 de dezembro de 2012. Marcha do Silêncio. Quarenta e cinco mil zapatistas ocupam pacificamente e de surpresa alguns dos municípios que tomaram à força em 1994. A manifestação ocorre sem proclamações ou cantos. Durante algumas horas, uma multidão de homens e mulheres encapuzados marcha pelas praças, com seus passos compondo efêmeras formas em espiral. A data é reveladora, pois marca o fim do mundo no calendário maia e anuncia o início de uma nova era para os povos oprimidos. A modernidade confundiu realidade com visão e, ao fazê-lo, transformou toda a epistemologia em estética. O mundo moderno não era o resultado do escrutínio ou da análise de certos traços ou vestígios, e sim uma verdade evidente, porque percepção e representação eram a mesma coisa.10 Isso produziu uma falsa ideia de espaço e tempo. Este último respondia a uma concepção linear, progressiva e teleológica do Universo. Imaginava-se o espaço como um terreno vazio a ser conquistado. Um não lugar abstrato e colonial, incapaz de admitir que, nos territórios ocupados pelo homem moderno, já existiam outros seres humanos e formas de vida.11 Em uma canetada, foram apagadas todas as catástrofes ecológicas, tragédias pessoais e fraturas sociais causadas pela pilhagem de recursos. Em contrapartida, depois de alguns anos de pouca atividade pública, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (ezln) ressurgiu anunciando um tempo e um espaço próprios, os dos Caracoles ("caracóis"), denominação dos distritos governados pelos zapatistas em Chiapas. Não houve discursos porque há uma linguagem que não é discursiva nem narrativa, é a linguagem do corpo vivo. O tempo reivindicado pelos zapatistas se opõe à ideia de cronos do calendário ocidental, no qual o tempo consiste meramente em uma sucessão de eventos. O tempo da Marcha do Silêncio é, como diz Leda Maria Martins em outro contexto, espiral, uma temporalidade que se curva

para a frente e para trás simultaneamente, sempre em processo de prospecção e retrospecção, de lembrança e devir.12 Tempo e memória são imagens que se refletem. Elas configuram um conhecimento enigmático, que nos captura ainda que seu significado nos escape, porque tentar apreender um enigma significa compreender as maneiras pelas quais aquilo que não pode ser visto se manifesta. Toda lembrança pode provocar um acontecimento inesperado que supõe uma abertura para futuros não inimaginados. Passado e futuro não são parte de um continuum, e sim interrupções. Isso é fundamental para comunidades e raças que viveram escravizadas e que tiveram de se mover entre impossibilidades, entre o que se esperava delas e o que de fato faziam. Suas epistemes e todo um complexo corpo de conhecimentos e valores foram reterritorializados, reimplantados, refundados, reciclados, reinventados, reinterpretados, nas inúmeras encruzilhadas históricas derivadas dessas jornadas.13

10/ Rolando Vázquez, Vistas of Modernity: Decolonial Aesthesis and the End of the Contemporary. Amsterdã: Mondrian Fund, 2020, p. 26.

12/ Leda Maria Martins, op. cit., p. 23.

11/ Ibid., p. 34.

13/ Ibid., p. 45.

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5. Estados Unidos. Final do século 19. “Se eu não posso dançar, não estou interessada em sua revolução.” Essa frase é atribuída à ativista feminista Emma Goldman (1869-1940), quando um colega a repreendeu por dançar. Admiradora de um Nietzsche “rebelde e inovador”, Goldman proclamava que “a revolução nada mais é que um pensamento em ação”.14 Revelava assim a natureza de uma história que, apesar de todas as rupturas revolucionárias que pudesse conter, ainda era concebida como um processo evolutivo contínuo. Reivindicava uma história contada por meio do movimento da dança. Ou seja, uma história diferente, com suas leis paradoxais, singularidades irredutíveis, diferenças sexuais inauditas e incalculáveis.15 O capitalismo teve origem, entre outras causas, na expropriação de terras comunais. Uma vez que isso foi consumado, ao menos parcialmente, houve outro objeto e forma de expropriação, a dos corpos, que teve início no decorrer do século 17. Como aponta Silvia Federici, isso foi facilitado pela reorganização do Estado e da Igreja, pelos critérios filosóficos de René Descartes e Thomas Hobbes, bem como pelas novas ciências da anatomia e da estatística,16 levando a um disciplinamento do corpo que visava a transformá-lo em mera ferramenta de trabalho, um objeto que poderia ser usado, trocado ou até mesmo destruído de acordo com a vontade de seu proprietário ou senhor. Em suma, tratava-se de tornar os corpos submissos e obedientes ao cronograma de trabalho capitalista, de transformar o corpo em uma máquina, o que era particularmente necessário em um estágio de desenvolvimento tecnológico

ainda incipiente.17 A partir de então, essa subordinação só cresceu e constitui a base da necropolítica atual em escala planetária. A dança é o lugar no qual os fantasmas reprimidos pela história podem aparecer. Bojana Kunst explica que, pelo fato de não estar preso a nada, sempre no limite da fixação de sua imagem, exposto a desaparecer a qualquer momento, o corpo performático interfere nos modos instituídos de figuração. Os seres excluídos podem emergir por meio desse corpo que dança, descobrindo movimentos e gestos esquecidos ou reprimidos. O passado revive em nós por meio da dança. Por isso, seus movimentos e ritmos constituem uma práxis política. Na década de 1940, as coreografias que Katherine Dunham (1909-2006) criou com base em sua pesquisa antropológica realizada no Caribe seriam um exemplo claro disso. Eram guiadas por um impulso de denúncia que se escondia nas costuras e rachaduras de um sistema de conhecimento estabelecido. Em suas danças, o corpo brilhava sem forma, e a alegre tensão entre presença e desaparecimento agia livremente.18

15/ Ibid., p. 160.

17/ Victoria Pérez Royo, “Corporalidades disidentes en la celebración. Fiesta y política en la escena contemporánea”, in Bárbara Hang e Agustina Muñoz (orgs.), El tiempo es lo único que tenemos. Buenos Aires: Caja Negra, 2019, pp. 138-140.

16/ Silvia Federici, Caliban y la bruja: mujeres, cuerpo y acumulación originaria. Madri: Traficantes de Sueños, 2018, pp. 183-221.

18/ Bojana Kunst, “Los cuerpos autónomos de la danza”, in Bárbara Hang e Agustina Muñoz, op. cit., pp. 58-59.

14/ Jacques Derrida e Christie McDonald, “Coreografias”. Lectora: revista de dones i textualitat, Barcelona, n. 14, pp. 157-172, 2008, p. 157.


6. São Francisco, 1987. Aunt Lute Books publica o livro de Gloria Anzaldúa, Boderlands/La Frontera: The New Mestiza. Esse livro é ensaístico, autobiográfico, combina poesia e prosa, é escrito em vários idiomas (espanhol, inglês, nahuatl, tex-mex, chicano e pachuco) e aborda a ideia de fronteira, de limites e divisões. Um dos poemas do livro começa e termina com as seguintes linhas: Viver nas Borderlands Significa que você Não é uma hispana indígena negra espanhola Nem gabacha, você é mestiça, mulata, meia casta Presa no fogo cruzado entre os dois bandos Enquanto carrega as cinco raças nas costas Sem saber para qual lado se voltar, de qual lado fugir […] Para sobreviver nas Borderlands Você deve viver sem fronteiras Ser uma encruzilhada19 Anzaldúa argumenta que é necessário desenhar um mapa que faça jus à realidade territorial da fronteira, esse lugar transgeográfico e trans-histórico onde ocorre a reconstrução das identidades coletivas da diáspora ou daqueles localizados além da colonialidade. Para isso, é essencial reduzir a escala a fim de assimilar o fato de que o território em conflito, pelo simples fato de ser compartilhado, abriga mais histórias do que aquelas que compõem a narrativa nacional. Essas histórias são alimentadas pelo que cada um nega do outro e, entre a negação mútua, cria-se o espaço no qual o rumor da narrativa da população expulsa, que foi suprimida e que é estabelecida contra a corrente dos outros, toma forma.

19/ Gloria Anzaldúa, Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 1987, pp. 261-62. Tradução livre.

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Posso pertencer não pertencendo? Ser um cidadão, sim, mas de segunda classe. Por acaso isso não é pertencer por não pertencer, ou melhor, pertencer fingindo pertencer? Essas ainda são duas posições em tensão que deveriam ser mutuamente exclusivas e, no entanto, são duas posições cuja sobreposição molda uma identidade social.20 Acostumados como estamos ao fato de que somente aqueles que habitam um território têm narrativa própria, não conseguimos construir uma história na qual as narrativas tenham mais a ver com relacionamentos do que com identidades. Ao contrário dessas últimas, as narrativas não são fixas. Além de categorias reducionistas como "arte americana", "latino-americana" ou até mesmo conceitos mais recentes como “afro-americana”, devemos falar sobre os fluxos e os encontros que ocorreram em ambos os lados do Atlântico. Por outro lado, enquanto Foucault entendia a imobilização de pessoas na prisão como uma forma de controle, o controle hoje é exercido com base na mobilidade. A diáspora se tornou um estado de deportação permanente, que é a condição de muitas pessoas sem voz na história. As migrações forçadas, as realocações planejadas, os exílios fazem parte da nossa condição. Os silêncios da história são marcados por isso. O movimento de autores que trabalharam na fronteira, que construíram uma linguagem híbrida, a qual se baseia no passado ao mesmo tempo que o subverte, a qual mantém raízes que desapareceram em suas regiões de origem, é irrefreável. Essa linguagem encontra seu espaço na encruzilhada, que é “um lugar sagrado de intermediação entre diversos sistemas e instâncias de conhecimento”. 21 Na cosmogonia iorubé, essa encruzilhada é representada por Èsù, que é constitutivo de tudo, do material e do sobre-humano, do feminino e do masculino. Não em um sentido binário, mas em fluxo, já 20/ Martha Palacio Avendaño: Gloria Anzaldúa: poscolonialidad y feminismo. Barcelona: Gedisa Editorial, 2020, pp. 67-68. Tradução nossa. 21/ Leda Maria Martins, op. cit., p. 51.


que não pode ser classificado em nenhuma categoria. Èsù representa a ontologia do tempo na cosmogonia iorubá, pois ele é, em si, a própria ontologia, o tempo que se dobra para a frente e para trás. A reinvenção de novas subjetividades, olhares que impedem a dominação colonial que ocorre contra aqueles que são rejeitados por causa de sua raça ou orientação sexual, é inescapável. Resistir ao discurso da vergonha e buscar estratégias para reescrever a história são atos políticos radicais, que rompem com muitas das divisões epistemológicas estabelecidas e unem autores de diferentes continentes, gerando cartografias inesperadas. Em sua introdução ao livro de Stefano Harney e Fred Moten, Jack Halberstam menciona o famoso livro de Maurice Sendak, Where the Wild Things Are, de 1963.22 Para Halberstam, o protagonista da narrativa de Sendak se encontra imerso em uma jornada para um mundo que não é mais aquele que ele deixou, mas também não é aquele para o qual ele originalmente pretendia voltar. Esse é, segundo Halberstam, o elemento mais importante do texto de Harney e Moten. Não podemos realmente imaginar um futuro quando partimos de uma realidade que é intrinsecamente injusta, cuja forma de conhecimento nos é imposta e não permite ver além de seus limites. É impossível acabar com o colonialismo se o combatermos com suas mesmas ferramentas, com suas mesmas verdades. É inevitável que nos situemos em um espaço que foi abandonado pelo regulado e pelo normativo. É um espaço indominável e fronteiriço que existe além da razão colonial, não é uma utopia idílica, já existe em muitas situações: no jazz, na improvisação da performance, no ruído, no enigma da poética. Esse “outro lugar" está presente em nosso desejo. Como afirma Moten:

“extramusicais” [...] precisamente porque ouvimos algo neles que nos lembra que nosso desejo de harmonia é arbitrário e, em outro mundo, a harmonia soaria incompreensível. Ouvir a cacofonia e o ruído nos diz que há um além selvagem nas estruturas que habitamos e que nos habitam.23

Os sons desordenados aos quais nos referimos como cacofonia sempre serão considerados 22/ Jack Halberstam, “The Wild Beyond: With and for the Undercommons”, in Stefano Harney e Fred Moten, The Undercommons: Fugitive Planning and Black Study. Nova York: Minor Compositions, 2013, p. 6. Tradução nossa.

23/ Ibid., p. 7.


o impossível diane lima

“Beleza não é luxo; ao contrário, é uma forma de criar possibilidade no espaço da clausura, uma arte radical da subsistência, o acolhimento do que é horrível em nós, uma transfiguração daquilo que é dado. É um desejo de adornar, uma tendência ao barroco e o amor pela abundância."1 — saidiya hartman Quando, naquele outro dia, você me perguntou por que eu disse sim ao impossível, me lembro de ter respondido quase sem pensar que foi para sobreviver: um jeito de encontrar a liberdade ou, simplesmente, de tornar as coisas mais possíveis na vida. As perguntas “o que é o impossível” ou “o que é impossível” logo saltaram pela boca, pois, se considerarmos o impossível a ontologia das mulheres negras, tenderemos sempre a encarar essas perguntas com certa intimidade e, principalmente, com absoluto senso de recusa, tendo em vista estar implícita em nosso cotidiano a revolta contra a condição compulsória que torna o impossível mais possível para uns do que para outros. Hoje, vendo em retrospectiva os dias de trabalho como curadora da 35ª Bienal de São Paulo a partir dos poucos que ainda me restam nessa posição, permaneço com a mesma sensação que tive durante uma viagem de pesquisa à Jamaica, quando entendi que, caminhando sempre com a tarefa de sobreviver, é para encontrar a beleza que desafiamos o impossível. “A beauty of life” foram as palavras que comecei a repetir incansavelmente até o momento em que eu não podia mais discernir entre o que era a água do mar, a água dos olhos ou as gotas da chuva. “A beauty of life” parecia ser a revelação de um compromisso ou de uma promessa que, em algum momento, havia sido feita, e de que, até ali, nem eu mesma sabia. A essa altura, eu já estava totalmente contaminada

pelo pensamento de Christina Sharpe de que a beleza é uma prática e um método. “Do que a beleza é feita?",2 ela pergunta. “Atenção sempre que possível a um tipo de estética que escapou da violência sempre que possível — mesmo que seja apenas a organização perfeita de alfinetes."3 Se a única forma de encontrar a beleza é recusar todas as impossibilidades e escapar da violência sempre que possível, talvez essa seja uma primeira definição livre do que possam vir a ser as coreografias do impossível. Um belo experimento, para também citar meu arrebatamento pelo modo como Hartman vê a beleza no cotidiano das vidas rebeldes, um gesto que recusa o que foi dado como destino e as sempre poucas opções possíveis. Uma vida que recusa a impossibilidade, mas que “exige o impossível — reparação”.4 Acredito que ter estado na Jamaica me tocou profundamente por ser um tipo de encontro com algumas noções do que considero a beleza que eu, há muito, gostaria de experienciar. Em uma das conversas que tive com a pesquisadora e cantora lírica Inaicyra Falcão, que me presenteou com pensamentos como “a dança é o cotidiano transformado” e “vovó era o meu mundo novo”, ela me fez reviver como os trânsitos do Atlântico negro se refazem na Bahia, ao contar como, desde pequena, nutriu um ímpeto cosmopolita ao ter acesso a todo um repertório cultural atlântico que passava pelo Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador. O Afonjá é o terreiro onde ela aprendeu com Mãe Senhora, Maria Bibiana do Espírito Santo, sua avó paterna e reconhecida ialorixá, a ser uma articuladora de mundos. Por lá, ficaram impressionados nomes como os filósofos franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, que aprenderam por meio da célebre frase de Mãe Senhora “da porteira para dentro, da porteira para fora” como se dão as dinâmicas de produção e transmissão do conhecimento 2/ Christina Sharpe, “Beauty is a Method”. e-flux, n. 105, dez. 2019. Disponível em: www.e-flux.com/journal/105/303916/beauty-isa-method/. Acesso em: 12 jul. 2023. Tradução livre. 3/ Ibid.

1/ Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais, trad. Floresta. São Paulo: Fósforo, 2022, p. 53.

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4/ Saidiya Hartman, “Extended Notes on the Riot”. e-flux, n. 105, dez. 2019. Disponível em: www.e-flux.com/journal/105/302565/extended-notes-on-the-riot/. Acesso em: 12 jul. 2023.


nos espaços circulares de herança africana no Brasil. Um conhecimento que se aprende em performance, que faz e se refaz no cotidiano, em uma dinâmica participativa na qual se aprende com o corpo todo e não apenas por uma dimensão ocularcêntrica, categórica e binária entre corpo e mente. Que é dedicado a todos aqueles que habitam as portas5 e que ganha, com a imagem da porteira, a determinação do que é o conhecimento litúrgico, que deve ser com os seus segredos preservado na comunidade de iniciados, e do que pode ser transmitido e recriado como expressão intelectual e artística para a sociedade em geral. Ensinamentos que Falcão incorporou ao musicalizar os orikis, poemas memoriais que narram a herança dos saberes de tradição nagô-iorubá e que, antes mesmo de se tornarem os Autos coreográficos: Mestre Didi, 90 anos,6 ou qualquer outro dos muitos livros dedicados a Deoscoredes Maximiliano dos Santos, Alapini, supremo sacerdote no culto aos ancestrais Egunguns, artista, dramaturgo, escritor e seu pai, já mobilizavam seu desejo por uma coreografia dos deslocamentos. Com um timbre sonoro sentido na pele, as frequências da voz dessa soprano dramática alcançaram nas fronteiras seus mais plurais modos de expressão. De sua longa carreira acadêmica refazendo os fluxos BrasilNigéria, terminamos o dia conversando sobre como essa trajetória havia influenciado sua “proposta pluricultural de dança-arte-educação”,7 em que os exercícios e as tecnologias ancestrais, do aprofundamento das escutas coletivas aos exercícios de coletivização dos processos coreográficos através de movimentos cotidianos, constroem uma arqueologia do rodar que encontra, na voz, sua própria dança. Ao fim do dia, a única coisa da qual não falamos foi o título para o projeto que comissionamos e que se refere à 5/ Dionne Brand, Um mapa para a porta do não retorno: notas sobre pertencimento, trad. Jess Oliveira e Floresta. Rio de Janeiro: Bolha, 2022. 6/ Deoscoredes Maximiliano dos Santos, Autos coreográficos: Mestre Didi, 90 anos. Salvador: Corrupio, 2007. 7/ Inaicyra Falcão dos Santos, Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural de dança-arte-educação, 2. ed. São Paulo: Terceira Margem, 2006.

gravação de um disco, à publicação de um livro e à apresentação de sua performance lírica. Mas como “toda roda de movimento se transforma em um centro irradiador de força e energia vibratória que expande suas fronteiras”,8 dois dias depois Falcão me escreve dizendo que o projeto havia sido batizado. Quando o li, fiquei surpresa, pois foi a mesma expressão pela qual eu havia sido chamada, naquela noite, por uma pesquisadora que passava pela cidade, que me explicou o significado da palavra em iorubá. Respondi ofegante a Falcão, que me contou o motivo da sua escolha: quando ela foi para a Nigéria, logo passou a ser chamada de tokunbó. E quando passou a frequentar o Ilê Axipá, os ancestrais também lhe deram o título de tokunbó. “Estou sempre pairando, eu vou para a Nigéria e venho de fora, depois estou aqui e venho de lá”. tokunbó: sons entre mares. Temos um título. a Mona Lisa Eu cresci em uma cidade chamada Mundo Novo (BA), em uma casa com uma bela vista para duas montanhas, em que a janela era palco da minha imaginação e da minha sede de descobrir o que tinha para além do vale, ou o que eu poderia ver por detrás da serra. Nessa casa, cresci com abundância e prosperidade e, por volta do final dos anos 1980, minha mãe havia sido a primeira a realizar e conquistar muito daquilo que não estava largamente disponível na cidade como campo de possibilidades. E aquilo era muito para mim. Não sei se mais alguém da minha família percebia da mesma maneira, então, não conto isso como um fato, mas como um ímpeto, um fogo, um sentimento. Como suponho que o impossível construa sua morada no acreditar, as paredes, por mais inacreditável que possa parecer essa história, eram tomadas por reproduções de obras clássicas da história da arte ocidental. Nas fotos dos aniversários, bolas nas paredes contracenam com per8/ Id., “Tramas criativas de corpo e ancestralidade”, in Fundação Bienal de São Paulo (org.), Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo — coreografias do impossível. Movimento 1. São Paulo: Bienal, 2023.


sonagens devidamente emolduradas, entre elas a Mona Lisa (1503), de Leonardo da Vinci; a obra Busto de homem (o atleta) (1909), de Pablo Picasso; Passeio ao crepúsculo (1889-90), de Vincent van Gogh; além de duas naturezas-mortas, uma Virgem Maria com um menino no colo, um palhaço e uma mulher com um cavalo — pelos dois últimos, sempre tive menos apreço. Cresci com elas, falando com elas, nomeando-as e, literalmente, criando minhas próprias histórias para elas. A Mona Lisa, claro, era a que mais nos impressionava. Ao cair da noite ou quando o medo de ficar sozinha aparecia, crescia também o medo daquele olho que nos perseguia. E, no caso de alguma desobediência ou inquietação, bastava relembrar que o fantasma estava pendurado e que, se eu não tivesse coragem, em algum momento aqueles olhos iriam me pegar. Não sei o que me parece ser mais impossível: ter conhecido nessa condição a Mona Lisa ou ter conseguido fugir dela. Como cresci em uma casa com uma mãe comunista e sindicalista, e uma bisavó que, falecendo aos quase 104 anos, nos deixou como herança, entre tantos ensinamentos, o provérbio “o amanhã é escuro”, resolvi contar essa história, pois voltei da casa de Falcão me perguntando se não foi a partir desse episódio que a beleza se transformou em um sinônimo de fuga para mim. Também, para destacar como são múltiplos os modos como o impossível nos constitui ao longo da vida. Aquilo que Hartman, ao falar do trabalho da artista Simone Leigh, chama de “monumentalidade do cotidiano”: Seu trabalho, como o meu, se preocupa com a questão da escala: como desfazer presunções sobre o caráter provinciano e estreito da vida e do trabalho das mulheres negras, de modo que as dimensões de sua existência no mundo, sua contribuição, sua maneira de fazer e de agir possam ser recalibradas.9

9/ Saidiya Hartman, “Extended Notes on the Riot”, op. cit. Tradução nossa.

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Isso quer dizer que é possível enxergar a vida das mulheres negras, não somente como um “inventário de violência”,10 mas como uma “arquitetura de possibilidades”,11 de modo a encontrarmos uma “linguagem crítica capaz de transmitir o alcance épico do ordinário negro e a monumentalidade do cotidiano”.12 Foi tanto essa vida ordinária da cosmopolita Salvador que o canto lírico de Falcão transcendeu, quanto esse re/ conhecimento ordinário da produção criativa e intelectual das mulheres negras que se materializa nas muitas imagens, esculturas e encontros criados por Simone Leigh, que me tornaram pronta para responder, na palestra que fizemos em colaboração com o New Local Space (nls), em Kingston, na Jamaica, o que havia me levado até ali. Fomos recebidas por Deborah Anzinger, que, além de seu trabalho com pintura, escultura, vídeo e instalação, é fundadora do nls, um espaço independente de arte que surgiu na garagem de um estúdio de música, por onde passaram grandes nomes do reggae music que a Jamaica exportou para as muitas baías do Atlântico. Eu já conhecia o trabalho de Anzinger havia alguns anos, mas foi no Loophole of Retreat, grande seminário promovido por Leigh e organizado por Rashida Bumbray, como parte da exposição da artista no Pavilhão dos Estados Unidos na Bienal de Veneza, que nos encontramos pela primeira vez. Penso então que mais dois outros eventos haviam me levado até ali: An Unlikely Birth [Um nascimento improvável] (2018), série de Anzinger selecionada para as coreografias do impossível, na qual a artista, ao combinar materiais sintéticos e naturais, tensiona através da abstração paradigmas geográficos, ecológicos e espaciais “para desenvolver uma sintaxe que centraliza e desloca as formas como a corporificação da mulher negra é colocada em paralelo à terra"; 13 e também um nascimento impro10/ Ibid. 11/ Ibid. 12/ Ibid. 13/ Ver palestra da artista no Loophole of Retreat. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=mH9oGYiBGNE. Acesso em: 19 jul. 2023. Tradução nossa.


vável por meio da música, que foi o que de fato consegui dizer na palestra de abertura me referindo à chegada do reggae music à Bahia e à reinvenção, nas últimas décadas, de suas células sônicas, mediante a criação do samba-reggae e da cultura soundsystem. Movimentos que desde muito jovem incorporei como conhecimento, antes mesmo de ter lido A cena em sombras, Os dias anônimos, Afrografias da memória e Performances do tempo espiralar, todos títulos clássicos da poeta, ensaísta, dramaturga, e rainha de Nossa Senhora das Mercês da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, Leda Maria Martins, com quem aprendi o que considero um provérbio e sigo repetindo com convicção: “aquilo que na voz e no corpo se repete é uma episteme”.14 Nas décadas de 1970 e 1980, a música tornou-se a forma privilegiada da expressão da política do ser negro em Salvador e, apesar de não haver consenso sobre a origem do samba-reggae,15 o que sabemos é que, tendo nascido no contexto de entidades carnavalescas denominadas blocos-afro, é um ritmo que, com o ijexá, batida matriz dos cultos de candomblé, nasce como uma das forças precursoras das variadas concepções de movimento negro organizado. E foi a força generativa e performativa que fundamenta a ideia de movimento que havia me contaminou. Nesse mesmo programa que desenvolvemos com o NLS, que contou ainda com a leitura de portfólios de jovens artistas e um debate adensado com importantes agentes da cena de arte de Kingston, conhecemos também Queen Gloria “MaMa G” Simms, uma artista multidisciplinar, líder cultural e espiritual quilombola jamaicana que criou o Maroon Indigenous Women Circle. Detentora de um profundo conhecimento sobre as diversas tradições rituais e culturais jamaicanas, como a kumina, rastafari e revival, MaMa G compartilha ainda das práticas e dos saberes 14/ Leda Maria Martins, “Performances do tempo espiralar”, in Graciela Ravetti e Márcia Arbex (org.), Performance, exílio, fronteiras: errâncias territoriais e textuais. Belo Horizonte: FaLe/UFMG/PosLit, 2002. 15/ Para uma discussão mais aprofundada, ver Goli Guerreiro, “As trilhas do Samba-Reggae: a invenção de um ritmo”. Latin American Music Review, v. 20, n. 1, pp. 105-40, 1999.

desenvolvidos nas Maroon towns, cidades quilombolas que se formaram nas montanhas da Jamaica desde o século 17, tendo em vista a intensificação do tráfico atlântico sob o domínio britânico e do trabalho forçado nas plantações. Para ela, a improvisação é a raiz da coreografia e, quando dança, é coreografada pelos espíritos. Nossa passagem pela Jamaica cumpria o objetivo que tínhamos desde o início: construir as redes de relacionamento da Bienal, através de aproximações com espaços independentes, comunidades autônomas, movimentos sociais e coletivos. A partir desse evento criamos outra ponte, dessa vez entre nls e Sertão Negro, espaço do artista Dalton Paula em Goiânia, Centro-Oeste do Brasil, por meio da qual organizamos um programa de residência que contará com a participação dos artistas Juliana dos Santos, Mário Lopes e MaMa G. No Pavilhão da Bienal, a lista de movimentos cresce: Cozinha Ocupação 9 de Julho — mstc, MAHKU e Zumví, apenas para citar alguns. Como veremos a seguir, para além de um debate que perpassa a regulação dos corpos, a natureza e a geografia; para além das disputas de terra, das migrações e dos deslocamentos forçados; das noções de lar, de casa e de fronteira; das estratégias de sobrevivência e dos fluxos de comunicação e conhecimento que se organizam no movimento, o que essas práticas têm em comum é o modo como encontram soluções diversas e, muitas vezes, inimagináveis para performar seus contextos impossíveis em termos de expressão e de linguagem. uma história que se dá na linguagem e através da linguagem Viver entre um velho e um novo mundo, entre fronteiras físicas e espirituais, entre imagem e textos, era como podemos dizer que também vivia a autodenominada “chicana, tejana, classe trabalhadora, poeta feminista sapatão, escritora e teórica” Gloria Anzaldúa. Em mais de um de seus muitos desenhos apresentados nesta Bienal, observamos como a autora mobiliza o conceito de nepantla — que significa “lugar no meio” na língua indígena da Mesoamérica Nahuatl — para articular como a psique se assemelha às cidades fronteiriças.


Descrevendo a fronteira Estados Unidos-México como um lugar onde “o Terceiro Mundo se opõe ao Primeiro e sangra” e mostrando como a força vital desses dois mundos se funde “para formar um terceiro país — uma cultura de fronteira”,16 ela apresenta como a teoria de nepantla desorganiza o modo como os eventos são ordenados no tempo, por justamente sustentar experiências vividas que emergem entre espaços.17 Essas notas, diagramas e desenhos de transparência que, na década de 1990, eram projetados nas muitas paredes por onde Anzaldúa apresentou seus workshops e palestras como professora, destacam também como a autora entende a construção de sua identidade como performativa, e como essa mesma expressão performava por meio da linguagem. Ao escrever em primeira pessoa articulando a experiência vivida como episteme, ela declara: “Quando estudei pintura e escrita, descobri que eu poderia criar universos concretos. Porém, eu não os criei; eu era a condutora para eles, o canal”.18 Os desenhos de Anzaldúa se relacionam com outros espaços radicais de imaginação e ajudam a expandir as discussões entre arte e política e as dimensões poéticas e utilitárias da linguagem. Afinal de contas, o que criam em termos de linguagem esses contextos impossíveis e como a produção artística tem sido mais ou menos capaz de expressá-los? As formas como esses contextos éticos incidem diretamente no trabalho/esforço (labor) de criação, regulando, definindo ou (im)possibilitando as escolhas estéticas, constituíram um elemento importante que mobilizou a seleção de artistas e de obras para a exposição. Como veremos em muitos trabalhos, o impossível refere-se aos contextos políticos, jurídicos, econômicos e sociais nos quais estão inseridos muitos dos artistas, mas, também, à maneira como tais práticas artísticas e sociais 16/ Gloria Anzaldúa (1987), Borderlands/La Frontera: The New Mestiza, 4. ed. San Francisco: Aunt Lute Books, 2012, p. 3. 17/ Id., “Border Arte: Nepantla, el Lugar de la Frontera”, in AnaLouise Keating (org.), The Gloria Anzaldúa Reader. Durham: Duke University Press, 2009, pp. 176-86. 18/ Id., “Creativity and Switching Modes of Consciousness”, in AnaLouise Keating, op. cit., pp. 103-10. Tradução nossa.

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encontram estratégias para driblar os efeitos desses mesmos contextos nos modos de se manifestarem, se expressarem e produzirem arte. São obras que fogem da norma tema-figura, da autoimagem da regulação, dos sistemas de captura encenados pelos regimes de ultravisibilidade, da história enciclopédica da arte ocidental e da literalidade representativa comumente presente nas aproximações entre arte e política. Poéticas que são da ordem do improviso, mas que também se referem a movimentos organizados, desobedientes, irregulares, monstruosos ou suficientemente fugitivos para sequer serem enquadrados. É essa impossibilidade de essencializá-las, torná-las previsíveis ou contê-las que provoca também a sensação de estarmos construindo uma Bienal que, apesar de extremamente política, mobiliza múltiplos sistemas de representação. Um exercício de abstração e imaginação radical que está por trás da provocação “imagine se existisse uma sauna lésbica”, do projeto Sauna lésbica, que estimula o público a romper com os estereótipos e com aquilo que podíamos imaginar, mas com o qual o espaço instalativo, por sua capacidade disruptiva, brinca, além de tensionar e subverter. Ou o que nos diz a instalação pink-blue [rosa-azul] (2017), da artista Kapwani Kiwanga, na qual as luzes rosa e azul transcendem seus significados normativos e revelam sofisticadas tecnologias de vigilância. Também no modo como Julien Creuzet encontra a beleza e espacializa sua poesia em materiais que poderiam ser considerados “sem valor”, criando esculturas animadas pelo canto das mães das águas, de onde brotam peixes transgênicos, velas de barco plantadas por sementes e outras tantas imagens indecifráveis. Ou no modo como seu Otávio Caetano atraiu, como ele mesmo disse, “vidas de valor” para o Quilombo Cafundó e fez da comunidade destaque nos jornais, ao fazer com que a cupópia, língua “secreta” falada no quilombo derivada do Quibumbo, produzisse curiosidade, visibilidade e mobilizasse a sociedade contra a violenta disputa de terra enfrentada nos anos 1970, ao estrategicamente performá-la entre uma esquina ou outra da cidade. Estratégia de autodefesa e de expressão sonora semelhante à que encontrou Stella do Patrocínio, uma vítima das políticas eugenistas e do encarceramento


psiquiátrico, que encontrou na voz e no que ela mesma chamava de Falatórios uma forma de se rebelar contra o espaço da clausura. Como afirmou Do Patrocínio, segundo um jornal sem assinatura e sem data reconhecidas: “Eu vim pra ficar. Aqui vou assistir ao fim do mundo”.19 o impossível O projeto da 35ª Bienal de São Paulo — coreografias do impossível — nasce em um importante e decisivo contexto de mobilização coletiva e social no que se refere aos debates sobre justiça, relações de poder, crítica institucional e representação na arte contemporânea. Como alguém que acompanhou ativamente essas discussões ao longo dos últimos dez anos, e considerando a relevância da Bienal de São Paulo no contexto internacional, a ausência de curadores negros brasileiros, que marcou as suas últimas 34 edições, no mínimo indica, com as coreografias do impossível, a singularidade do Brasil no debate, sobretudo levando em conta o conhecimento que a experiência do impossível, a partir daqui, tem produzido. Considerando que quase 60% da população autodeclarada do país é negra e indígena,20 e que o sistema colonial brasileiro recebeu o maior número de escravizados africanos do mundo, o que uma explicação sociológica pautada pela lógica da exclusão não revela sobre essa singularidade é que foi a diferença racial, a ferramenta mais eficaz utilizada no século 20 para camuflar os modos como o acúmulo de capital se deu através da exploração dos corpos escravizados e das terras nativas indígenas, “transubstancializando os efeitos de mecanismos coloniais de expropriação em defeitos naturais (intelectuais e morais) que são sinalizados por diferenças físicas, práticas e institucionais”.21 19/ Stella do Patrocínio: a história que fala. Disponível em: www.youtube. com/watch?v=ev10K_1JEmg. Acesso em: 19 jul. 2023. 20/ Conforme dados do censo de 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 21/ Denise Ferreira da Silva, A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019, p. 35.

Denise Ferreira da Silva é a pensadora e artista que, ao longo de décadas de extensa produção intelectual, tem possibilitado nomear o impossível. Oferecendo-nos ferramentas analíticas e modos de intervenção mediante uma poética feminista negra, o conceito de “dívida impagável” tem sido fundamental para expandir as reflexões sobre reparação no país. Por meio desse conceito, a autora, em vez de produzir uma crítica institucional sobre casos específicos em que a aplicação da lei se revela irrealizável, mostra por que a justiça sempre falha diante de corpos negros e territórios indígenas: a dívida é, portanto, impagável, pois a forma jurídica do título que rege a relação econômica (propriedade) senhor-escravo autoriza o uso da violência total de modo a extrair o valor total criado pelo trabalho escravo, o que resulta em descendentes de escravos vivendo na escassez ou defasagem econômica.22 Reconhecendo que a gramática racial organiza o espaço global, sua proposta poética negra feminista vislumbra a im/possibilidade da justiça, a qual, desde a perspectiva do sujeito racial subalterno, requer nada mais nada menos do que o fim do mundo no qual a violência racial faz sentido, isto é, do Mundo Ordenado diante do qual a decolonização, ou a restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos escravos, é tão improvável quanto incompreensível.23 É esse acúmulo negativo que nos trouxe até aqui e que ajuda a formular a seguinte definição: as coreografias do impossível apresentam estratégias e políticas do movimento, que um conjunto de práticas artísticas e sociais vêm criando, tanto para imaginar mundos quanto para acelerar o fim de um mundo, onde as ideias de liberdade, justiça e igualdade 22/ Ibid., p. 153. 23/ Ibid., p. 37.


são realizações impossíveis. Considerando que o sistema da arte é também um campo de disputa do impossível, podemos entender como políticas do movimento práticas que: 1) desafiam, resistem ou recusam sistemas globais de violência que conformam nosso imaginário social e delimitam as noções do possível e do impossível. Ao fazê-lo, elas: 2) especulam e antecipam o que ainda virá-a-ser (pode vir a ser) através de movimentos improváveis que intervêm nos fluxos regulados de movimentos e em suas representações, criando um descontínuo no tempo em que a natureza enigmática do fazer artístico se realiza. Esse entre-lugar é o espaço no qual a imaginação busca ganhar movimento e onde se situa a produção dos artistas e agentes que compõem a 35ª Bienal de São Paulo. a diferença Lembro-me de que Ferreira da Silva foi uma das primeiras pessoas a radicalmente me incentivar a refletir sobre o porquê de esta formação curatorial ainda se fazer necessária. Porque ela ainda era um gesto impossível. Ou uma porcentagem, uma parcela do que poderia ser completamente impossível. Um risco, portanto, para todos os lados. Um risco produzido pela sua excepcional diferença. E que carregava uma diferença potencial, capaz de produzir um valor suficientemente “diferente” e, por assim dizer, espetacular e inovador. O impossível, o mais que impossível ou o quase impossível haviam acontecido, e foi a condição da possibilidade da significação — o que a equipe curatorial significava (precisamente a nossa diferença) — aquilo capaz de produzir a sintaxe da obra/manobra (de arte) curatorial, tornando-a uma performance que merecia ser assistida. E vivida. É curioso que, sempre que estou perdida, me perca nas palavras do pensador e poeta Fred Moten, e, então, me encontro: Mas essa diferença interna da obra de arte nada mais é do que o espelho através do qual o observador é absorvido pelo perigoso turbilhão da sua própria interioridade diferente, o lugar onde

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ele se perde no próprio ato de se encontrar, o lugar onde a perda constitui o fundamento do autodomínio. Portanto, a consciência da arte nada mais é do que a consciência de si.24 Estar em performance, estar em gerúndio, considerando tudo o que há dentro, para “fazer da subsistência uma arte”,25 uma tática, um improviso, é um movimento poético, uma prática feminista negra, que, como um gesto crítico e criativo, “está sempre em referência a um modo de existir como condição do mundo, e não como a condição de estar no mundo, desse modo produzindo aquilo que é ao mesmo tempo uma façanha, uma ação, um fardo e um artefato”.26 Dançar as coreografias do impossível significa então o modo como vejo a prática curatorial como um enunciado performativo, em que a produção de sentido é constituída por meio de atos ou práticas repetidas de um falar que é fazer, no qual o discurso constitui a realidade. O primeiro acordo que fiz, então, quando consegui nomear o impossível, foi produzir saúde. O segundo foi produzir saídas, praticar a recusa: momento em que aprendi que “ela celebraria o fato de que todos os dias algo tentava matá-la e falhava”.27 Entrar e sair viva (me recordo do conselho) seria um sucesso. Nesse trabalho, parte considerável do esforço passava por recusar a ideia de que, ao fim, a beleza não havia sido possível para mim: “Agir de acordo com o desejo de ser oposto, o desejo de não colaborar, é objetar. Como tal resistência pode suspender o processo de sujeição”?28 Moten pergunta e responde: É isto o que a objeção é, o que a performance é — uma complicação interna do objeto que é, 24/ Fred Moten, Na quebra: a estética da tradição radical negra, trad. Matheus Araujo dos Santos. São Paulo: n-1; Crocodilo, 2023, p. 340. 25/ Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos, op. cit., p. 250. 26/ Denise Ferreira da Silva, “How”. e-flux, n. 105, dez. 2019. Tradução nossa. 27/ Saidiya Hartman, Vidas rebeldes, belos experimentos, op. cit., p. 250. 28/ Fred Moten, op. cit., p. 341.


ao mesmo tempo, sua retirada para o mundo externo. Tal retirada torna possível a comunicação entre espaços, tempos e pessoas aparentemente intransponíveis.29 A fuga de uma posição salvacionista, melancólica e romântica, que buscava, no entanto, sustentar práticas de solidariedade, e um saudável pessimismo, foi o tom encontrado para expor os limites e as contradições das políticas de representação que o mercado-da-diferença organiza, bem como as idiossincrasias que o projeto da 35ª Bienal revela. Considerando que a diferença cultural é o que delimita, no texto moderno, o alcance da noção ética de humanidade, e que as ferramentas críticas disponíveis, precisamente por também serem construções do pensamento moderno, “não são capazes de efetivamente interromper o emprego de uma violência total que em outro contexto seria inaceitável contra aqueles que estão do ‘Outro’ lado (cultural) da humanidade”,30 Ferreira da Silva deixa-nos uma proposição: apenas o fim do mundo tal como o conhecemos, estou convencida, será capaz de dissolver a ideia de coletividades humanas como “estrangeiras” com os atributos morais fixos e irreconciliáveis que as diferenças culturais engendram.31 É essa liberação radical da capacidade criativa da imaginação que sustenta a Metafísica dos elementos – O E/Studio (2023), instalação na qual a artista, por meio de ferramentas, práticas e textos, nos leva a pensar: “E se o fim do mundo como o conhecemos for logo ali, em qualquer lugar, e em todo lugar, como uma dimensão oculta?”32 É o fogo, matéria incontrolável, inapreensível, imprevisível 29/ Ibid., p. 356. 30/ Denise Ferreira da Silva, “Sobre diferença sem separabilidade”, in Jochen Volz e Júlia Rebouças (orgs.), Incerteza viva: 32a Bienal de São Paulo, catálogo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016, p. 58.

e inquietante, que a artista manipula. Por meio de um conjunto de tetraedros feito por estruturas de ferro igualmente manipuláveis, Ferreira da Silva reconfigura a forma geométrica do fogo na filosofia mediterrânea clássica para construir um espaço coletivo-colaborativo-implicativo. Em sua inseparabilidade, sua iteração é incontida e só existe com e em combinação com a exposição como um todo. Se a princípio as esculturas de tetraedro ficam soltas pelo pavilhão, quando reunidas formam O E/Studio, espaço no qual se estuda e se pratica o fim do mundo e que, recebendo atividades como o Fórum Feminista Negro e o Echo Tarot Reading Room, é arte fazendo arte. as políticas do movimento Quando aproximamos o termo “coreografia” dos estudos da dança e da performance, observamos que está implícita na relação histórica do Ocidente com o coreográfico a criação de um corpo disciplinado, que se move de acordo com os comandos de determinada escrita. Em sua reflexão precisa sobre os diferentes modos em que o coreográfico se relaciona com a lei, André Lepecki, ao exaurir a história da dança ocidental, propõe uma análise crítica ao apresentar o episódio em que “a dança ocidental fundiu o seu ser com a escrita para criar o neologismo orchesographie (uma escrita, graphie, da orchesis, dança), título do famoso manual de dança de Thoinot Arbeau, de 1589”. “Eis aqui um poderoso dueto inaugural para considerarmos a relação onto-histórica da coreografia com a força de lei”,33 ele diz. “No momento crítico em que a dança encontra seu destino como coreografia, vemos o trabalho coordenado de um advogado e de um padre.”34 Esse episódio que inaugura a inscrição do vocábulo e do significado de coreografia na história ocidental é importante, pois revela como a produção moderna do conhecimento se mantém e ganha força de lei se inscrevendo no tempo e no espaço através de uma “homossocia-

31/ Ibid.

33/ André Lepecki, Exaurir a dança: performance e a política do movimento, trad. Pablo Assumpção Barros Costa. São Paulo: Annablume, 2017, p. 63.

32/ Tradução nossa.

34/ Ibid.


bilidade pedagógica”35 que permanece mesmo através da ausência. Do ponto de vista filosófico, serve ainda como imagem para questionar o projeto cartesiano de mundo e para nos ajudar a refletir sobre os modelos de governança e as economias da lei, que regulam as noções de movimento e liberdade. Tomada por essas reflexões, em uma viagem a Nova York para uma pesquisa, encontrei Saidiya Hartman em um restaurante próximo da Columbia University. Estava interessada em avançar nas leituras sobre as políticas do movimento quando ela trouxe como referência o nome da autora Hagar Kotef, que eu imediatamente comecei a ler, assim que cheguei à rua Adam Clayton Powell com a avenida 137. O cruzamento entre as duas leituras foi fundamental para articular como “a criação deste ser-para-o-movimento”36 moderno, racional e universal, de que fala Lepecki, está intimamente ligada aos modos pelos quais, para Kotef, “a ideia de mover-se livremente permanece no cerne de uma concepção liberal de liberdade” em que “o movimento foi construído como uma ameaça ao invés de uma articulação da liberdade”.37 Refletindo sobre os efeitos da colonização mediante uma análise que considera os mecanismos de controle dos movimentos dos palestinos por Israel, Kotef mostra como a fundação dessas estruturas contemporâneas de (i)mobilidade global pode ser atribuída a um pensamento político liberal, que equacionou liberdade e cidadania com movimento, enquanto regulava a mobilidade de acordo com uma matriz de exclusões raciais, de classe e de gênero. Questões que, do ponto de vista das políticas do movimento, levam a considerar que quem escreve e produz a coreografia são os próprios contextos impossíveis nos quais cada um de nós vivemos: são as leis, as normas, as violências que regulam, restringem e impossibilitam a liberdade do movimento, tanto no sentido da regulação e vigilância dos corpos quanto

da conformação de um imaginário social guiado por um sentido progressivo do tempo. No entanto, se “a lei é uma cadência, um ritmo que circula pelos corpos”38 como esses corpos impossíveis, para os quais a lei serve não para fazer acontecer uma demanda por direitos, mas para enquadrar como criminalidade, desobedecem e criam suas próprias coreografias para transformar seus corpos impossíveis em possíveis? Ao proporcionar uma leitura dos diversos meios pelos quais o movimento se produz, seja como liberdade ou como ameaça, encontramos nas múltiplas naturezas discursivas, ideológicas, espaciais e temporais em que essas práticas artísticas, que compõem as coreografias do impossível, se situam sintomas comuns a contextos e regimes disciplinares em que a violência total se aplica como modelo de governança. Se, por um lado, há um esforço ativo para impedir essa liberdade e uma impossibilidade de conceber os movimentos como manifestação de liberdade, por outro, quando damos às coreografias o impossível como seu espaço de contexto, quando alargamos sua perspectiva nomeando-as poeticamente como coreografias do impossível, já no título se produz uma formulação desobediente, que desorganiza, escapa e tensiona a coreografia do sujeito moderno e o cerco etimológico da palavra. Como nos ensina Leda Maria Martins, como um lugar terceiro, aqui nasce uma encruzilhada, “lugar de interseções, onde reina o senhor das encruzilhadas, portas e fronteiras, princípio dinâmico mediador de todos os atos de criação e interpretação do conhecimento”.39 Como operador semântico, Èsù Elegbara instaura o processo de dupla fala, as relações dialógicas e a encruzilhada dos sentidos e dos discursos. Como ouvi certa vez do pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, “Quem nunca esteve na encruzilhada não sabe escolher caminhos”. Considerando que a história do humanismo ocidental se confunde com o comércio de escravizados do Atlântico e o colonialismo, e que a liberdade do movimento é o que

35/ Ibid. 36/ Ibid. 37/ Hagar Kotef, Movement and the Ordering of Freedom: On Liberal Governances of Mobility. Durham: Duke University Press, 2015, p. 4.

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38/ André Lepecki, op. cit., p. 62. 39/ Leda Maria Martins, A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995.


condiciona o sistema da escravidão, uma parte considerável de nosso projeto se dedica a entender os mais diversos efeitos da expropriação total dos corpos e dos recursos naturais na diáspora africana e nos territórios indígenas. No entanto, ganha atenção redobrada em nossas discussões a busca por compreender como a força expansiva do pensamento ocidental tornou-se universal, através da ciência e de tecnologias modernas, e da construção de um eixo global do tempo em que a modernidade europeia se torna a métrica de sincronização de todas as civilizações. São os efeitos dessa ordem imperativa do tempo ocidental nas mais variadas geografias que nos levaram não somente a olhar para determinados territórios, fronteiras e contextos geopolíticos, como reivindicar uma epistemologia do tempo que fosse capaz de romper com a linearidade histórica e com o livro coreográfico. Também, e principalmente, que nos oferecesse estratégias metodológicas que nos permitissem fugir do complexo totalitário e enciclopédico imanente aos conceitos de bienais como eventos históricos — apesar de conscientes de que do efeito da sua historicidade não poderemos escapar. Tensões que ajudam a compreender como o termo “coreografia” vem sendo alargado através de sua habilidade de incorporar e refletir o contexto social em que vivemos, por considerar que são os conhecimentos praticados nas performances do cotidiano aqueles capazes de oferecer um conjunto de estratégias, tecnologias e múltiplos modos de fazer. É o que estamos aprendendo com os artistas e suas práticas, quando, por exemplo, essas práticas ressoam os modos de governar as populações no quadro das democracias liberais, dos regimes ultranacionalistas, imperialistas, autoritários e neofascistas, mas também quando se voltam aos sistemas de governança que possibilitaram o acúmulo do capital em suas mais remotas origens mediante movimentos de expropriação, vigilância, controle, despejo, deslocamento, prisão, apagamento, despossessão, exclusão, extração e domesticação. Por isso, gosto de partir também da compreensão de que as políticas do movimento nas coreografias do impossível são aquelas que negociam os limites entre o possível e o impossível, desafiando o con-

ceito liberal de liberdade e também de justiça e igualdade. Práticas que constroem espaços e tempos de percepção que desafiam a rigidez da linearidade do tempo ocidental. o tempo Foi, portanto, por meio do livro Performances do tempo espiralar: poéticas de um corpo-tela, conceito e título do livro de Leda Maria Martins, que encontramos as bases fundamentais que dão contorno àquilo que chamamos coreografias do impossível. Como reflete a capa do primeiro movimento, título de nosso material educativo, “aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo”.40 E são essas poéticas do corpo-tela que irradiam performativamente encruzilhando as linguagens artísticas, disciplinas, mídias e materialidades que se encontram reunidas no Pavilhão da Bienal. São corpos movidos por um tempo espiralar, em que grafar o saber é “sinônimo de uma experiência corporificada, de um saber encorpado, que encontra nesse corpo em performance seu lugar e ambiente de inscrição”.41 Acredito também que, como possibilidade metodológica para a exposição, foi por meio dessas temporalidades curvilíneas que recusamos a ambição de tentar encerrar, esgotar, cobrir globalmente, tematizar e categorizar historicamente todas as possibilidades de criação e de fuga que, ao longo do tempo, seguem em curso nas mais diferentes regiões do planeta. Assim como as formas de opressão e as violências são inimagináveis, também são inimagináveis, generativos, situados e plurais os movimentos que estão tentando criar o possível, apesar de todo o impossível. É esse eixo espiral que possibilita ir e vir, através de um gesto que se inicia com e a partir dos modos como alguns eventos, situações e dinâmicas globais refletem e rebatem no contexto brasileiro, possibilitando incorporar, no processo curatorial, os aprendizados e os encontros do caminho. 40/ Id., Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021, p. 81. 41/ Ibid., p. 36.


Nesse percurso, são muitos os artistas que buscam desestabilizar como o tempo se inscreve no espaço ou a sua sequencialidade e causalidade. É o caso do caminho que faz stanley brouwn rumo ao vazio; ou da busca por criar movimentos que estão fora do tempo, como os exercícios de autodefesa que propõe a dupla Davi Pontes e Wallace Ferreira; ou do modo como Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá Imê propõem uma investigação que tem o nkisi Tempo/ Kitembo, divindade dos cultos do candomblé de nação Angola, como sua força criadora. Ou dos muitos outros parágrafos que espero que passemos não neste texto, mas caminhando, vivendo, sentindo e aprendendo no espaço. A construção dessa narrativa expositiva, que se coreografa sem temas nem categorias cronológicas, e que, na arquitetura, desafia a geometria moderna incontornável do prédio, pode gerar sentimentos de frustração e sensações de falta e de falha. Penso, no entanto, que esses descontínuos, lacunas, vazios, quebras e respiros cumprem outra função. Eles são um convite e um chamado à ação, no qual cada visitante pode, seja por curiosidade, provocação ou empatia, refletir sobre os acontecimentos passados ou cotidianos com base em suas perspectivas. Assim como encontrar momentos de introspecção e expansão, por meio dos volumes, recintos e escalas que a experiência expográfica oferece nas coreografias de percursos criadas pelo escritório de arquitetura Vão. Narrativa expositiva que torna os trabalhos de mediação e de educação realizados pela equipe educativa da Fundação Bienal ainda mais fundantes no projeto. Tanto por reafirmar a relevância de se fazer uma Bienal, que é gratuita e também movida por recursos públicos, quanto pelo desafio de criar ferramentas de mediação que ajudem a elaborar a complexidade de alguns debates com o público. Um bom exemplo é a mobilização que a proposta de trabalhar com o livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School42 [Guia lésbico 42/ Geni Núñez, “Desviar para se encontrar: reflexões com base no livro The Lesbiana’s Guide to Catholic School”, in Fundação Bienal de São Paulo (org.), Meu modo de pensar é um pensar coletivo / Antes de estar em mim já esteve nelas. Publicação educativa da 35ª Bienal de São Paulo — coreografias do impossível. Movimento 2. São Paulo: Bienal, 2023, p. 38.

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para escolas católicas], da escritora Sonora Reyes, proporcionou, por meio de uma reaproximação da equipe com o Núcleo de Gênero e Diversidade da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para pensar a sexualidade no ambiente escolar. Destaque da segunda publicação educativa, o objetivo era evitar reações semelhantes à minha ou à de outros leitores, como teve a própria pensadora e psicóloga guarani Geni Núñez, a quem comissionamos um texto sobre e a partir do livro, e que logo nas primeiras linhas exclama: “como queria ter lido isto antes!”. Enquanto escrevo este texto, o terceiro movimento da publicação educativa está em desenvolvimento. Serão as reverberações dos três meses de exposição que darão o tom desse novo conteúdo. Cientes da incompletude desses movimentos, permanece o desejo de que as coreografias do impossível ampliem nossas capacidades tanto de perceber quanto de antecipar estratégias de sobrevivência coletiva de um mundo que está por vir. Sentimentos compartilhados intensamente com Sylvia Monasterios e Tarcisio Almeida, dupla de assistência da curadoria e pessoas sem as quais este projeto não seria viável. No entanto, se essas práticas produzem o dissenso nos espaços aos quais pertencem, quando aqui reunidas o que criariam? Quais consensos e dissensos as coreografias do impossível, quando em diálogo no espaço, nos possibilitarão adentrar? A coreografia de retornos de que fala Leda Maria Martins é o fim e o começo de um ensaio que se escreve por um desejo literal de circulação. a beleza terrível Observando a condição fantasmagórica do livro coreográfico, sua força de lei e seu devir-espectral, gosto de pensar na assombração ancestral que quem dança com o impossível produz. E tenho mzuitas razões para isso. Elas me levam àquelas pinturas penduradas nas paredes e às paredes da minha memória — para retomar a obra emblemática de Rosana Paulino. Se a Mona Lisa, em algum momento, foi meu fantasma, devo ao som os pontos de fuga que encontrei para desviar de seus olhos: “o som nos devolve


a visualidade que o ocularcentrismo reprimiu”,43 afirma Fred Moten. Na abundância, na riqueza e na prosperidade das “oralituras” transmitidas por gerações na minha casa, nas quais tive a chance de ter acesso a quase dois séculos de história, era a qualidade fantasmagórica da ancestralidade, seus falsetes, sobretons, gemidos e gritos que colocavam a tremer as molduras que me separavam do velho mundo. Conselhos, contos, casos e provérbios perturbavam a fronteira imperativa do visual e me aproximavam de expressões artísticas, que independentemente da linguagem eram animadas por essa energia vital. Seis gerações onde o ver não era a base do respeito e da crença no que estava sendo ensinado. Gerações que acreditaram cegamente no que sentiam e que, apesar das poucas provas materiais, sabiam que “aquilo que na voz e no corpo se repete é uma episteme”.44 Em casa, era a ancestralidade que espiralava, colapsava o olhar, fazia a sua guarda, dava os seus pulos. Difícil esquecer de Luiz de Abreu, que mesmo sem enxergar transferiu um samba, O samba do crioulo doido (2004) — o mais clássico dos clássicos fenômenos da música e da dança brasileira, tornando-se um doutor na arte contemporânea da transmissão. Já os ângulos da perspectiva nos quais o olhar da Mona Lisa não penetra me levam ao movimento espacial que aprendi, há alguns anos, com Torkwase Dyson, a partir de seu pensamento composicional negro e seu questionamento sobre a experiência ocular das pessoas negras tanto nos espaços emancipatórios quanto nos espaços de clausura, produzindo através da abstração, de seus desenhos e esculturas, formas inimagináveis e desconhecidas, de ver. Encontrar essas formas e suas belezas e recusar o impossível como destino ontológico jamais foi, desde o início deste texto, uma expressão ingênua, ilusória e dissimulada sobre como a história de degradação e violação sustenta a produção da especulação do valor no campo da arte. Acredito que todos aqui são conscientes do que signi-

fica “fazer do viver uma arte”,45 uma manobra que Hartman chamou de “beleza terrível”. A pergunta que permanece é: seria possível não reencenar o espetáculo da sujeição?46 Pensar os regimes de hipervisibilidade imanentes à ideia de uma exposição, os limites entre espetáculo e terror, violência e prazer, olhar e ser olhado, é, sem dúvida, um dos principais desafios das coreografias do impossível. Quais estratégias curatoriais disponíveis se podem mobilizar para manter a integridade dessa beleza terrível? Eu me apego à intuição de que essa é uma questão de medida, dosagem, energia e sensações, em vez de pensar na tragédia do fetiche e do elogio. Penso também que talvez seja menos uma questão de tentar evitar a incontornável reprodutibilidade da cena primária da violência originária que anima as performances do impossível, e confiar nas condições que perturbam a linguagem abrindo espaço para inimagináveis formas de expressão. A arte não paga o impossível assim como “o blues não vale o preço da dor pago para produzi-lo, mas é parte da condição da possibilidade do fim da extorsão”.47 Encontrar a medida entre a beleza e sua dimensão terrível: essa é a coreografia que persegue a personagem da escritora de uma história que fala.

45/ Saidiya Hartman, 2022, op. cit., p. 12. 43/ Fred Moten, op. cit., p. 337.

46/ Id., Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. Nova York: W.W. Norton & Company, Inc., 2022, p. xvi.

44/ Ver nota 14 deste texto.

47/ Fred Moten, op. cit., p. 277.


Croqui em corte. Sugestão de percurso de visitação, inversão do segundo com terceiro andar. Imagem: Vão Arquitetura



movimento e o ordenamento da liberdade — breve introdução hagar kotef

“As pessoas sempre se moveram — fosse por desejo ou por meio da violência. Especialistas também escreveram sobre esses movimentos por muito tempo e sob uma diversidade de perspectivas. O que é interessante é que agora viradas teóricas particulares se organizaram como novas conjunturas, que dão a esses fenômenos mais visibilidade analítica do que nunca. Nós, portanto, [...] temos questões antigas, mas também algo bastante novo." — liisa malkki “De todas as liberdades específicas que podem vir à nossa mente ao ouvirmos a palavra ”liberdade”,1 disse Hannah Arendt, a liberdade de movimento é historicamente a mais antiga e também a mais elementar. Ser capaz de partir para onde se queira é o gesto prototípico do ser livre, na medida em que a limitação à liberdade de movimento tem sido desde tempos imemoriais a precondição para a escravidão.2 Assim, Arendt afirma que a liberdade de movimento é a “substância e [o] sentido de todas as coisas políticas”. Vivemos em sistemas políticos que têm um crescente interesse no movimento físico, ou talvez somente um crescente controle efetivo sobre ele. Esses sistemas são, em grande medida, organizados em torno tanto do desejo quanto da capacidade de determinar quem pode entrar em quais tipos de espaço: quem pode entrar em um Estado nacional, uma comunidade com portões, uma rua específica, um playground? Quem tem autorização para residir em tais espaços e por quanto tempo? A trabalhadora “convidada”, por exemplo, pode ficar, mas somente 1/ Hannah Arendt, Men in Dark Times. Londres: Cape, 1970, p. 9. [Edição brasileira: Hannah Arendt, Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.] 2/ Ibid.

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sob a condição de que parta quando não for mais necessária; a imigrante “sem documentos”, contudo, que está efetivamente na mesma posição social, é sempre já “ilegal” pelo simples fato de estar ali. Esses sistemas políticos também operam determinando quem (ou o quê) deve ser contido e reprimido: jovens homens afro-americanos nas prisões, pessoas em busca de asilo político em campos de detenção, manifestantes em enclaves altamente policiados. Eles determinam quanto de imposto deve ser pago para cada bem (ou capital) em circulação; e qual tipo de bem (ou capital, ou pessoas) deve ter sua exportação impedida ou promovida. Eles controlam quais segmentos de fronteira, espaços públicos e propriedades privadas devem ser entrincheirados e quais podem ser rompidos. Como Michel Foucault demonstra em sua obra, esses sistemas são a substância por meio da qual o sujeito moderno emerge. De seu estabelecimento inicial como sistemas de confinamento até modos mais complexos de distribuir corpos no espaço − que Foucault identifica como a essência do poder disciplinar − e uma atenção posterior à circulação, que eventualmente se torna, de acordo com ele, “a única aposta política e o único espaço real de luta e contestação política”,3 esses sistemas funcionaram como meio de transmissão para a formação da subjetividade moderna. Em outras palavras, tanto os sujeitos quanto os poderes ganham forma por meio do movimento e de sua regulação. Diferentes tecnologias de regulação, limitando, produzindo ou incitando o movimento são, portanto, conforme William Walters, diferentes “tecnologias de cidadania”,4 assim como de colonização, domesticação com base em gênero, exploração e exclusão.

3/ Michel Foucault, Security, Territory, Population: Lectures at the Collège de France, 1977-78. [Edição brasileira: Michel Foucault, Segurança, território, população: curso no Collège de France (1977-1978), trad Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.] 4/ William Walters, “Deportation, Expulsion, and the International Police of Aliens”. Citizenship Studies, v. 6, n. 3, pp. 265-92, 2002, p. 267.


Se eu tenho um ponto nesse livro5, ele pode ser resumido — de modo um tanto redutor — no seguinte: em uma longa tradição, que a teoria política em geral define como “liberal”, e no interior da qual nós, em grande medida, ainda vivemos hoje, movimento e liberdade estão com frequência identificados entre si. Ou seja, o movimento é a substância material de uma longeva concepção de liberdade. No entanto, para que ele se tornasse tão profundamente entrelaçado com a liberdade, uma matriz inteira de mecanismos, tecnologias e práticas teve que ser posta em funcionamento, de modo que esse movimento fosse suficientemente moderado (poderíamos dizer: amansado, domesticado). O movimento tornou-se a ordem da liberdade. Um pouco mais elaborados, proponho quatro argumentos principais. Primeiro, sustento que as posições de sujeito (ou as categorias identitárias) e as ordens políticas nas quais elas ganham sentido não podem ser divorciadas do movimento. Não podemos entender, por exemplo, a formação de categorias de gênero sem compreender a história das esferas separadas e a do confinamento de mulheres de certas raças e classes à casa. Não podemos entender a pobreza sem pensar a história da vadiagem, do trabalho migrante ou sobre a falta de moradia (como situação concreta ou fantasma). Não podemos dar conta das relações raciais nos Estados Unidos sem considerar, por um lado, o encarceramento em massa e, por outro, a história do comércio de escravizados e a Passagem do Meio. Não conseguimos explicar a atual situação jurídica dos beduínos em Israel — os repetidos atos de demolição de casas, de expropriação, de negação sistemática de direitos de propriedade — sem entender o mito do nomadismo. A história do movimento, assim como suas imagens; as práticas para controlá-lo, assim como o medo que se tem dele; a tradição de valorizá-lo como um direito, assim como as muitas exclusões embutidas nela — todas são cruciais para compreender hierarquias políticas e sociais, práticas de governo e identidades. 5/ Este texto é uma breve introdução editada pela autora e traduzida para o português a partir do seu livro Movement and the Ordering of Freedom: On Liberal Governances of Mobility. Durham: Duke University Press, 2015.

Em seguida, examino esse argumento em relação a uma posição de sujeito historicamente privilegiada: a do sujeito liberal. Suas qualidades particulares mudaram ao longo da história (incluindo e excluindo diferentes grupos) e há bem pouca concordância na literatura sobre onde ele — e, mais amplamente, o discurso do liberalismo — começa e termina. Não tenho interesse por marcar essas mudanças e divergências. Para nosso propósito, é suficiente dizer que podemos, apesar de tudo, caracterizar tal sujeito por meio das tentativas de marcá-lo como “universal”, em geral como entidade abstrata. Em outras palavras, trata-se de um sujeito que é uma mera âncora para direitos e liberdades, cuja essência é a racionalidade ou a “mente”. Por meio de uma leitura da liberdade liberal como girando em torno do livre movimento, argumento — contrariamente a esse entendimento da subjetividade liberal — que, ao menos até o fim do século 18, essa subjetividade era largamente configurada como corpórea. Meu ponto não é meramente repetir a bem estabelecida crítica de que essa figura era na verdade racializada, com marcadores de classe ou de gênero, mas que, nos séculos 17 e 18, mesmo no interior da lógica do liberalismo, o sujeito no coração da teoria liberal tinha uma dimensão corporal: a capacidade de locomoção. Além disso, mesmo depois de esse sujeito liberal passar por um processo de abstração, aproximadamente na virada para o século 19, ele não obstante aparece como uma entidade corporificada em todos os momentos nos quais pode ser imaginado como um corpo que se move. De fato, mesmo que depois do século 18 o movimento não seja mais explicitamente proclamado como um dos direitos mais importantes dos sujeitos liberais, a liberdade de movimento permanece no coração da conceituação liberal de liberdade. Perguntar sobre os significados políticos do movimento é, acima de tudo, perguntar como nossos corpos afetam, são afetados por, tornam-se veículos ou destinatários de ordens políticas, ideologias, instituições, relações ou poderes. Fazer essa pergunta em relação aos discursos liberais nos distancia das leituras prevalentes sobre essa tradição política, uma vez que o liberalismo percebe e produz sujeitos como entidades jurídicas essencialmente


racionais. Meu propósito, contudo, vai além de propor um entendimento mais nuançado do sujeito liberal. Elidir o corpo em movimento da subjetividade liberal obscurece modalidades importantes do exercício do poder liberal. Assim, o objetivo dessa análise é trazer essas formas de poder para a superfície. Isso é feito não somente a fim de mostrar suas operações históricas, mas também para ressoar ordens políticas contemporâneas; para assinalar uma razão política que ainda governa as tendências políticas contemporâneas. Para tanto, mostro como esse conceito liberal de liberdade emergiu em conjunto com outras configurações de movimento, nas quais ele era construído como uma ameaça em vez de como uma articulação de liberdade. Neste ponto, chegamos ao terceiro argumento central desse livro. O movimento por meio do qual a subjetividade liberal obteve presença material e mediante o qual a “liberdade” tornou-se um fenômeno físico não foi um movimento ilimitado e irrestrito. Ao contrário, deu-se entre muitas restrições e foi garantido por muitas âncoras, que lhe conferiram alguma estabilidade. Além de questões de volição e intenção, que restringem elas mesmas o movimento, ele foi conceitualizado e materializado no interior de conjuntos de condições materiais, raciais, geográficas e de gênero de modo a permitir somente a alguns sujeitos parecerem livres enquanto se moviam (e oprimidos, quando impedidos). O movimento (ou o impedimento) de outros sujeitos foi configurado de modo diferente. Sujeitos colonizados que foram definidos como nômades, pobres que eram considerados vagabundos ou jogados na vadiagem na medida em que perdiam acesso a terras, mulheres cuja natureza histérica presumida era ligada à sua inabilidade para controlar fluidos corporais — todos foram constituídos (ou melhor, desconstituídos) como sujeitos indisciplinados cujo movimento era um problema a ser administrado. Essa configuração era a base para justificar momentos — e espaços — não liberais no interior de regimes liberais. Esse argumento tem duas trajetórias opostas, cujas relações causais não são completamente claras. Por um lado, nós observamos uma inabilidade para conceber alguns

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movimentos como uma manifestação da liberdade, e, por outro, um esforço ativo para negar e impedir essa liberdade. Há certa coprodução entre essas duas direções, mas sua natureza muda ao longo de diferentes campos discursivos, ideologias e tempos. Ao fornecer uma leitura dos muitos meios por meio dos quais o movimento é produzido como liberdade ou ameaça, como uma iconografia da autorregulação ou uma prova de indisciplinabilidade, essa terceira camada também oferece uma crítica dos modos de governança que se cristalizaram ao redor dessas duas principais configurações do movimento: vigilância, cercamento, expulsão, aprisionamento, cerco. A quarta camada desse livro é uma tentativa de mostrar como essa separação na configuração do movimento, bem como nos modos de governança que são formados simultâneos a tal separação, são mapeados nos espaços contemporâneos. Nesse mapeamento, meu foco é o regime atualmente vigente nos territórios palestinos ocupados (TPO). O ponto de interesse nesse regime (e tecnologia política central) é a maximização do controle sobre o movimento de pessoas e bens; em outras palavras, é um regime de movimento. Como um dos mais perfeitos e elaborados sistemas de controle de uma população, por meio do controle de seu movimento, tal regime oferece um laboratório condensado para examinar as tecnologias de regulação do movimento e os sujeitos que emergem delas. Ainda que anormal em sua radicalidade, esse contexto particular não é de modo nenhum privilegiado, mas, sim, mais uma manifestação de uma tendência global — tendência que está longe de ser nova, mas que tem se intensificado de modo crítico em anos recentes.6 Pensar sobre e com base nesse contexto particular é um modo de delimitar algumas das apostas contemporâneas de minha análise teórica. Conforme o argumento se desenvolve, esse contexto não supõe circunscrever essas apostas nem 6/ Nicholas De Genova e Nathalie Mae Peutz, The Deportation Regime: Sovereignty, Space, and the Freedom of Movement. Durham: Duke University Press, 2010; Liisa Malkki, “National Geographic: The Rooting of Peoples and the Territorialization of National Identity among Scholars and Refugees”. Cultural Anthropology, v. 7, n. 1, 1992.


sugerir que podemos ver uma única estrutura política, estendendo-se da Inglaterra no século 17 a Israel/Palestina do século 21, ou mesmo certo continuum. Esse contexto visa, antes, a abrir muitos outros pontos de ressonância, que acabam por demonstrar como diferentes configurações de movimento concorrem para justificar diferentes modos de governo das populações no interior de democracias liberais.7

regimes Diferentes formas e tecnologias de ordenamento do movimento foram desde sempre centrais para a formação de diferentes ordens e ideologias políticas. Do ato de amarrar servos até a terra sob o feudalismo e ao Estado territorial moderno e sua demarcação de fronteiras, as ordens políticas são, de muitas maneiras, regimes de movimento. O Estado moderno — para tomar o que seja talvez um dos exemplos mais relevantes —, especialmente depois da invenção do passaporte,8 e de modo crescente com a evolução das tecnologias de fechamento e regulação das fronteiras, é em grande medida um sistema de regulação, ordenamento e disciplinarização de corpos (e outros objetos) em movimento.9 De fato, ao lado desses dispositivos de 7/ É importante sublinhar que é altamente problemático definir Israel como “liberal” ou “democrático”, dado que aproximadamente um terço das pessoas sob seu governo não são cidadãos e têm negados direitos e liberdades básicos. No entanto, se observarmos as práticas, mais que o mero ideal de democracia, essa é a regra, e não a exceção. Desde o surgimento da democracia, em Antenas, da escravidão institucional nos Estados Unidos ou da ausência do voto feminino na maioria das democracias liberais até a metade do século 20, regimes democráticos incluem (e se poderia dizer: são baseados em) uma exclusão de grandes grupos de pessoas de seus princípios igualitários. Em menor grau, esse é o caso da maior parte — senão todas — democracias ainda hoje. É possível dizer, portanto, que Israel compartilha a lógica das democracias liberais que foram — muitas ainda são — coloniais e imperiais em sua natureza. 8/ John C. Torpey, The Invention of the Passport: Surveillance, Citizenship, and the State. Cambridge; Nova York: Cambridge University Press, 2000. 9/ James C. Scott, Seeing Like a State: How Certain Schemes to Improve the Human Condition Have Failed. Yale Agrarian Studies. New Haven: Yale University Press, 1998; Tim Cresswell, On the Move: Mobility in the Modern Western World. Nova York: Routledge, 2006.

fechamento e de controle do movimento, uma elaborada ideologia e teoria do Estado foi desenvolvida, que liga esses modos de confinamento à liberdade. Cercamentos, obstáculos (ou outros modos de desacelerar as coisas) e barreiras de vários tipos foram consideradas precondicionando a liberdade, em vez de se opondo à circulação, ao fluxo e, sobretudo, à liberdade. A maior parte dos grandes pensadores do Estado não conseguiu conceitualizar a liberdade sem a possibilidade desse gerenciamento, sem alguma forma de cercamento que tornaria o movimento um princípio da ordem, mais que do caos. Essa compreensão do Estado moderno talvez seja mais explícita na obra de John Torpey. Se Max Weber vê a formação do Estado moderno como uma função da monopolização da violência legítima, Torpey segue essa formulação para propor que esse Estado se consolidou também ao monopolizar os “meios legítimos do movimento”. Enquanto Torpey apresenta sua análise como paralela à de Weber, proponho que esses dois processos ou ideologias estão inextricavelmente ligados e busco explorar como ambos operam em conjunto. Algum desses processos de monopolização condicionou o outro? Será um deles meio para o outro? Ou serve para justificá-lo? Pode algum deles ser pensado nos termos do outro (violência como movimento; movimento como violência)? A violência terá sido somente mais um movimento a ser monopolizado? A violência de Estado, além disso, tem seus próprios movimentos: invasão, infiltração, conquista. John Stuart Mill oferece uma manifestação lúcida de como eles se baseiam em mitos ou imaginários de outros movimentos. Para Mill, a Europa é um lugar de movimento. Ela tem uma “admirável diversidade”, que constantemente o facilita: “os povos da Europa”, ele escreve, abriram uma grande variedade de caminhos, cada um deles levando a algo valorável; e ainda que, em todas as épocas, aqueles que viajaram por caminhos diferentes tenham sido intolerantes uns com os outros, e que cada um tenha pensando que seria excelente se todos os outros tivessem sido compelidos a viajar pela sua


estrada, suas tentativas de impedir o desenvolvimento alheio raramente tiveram qualquer sucesso duradouro.10 A Europa da perspectiva de Mill é um espaço no qual as pessoas estão em perpétuos movimentos não homogêneos (para lugares variados, usando uma miríade de “estradas” e “caminhos”), que facilitam (talvez produzam) um movimento homogêneo da sociedade como um todo: o progresso. Esse progresso é precisamente o que justifica a expansão europeia para a “maior parte do mundo” que “tornara-se estacionária”.11 “As obsessões tutorial e paradigmática do império e especialmente dos imperialistas são todas parte do esforço de mover as sociedades ao longo do gradiente ascendente do progresso histórico”, diz Uday Mehta. Assim, “a justificação liberal do império” repousa sobre o argumento que, uma vez que a maior parte do mundo perdeu sua capacidade própria de movimento, sem as forças móveis (quase motoristas) da Europa, ela não seria capaz de se mover (leia-se: melhorar). O progresso, em sua articulação global, “é como ter um carro parado rebocado por outro que é mais forte e portanto consegue carregar o fardo de um gradiente ascendente”.12 A combinação do movimento europeu e da estagnação asiática situa-se na base da justificativa de Mill para o projeto imperial. No entanto, essa estagnação ameaça a própria Europa: “a menos que a individualidade consiga afirmar-se contra esse jugo, a Europa, não obstante seus antecedentes nobres e sua professa cristandade, tende a tornar-se outra China”. A Europa pode, em outras palavras, “tornar-se estacionária”.13 Para evitar tal destino, ela 10/ John Stuart Mill, On Liberty. Cambridge Texts in the History of Political Thought. Cambridge; Nova York: Cambridge University Press, 1989, p. 72 (grifos meus). [Edição brasileira: John Stuart Mill, Sobre a liberdade, trad. Alberto da Rocha Barros. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2019.] 11/ Ibid., pp. 70, 72. 12/ Uday Singh Mehta, Liberalism and Empire: A Study in Nineteenth-Century British Liberal Thought. Chicago: University of Chicago Press, 1999, pp. 81-2, 94. 13/ John Stuart Mill, op. cit., p. 72.

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deve resistir em seu movimento — uma resistência que Mill parece simplesmente presumir. (E é bastante impressionante que essa presunção ocorra simultaneamente a seu alerta aterrorizado de que tal resistência está prestes a ceder.) Talvez fosse possível especular que a movida em direção ao Oriente foi um modo de garantir a liberdade-como-movimento da Europa. No início do século 17, a representação da América como lugar de movimento excessivo serviu para justificar projetos semelhantes de expansão. Os movimentos de exércitos, empresas de comércio, forças militares privadas, colonos, capital e bens constituíam zonas caracterizadas por seus regimes de movimento: as colônias. A colônia — que Ann Stoler define como um espaço não estável de administração, re-domesticação, confinamento, contenção, disciplinarização e reformulação do movimento — veio abordar, mas também demonstrar, e portanto construir, os movimentos supostamente perigosos e selvagens do colonizado. Como Stoler sustenta, esse regime de movimento foi estabelecido em oposição às “convenções normativas de ‘livre’ colônia e [a] uma população normal”.14 Assim, essas oposições embutidas no movimento ocorreram em um regime de movimento mais amplo que se estende ao menos da colonização à globalização. Essa também deveria ser considerada um “governo da mobilidade”,15 mais que mera abertura de fronteiras.16 O que Didier Bigo observou 14/ Ann Stoler, “Colony”. Political Concepts: A Critical Lexicon, n. 1. Disponível em: www.politicalconcepts.org/colony-stoler/. Acesso em: 26 jul. 2023. 15/ Serhat Karakayali e Enrica Rigo, The Deportation Regime, eds. Nicholas De Genova and Nathalie Peutz. Durham, NC: Duke University Press, 2010, p. 127, in Nicholas De Genova e Nathalie Peutz (ed.), op. cit., p. 127; ver também Saskia Sassen, Territory, Authority, Rights: From Medieval to Global Assemblages. Princeton: Princeton University Press, 2006. 16/ Como William Walters define: testemunhamos uma conjunção entre lógicas e esquemas de governança que produz “uma política própria da mobilidade, cujo sonho não é deter a mobilidade, mas domá-la; não construir muros, mas sistemas capazes de utilizar mobilidades, domando suas energias e, em certos casos, utilizando-as contra os elementos sedentários e ossificados na sociedade; não uma imobilização generalizada, mas uma aplicação estratégica da imobilidade para casos específicos acoplada à produção de (certos tipos de) mobilidade”. In William Walters, “Secure Borders, Safe Haven, Domopolitics”. Citizenship Studies, v. 8, n. 3, 2004, p. 248.


em relação à globalização — que a “liberdade diferencial de movimento (de diferentes categorias de pessoas) cria novas lógicas de controle que, por razões práticas e institucionais, estão situadas em outros lugares, em espaços transnacionais” — tem caracterizado os movimentos globais do mundo desde, ao menos, o século 17.17 “Lacunas de mobilidade” é a definição precisa de Ronen Shamir para o que resulta dessa lógica.18

sujeitos A oposição mencionada anteriormente entre colonização e movimento não domesticado operou em dois níveis. O primeiro foi o corpo individual. Nele, essa oposição emerge mais como equilíbrio: entre movimento e estabilidade, que é também equilíbrio entre liberdade e segurança. Em jogo, para o liberalismo, estava sempre a reconciliação desse conceito de liberdade com ordem social. A ideia de uma individualidade autônoma, que não pode ser controlada despoticamente (que não mais precisava ser controlada despoticamente) baseava-se na presunção de que essa individualidade se controlasse e se autorregulasse. A obra de Foucault é um ponto privilegiado, digno de nota para estudar as articulações dessa ideia, mas, já em Thomas Hobbes, antes das tecnologias de poder exploradas por Foucault serem postas em vigor ou mesmo sistematicamente teorizadas, encontramos essa questão. A liberdade do sujeito, em Hobbes, é também uma função de sua vontade de controlar e confinar seus movimentos: uma vez que ele concorde em “não fugir”19 e submeta suas ações à vontade do soberano, as correntes que o aprisionam 17/ Didier Bigo, “Detention of Foreigners, States of Exception, and the Social Practices of Control of the Banopticon”, in Carl Grundy-Warr e Prem Kumar Rajara (ed.), Borderscapes: Hidden Geographies and Politics at Territory’s Edge. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007, pp. 9-10. 18/ Ronen Shamir, “Without Borders? Notes on Globalization as a Mobility Regime”. Sociological Theory, v. 23, n. 2, pp. 197-217, 2005. 19/ Thomas Hobbes, Leviathan. Cidade: Editora, data, p. 141. [Edição brasileira: Thomas Hobbes, Leviatã: ou matéria, forma e poder de uma república eclesiástica e civil, org. Richard Tuck, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza Da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003.]

podem ser removidas, e é precisamente esse o sentido de sua liberdade. Dado que Hobbes define a liberdade como movimento desimpedido, a liberdade surge como produto mesmo de sua limitação, desde que essa seja uma limitação interna. John Locke pode ser lido como apresentando um modelo distinto, que, não obstante, obedece a um princípio bastante similar: a liberdade — como movimento — é possível apenas em um sistema de cercamentos. Em última análise, essa combinação de estabilidade e movimento possibilitou ao liberalismo forjar a ideia de uma liberdade ordenada. O sujeito liberal foi esculpido no interior de “certa ‘epistemologia da caminhada:’” foi um sujeito “caminhando sobre seus dois pés” de modo estável e firme;20 um sujeito cuja estabilidade veio a definir seu corpo, assim como seu pano de fundo social e material: uma casa, uma terra natal, um domínio próprio. No segundo nível do equilíbrio imaginado entre colonização e movimento, constatamos que essas noções se sobrepõem, uma e outra vez, a divisões espaciais. “Casa”, localização, enraizamento e outros fatores que tornam o movimento desejável e “livre” são, de vários modos, reservados para sujeitos muito específicos. A despeito de variados modelos de localização, africanos, indígenas da América ou asiáticos, assim como mulheres e indigentes, continuam sendo descritos em textos de pensadores liberais seja como demasiado estagnados, seja como demasiado móveis. Assim, o equilíbrio presumivelmente alcançado no interior do corpo do sujeito liberal torna-se um cisma, um contraste entre aqueles que conseguem controlar seus movimentos e, portanto, podem governar, e aqueles cujo movimento é impedido ou excessivo, e portanto não podem governar. Esse mapeamento bissecciona a liberdade de movimento dos corpos brancos, masculinos e com propriedades das ameaças supostas carregadas pelos colonizados (“selvagens”), pobres (“vagabundos”) ou mulheres (consideradas confinadas à esfera doméstica ou histéricas — ou ambos). Tim Cresswell mostra que essa divisão binária se 20/ Andrew Hewitt, Social Choreography: Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement. Post-Contemporary Interventions. Durham: Duke University Press, 2005, p. 801.


encontra no cerne da cidadania liberal. Enquanto a mobilidade dos cidadãos é quase santificada como um direito, e usada para construir “agentes individuais autônomos que, por meio de sua mobilidade, [contribuem] para produzir a própria nação”, há sempre “outros não mencionados [que] se movem diversamente”; outros cuja mobilidade é “constantemente impedida”: “árabes-americanos parados na imigração do aeroporto, hispano-americanos nos campos do agronegócio norte-americano ou motoristas afro-americanos parados desproporcionalmente por agentes de trânsito”,21 e neste ponto podemos acrescentar os palestinos nos postos de controle — um caso que se situa no coração desse livro. Assim, como regra geral, o sujeito com mais mobilidade é o “cidadão” (ocidental): uma posição-de-sujeito geralmente ligada à estabilidade e ao sedentarismo.22 Em jogo estão processos complementares por meio dos quais uma “metafísica sedentária do enraizamento” e uma “metafísica do movimento” se encontram em uma só ordem: primeiro, a cidadania repousa sobre um processo de “domesticação da mobilidade”,23 que serve para dar apoio à ideologia sedentária do Estado-nação no contexto de uma factualidade na qual os povos são, e foram, sempre móveis.24 Segundo, uma vez que essa imagem de estabilidade tenha sido estabelecida para categorias específicas de povos então-”enraizados”, ela serve para facilitar sua mobilidade crescente. Finalmente, essas categorias específicas são formadas frente a outros grupos, que são ao mesmo tempo presumivelmente-menos-enraizados e, no entanto, constantemente barrados. O imigrante, o nômade e certas formas do que chegamos a definir como subjetividades híbridas representam, todos eles, posições de sujeito que são configuradas por sua mobilidade, mas que, com frequência, habitam espaços de confinamento: campos de

detenção e de deportação, encarnações modernas de hospícios, zonas “internacionais” nos aeroportos.25 O fluxo que é frequentemente celebrado como subversivo repetidamente serviu para restringir o movimento-como-liberdade, para facilitar movimentos não livres (expulsão, tráfico de escravizados, negação da propriedade da terra).

21/ Tim Cresswell, On the Move: Mobility in the Modern Western World. Nova York: Routledge, 2006, p. 161.

26/ Ver Barbara Arneil, “Disability, Self-Image, and Modern Political Theory”. Political Theory, v. 37, n. 2, 2009.

22/ Id., ibid.; Liisa Malkki, “National Geographic: The Rooting of Peoples and the Territorialization of National Identity among Scholars and Refugees”. Cultural Anthropology, v. 7, n. 1, pp. 24-44, 1992. 23/ Serhat Karakayali e Enrica Rigo, op. cit. 24/ Saskia Sassen, Guests and Aliens. Nova York: New Press, 1999.

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corpos Os estudos sobre indivíduos que têm necessidades especiais há tempo chamam a atenção para a relação entre capacidade física e cidadania; entre presunções específicas sobre os modos “normais” de portar nossos corpos no espaço e a construção de espaços democráticos, que são, em última análise, espaços de acessibilidade — de movimentos possíveis e impossíveis. Desse modo, o processo de formação subjetiva é, em grande medida, um projeto de “normalização” de movimentos. De fato, uma leitura da teoria política revela quase uma obsessão com essa necessidade de educar o corpo em modos “próprios” de movimento.26 Tal obsessão é tão forte que, de acordo com Andrew Hewitt, no século 19, caminhar havia se tornado aquilo que encarnava a “autoconsciência burguesa”.27 “Como os sujeitos se movem ou não, isso nos diz muito sobre o que conta como humano, como cultura e como conhecimento”, defende Caren Kaplan.28 De fato. Mas isso traz só parte da história. Como o movimento de sujeitos é descrito ou imaginado nos traz quase tanto quanto. Movimento é uma tecnologia de cidadania ou 25/ Zonas que são definidas como extraterritoriais e nas quais aqueles que buscam asilo ou imigrantes na Europa podem se encontrar detidos. Cf. Council of Europe, Report by the Committee on Migration, Refugees and Demography (2000) Arrival of Asylum Seekers at European Airports, Doc. 8761, 8 June)

27/ Andrew Hewitt, Social Choreography: Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement. Durham: Duke University Press Books, 2005, p. 81. 28/ Caren Kaplan, “Transporting the Subject: Technologies of Mobility and Location in an Era of Globalization.” PMLA, v. 117, n. 1, 2002, p. 32.


subjetividade, como dito anteriormente. Por meio da produção de padrões de movimento (apatridia, deportabilidade, cercamento, confinamento), diferentes categorias de subjetividade são produzidas. Regimes de movimento nunca são, portanto, simplesmente modos de controlar, regular ou incitar o movimento, mas são essenciais para a formação de diferentes modos de ser. Além disso, o movimento é também uma perspectiva sobre a qual pensar sobre a subjetividade. Nas palavras de Erin Manning: “Um compromisso com os modos pelos quais se movem os corpos”29 é um compromisso com pensar os sujeitos de modos próprios. Manning, como muitos antes dela, propõe que esse compromisso seja um modo de pensar contra a estabilização do corpo no interior de “imaginários nacionais”.30 Como já sugeri brevemente, penso que essa afirmação seja um tanto apressada. A tendência a celebrar os efeitos de desterritorialização do movimento em geral “negligencia as relações de poder coloniais que produzem tais imagens, em primeiro lugar”.31 Manning, no entanto, faz outra afirmação em relação a esse compromisso que vale a pena explorar: pensar os corpos por meio do movimento, ela diz, é pensar o sujeito contra o nexo da identidade, uma vez que “um corpo em movimento [...] não pode ser identificado”.32 A questão do movimento é portanto também a questão dos contornos e dos limites de sujeitos/corpos. Se o movimento é um modo de pensar sobre certa abertura desses contornos; se é um movimento que, eventualmente, chega a conter uma pluralidade de povos nos quais, como Arendt afirma, “cada homem mova-se em meio a seus pares”;33 se é um movimento por meio do qual a pluralidade se torna um corpo (um movimento social, um império, um Estado como movimento coletivamente orquestrado), então um compromisso com pensar a partir e 29/ Erin Manning, Politics of Touch: Sense, Movement, Sovereignty. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2007, p. xv. 30/ Id., ibid., p. xv. 31/ Tim Cresswell, op. cit., p. 54. 32/ Erin Manning, ibid., p. xviii. 33/ Hannah Arendt, The Promise of Politics. Nova York: Schocken Books, 2005, p. 117. (Grifos meus).

por meio do movimento é mais que um compromisso com pensar a flexibilidade, se não a impossibilidade, da identidade. É também (e os dois estão intimamente conectados) um compromisso com pensar a possibilidade de corpos não individuais e com estar sintonizado aos momentos nos quais a impossibilidade de corpos individuais é revelada. Às vezes, os movimentos nos machucam. Alguns abrem feridas em nosso corpo. Outros movimentos abrem feridas em nossa vontade. O Ishmael de Herman Melville, narrador de Moby Dick, provavelmente o diz melhor. Do deque do navio, preso a Queequeg por uma corda, ele observa os movimentos dos companheiros de tripulação tornando-se os seus próprios movimentos: “minha própria individualidade estava então fundida em uma empresa de dois… Meu livre arbítrio recebera uma ferida mortal”,34 como ele diz. Nesse momento, ele compreende que somos ligados a “uma pluralidade de outros mortais” em uma espécie de “conexão siamesa” que transforma os movimentos de alguns também nos movimentos de outros; que corta os laços entre a vontade individual e a ação35 mas também: abre a própria volição. Por vezes, os movimentos nos fortalecem; aumentam nossos movimentos com a movimentação coesa de outros corpos, que são maiores que nós. Um movimento coletivo de pessoas — uma marcha, uma guerra ou uma ocupação, como as recém-observadas na praça Tahrir (no Cairo, Egito) ou no Occupy Wall Street — carrega nosso movimento individual com um sentido e poder que ele não poderia habitar e produzir sozinho. Importante observar que há também um movimento entre esses dois polos: a injúria e a fortalecimento.

34/ Herman Melville, Moby Dick. Oxford; Nova York: Oxford University Press, 1988, p. 287. 35/ Id., ibid. Ou, nas palavras de Hannah Arendt, “nenhuma vida humana, nem mesmo a do eremita na natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe o processo de outros seres humanos”. In Hannah Arendt, The Human Condition. 2a. edição. Chicago: University of Chicago Press, 1998, p. 22


tecnologias Tomemos um caso específico por meio do qual a lógica que desenhei pode ser examinada: o “regime de movimento” que Israel aplica nos TPO; um extenso sistema burocrático de autorizações, sustentado por uma densa rede de obstáculos físicos e administrativos, que fragmentam tanto o espaço quanto o tecido social, regulando de modo penetrante a circulação de pessoas e de bens, e que administra a população palestina por meio dessa regulação. Uma vez que muitos desses obstáculos estão situados também no interior de territórios palestinos (e não só em “fronteiras” imaginárias e inexistentes entre os TPO e “Israel”), esse sistema impede — ou, ao menos, restringe severamente — o que muitos consideram a banalidade do dia a dia das pessoas: ir ao trabalho, ao casamento de um parente, fazer compras no mercado ou ir à escola. Todas essas são atividades simples para grande parte das pessoas, mas são negadas para a maioria dos palestinos ou são “adquiridas” a custo de um tempo precioso; tempo que é roubado, como descreve Amira Hass, e que “nunca poderá ser devolvido”.36 Em outras palavras, “a escassez de tempo inabilita o espaço”.37 E estreita a terra e inabilita a possibilidade de formação de uma comunidade política. O que então emerge é um modo de controlar o espaço e a população que o habita por meio do controle da temporalidade e da continuidade do movimento nele. Jeff Halper definiu esse sistema como “a matriz do controle”: Trata-se de uma série de mecanismos interligados, dos quais só alguns requerem a ocupação física do território, que permite a Israel controlar cada aspecto da vida dos palestinos nos Territórios Ocupados. A matriz funciona como o 36/ Amira Hass, “The Natives’ Time Is Cheap”. Ha’aretz, 23 fev. 2005. 37/ Ariel Handel, “Where, Where to and When in the Occupied Palestinian Territories: An Introduction to a Geography of Disaster”, in Adi Ophir et al. (org.), The Power of Inclusive Exclusion. Nova York: Zone Books, 2009.

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jogo japonês Go. Em vez de derrotar seu oponente, como no xadrez, no Go você ganha o jogo imobilizando o oponente, conquistando o controle de pontos-chave da matriz, de modo que sempre que ele/ela se move, encontra algum tipo de obstáculo. Tendo escrito no ano 2000, Jeff Halper poderia ter visto somente as sementes de uma densa rede de postos de controle que se tornaria o componente predominante dessa matriz. É possível ver esses postos como válvulas, nas quais, primeiro, os corpos individuais em movimento são inspecionados e autorizados (ou não) a passar, e, segundo, a circulação de toda uma população, bem como dos bens que ela consome e produz, é administrada. Além disso, gostaria de propor que a operação regular dos postos de controle tem como implicação práticas disciplinares próprias e peculiares: em uma de suas facetas, eles são parte de tecnologias corretivas destinadas a falhar. Essas práticas semidisciplinares constituem os palestinos que passam pelos postos de controle como produtos considerados sempre fracassados de um sistema que opera conforme uma lógica disciplinar, que tem uma forma disciplinar, e que, no entanto, foi construído para falhar, precisamente porque o que está em jogo não é a construção de sujeitos normalizados e autogovernáveis. O que está em jogo, ao contrário, é a possibilidade de conectar modos não democráticos de governo (ocupação) a uma estrutura que insiste em sua democratibilidade. Uma genealogia da circulação e das tecnologias políticas que a regulam pode se tornar, consequentemente, uma genealogia dos regimes e dos poderes que a circunscrevem. Muitos estudiosos dos espaços militarizados trabalharam para mostrar como a violência de Estado opera no nível das populações, mais do que no de corpos individuais. A descrição do campo feita por William Walters é um bom exemplo. De acordo com ele, o campo não é mais um espaço disciplinar, uma vez que os Estados não estão mais interessados por produzir um “tipo positivo de sub-


jetividade”38 em relação às populações que os habitam: os deportáveis.39 Argumentos similares podem ser encontrados em muitas outras análises contemporâneas de diferentes regimes de movimento. Busco compreender como uma população, controlada pelo movimento, é produzida por tecnologias de subjetivação. Em outras palavras, pergunto sobre os dispositivos locais e concretos por meio dos quais sujeitos se tornam corpos em movimento, que podem ser governados primariamente pela administração de sua localização e de sua circulação. O foco em postos de controle, cercamentos, cercos, muros, deportações e outras medidas de regulação do movimento nos territórios palestinos ocupados pode ser tomado como apenas um aspecto de minha afirmação sobre a conjunção entre movimento e liberdade. Se o movimento é, de fato, a manifestação da liberdade e, além do mais, encontra-se interligado a noções de subjetividade liberal e portanto de cidadania, como esse livro busca sustentar, então é quase trivial que um estado de ocupação — que é, por definição, uma eliminação da cidadania e a negação da maior parte dos direitos políticos — incorpore algum controle do movimento em suas tecnologias políticas. No entanto, esse caso permite enxergar muito além. Enquanto de facto as limitações ao movimento na Cisjordânia são limitações à(s) liberdade(s) dos palestinos, o livre movimento é dado nesse contexto, primariamente, em um paradigma de segurança (como ocorre em pressupostos contemporâneos relacionados à imigração e às viagens internacionais em geral). Nas palavras da organização israelense de direitos humanos B’tselem, “a liberdade de movimento palestina passou de um direito humano fundamental para um privilégio que Israel concede ou suspende conforme julga adequado”.40 Este livro, portanto, pode ser 38/ William Walters, “Deportation, Expulsion, and the International Police of Aliens”, op. cit. 39/ Id., ibid., p. 95. 40/ “Ground to a Halt: Denial of Palestinian’s Freedom of Movement in the West Bank”, pp. 7-8. Bt’selem, ago. 2007. Disponível em: www.btselem. org/publications/summaries/200708_ground_to_a_halt. Acesso em: 17 jul. 2023.

visto como uma investigação sobre o constante acoplamento e desacoplamento entre liberdade e segurança (ou ordem) mediado por modalidades cambiantes de movimento: o projeto normalizador por meio do qual surge o sujeito disciplinar; as tecnologias de movimento por meio das quais tais sujeitos são desconstituídos; o mapa marítimo por meio do qual tanto a ordem quanto suas disrupções são globalizados. traduzido do inglês por gabriel bogossian


ahlam shibli

Em um texto sobre a obra de Ahlam Shibli, o crítico e historiador da arte T.J. Demos faz referência ao teórico e filósofo Roland Barthes e afirma: “A morte é o eidos da fotografia, sua forma ideal e mais destacada expressão. De fato, não há fotografia que não mostre ausente aquilo que representa”.1 Nas 68 fotografias da série Death [Morte] (2011-2012), Shibli parece confirmar e, ao mesmo tempo, inver-

Sem título (Death n. 48), Palestina, 2011-2012 Morte n. 48. Impressão cromógena, 38 × 57 cm Centro Histórico, Bairro de al-Kasaba, Nablus, 5 de fevereiro de 2012. Numa loja de legumes, um cartaz onde se veem os mártires ‘Abd al-Rahman Shinnawi, ‘Amar al- ‘Anabousi e Basim Abu Sariyah dos grupos de resistência

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ter essa afirmação. Shibli a confirma na medida em que o tema da série é o regime de imagens e a cultura visual do martírio na Palestina. Mas a obra questiona a afirmação quando, desde que a morte é seu objeto, a ausência cessa de pairar como um espectro sobre a imagem fotográfica. Trazida à luz e detectada, a morte desafia o status da fotografia, ameaçando-a com a perda de suas qualidades de ausência.

Na série Death, a perda de vidas humanas ecoa mediante a perda potencial do eidos fotográfico de Barthes. Cartazes, fotografias, pinturas e banners de mártires palestinos da Segunda Intifada (2000-2005) povoam as imagens de Shibli. A obra é certamente uma forte tomada de partido, um testemunho da violência exercida pelo Estado israelense contra os palestinos e

um ato de rebelião contra a eliminação física e política da Palestina e de seus habitantes. Constitui, principalmente, um testemunho da onipresença da morte na sociedade palestina. De fato, suas imagens de mártires povoam tanto o espaço público quanto o privado. Observando a composição das fotografias que integram a série, poderíamos ser tentados a considerá-la uma única imagem e, retomando Barthes, uma imagem da qual aprendemos a reconhecer o punctum, ou seja, o detalhe que promove uma quebra na relação entre o espectador e a intencionalidade do fotógrafo. Há ao menos duas imagens/detalhes que pontuaram minha visão nessa panorâmica. A primeira delas mostra dois garotos, que parecem serenos, em um cemitério palestino. A segunda captura duas mulheres sorridentes em casa, sob a imagem de um mártir que carrega uma criança. O punctum é uma ruptura, uma pontada, uma ferida; consequentemente, esses dois detalhes na série não oferecem um consolo banal diante da penetração da morte, de sua presença constante na vida em um regime colonial, como esse que sujeita os palestinos. Por outro lado, eles ainda emitem vida como uma ondulação no status quo, um rasgo em um presente necropolítico. marco baravalle traduzido do inglês por gabriel bogossian

_ 1/ T. J. Demos, “Disappearance and precarity: On the photography of Ahlam Shibli,” in Ahlam Shibli: Phantom home. Essays by T.J. Demos and Esmail Nashif. Exhibition Catalog. Barcelona/ Paris/ Porto/ Ostfildem: Museu d’Art Contemporani de Barcelona (macba) / Jeu de Paume / Museu de Arte Contemporânea de Serralves / Hatje Cantz, 2013, p. 16.

armada Faris al-Leil (Cavaleiro da Noite) que pertecem às Brigadas dos Mártires de al-Aqsa. Nas margens do cartaz, um retrato de Naif Abu Sharkh, líder das Brigadas al-Aqsa em Nablus. O cartaz traz um adesivo onde se vê um punho erguido com as cores da Palestina e os dizeres “Queremos que a ocupação fracasse. Boicote o Tapuzina [um refrigerante israelita]. Iniciativa Nacional Palestina”.


aida harika yanomami, edmar tokorino yanomami e roseane yariana yanomami

Em 2023 vimos escancarados os ataques e o genocídio promovidos contra o povo Yanomami. As ameaças do garimpo ilegal e suas consequências socioecológicas não são de hoje e já faz tempo que os Yanomami buscam se proteger através de organizações, mas também reforçando sua cultura e tradição. O cinema indígena yanomami é recente, mas se mostra potente, dinâmico e assertivo.

Yuri u xëatima thë [A pesca com timbó] e Thuë pihi kuuwi [Uma mulher pensando] contam histórias íntimas do povo Yanomami sobre dois de seus rituais. O primeiro aborda o hábito da pesca realizada com cipó macerado e colocado em balaios em determinados trechos do rio em tempo de seca. O segundo nos faz acompanhar o pensamento e o olhar de uma indígena sobre a preparação da yãkoana para uso ritual

Thuë pihi kuuwi, 2023 Uma mulher pensando. Dirigido por: Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana. Still do vídeo. Vídeo, cor, som; 9’.

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dos xamãs. Ambos são dirigidos por Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana Yanomami, membros da organização Hutukara, e foram filmados na comunidade Watorikɨ. Yuri u xëatima thë começa nos inserindo em um cenário coletivo e nos conduz a uma virada de roteiro que passa a acompanhar o conflito envolvendo uma única personagem, borrando a fronteira entre

realidade e ficção. Já em Thuë pihi kuuwi, a narradora nos coloca dentro de sua mente e vemos o que ela vê ao longo de um dia inteiro em que assiste à preparação da yãkoana. O ritual é um dos mais importantes entre os Yanomami: é quando os xamãs entram em contato com os espíritos xapiri, os chamam para dançar e entram em estado de transe e sonho. É o contato dos xamãs com os xapiri

que protege toda a comunidade e, como descreve Davi Kopenawa no livro A queda do céu, os xamãs mais antigos ensinam as novas gerações a responder ao chamado dos espíritos, pois, se não o fizerem, ficarão ignorantes. Os rituais, as tradições, a ligação do povo Yanomami com o sonho e suas cosmologias estruturaram um sistema de crenças sobre a preservação da existência mundana e são armas poderosas através das quais pulsa a vida e a nossa possibilidade de futuro. pérola mathias

Yuri u xëatima thë, 2023 A pesca com timbó. Still do vídeo. Vídeo, cor, som; 10’


aline motta

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Aline Motta organiza o material da história para criar significados. Ora poeta, ora cineasta, ora fotógrafa, ora performer, sua prática é especulativa. Construindo ou transformando mundos, por meio do processo da anotação e da edição, ela dialoga com o silêncio do esquecimento do arquivo no intuito de tornar visível o que não é familiar e não é conhecido. Além da estrutura imperial da fecundi-

dade, encontram-se as narrativas íntimas que ela revela. A construção da história colonial brasileira fraturou, desbotou, sobrecarregou suas linhagens familiares, que ela reconstrói – puxando o cordão umbilical que faz nascer sua mãe, depois sua avó. Por meio de imagens e textos, sua obra épica, A água é uma máquina do tempo propõe a seguinte pergunta: “Seria possível fabular novos laços de

parentescos, novas linhagens e até mesmo uma nova de filiação?”1 Do berço à sepultura, do útero à tumba,2 Motta se move meticulosamente por entre os vestígios de sua família. Enquanto isso, ela examina a força matriarcal que torna tudo possível. Mares de páginas, fios de tinta, poças de sangue – tudo é engolido na espiral de tempo, iluminado por formas de cuidado que Motta coloca no coração pulsante de sua prática artística. No entanto, esses gestos não são simples nem configuram significações normativas do amor ou da feminilidade. Antes, são formas feridas e esfoladas, insistentemente enegrecidas, de apoio. A bem dizer, como argumenta a teórica em estudos afro-americanos Saidiya Hartman, essas mesmas “formas de cuidado, de intimidade, e de sustento, exploradas pelo capitalismo racial, sobretudo, não são reduzíveis ou esgotáveis por ele... Esse cuidado, que é coagido e dado livremente, é o coração negro de nossa poiesis social, do fazer e do relacionar”.3 oluremi onabanjo traduzido do inglês por alexandre barbosa de sousa

_ 1/ Aline Motta, “A água é uma máquina do tempo”. eLyra: Poesia e Arquivo, n. 18, p. 333-337, 2021. (Depoimentos). Disponível em: elyra.org/ index.php/elyra/article/view/422/457. Acesso em: 28 maio 2023. 2/ Aqui invoco Christina Sharpe, In the Wake: On Blackness and Being. Durham: Duke University Press, 2016, p. 87. 3/ Saidiya Hartman, “The Belly of the World: A Note on Black Women’s Labors”. Souls: A Critical Journal of Black Politics, Culture, and Society, v. 18, n. 1, p. 166-173, jan./mar. 2016, p. 171.

A água é uma máquina do tempo, 2023 Still do vídeo


amador e jr. segurança patrimonial ltda.

A inteligência artificial logo, logo vai nos dar uma rasteira das boas, mas por enquanto ainda podemos vislumbrar resquícios de humanidade em alguns ofícios cuja existência melindra entre contradições e resistências. É o caso do crítico de arte e também do segurança, profissional que inspira a investigação artística de Antonio Gonzaga Amador e de Jandir Jr. Surge daí a empresa de performance Amador

e Jr. Segurança Patrimonial Ltda. Devidamente uniformizados – terno e gravata sempre –, eles vão imprimindo sua marca no mercado ao longo dos anos. A dupla especializou-se na salvaguarda de galerias de arte, mostras, salões, bienais e afins. Às vezes você vai vê-los postados bem diante de uma obra, empatando a apreciação (Sem título, 2016); noutras, é possível encontrá-los mergulhados na

Sem título, 2016 Registro de performance, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro (2016)

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leitura de livros (Ler, 2023), olhando fixamente para baixo (Chão, 2023) ou até mesmo de olhos bem fechados durante o expediente (Vigilante, 2016). Tudo para melhor servi-los, senhoras e senhores. Nessas performances, as armas usadas para defender o patrimônio alheio são o deboche e a ironia, mas o jogo não se restringe ao escopo humorístico. Antonio e Jandir usam o próprio corpo para

armar bombas lógicas através de uma presença tensionada; eles minam um campo onde as estruturas de nossa formação vão explodindo sob nossos pés: o racismo institucional, a exploração dos trabalhadores, o precariado, a persistência sinistra da escravidão, ou seja, a manutenção das elites que consomem arte. Formalmente, trata-se de sobreposição. A Amador e Jr. Segurança

Patrimonial Ltda. tem a expertise de dobrar os espaços onde performa; se a área útil é de cem metros quadrados, dá para chegar tranquilo aos duzentos metros quadrados, ou até mais. No entanto, vale lembrar que esse fenômeno insólito só poderá ser concluído na superfície cerebral do público, que, se não ganhar o terreno adicional, pelo menos vai poder sair de lá dando boas risadas, sem ter entendido a piada. igor de albuquerque

Nada! Artes aquáticas, 2019 Registro de performance, Centro Esportivo e Educacional Golfinhos da Baixada, Queimados (2019)


amos gitaï

Bait, 1980 Casa. Stills do filme. Filme 16 mm transferido para vídeo; 51’

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“Gitaï quer que essa casa se torne algo bem simbólico e bem concreto, que ela vire um personagem. Uma das coisas mais bonitas que os filmes podem alcançar: pessoas olhando para a mesma direção e vendo coisas diferentes. E sendo movidas por essa visão.” − serge daney, Libération, 1º mar. 1982

Amos Gitaï vem documentando uma única casa em Jerusalém ocidental por mais de quatro décadas a fim de narrar a história de uma região complexa por meio de variadas formas artísticas. Seus projetos começaram com uma trilogia de documentários realizada ao longo de mais de 25 anos: Bait [Casa] (1980), A House in Jerusalem [Uma casa em Jerusalém] (1998) e News from a House / Home [Notícias de

uma casa / Lar] (2005). Nesses filmes, o espaço arquitetônico revela uma dimensão política. Bait é o primeiro trabalho de Gitaï, filmado em 1980 imediatamente depois de seu retorno de Berkeley, onde ele terminara um doutorado em arquitetura. Esse documentário em preto e branco realizado em 16 mm identifica os diferentes proprietários e ocupantes de uma casa, desde o primeiro, um médico palestino que a abandonou em 1948. O governo israelense então a confiscou e alugou, com base em uma lei “da ausência”, para um casal de judeus imigrantes da Argélia. Na época da filmagem, um professor de economia israelense comprou o imóvel. Ele decidiu transformá-la de casa térrea em um casarão de três andares. Mas, para executar a construção, teve que contratar palestinos do campo de refugiados e usar pedras das montanhas de Hebron. O espaço arquitetônico da Casa, assim, tornou-se ao mesmo tempo um microcosmo das relações israelense-palestinas e uma metáfora para Jerusalém. O filme constitui um palco aberto para diferentes ocupantes, trabalhadores e empreiteiros compartilharem suas vidas e perspectivas. A transmissão de House, o filme de 1980, foi banida pela televisão israelense na época. editado por juliana de arruda sampaio traduzido do inglês por gabriel bogossian


ana pi e taata kwa nkisi mutá imê

“A unidade é submarina…” − edward kamau brathwaite

EXERCÍCIOS DAS MARGENS DO TEMPO, 2023 Fotografia e manipulação digital. Estudo para a obra comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo para a 35a Bienal

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Ana Pi é uma artista do corpo e do espírito, que integra noções de trânsitos e de deslocamentos a seus trabalhos, por meio de gestos, cores e sons comuns. Taata Kwa Nkisi Mutá Imê é diretor da Casa dos Olhos do Tempo que Fala da Nação Angolão Paketan Malembá-Nzo Mutá Lombô Ye Kayongo. Desde a década de 1980, Mutá Imê vem moldando uma metodologia para o ensino e a pesquisa da dança sagrada em toda

a diáspora africana, envolvendo inquices, voduns, orixás, caboclos e encantados, por meio de movimentos que equilibram as dimensões mental, física e espiritual. Juntos, “esses praticantes fazem uso de espaços que não podem ser vistos”.1 Em conjunto, Pi e Mutá Imê escrevem com o corpo, costurando espaços e memórias para ir além da coreografia do palco e adentrar os movimentos da vida cotidiana.

Essa parceria deu origem a um projeto expressivo transnacional que triangula Brasil, França e Senegal. Na forma, “as redes dessas escritas tocantes e entrecruzadas compõem uma história múltipla que não tem autor nem espectador, moldada a partir de fragmentos de trajetórias e alterações de espaços”.2 É uma ruminação poética corporificada em caminhos percorridos em praias e ruas de paralelepípedos, entrando e saindo de coleções institucionais do Institut Fondemental d’Afrique Noire (IFAN), em Dacar, no Senegal, e do Musée du Quai Branly, em Paris, França. Esses atores compartilham um compromisso com a errância, que, na realidade, é a “postulação do sagrado, que nunca se dá e nunca se apaga”.3 Ao mesmo tempo que reconhecem uma forma de pensar inscrita na visão, acolhem o conhecimento que emana do corpo nos vestígios que deixamos, nos suspiros que emitimos. São parceiros comprometidos com o periférico – um espaço mental no qual o inseguro pode se tornar um lugar de construção; um lugar em que se vai em busca da imagem gravada na mente, mas volta com sementes, prontas para fazer crescer novos mundos. oluremi onabanjo traduzido do inglês por naia veneranda

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1/ Michel de Certeau, “Walking in the City”, in The Practice of Everyday Life (1980), trad. Steven Rendall. Berkeley: University of California Press, 2010, p. 93. 2/ Ibid., p. 93. 3/ Édouard Glissant, Poética da relação. Tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge Oliveira; revisão técnica Ciro Oiticica; prefácio Ana Kiffer, Edimilson de Almeida Pereira. 1ª ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, p. 44.

esta participação é apoiada por: Institut français.


anna boghiguian

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A obra de Anna Boghiguian compõe uma narrativa polifônica que se desdobra em desenhos, pinturas, dioramas, instalações e textos. Ao mesmo tempo, ela constitui um extraordinário instrumento de investigação histórica que, sem ceder em termos poéticos, é capaz de analisar contextos específicos, fragmentos de vidas individuais e um amplo espectro de fenômenos. É o caso de seu trabalho Woven Winds − The Making of

an Economy – Costly Commodities [Ventos entrelaçados − A formação de uma economia – commodities custosas] (2016-2022), em que, por meio de desenhos, textos, colagens e recortes de papel, Boghiguian (re) conta a gênese e o desenvolvimento do comércio de algodão, atividade que tanto antecipa quanto profetiza a globalização atual da economia. Malcom Ferdinand, especialista em ecologia política, prefere


referir-se à nossa era com o termo Plantationceno – a era da plantation1 – para enfatizar as responsabilidades do colonialismo na atual crise social e ecológica. A obra de Boghiguian parece vir corroborar essa tese. De fato, diante de sua obra, o espectador vê-se imerso em uma história populada por escravizados do oeste da África, deportados para o Novo Mundo para trabalhar em plantations de

algodão (entre outras), plantios esses que substituíram formas indígenas tradicionais de cultivo e de circulação de produtos a fim de abrir caminho para um modelo de produção extrativista e totalmente voltado ao lucro. As dramáticas histórias dos escravizados se entrelaçam às narrativas sobre os imigrantes europeus. Boghiguian representa um navio no momento do desembarque

de seu carregamento de europeus pobres (como os irlandeses, forçados a fugir da Grande Fome, ocorrida entre 1845 e 1849), aterrissados em solo estadunidense, para contribuir com a formação da grande riqueza daquela nação, que, como a artista menciona, deve muito ao cultivo do algodão e ao fato de que esse cultivo se organizou em torno da escravidão. Viajante incansável, Boghiguian estudou entre Egito, Canadá e México. Sua produção apresenta uma forma de registrar realidade e contexto, jamais com um olhar distanciado. Ao contrário, a obra dessa artista é sempre posta com respeito às condições sociais do presente e, geralmente, inclui o questionamento sobre os eventos históricos que as produziram. Ao mesmo tempo, sua paixão pela pintura simbolista − Gustave Moreau e William Blake, por exemplo − emerge de uma veia surreal que é parte integral de sua poética, desconstruindo as linguagens oficiais do poder ao dessacralizar suas representações sagradas: um sonho alucinante e irônico no qual a artista move seu ataque poético em direção ao poder absoluto e a suas encarnações. marco baravalle traduzido do inglês por gabriel bogossian

_ 1/ Sistema de produção agrícola baseado em grandes latifúndios e monoculturas, em geral utilizando trabalho escravizado, praticado por países europeus em suas colônias na América, África e Ásia a partir do século 16. [n.e.]

Aquarelas da instalação Woven Winds − The Making of an Economy − Costly Commodities, 2016. Ventos entrelaçados. A formação de uma economia – commodities custosas. Grafite e aquarela sobre papel, 18 peças, 41,8 × 29,5 cm (cada)


anne-marie schneider

De seus primeiros desenhos na década de 1980, centrados no potencial transbordante da escrita e da linha, a suas incursões posteriores em planos de cor e a experiência de uma policromia orientada ao sensível, o traço parece ser o elemento que oferece unidade ao imaginário deliberadamente fragmentário da artista Anne-Marie Schneider. Schneider explica que, enquanto cria, trabalha com a consciência e

Sem título (interior azul), 2012 Acrílica sobre papel, moldura de madeira e acrílico. 10 peças, 30 × 30 cm (cada)

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a inconsciência ao mesmo tempo. Desse modo, as peças selecionadas para coreografias do impossível configuram um repositório de imagens mentais transferidas para o papel. Carregadas de ressonâncias biográficas e alusões a questões sociais, a artista tenta registrar − ou coreografar −, por meio delas, o tremor que constitui o eu, que, conforme o aforismo rimbaudiano, também “é um outro”.1

Suas obras estão repletas de personagens solitários ou de relacionamentos perturbadores, rostos distorcidos que se confundem com suas máscaras, corpos que sofrem mutações e se prolongam no espaço doméstico, arquiteturas emocionais nas quais as fronteiras entre pessoa e estrutura se desvanecem. Nas palavras do crítico francês Jean-François Chevrier, esses corpos-casa entendem o

que os cerca “como um complexo instável trabalhado pela violência dos afetos”.2 Essas deformações grotescas abrem caminho para uma prática que contempla a distorção e a fábula ao um só tempo, partindo do absurdo, da ironia ou da crítica. Assim, os desenhos e as pinturas de Schneider esboçam um semblante autoconstruído: que jamais deixa de se recompor por meio da recuperação do gesto, dos vestígios e das confusões do discurso, das cenas que − como explicou uma de suas referências, a escritora Virginia Woolf − produzem uma onda na mente.3 beatriz martínez hijazo traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ Frase do poeta francês Arthur Rimbaud, “Je est un autre” (Eu é um outro) está presente em uma carta de 13 de maio de 1871, endereçada a seu professor Georges Izambard. El País, Madri, 16 nov. 2016. 2/ Jean-François Chevrier (posfácio), “Trazo película color” [Traço filme cor], in Anne-Marie Schneider. Madri; Paris: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía; Éditions L’Arachnéen, 2016. 3/ Virginia Woolf, “Esta ola en la mente” (Essa onda na mente), trecho de uma carta de 16 de março de 1926, endereçada à escritora e jornalista Vita Sackville-West. In Federico Sabatini (ed.), Sobre la escritura. Virginia Woolf. Barcelona: Alba Editorial, 2015, p. 34.

Sem título (porta de tijolos com personagem), 2019 Acrílica sobre papel, 46 × 42,3 cm

esta participação é apoiada por: Institut français.


archivo de la memoria trans (amt)

Fondo Documental [Fundo Documental] Malva Solís, c. 1965 Fotografia

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O Archivo de la Memoria Trans (AMT) visa proteger, construir e recuperar a memória da comunidade trans por meio de fotografias, vídeos e recortes de jornais e revistas. Criado na Argentina e com uma coleção de aproximadamente 15 mil peças, o arquivo vive e cresce a cada dia através de doações. Desafiando as narrativas predominantes, o AMT serve como repositório de uma memória coletiva deliberadamente

Fondo Documental [Fundo Documental] Marcela Soldavini – La Rompecoche, c. 1985. Fotografia


apagada, lembrando a sociedade das experiências de pessoas trans, que sofreram negligência do Estado e enfrentaram incompreensão e hostilidade da sociedade. O Archivo surgiu com as ideias visionárias das ativistas María Belén Correa e Claudia Pía Baudracco. Após o falecimento de Claudia em 2012, María Belén embarcou no desenvolvimento do projeto. Ela criou um grupo no Facebook,

Archivo de la Memoria Trans, com o objetivo de se conectar com as pessoas envolvidas nessa história de luta. Em 2018, o grupo tinha mais de mil mulheres trans participantes, tanto argentinas quanto estrangeiras. A ideia inicial do projeto era reunir as companheiras, suas memórias e suas fotografias, preservando esse material primeiro em uma biblioteca e depois em um espaço virtual. Em pouco tempo,

esse objetivo se alargou e logo se tornou um esforço coletivo para construir a memória comum. O AMT tem um forte significado como um lugar de memória e preservação, além de ser outra forma de ativismo.1 Ele serve ao duplo propósito de construir um arquivo que lança luz sobre a vida e as alegrias das pessoas trans, ao mesmo tempo que registra os desafios enfrentados pela comunidade na Argentina. O conteúdo é acessível ao público em geral por meio de várias plataformas on-line, promovendo um espaço inclusivo para engajamento, discussão e ação sobre identidade e resistência. Ao preservar álbuns de fotografias e outras tantas lembranças pessoais, o arquivo assume o papel de uma espécie de reunião de família. Esses conjuntos de imagens guardam as narrativas visuais de uma rede afetiva baseada no apoio, na proteção e na celebração da vida, e preservam a memória das companheiras que não estão mais aqui. O Archivo está presente na 35ª Bienal de São Paulo na forma de um mural de memórias, uma colagem de mais de 3 mil peças, entre artigos de jornal e revista, fotos pessoais, imagens de momentos íntimos e retratos do cotidiano. Por meio dessa instalação, documentos se tornam janelas para vidas de um passado que ecoa com força nos dias de hoje. Cada fotografia guarda uma recordação, e o mural se transforma em um monumento de luta. sylvia monasterios

_ 1/ Ver Memorias reveladas, de Quentin Worthington (França, 2019, 23’), documentário sobre a criação do amt.

Fondo Documental [Fundo Documental] Vanesa Sander, c. 1990 Fotografia


arthur bispo do rosário

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o olhar que deseja indecretar a feiura atribuída à loucura, às loucuras, precisa ser tudo, menos clínico. é uma mirada que precisa alcançar tudo, com o cuidado de desacertar alvos (em geral escuros). e à qual imprescinde um gesto que não precisa abarcar tudo, fora do delírio colonial da conquista, da catalogação, da categorização que não escuta a voz da autodeterminação.

até hoje a loucura tem sido tratada como uma ferida feia engavetada em muros mais altos que os alvos pés-direitos dos museus. então, alguns museus tomam pra si a tarefa de romper a interdição que se coloca quando chamada de feiura, quando condenada à escondidão, atribuindo ininteligibilidades programadas à loucura. ainda assim me pergunto com qual manto foi enterrado o corpo


de arthur bispo do rosário (1909 [1911]-1989) depois de sua passagem; me pergunto se algum dos mantos que teceu escapou da sina ou sanha que fez, pelo “descobrimento da beleza”, retirá-los dos cubículos psiquiátricos em que o marinheiro, o boxeador, o coxo, interditado por ser dado como louco antes de intitulado artista – rótulo que recusou –, lá onde os coseu.

será que algum dos mantos cumpriu o sonho do profeta negro de cobrir seu corpo, y desvelar sua alma, no dia de seu juízo final? que afinal tem sido vivido (ou morrido) parceladamente mesmo, conforme cada pessoa morre, ainda que nesses tempos, ainda de encarceramento psiquiátrico negro massivo. essa é uma pergunta retórica, dramática. enquanto atravessamos nossa matéria, livre por enquanto

do juízo final, por entre as peças expografadas, museológicas, perfeitamente iluminadas de museu, trilhamos caminho sobre o silêncio que sua não resposta encerra. se há beleza na feiura com que descuidamos a loucura, quando é possível chamá-la de arte? talvez importe dizer que o bordador morreu longe, muito longe, do museu; trancafiado, muro enorme, hospício adentro. que antes mesmo de morrer, lá bem trancafiado, já ia sendo separado de seus mantos, suas faixas, panos todos e vitrinas que bordou, coseu, teceu, por não ser artista nem ser ateu. e bispo do rosário é hoje nome de museu! coberto do manto invisível de artista que não teceu. tatiana nascimento

Arthur Bispo do Rosário com a obra Semblantes, sem data


aurora cursino dos santos

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com quantas facadas se faz essa dor? e quantas pinceladas, para desfazê-la? há tantos olhos, nas pinturas, quase tantos quanto há palavras – mais, ou menos legíveis. os olhos parecem olhar de lá, do antes quando foram pintados, se o agora trouxe alguma novidade, menos facadas, menos sangue derramado, menos dessa dor. é uma dor de muitos nomes: machismo, misoginia, patriarcado,


opressão, violação, desrespeito, desumanização… alguns dos pares de olhos traduzem alguns desses nomes, se você prestar atenção, se você tiver coragem de olhar de volta lá dentro deles, dentro dos quadros, dentro do tempo que tentou de tantas formas, tantas vezes, calar Aurora (1896-1959). profecias, devaneios, desconjuros, previsões. um desejo: prever-se um futuro feliz. a arte de fugir dos

destinos programados para o fim. para a servidão. para a violência. para a dor. um pouco antes da virada do século, nasce Aurora. naquele tempo, a categorização via suposta biologia era ainda mais rígida que agora: e Aurora nasce menina. menina filha de uma mãe, e de um pai. e quando essa menina vira moça, o pai obriga a moça a se casar.

mas a moça é drapetômana! dada às fugas, às derivas, aos destinos reescritos pelo traçado próprio do desejo.1 Aurora foge, se separa, tenta de um tudo nessa vida: inclusive as artes, nas europas, pois que sonha, e os sonhos também têm fome. uma fome dessas é que deve tê-la levado à profissão que dizem a mais antiga do mundo, não? tão antiga quanto aquela dor? mais antiga? profissões, servidões: esposa, puta, doméstica. inadequações: louca. mas Aurora, antiga, contam seus quadros, ia meio que prevendo um mundo novo, por mais que escombros, que ruínas de mundos tão arcaicos, tão demorados de passar, a tentassem soterrar: talvez seja meu devaneio, meu desejo, mas parece que, além de tantas facadas, os tantos olhos que pintou buscam vestígio desse mundo-sonho – em que mulheres, qualquer profissão que tenham (ou não), independentemente do quanto tentem os muros das casas de patroa, das celas manicomiais, estrangular, sufocar, silenciar… um mundo em que qualquer mulher, por mais indigna que seja considerada, “psicopática amoral”, possa prever-se futuro feliz. & eu sonho junto. tatiana nascimento

_ 1/ Os poucos e incertos dados biográficos de Aurora Cursino dos Santos estão sinalizados nas suas pinturas e desenhos, quase sempre autorreferenciados, habitando um lugar entre a memória e o delírio. Estão também presentes em relatos médicos e documentos psiquiátricos que, como todo arquivo da violência, excedem pela parcialidade e exigem uma leitura desconfiada e crítica. [n.e.]

Sem título, sem data (frente e verso) Óleo sobre papel, 47,5 × 32 cm


ayrson heráclito e tiganá santana

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Agô! Pede-se licença para entrar na mata sagrada. Povoada de vidas materiais, inanimadas ou que se tornaram ancestrais, nela habitam diversas energias, que, em conjunto, formam uma floresta de infinitos. Sob a proteção sempre alerta de caboclos, encantados, de Oxóssi e de Mutalambô, Ayrson Heráclito e

Tiganá Santana, olhos que nunca dormem, realizam um sonho: um tributo à floresta, uma oferenda às forças da natureza, louvando sua energia resguardada entre plantas e árvores, que tornam possível a existência da humanidade. Das projeções que refletem imagens múltiplas, produzindo sons e sensações que surgem em uma floresta fria e colorida, saltam rios, pássaros e folhas amassadas

sobre as quais caminhamos. Flores, pererecas, insetos e outros biomas extintos convivem com ancestrais originários, com caboclos, com Chico Mendes, com Bruno e Dom, com mãe Stella de Oxóssi. Quando essa floresta chora as dores da violência, do colonialismo e da destruição, é Oyá, agora guardiã de todos esses Eguns, mãe de tudo que já foi vivo, que os/as convida a dançar alegremente e celebrar a vida que se preserva e se renova na natureza. A floresta de infinitos, instalada no centro da maior cidade da América Latina, é uma façanha da arte, fruto de uma coragem de caçador. É uma história impossível materializada em nome de um projeto político em defesa da vida e da preservação da natureza, que propõe uma ruptura radical com a ignorância e o extermínio. Agô, é hora de deixar a floresta. Deixemos a mata voltar a seu silêncio misterioso, com seus encantados, rios e formas de vida infinitas. Com a ausência humana, os bambuzais balançam novamente sinalizando o reestabelecer do equilíbrio. Seres invisíveis fundem-se em uma só potência vital e estão livres novamente no anoitecer das matas de Oxóssi e Mutalambô. A respeito da visita humana, perguntam-se: será que aprenderão que toda vida é sagrada? Agô. A bênção. Olorum Modupé. luciana brito

Ayrson Heráclito e Tiganá Santana


benvenuto chavajay

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Me concederam a palavra para falar de Benvenuto Chavajay a vocês, os outros. Aqui na 35ª Bienal de São Paulo, ele, como alguns outros participantes da mostra, não se enquadra apenas no papel de artista: ele é um ritualista que convoca mundos, submundos, supramundos. Outros mundos possíveis. No Ocidente, a ação de uma pessoa pendurada de cabeça para baixo é em geral relacionada à ima-

gem de tortura ou execução, e por isso a ação de Chavajay nos perturba. No entanto, no mundo maia, ao contrário, as pessoas que se deixam cair de cabeça para baixo dançando se associam à fertilidade e à celebração da vida digna. O artista fica de cabeça para baixo com um chocalho que convoca as almas: mas ele está enquadrado em uma moldura para que a ritualidade, para nós, que estamos deste lado, “apareça como arte”. Aqui, então, surgem todas as questões sobre os limites entre os paradigmas que tornam invisíveis outras existências – transformando seres humanos, animais e espíritos em pura mercadoria (conceitos segundo os quais nos movemos diariamente, classificando a realidade sob parâmetros impostos a ferro e fogo) – e aquilo que ressoa dentro de nós, ainda... e apesar dos quinhentos anos. Chavajay se apresenta como filho de analfabetos; isso significa, na realidade, que ele é herdeiro de uma linhagem de des-conhecedores das lógicas simbólicas da dominação e do extermínio colonial. Com ele dançam um território, uma comunidade, uma língua e uma história de resistência. Benvenuto reivindica esses elementos tanto quanto a honra perdida das pedras, consideradas sagradas em muitas das culturas do continente americano. Portanto, suas ações performativas são de grande generosidade: ele mobiliza forças não como um espetáculo vazio, não como uma excentricidade, mas como um pequeno fogo que vai dissolver a alma das pedras. natalia arcos salvo traduzido do espanhol por ana laura borro

Camino/en la grieta a Xibalbá, 2023 Caminho/na fenda de Xibalbá. Stills do vídeo. Videoinstalação em 2 canais; 6’, 7’


bouchra ouizguen

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A coreografia excede a composição do movimento no espaço; ela envolve o trabalho com o tempo, com a voz, com os afetos de quem assiste e com os invisíveis que flutuam entre as imagens na forma de palavras, memórias ou alusões furtivas. O coreográfico pode ocorrer no palco, mas também em um espaço público, ou numa tela de vídeo que mostra a ação de um grupo de mulheres

num deserto. O coro de Corbeaux [Corvos] é formado por mulheres de diferentes idades e origens, algumas das quais são membros da Compagnie O desde seu início. Mas Fatna, Kabboura, Fatéma e Halima já eram profissionais antes de seu encontro com Bouchra, pois já haviam trabalhado como shikhat, dançarinas e cantoras que se apresentam em festivais e celebrações populares. Se a função


de shikhat pode ser considerada subversiva por si só, devido à sua liberdade de abordar temas proibidos às mulheres em espaços públicos, em seu trabalho com Bouchra elas se desfizeram de seus trajes e máscaras espetaculares para expor seus corpos, treinados no aita e na dança popular, e construir situações de sororidade poética. Com um simples gesto, Bouchra e a Compagnie O produzem um des-

locamento em relação aos modos hegemônicos da dança contemporânea, evitando ao mesmo tempo a exotização e a domesticação da tradição típicas do turismo cultural e de entretenimento. Nessa proposta coreográfica singular, a poesia árabe clássica constitui um elemento mobilizador, mas não ocupa uma posição privilegiada em relação ao canto berbere, o vigor criativo ou as

experiências cotidianas dessas atrizes. É essa cotidianidade que é mostrada em Fatna, onde Bouchra materializa a ideia de uma dança que pode acontecer em qualquer circunstância, enquanto lê, cozinha ou conduz as ovelhas. Seu reverso é a ação coletiva e ritualizada em uma comunidade estendida que impressiona em suas apresentações ao vivo, não apenas pelos gestos e ritmos vocais repetidos, mas também pela força com que esse coletivo se manifesta, e que, em sua simultaneidade imperfeita, coexiste com a afirmação da singularidade de cada um dos participantes. Essa peça, em algum lugar entre a escultura viva e o ritual ao nível do solo, surgiu, segundo Bouchra, de um impulso, afetado pela beleza agitada do mercado de Marrakech. Voando para o deserto, esse bando de corvos [corbeaux] mostra toda a beleza, ao mesmo tempo sagrada e lúdica, dos corpos [corps beaux] graças à câmera que voa com eles e pousa nos detalhes como uma visão encarnada. josé antonio sánchez traduzido do espanhol por ana laura borro

Corbeaux, 2017 Corvos. Still do vídeo. Vídeo; 8’


cabello/carceller

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Desde seu surgimento no cenário da arte contemporânea em meados da década de 1990, o trabalho de Helena Cabello e Ana Carceller questiona os dispositivos e as convenções de representação de sexualidades e identidades fora da norma. Em Una voz para Erauso. Un epílogo para un tiempo trans [Uma voz para Erauso. Um epílogo para um tempo trans] (2021-2022), as artistas trazem para o presente a

complexa biografia de Antonio de Erauso. Conhecido como “A freira alferes”, foi um personagem do barroco colonial espanhol famoso por ter conseguido contornar o binarismo de gênero imposto aos corpos do Império. A obra se desenvolve em um jogo de distanciamento que tece uma temporalidade queer e quase fantológica.1 Quatro séculos depois, três pessoas trans não binárias questio-


nam o retrato do alferes e, por meio dele, desdobram uma questão fundamental: o direito de ser nomeado. No entanto, longe de criar uma nova hagiografia queer, xs protagonistas tensionam a narrativa e expõem suas áreas obscuras: o racismo confesso de Erauso, sua participação no genocídio mapuche, os altos níveis de violência que permeiam sua história. Dessa forma, Cabello/Carceller expõem uma série de estratégias

que se aprofundam em vários aspectos importantes. O primeiro é que todo retrato é sempre performativo. O segundo, como explica Paul B. Preciado, é que a figura de Erauso é um território discursivo e visual em disputa, um lugar “onde uma multiplicidade de identidades conflitantes é construída e desconstruída”.2 Num gesto queer historicamente denso, Cabello/Carceller coreografam nas margens contra-imagens

dissidentes. Seja em uma olhada rápida ou por meio de palavras conotadas, essas notas de rodapé revelam genealogias elusivas, descontínuas e bastardas. Como outra adição à pintura a óleo de Van der Hamen, como Una voz para Erauso. Un epílogo para un tiempo trans, as palavras e cenas de Cabello/ Carceller desafiam a integridade do hegemônico e fazem da arte uma ferramenta para abordar o horizonte sempre trêmulo das subjetividades que estão por vir. beatriz martínez hijazo traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ No francês hantologie, conceito criado por Jacques Derrida em seu livro Espectres de Marx (1993), em que une os termos hanter [assombrar] e ontologie [ontologia], referindo-se ao persistente retorno às teorias do passado. [n.e.] 2/ Paul B. Preciado, “Una voz para Erauso. Epílogo para un tiempo trans”, in Cabello/Carceller. Una voz para Erauso. Epílogo para un tiempo trans. Catálogo de exposição. Bilbao: Azkuna Zentroa – Alhóndiga Bilbao, 2022, p. 14. [n.e.]

Video stills. Una voz para Erauso. Un epílogo para un tiempo trans, 2021-2022 Uma voz para Erauso. Epílogo para um tempo trans. Stills do vídeo. Vídeo 4k transferido para HD, cor, som; 28’15’’


carlos bunga

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Quando o assunto da conversa for a escala dos trabalhos de Carlos Bunga, teremos sempre um lugar animado. Primeiro, por uma razão óbvia, porque o tema chega a ser comum no contexto da site-specific art e da instalação. Mas o verdadeiro motivo reside na singularidade gravitacional dos corpos em questão. Há aproximadamente duas décadas, Bunga vem construindo e destruindo uma obra cujos eixos evanescentes

insistem em bagunçar as noções de grandeza e de medida no espaço-tempo. A monumentalidade da cor, por exemplo. Para ir além da pintura e da tela, a cor precisará de uma pele (Superfície cutânea, 2015), e de uma poética de explosão-expansão através do continuum sensorial. Será possível, assim, Habitar el color [Habitar a cor] (2015-em processo) obra que espalha no chão uma enorme área de tinta e convida o


público a tirar os sapatos e entrar nela, a ver a cor com os pés, a sentir, na própria pele, a pele. Se um dia a cor se quis eterna nos quadros dos grandes mestres, nesta obra ela se mostra tão esplendorosamente apodrecível quanto nossa carne. Em outros espaços expositivos, Bunga será visto na labuta de levantar estruturas grandiosas utilizando papelão e fita adesiva como suporte em suas instalações, que às vezes se

transformam em palco para performances de dança (Occupy, 2020). Interessa-lhe a estrutura bamba que anuncia com clareza a coreografia de sua própria ruína; pôr montagem e desmontagem em processo de retroalimentação. Interessam-lhe essas zonas intersticiais onde as medidas escapam à racionalidade suméria e indo-arábica – ao dez e ao sessenta, ou mesmo às onze dimensões da física/mística contem-

Reflejo, 2015 Reflexo. Vista da instalação, Museo de Arte de la Universidad Nacional de Colombia, Bogotá (2015)

porânea. A quais sistemas teremos de recorrer se ainda quisermos insistir na tarefa de narrar e contar o Universo? Os passos de Bunga – a sua dança – descrevem, se não respostas, a coragem para seguir em movimento diante daquelas três questões fundamentais de nosso sempiterno big bang: quem? De onde? Para onde? igor de albuquerque

esta participação é apoiada por: República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes.


carmézia emiliano

As cores vibrantes dos quadros de Carmézia Emiliano dão vida ao dia a dia dos povos Macuxi, seus ritos, mitos, trabalho e natureza. Seu vigor estilístico afirma uma cultura única que se desenvolveu na região do monte Roraima e se contrapõe à realidade de seu entorno, marcado por conflitos com o garimpo e pela explosão migratória. Carmézia cresceu na região da terra indígena Raposa Serra

Lenda do casal americano, 2023 Óleo sobre tela, 70 × 70 cm

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do Sol. No final dos anos 1980, ela se mudou para Boa Vista e iniciou sua prática em pintura. Suas inspirações partem sempre da memória da vida na comunidade, reforçando continuamente seus laços com a ancestralidade. A afirmação de sua cultura através das telas é também uma forma de elaboração do real e do imaginado, em que desenvolve uma poética do cotidiano.

A mulher indígena é a protagonista na maior parte da obra de Carmézia, que acaba por demonstrar seu papel e atuação em todos os âmbitos da vida Macuxi, seja tecendo, preparando o beiju, fazendo a colheita, produzindo cerâmica, tomando banho de rio ou cuidando das crianças. A artista, assim, através de seu trabalho, tanto apresenta um comprometimento com a luta indígena quanto

destaca a questão de gênero, tensionando aspectos que poderiam passar despercebidos ao debate público. Quando Carmézia pinta cenas que evocam a cosmologia de seu povo, abre espaço para a complexificação do cotidiano que busca evidenciar. Bons exemplos são a lenda sobre o monte Roraima (que teria vindo da Wazaká, a Árvore da Vida) e a lenda do Caracaranã, que nos transportam para a dimensão do fantástico. A abertura para a imaginação que a obra da artista provoca é uma potente manifestação política transmitida com sutileza, envolvendo não apenas os Macuxi, mas todos os povos originários. pérola mathias

Assando castanha de caju, 2023 Óleo sobre tela, 70 × 70 cm

Buritizeiro no lavrado, 2023 Óleo sobre tela, 70 × 70 cm


castiel vitorino brasileiro

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A que serve a insistência em perseguir a falência da negritude? Que garantia de pertencimento à humanidade pode ser posta a perder? O trabalho de Castiel Vitorino Brasileiro enfrenta a mais bem assentada das ficções moderno-coloniais, a raça, tensionando-a como ferramenta que hierarquiza a vida na Terra. Perguntas sobre a condição de des/humanidade da vida racia-

lizada, em geral, são elaboradas conforme o repertório daquilo que a artista define como mitologia da modernidade sobre as raças. Estudando as implicações do dispositivo racial, Brasileiro transmuta os sentidos da presença das corporeidades escuras com base em um repertório banto e nas religiosidades de matriz africana. Destaco então a torção do conceito de liberdade que, liberada da

A linguagem dos seres híbridos, 2023 Carvão sobre papel

Sem título (Marrakech), 2023 Fotografia digital


concepção moderna-colonial de autodeterminação, é experimentada na condição de impermanência. No livro Quando o Sol não mais aqui brilhar: a falência da negritude (2023), assim como em Montando a história da vida – Museu fictício dos objetos roubados pela polícia (2023), a liberdade surge também como prática radical de intimidade interespecífica, assentada na indistinção do que consideramos biótico e abiótico.

As intervenções éticas demandadas pelas artes negras e indígenas são acionadas pela convocação da memória e da alma dos elementos que compõem o espaço instalativo. Existe ainda uma investida arquitetônica, presente em Quarto de cura (2018-2022), a questionar as formas de habitação do planeta. O museu em ruína torna aparente a ligação entre biologia e história da arte, e no nome da obra Castiel

nos lembra que a polícia é quem executa a cena na qual as diferenças psicofisiológicas atribuídas aos corpos escuros justificam a narrativa moderna de superioridade racial. Os assassinatos desses corpos são performados como confirmação de que existem tipos de gente – uma mentira sustentada pelo privilégio do olhar antropológico que fundamenta a iconografia das artes e abastece o imaginário sobre os outros-do-humano, ditando quem pode e deve ser aniquilad_. Assim, o trabalho anuncia o fim do dispositivo racial como possibilidade de viver infinitamente. cíntia guedes


ceija stojka

Sem título, 1995 Acrílica sobre cartão, 69 × 99 cm

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Z6399, 1994 Acrílica sobre cartão, 81 × 110,5 cm

Sem título, 1993 Acrílica sobre cartão, 50 × 65 cm


Somente quarenta anos após sua deportação é que Ceija Stojka (1933-2013) foi capaz de fazer ressurgir de suas mãos a tragédia que foi seu mergulho, aos onze anos, no inferno do genocídio. Exumados dos limbos de sua memória, a perseguição e o genocídio nazistas foram a matiera prima de sua obra, composta de desenhos, pinturas e textos que impressionam por sua intensidade e sua extraordinária

poética. Paradoxalmente, enquanto parte do povo Roma,1 Stojka é herdeira de uma tradição oral. Uma verdadeira desvantagem memorial e cultural quando se trata de dar conta do “genocídio esquecido” de que seu povo foi vítima. Sua escolha de “entrar” na pintura, no desenho e na escrita foi um ato de ruptura radical com sua tradição. Ligados, os três se cruzam e se entrelaçam, sem se fundir completamente.

Muitos de seus desenhos e pinturas são marcados por palavras, signos e frases breves. Uma melopeia gráfica desenrola-se em uma obra cuja policromia confere às paisagens do desastre uma intensidade trágica. Seus trabalhos associam alucinações, antecipações visuais e os sinais desses territórios da morte e de seus protagonistas. Em suas paisagens, os olhares dos perseguidores e dos assassinos cintilam como prefigurações do inominável. Seu desenho conjuga os contornos nítidos dos mártires anônimos com os fantasmas dos ausentes, já dissolvidos na morte. Sua obra oscila do paraíso perdido da vida de antes ao tempo da caça, ao momento em que a carroça dá lugar ao vagão do “trem da catástrofe”, e termina nesse arquipélago onde “nem os mortos estarão seguros”.2 Ela configura a trajetória trágica desses corpos arrancados de suas humanidades e lançados no inferno do genocídio. Há algo do Inferno de Dante. Uma grande beleza transcende seu “não savoir-faire” em qualidade. philippe cyroulnik traduzido do francês por celia euvaldo

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1/ Ceija Stojka pertencia a uma família Lovara Roma, grupo étnico tradicionalmente nômade que vive atualmente em diferentes regiões da Europa e falam variações da língua Romani. [n.e.] 2/ Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história – Tese V” (1940), in Walter Benjamin, O anjo da história, org. e trad. João Barrento. Rio de Janeiro: Autêntica, 2013.

Sem título, 1993 Nanquim sobre papel, 29 × 41 cm

Zum Krematorium, 2003 Ao crematório. Nanquim sobre papel, 30 × 42 cm

esta participação é apoiada por: Phileas – The Austrian Office for Contemporary Art e Federal Ministry Republic of Austria – Arts, Culture, Civil Service and Sport.


citra sasmita

A artista balinesa Citra Sasmita recorre ao estilo Kamasan − um tipo de pintura secular − para produzir uma arte que reconhece a beleza das tradições, mas que também faz uma crítica do patriarcado e do colonialismo na cultura de seu país. O estilo de origem tradicional era o modo com o qual os povos indonésios mais antigos − nos séculos 15 ao 18 −, representavam calendários, e, sobretudo, feitos supostamente

The Age of Fire, 2020

A idade do fogo. Acrílica sobre tela de Kamasan, 70 × 90 cm

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heróicos das elites masculinas tradicionais, como guerras e demais atos de bravura. Mas, na versão artística de Sasmita, essa iconografia ganha um novo sentido. Por meio de suas mãos e de seu olhar artístico e político, em sua obra, a pintura Kamasan, também feita sobre couro ou tecido, tem novas personagens como protagonistas. Em seu projeto artístico Timur Merah [Leste vermelho],

mulheres indonésias de longos cabelos negros trançam a existência umas com as outras e com elementos da natureza. O vermelho do sangue e do fogo jorra da cabeça, do ventre; corpos inteiros estão em chamas ou formam um invólucro que as recobre por inteiro. Com corpos que se incendeiam e que se mutilam em sofrimento, Sasmita expressa as dores e as opressões sofridas sob o patriar-

cado, que afetam essas mulheres, ainda que elas estejam no centro de tudo. Cabeças cortam-se e são cortadas. Porém, curiosamente, essas mulheres produzem vida, pois de seu ventre brotam árvores, assim como brotam também da cabeça dessas figuras. Os galhos, abrindo em folhas verdes, crescem em direção ao céu. Essas mulheres deusas que compõem figuras femininas mitológicas em geral não aparecem sozinhas. Criando, procriando natureza ou em sofrimento, elas produzem dor e prazer umas às outras; elas estão juntas, em um só corpo, ou vivenciam suas experiências umas ao lado das outras. Várias cabeças femininas povoam a existência de uma só mulher, demonstrando que elas fazem parte de uma experiência circular, coletiva. Corpos incompletos e pernas resumem o desejo de fuga. Rios formados por mulheres compõem um círculo ribeirinho em suas margens nos remetendo à mitologia da sociedade tradicional, relembrada pela ótica feminista da artista. Mulheres são deusas das águas e do fogo. No projeto Timur Merah, com o protagonismo das mulheres mitológicas, musas, deusas, criaturas meio-humanas, meio-feras, meio-árvores, Sasmita encontra formas possíveis por meio das quais finalmente ganham vida perspectivas impossíveis. Se isso não foi possível na arte Kamasan tradicional, séculos depois a artista reconta a história através da arte. luciana brito


colectivo ayllu

Residência artística no Australian Print Workshop, Melbourne (2019)

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Whitenography I, 2018 Segundo a imagem publicada em: Louis Dubroca, Vida de J. J. Dessalines, gefe de los negros de Santo Domingo. México: M. de Zúñiga y Ontiveros, 1806. Impressão sobre cartão e madeira


O Colectivo Ayllu cuja prática se engaja em modos coletivos de criação e de crítica, e na produção de epistemes alternativas aos modos coloniais do pensamento, propõe uma investigação colaborativa em torno do amor. Na 35a Bienal, por meio de painéis criados e manufaturados coletivamente por artistas integrantes do coletivo – composto por Alex Aguirre Sanchez, Leticia/ Kimy Rojas Miranda, Francisco

Godoy Vega, Lucrecia Masson Córdoba e Iki Yos Piña Narváez Funes – e colaboradoras selecionadas em chamada aberta, realizam a escrita de cartas para ancestrais passadas ou futuras. Para isso, utilizam materiais diversos e tecidos trazidos pelas participantes, em uma escritura que proporciona a transmissão de um saber/sentir que ocorre entre o físico e o metafísico. Para além dos debates políticos,

antropocentrados e individualizantes sobre o amor, costuram um portal de fuga do cotidiano, saturado pela codificação capitalística das relações e pela brutalidade das coreopolíticas civilizatórias. Se a ferida colonial que perpassa e constitui os sistemas geopolíticos correntes se alarga e se aprofunda por meio das relações interpessoais, fazendo da intimidade mais uma via de acesso à violência que uma ferramenta de fortalecimento comunitário, é a prática coletiva que possibilita o exercício de um amor não conciliatório. Ao contrário da função estética que gera sujeitos apreciadores de objetos, desimplicados em sua transparência, neste trabalho é o próprio fazer que constitui o modo de operação do que se apresenta como obra e o tipo pensamento que se faz possível por meio dessa obra. Assim, artistas e colaboradoras evocam modos de existência que precedem o corpo subjetificado (e racializado, e genereficado), mirando na retomada de uma sensibilidade que não distingue corpo e entorno, um modo de estar e de sentir que se encontra, ao mesmo tempo, antes e depois da invenção/roubo do corpo pelas tecnologias coloniais. miro spinelli

The Cannibal, 2019 A canibal. Litografia sobre papel, 101 × 68 cm

esta participação é apoiada por: Acción Cultural Española (AC/E) e Embaixada da Espanha no Brasil.


cozinha ocupação 9 de julho – mstc

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Da dinâmica de um prédio ocupado por quase quinhentas pessoas do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) nasceu a Cozinha Ocupação 9 de Julho. Desde 2017, ela atua em uma ampla rede multidisciplinar, com políticas de redistribuição, lixo zero e uma grande preocupação com segurança alimentar. Trata-se de um espaço que vai além do preparo e do consumo de refeições. Representa a força da solidariedade

e a potência do trabalho coletivo em torno de questões como direito ao uso pleno do espaço urbano. Com almoços periódicos abertos ao público, a Cozinha trouxe maior visibilidade à luta por moradia em São Paulo. Promove formas de uso social de espaços relegados à especulação imobiliária e também funciona como proteção contra o despejo. A estratégia de abrir o movimento reforça o trabalho da Ocupação e permite que a tecnologia social desenvolvida possa ser aplicada em outras comunidades, outras periferias. “Quem ocupa cuida”, frase presente em todos os espaços da Cozinha, é ao mesmo tempo um guia para as relações do MSTC e o compasso que rege a confecção das refeições. Empatia e afeto são os motores que impulsionam o trabalho. A Cozinha atua em parceria não só com outros movimentos de luta por moradia e organizações sociais, mas também com a classe artística, transformando-se em um importante centro cultural e um espaço ativo de encontro entre ativistas, intelectuais, artistas e lideranças políticas. Essa nova perspectiva fortalece as conexões do MSTC com a cidade e fornece resposta direta aos ataques desferidos pela grande mídia e pelos poderes estabelecidos, interessados em criminalizar a luta social. Essa forma de coreografar estratégias de sobrevivência numa megalópole como São Paulo é especialmente importante para a 35ª Bienal, que se inspira na Cozinha e em sua forma de organização, sempre coletiva, horizontal, sonhando o impossível, criando pontes no marco das im/possibilidades. sylvia monasterios

Cozinha Ocupação 9 de Julho – MSTC


comunidade indígena, um projeto histórico do governo gladys tzul tzul — instituto amaq’

política comunitária/instituições comunitárias Neste texto, proponho pensar a política comunitária indígena, considerando o complexo amálgama político que é produzido pelas instituições comunais, como prefeituras indígenas, comitês de água, comitês de melhorias, irmandades, órgãos de coordenação, comitês de vítimas, redes organizadas de mulheres, entre outras. As instituições comunitárias mencionadas estão vinculadas e se distinguem entre si como segmentos autônomos que constituem um todo e que, em diferentes níveis, têm se relacionado de modo antagônico com o governo estatal. Isso ocorre de tal modo que a comunidade indígena é um projeto histórico de governo que hoje se recria na vida cotidiana de nossos povos. Em sua implantação cotidiana, essas instituições comunitárias produzem uma energia social que impede a totalização do Estado e do capital como paradigmas únicos de organização social. A resposta do Estado a essa tentativa de totalização terá duas facetas: a primeira é a violência aberta, ou seja, a política estatal organizada para a repressão e o extermínio de povos indígenas. A segunda é a criação de um sistema de prebenda, que consistiria em técnicas de administração de populações por meio da entrega de benefícios que provocam a fragmentação das comunidades indígenas. Esses complexos processos sociais de vinculação e distinção das instituições da política comunal, em antagonismo com os órgãos estatais em diferentes níveis, permitem que eu apresente uma definição preliminar de resistência indígena. Por séculos, a resistência indígena criou um sistema de arquitetura política comunal que defende, recupera e governa suas terras comunais e bens comuns.1 Por comunidade indígena compreendemos um sistema político que produz instituições e estratégias de cuidado e relançamento em suas formas de governo comunal em seus territórios e na cidade; estabelece uma temporalidade 1/ Gladys Tzul Tzul, Gobierno comunal indígenas y estado guatemalteco: Claves para comprender su tensa relación. Ciudad de Guatemala: Ediciones Bizarras, 2018.

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para a substituição da liderança política de suas estruturas de governo; produz práticas deliberativas em assembleias para decidir questões do bem comum. A espinha dorsal desse sistema político seriam as extensas jornadas de trabalho comunal para cuidar da água, da floresta, das festividades, do luto e para liderar, porque a liderança é também uma tarefa do trabalho comunal. Com esses elementos, podemos entender a política comunal indígena.

comunidade em territórios e em migração A substituição de liderança, a assembleia deliberativa e o trabalho comunal constituem e são parte fundamental da arquitetura comunitária indígena. Essas instituições conseguiram se relançar além de seus territórios e, principalmente, fora do país, especialmente nos Estados Unidos, país para o qual centenas de comunidades indígenas tiveram que se deslocar. Os motivos para o deslocamento indígena podem ser compreendidos em várias camadas históricas. A primeira delas é o deslocamento de comunidades indígenas que tiveram de deixar seus territórios em razão da guerra. Após a assinatura dos Acordos de Paz, surgiram novas formas estatais de desapropriação e de repressão. Grande parte das comunidades desalojadas foi despejada por causa da apropriação de terras para monoculturas, assim como para mineração e hidrelétricas. Essa condição estrutural da Guatemala, país de economia extrativista, explica o alto número de indígenas que vivem nos Estados Unidos atualmente. Portanto, hoje, ao dizermos “comunidade indígena”, não nos referimos apenas às comunidades nos territórios, mas também às centenas de comunidades indígenas que se estabeleceram nos Estados Unidos. Nos territórios, não se pode mais dizer que os caqchikel vivem apenas em Sololá, na Guatemala. Hoje sabemos que também há comunidades caqchikel no estado norte-americano do Texas e em Los Angeles, Califórnia. Assim como há K’iche’s de San Francisco El Alto e de Totonicapán em Los Angeles, Nova York, Texas e Boston. Ou Ixiles em Miami, Washington, D.C., ou Nova York, e essa mesma dinâmica se encontra nos povos Maia, Garífuna e Xinka, e abrange toda a Mesoamérica.


São povos indígenas que trabalham como mão de obra em construção, jardinagem, alimentação, cuidados, costura, entre outros serviços. Eles constituem não apenas uma força de trabalho, mas desenvolveram uma infraestrutura política para dar forma comunitária a sua vida. São circuitos de conexão com suas comunidades de origem. A tecnologia de comunicação virtual possibilita o fluxo de informações entre as redes familiares. O funcionamento dessa dinâmica foi documentado pelo jornalista mixteca Kau Sirenio.2 Os migrantes relançaram e criaram seu sistema político comunitário nos Estados Unidos e, por meio dele, organizam a repatriação dos corpos de seus compatriotas que morrem em solo norte-americano e que são enterrados em seus povoados de origem, além de organizar e colaborar nas festividades comunitárias. Mas eles também criam redes de organização para apoiar suas comunidades afetadas por projetos hidrelétricos e de mineração. Instituições como a União Social Zoogochense, o Comitê de Emergência Franciscano e a Lei de Apoio ao Chuj3 são apenas três das centenas de instituições comunitárias que há nas cidades dos Estados Unidos. Essas comunidades funcionam com líderes encarregados de organizar e gerenciar lutos e festivais, seguindo as diretrizes do trabalho comunitário situadas em suas condições de vida. Essas comunidades são formadas por redes de famílias ampliadas e, conforme a ética de obrigatoriedade do trabalho e de apoio, conseguiram tecer a vida comunitária de várias maneiras. Algumas instituições existem há mais de cinquenta anos, como a União Social Zoogochense, formada por zapotecas das terras altas do norte, originalmente de San

2/ Kao Sirenio, Jornaleros migrantes: explotación transnacional. Cidade do México: Sudemir; Unam, 2021. 3/ A União Social Zoogochense é uma organização zapoteca das terras altas do norte do estado mexicano de Oaxaca. O Comitê de Emergência Franciscano é uma das várias instituições maias q’iche’s em San Francisco El Alto, em Totonicapán, e a Lei de Apoio ao Chuj é formada por comunidades Chuj em San Mateo Ixtatán, Huehuetenango, na Guatemala.

Bartolomé Zoogocho, no México.4 Isso nos apresenta várias esferas de existência comunitária, relançadas nas cidades norte-americanas. A existência de comunidades indígenas nos Estados Unidos e suas múltiplas formas de conexão com suas comunidades de origem ampliam nossas noções de política e de resistência indígenas. Pois a capacidade de governar, recuperar e defender as comunidades da Guatemala ocorre na vida cotidiana. De tal modo que o trabalho e o esforço dos migrantes dão suporte aos processos de reprodução comunitária; de fato, algumas trajetórias de avanço social, de saúde e educação foram possíveis graças a remessas dos integrantes da comunidade que migraram.

política comunal no arquipélago De acordo com Nina Pacari,5 as comunidades indígenas têm se desdobrado como um contrapoder ao Estado latino-americano. Entretanto, esse contrapoder não configura uma força dispersa e amorfa. São instituições políticas comunitárias que, à medida que se contrapõem ao Estado, são capazes de deformá-lo e moldá-lo às sociedades indígenas. Para analisar essas formas antagônicas, é necessário ter em mente os momentos de ruptura social que, ao longo dos séculos, impediram a totalização do Estado guatemalteco e do capital nos territórios indígenas. Ou seja, a capacidade comunitária de governança que as estruturas indígenas tiveram ao administrar a reconstrução da vida após os momentos de guerra e violência. Para entender o antagonismo comunidade/Estado, é preciso analisar ao menos duas maneiras pelas quais esses dois sistemas se contrapõem, a saber: a prebenda e a violência como relação tutelar do Estado em relação às comunidades. 4/ Em uma pesquisa recente, documentei a existência dessas múltiplas instituições de política comunitária, tanto na Califórnia quanto em Nova York. Ver Gladys Tzul Tzul (2022), Indigenous Communal Politics in Los Angeles [Política comunitária indígena em Los Angeles]. Não publicado. 5/ Nina Pacari, “Reflexiones sobre el proyecto político de la CONAIE: logros y vigencia”, in F. Simbaña e A. Rodriguez (ed.), Así encendimos la mecha! Treinta años del levantamiento indígena en Ecuador: una historia permanente. Quito: Abya Yala Editorial, 2018.


As prebendas tiveram o efeito de disciplinar a subjetividade coletiva, embora jamais totalmente, mas a dividiram e fragmentaram temporariamente. Um efeito de uma política de prebenda é o clientelismo, que modifica e refuncionaliza os sistemas comunitários. Por outro lado, a violência aberta: o genocídio, como mecanismo planejado para o extermínio de povos, teve como efeito o deslocamento de seus territórios, a perseguição a suas estruturas organizacionais, a queima de colheitas e a morte dos animais domésticos. Mas as comunidades reconstruíram e recriaram seu mundo comunitário. Diante dessas formas de antagonismo, as comunidades e seus sistemas políticos desenvolveram um profundo grau de fluidez social para se atualizarem diante das ameaças ou transformações necessárias para preservar a vida e foram capazes de deformar o Estado.6 As condições antagônicas mencionadas anteriormente foram, de muitas maneiras, respondidas com rebeliões e levantes que perduram na memória da vida cotidiana. A respeito do mencionado anteriormente, apresento três distinções para compreender as formas como as estruturas da política comunal aparecem: a) governo comunal indígena que controla e defende suas terras, por exemplo, os 48 cantões de Totonicapán e a municipalidade indígena de Sololá, entre outros; b) governos comunitários indígenas que são reconstituídos ao mesmo tempo em que recuperam terras, por exemplo, o gabinete do prefeito indígena do município de Nebaj, Guatemala, e várias comunidades q’eqchi’s; c) governos comunais indígenas que se relançam na cidade; neste ponto podem-se mencionar as inúmeras comunidades indígenas com suas formas de organização em cidades dos Estados Unidos. À luz dessa classificação, proponho a metáfora do arquipélago7 para pensar a presença de estruturas de 6/ Gladys Tzul Tzul, Una forma ética de existencia. Montevidéu: Minerva Ediciones, 2017. 7/ A noção de “arquipélago” para pensar as lutas na política comunal indígena por suas terras comunais dialoga com o pensamento de Raquel Gutiérrez Aguilar, que utiliza essa noção para analisar o poder e a força das lutas que as mulheres estão desenvolvendo no contemporâneo.

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governo comunal em toda a Guatemala e também nos Estados Unidos. Pensar a existência das comunidades e seu sistema político descontínuo leva a entender por que, historicamente, elas foram capazes de impedir a totalização do Estado. A noção de arquipélago pressupõe a existência de territórios comunais limitados por territórios privados e estatais. Por um lado, os territórios comunais, em sua existência descontínua na república, estabelecem níveis de ordem social que colocam a totalidade do Estado e do capital em crise em diferentes níveis. Isto é, sociedades organizadas em uma estrutura comunal que buscam administrar coletivamente a vida, pois compartilham e produzem fontes de água, cuidam de florestas, consertam estradas, guardam zelosamente suas terras. Em outras palavras, elas não vivem como mera soma de pequenos proprietários individuais. Por outro lado, é no arquipélago que se relança a política comunal indígena na cidade, com suas variantes e diferentes expressões que vão assumindo suas estruturas comunais para o apoio e a gestão de festividades e dos lutos, o apoio a suas famílias e as lutas nas quais suas comunidades estão envolvidas. Enquanto o arquipélago é a forma geográfica de pensar a singularidade da existência comunitária no território, a noção de tecidos de assembleias permite pensar os espaços de deliberação e discussão que, gradualmente, estabelecem interligações entre si. Essas redes de assembleias comunais têm tido a salvaguarda das terras comunais no centro de seus interesses e, a partir disso, extensas redes de comunicação fluem entre elas. Desse modo, a comunicação, o acordo e a articulação dos governos comunais se baseiam na lógica da autorregulação, por exemplo, o princípio “nenhuma autoridade governa sobre outra autoridade”, o que significa que nenhuma comunidade governa sobre outra comunidade, mostrando assim a calidad autonómica situada [qualidade regionalmente situada] dos processos de articulação e de trabalho conjunto. A compreensão da política comunal e da resistência à luz do “arquipélago/tecidos de assembleias” mostra a vitalidade e a força das lutas comunais, as quais têm como cerne o controle das terras comunais e, ao mesmo tempo, o


governo de si mesmas de acordo com seu processo histórico. Em todo caso, elas também mostram a arquitetura da luta, as densidades, as formas de articulação. O processo de resistência, portanto, é constituído com base em um sistema político comunal. Conforme Silvia Rivera Cusicanqui,8 pensar a resistência nos coloca em camadas múltiplas e não resolvidas de um passado não digerido, que emergem como fúria acumulada, mas também como bricolagem barroca e subversiva. Minha leitura sugere que, para entender a existência desses sistemas políticos, é preciso não apenas pensar que o Estado queira suprimir essas instâncias políticas, mas, sim, que o Estado, em suas expressões locais, foi deformado pela força e pela capacidade insurgente das comunidades. A figura do arquipélago da resistência comunal iluminaria, assim, o funcionamento da política comunal.

considerações finais O trabalho comunitário, a deliberação política e a rotação de cargos constituem a base a partir da qual se produzem projetos políticos de longo prazo, aqueles que os povos indígenas incorporam e vivem diariamente. Mas é uma vida cotidiana que se constitui em singularidade, e, por isso, a metáfora do arquipélago comunal é fundamental para compreender a continuidade e a descontinuidade de sua existência, e ainda possibilita mostrar a força de sua existência, bem como os ritmos desiguais em que existem. Sob essa marca das comunidades do arquipélago, produziu-se um rico universo iconográfico e imagético para a realização simbólica. Me refiro a uma parte da grande produção comunitária de estética, diversão e prazer nas sociedades indígenas, como as festas dos santos padroeiros das comunidades, em que os processos econômicos e o prazer são ativados. Ainda não é possível calcular o número de huipiles [roupas tecidas à mão usadas pelas mulheres maias], tecidos e faixas que são comprados e vendidos para celebrar as festividades. Pode-se somar 8/ Silvia Rivera Cusicanqui, Un mundo Ch’ixi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018.

também a variedade inclassificável de alimentos relacionados às festividades em épocas de celebração, bem como os usos do cotidiano, às artes do fazer a vida coletiva. Da mesma forma, há mais de duas décadas, circuitos de comercialização de tecidos, huipiles e outras peças de vestuário foram introduzidos nos Estados Unidos. Essas expressões da cultura comunitária, reativadas em um tempo e uma geografia dispersos e em diferentes eventos comemorativos, seriam uma das muitas formas de expressão comunitária da estética. Se a política comunal também produz esse universo simbólico, que, por conseguinte, produz iconografia, imagens, sabores e sons criados de modo coletivo, e se o comunal é um projeto histórico de governo, a política comunal também governa com imagens. Totonicapán, 1º de julho de 2023

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referências Comunidades Indígenas en Liderazgo. “Racismo y desplazamiento: situación de la criminalización y violencia lingüística en Estados Unidos contra migrantes indígenas”, Tzul Tzul, G (ed.). Informe parcial apresentado em audiência pública no período 186 de audiências da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Los Angeles: 2023. PACARI, Nina. “Reflexiones sobre el proyecto político de la CONAIE: logros y vigencia”, in Simbaña, F. e Rodriguez, A. (comp.), Así encendimos la mecha! Treinta años del levantamiento indígena en Ecuador: una historia permanente. Quito: Abya Yala Editorial, 2018. RIVERA CUSICANQUI, Silvia. Sociología de la Imagen: miradas ch’xi’ desde la historia andina. Buenos Aires: Tinta Limón, 2015. __________. Un mundo Ch’ixi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón, 2018. SIRENIO, Kau. Jornaleros migrantes: explotación transnacional. Cidade do México: Sudemir; Unam, 2021. TZUL TZUL, Gladys. Gobierno comunal indígena y estado guatemalteco. Claves para comprender su tensa relación. Ciudad de Guatemala: Ediciones Bizarras, 2018. TZUL TZUL, Gladys; RAMÓN, Simón Antonio. “Guatemala más allá de las elecciones”. Ojalá, 10 maio 2023.


daniel lie

Em uma visita ao ateliê de Daniel Lie em 2017, senti um forte aroma que permeava o ambiente. Produto da decomposição das flores, das frutas e dos vegetais mantidos em seu estúdio, aquele odor era a manifestação de um universo de seres ocultos que daria novos rumos para sua prática artística. A investigação em curso se debruçava sobre os efeitos do tempo e a ação de microorganismos, como fungos e bactérias, na

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transmutação de matéria orgânica. Presenciar as mudanças na materialidade daqueles elementos, e acompanhar ciclos naturais diversos, possibilitou que Lie refletisse sobre as complexidades das relações interespecíficas e seu papel na geração e na manutenção da vida. Lie ampliou suas noções de temporalidade e tem se empenhado em encontrar formas de colaboração que quebrem a noção hierárquica

que posiciona a espécie humana no topo da escala evolutiva. Desde então, elu desenvolve “instalações-entidades”: grandes esculturas de materiais orgânicos, resultado do processo de degradação/transformação dos elementos que lhe dão forma. Apesar de responderem ao contexto e ao lugar em que são apresentadas, em cada uma delas, Lie recorre a novos métodos para a criação de ecossistemas harmônicos,

onde relações entre fungos, plantas, animais, minerais e outres-além-de-humanes possam romper com uma leitura binária sobre vida e morte. Para a 35ª Bienal de São Paulo, Lie apresenta Outres (2023) e busca criar um espaço onde o silêncio, não as palavras, conduza a relações entre os presentes. Outres é resultado da maturação das técnicas e dos modos de fazer desenvolvidos ao longo dos últimos anos de sua pesquisa. A instalação imersiva será composta por vasos de terracota, colunas e arranjos de crisântemos amarelos e brancos, além de tecidos de algodão tingidos com cúrcuma. Somam-se à composição do trabalho, os efeitos da passagem do tempo nos materiais e a eventual geração de novas vidas derivadas das relações estabelecidas entre os agentes orgânicos presentes no ambiente. thiago de paula souza

Non-Negotiable Condition, 2021 Condição não negociável. Vista da instalação, Metabolic Rift, Berlim (2021)


daniel lind-ramos

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De certa maneira, o trabalho de Daniel Lind-Ramos é algo extremamente local. Suas grandes assemblages encenam um encontro com sua cidade natal, Loíza, Porto Rico, área na qual são coletados os objetos que compõem sua obra. Ao longo de décadas, os vizinhos o observaram vagar pelas ruas e praias da cidade, coletando e reunindo peças da vida comunitária. Acostumados com seu estúdio

sempre aberto, alguns habitantes de Loíza levam para o artista itens que consideram interessantes, de um belo pedaço de cachimbo a utensílios de cozinha herdados de uma avó querida. Essa especificidade geográfica não é insignificante. A cidade de Loíza é o célebre centro da vida afro-porto-riquenha, que tem a maior população negra da ilha. Fundada no século 16 por africanos


fugitivos das plantações da então colônia espanhola, a cidade é o berço dos estilos musicais plena e bomba. Também é conhecida pela comida de rua, chamada localmente de frituras, e seu Carnaval anual, reconhecido pelas tradicionais máscaras de vejigante feitas com cascas de coco. Desse modo, a prática de Lind-Ramos constitui uma espécie de testemunho da história e do significado de Loíza, um primeiro plano

da negritude de Porto Rico: “Cuidar de objetos é cuidar da memória”, afirma Lind-Ramos. Ele preserva a memória nesses raladores, vassouras, cabaças e címbalos; memórias de criação alegre, de trabalho, de ancestralidade. Memórias que, de outra forma, poderiam se desvanecer ou ser apagadas. Mas essa não é a história completa. Lind-Ramos afirmou certa vez sobre seu trabalho: “Minha inten-

ção era encontrar uma linguagem, encontrar um processo, encontrar materiais que estabeleçam o vínculo entre nossa experiência coletiva…”. Essa experiência coletiva que ele menciona vai além de sua cidade e de seu estado natal. Falando sobre artistas afro-americanos de Los Angeles, que trabalharam nas décadas de 1960 e 1970, a historiadora de arte Kellie Jones argumentou que “a estética da assemblage” é de “ligação e conexão”.1 Ela também defende a história da forma na arte africana e sua estética vernacular e cotidiana, que fornece “uma justificativa para as pessoas negras reivindicarem as técnicas assemblage [...] e as estratégias ordinárias de fazer beleza que foram permitidas às pessoas que se encontram à margem da sociedade”.2 Isso não poderia ser mais verdadeiro na prática de Lind-Ramos e vincula sua arte a um campo mais amplo da estratégia afro-diaspórica. Suas esculturas conectam-se no tempo e no espaço, assim como o cortejo carnavalesco que sua obra Con-Junto nos traz à mente. O Carnaval abrange Porto Rico, Trinidad e Tobago, Brasil, Nova Orleans e tantas outras partes da diáspora africana, ligadas por uma história de migração forçada e de violência, mas também de persistência, criatividade e inovação. Tanto o Carnaval quanto a assemblage, lindamente fundidos em seu trabalho são momentos da mais requintada criação de algo que poderia ter sido condenado a ser nada. nicole smythe-johnson traduzido do inglês por naia veneranda

_ 1/ Kellie Jones, South of Pico: African American Artists in Los Angeles in the 1960s and 1970s. Durham: Duke University Press, 2017, p. 69. (Tradução livre). 2/ Ibid.

Con-Junto (The Ensemble), 2015 Assemblage, 289,6 × 304,8 × 121,9 cm


davi pontes e wallace ferreira

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Falar da produção de Davi Pontes e de Wallace Ferreira é, antes de mais nada, reconhecer o encontro de ambos que, desde 2018, desenvolvem juntos uma série de trabalhos com base na identificação e na elaboração radical de suas vivências e pesquisas comuns relacionadas à dança e à experiência do corpo dissidente negro no mundo. Entre seus trabalhos produzidos, como Mata leão, morto vivo (2020), Delirar o


racial (2021), e a trilogia Repertório (2018 – em curso) a dupla utiliza a mimese, a repetição e a marcação rítmica do contratempo, feita com os pés, como recursos para dilatar a percepção de tempo-espaço. Partindo da pergunta “como elaborar uma dança de autodefesa?”, Pontes e Ferreira experimentam desvios simbólicos da violência programada pelo Estado e por instituições garantidoras da ordem

mediante repressão. Com referências às artes marciais e à capoeira, com a crítica ontoepistemológica à filosofia moderna e à história da dança, tomam o ato de criação performática e visual como possibilidade de ativar e ressignificar os arquivos mnemônicos coletivos sobre essas corporalidades. Se o corpo negro em repouso é suspeito e em movimento, uma ameaça, Pontes e Ferreira encontram nesse

fazer coreográfico estratégias possíveis para reelaborar imaginários, propondo alterações nos significados simbólicos da presença negra em um mundo que ainda não é capaz de garantir a existência e a dignidade a essas vidas. Enquanto a dança moderna instruiu o público espectador a esperar por acontecimentos impressionantes e grandiosos, a repetição reforça a expectativa do porvir e a incerteza rompe com a previsibilidade sobre a dança. Ao tomar contato com a performance em andamento, o público se encontra imerso na imprecisão sobre início e fim. É possível dizer que Pontes e Ferreira desenvolvem uma anticoreografia contracolonial, o que, na prática da vida negra, pode significar a recuperação e a fundação de modos estratégicos de caminhar em autodefesa no cotidiano, desviando da violência racial, reelaborando a percepção de si e do tempo-espaço em direção ao fim da organização do mundo atual. maria luiza meneses

Delirar o racial, 2021 Stills do vídeo. Vídeo, cor, som


dayanita singh

Mona Montage, 2021 Impressão pigmentada e gelatina de prata, 41,3 × 61,3 cm

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A aproximação entre fotografia e dança, em virtude de uma dispa­ ridade ontológica entre esses meios, produz uma tensão inicial e imediata entre movimento e paragem. Como se a fotografia estivesse sempre atrás do movimento da dança, sem jamais conseguir capturá-lo completamente. A prática de Dayanita Singh emerge e se alimenta justamente dessa tensão. Seu interesse pela mobilidade do objeto fotográ-

fico quando exposto, presente nas estruturas/coleções que chama de museus, encontra ainda mais complexidade e nuance nos trabalhos apresentados na 35a Bienal. Em Museum of Dance (Mother Loves to Dance) [Museu da dança (Mãe ama dançar)] (2021), não apenas as impressões fotográficas encontram-se móveis no espaço expositivo, também os retratados estão em movimento, dançando. Entre eles,

Mona Ahmed, amiga de longa data de Singh que também protagoniza as demais obras expostas, destaca-se pela recorrência. De acordo com Singh, no contexto indiano, Ahmed foi identificada como eunuco, ou como hijra. No entanto, em determinado momento ela se afastou da comunidade de eunucos e passou a questionar a expectativa de feminilidade que havia em relação a ela. “Você realmente não entende. Eu sou o terceiro sexo, não um homem tentando ser mulher. É um problema da sua sociedade que você reconheça apenas dois sexos”.1 Assim, pouco importa “descrever” Ahmed com precisão identitária, mas interessa pensar o movimento infindo que excede o sistema binário de gênero e que podemos chamar de transição. Para além de um retrato da transição como alegoria de movimentos estético-políticos, como frequentemente ocorre quando produzido por lentes cisnormativas, a intimidade e o pacto de confiança estabelecidos na colaboração entre Singh e Ahmed, ao perpassar a unidirecionalidade etnográfica (o “eu” que vê/descreve/produz o “outro”), permite que algo formidável aconteça: a imagem estática evoca e performa o movimento incapturável da transição. miro spinelli

_ 1/ Frase de Mona Ahmed extraída do texto do site de Dayanita Singh sobre o livro Myself Mona Ahmed. Zurique: Scalo Pusblishers, 2001. Disponível em: dayanitasingh.net/myself-mona-ahmed/. Acesso em: 26 maio, 2023.


deborah anzinger

Sempre considerei o trabalho de Deborah Anzinger essencialmente relacionado à sintaxe. Isto é, a estrutura da linguagem, tanto a linguagem verbal quanto a visual. Seu trabalho convida a pensar as relações que produzem a linguagem − a relação entre sujeito e objeto, o eu e o outro, masculino e feminino, natural e artificial; binários que se opõem e se constituem mutuamente. Esses conceitos, aqui identificados por

seus descritores verbais, são fundamentados no material da obra de Anzinger, e uma materialidade rigorosa pode ser considerada o segundo princípio em torno do qual sua prática se organiza. As pinturas de Anzinger se recusam a permanecer nas paredes, não se rendendo à suposta bidimensionalidade da tela. Elas insistem em se projetar, refletir, crescer e se retorcer nas telas não esticadas. Nelas,

Deborah Anzinger: An Unlikely Birth Um nascimento improvável. Vista da exposição, Institute of Contemporary Art, University of Pennsylvania, Philadelphia (2019)

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encontramos linhas e gradientes pintados à mão tão perfeitamente processados que parecem digitais, plantas vivas crescendo a partir de isopor sintético mortal e espelhos que transformam o observador em observado. No universo de Anzinger, linhas e pinceladas tornam-se esculturas, íris tornam-se línguas. Onde deveria haver um buraco, há um desenrolar. O trabalho da artista está sempre forçando os opostos a

se unirem, desestabilizando nosso pensamento binário e a taxonomia, exigindo, em vez disso, o reconhecimento de uma terceira via escorregadia, lúdica e sensual. Especificamente neste corpo de trabalho, concluído entre 2016 e 2019, o foco de Anzinger está voltado para o trabalho reprodutivo: sua sensualidade, sua fecundidade, mas também sua violência. O cabelo crespo sintético da obra An Unlikely

Birth [Um nascimento improvável] (2018) constitui uma referência inconfundível à negritude, assim como os desenhos de linhas pretas que perturbam a paisagem abstrata, aparentemente em processo de vir a existir. Como mulher negra, nascida e criada no Caribe, Anzinger está atenta às formas como a negritude é frequentemente excluída ou circunscrita à subserviência em representações da região. A pintura rompe o tipo de paleta que normalmente se associa ao Caribe (alegres céus azuis, a o típico azul-esverdeado do mar do Caribe e gramados verdejantes), com rabiscos desenhados em forma de seios, símbolo máximo de nutrição e sexualidade; e, segurando folhas com formato de mão − lembrando-nos que a natureza tem a própria subjetividade −, um agente que toma − como fazem anualmente os furacões nessa região − tanto quanto fornece. E então, é claro, aquela mecha de cabelo preto crespo. Não exatamente na pintura, é uma espécie de excedente em que as plantas de aloe vera, reconhecidas por suas qualidades curativas, crescem a despeito de todas as probabilidades, do poliestireno hostil que obstrui os cursos-d’água envenenando a fauna. Essa, eu diria, é a questão principal de Anzinger, mesmo nas condições mais inóspitas o que é curativo cresce, e mesmo em lugares de beleza inspiradora a violência espreita. nicole smythe-johnson traduzido do inglês por naia veneranda


denilson baniwa

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A organização linear do tempo tal como concebida pela Europa moderna, movida pelas noções de progresso e de não retorno, é incompatível com as concepções do tempo entre as culturas ameríndias. Determinada pela interação entre o corpo e a natureza, organizada através da observação empírica das transformações do meio, a experiência do tempo indígena se assenta, em geral, em

fundamentos míticos, que se reinscrevem na vida cotidiana através dos ritos. Entre esses ritos está o da transmissão do conhecimento e o da partilha dos afetos, que, no mundo ocidental, chamamos educação. É baseado no entendimento da educação como um processo não linear, processual e coletivo, que Denilson Baniwa vem, nos últimos anos, investigando formas de introdução de temporalidades


indígenas em instituições artísticas não indígenas. Um dos mais destacados artistas de sua geração, Denilson Baniwa propõe, em sua obra, uma reelaboração da ideia de arquivo como instrumento pedagógico de reflexão e de fábrica da história. Desde seus trabalhos iniciais, de intervenção sobre gravuras produzidas no contexto da colonização das Américas, até os trabalhos mais recentes, de

caráter instalativo e participativo, Baniwa realiza intromissões no arquivo com o objetivo de tensionar e fragilizar o tempo acelerado da conquista e da colonização e fazer emergir o tempo da reflexão, da espera e da escuta. Em obras mais recentes, como Nada que é dourado permanece, hilo, amáka, terra preta de índio (2021), Ygapó – terra firme (2022) e Escola Panapaná (2023), o artista investe no estímulo à relação

e ao contato, resgatando a imagem do cultivo da roça e da vida na floresta como métrica do tempo e metáfora da educação. Em Kwema/Amanhecer, Denilson Baniwa aprofunda sua pesquisa sobre a integração entre obra e comunidade, complexifica os proce­dimentos técnicos que permitem a passagem do campo da representação para o da vivência e faz aparecer a possibilidade da colheita e da alimentação como efetivação do ato da partilha e da reelaboração da memória. renato menezes

Colheita maldita, 2022 Fotografia digital


denise ferreira da silva

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Uma série de pirâmides se encontram espraiadas pelo Pavilhão da Bienal e, ocasionalmente, ganham novas formas. Cada uma delas configura a presença de um tetraedro, sólido platônico que representa o fogo e compõe Metafísica dos elementos – O E/Studio (2023), de Denise Ferreira da Silva. O fogo atualiza o exercício pelo qual a artista persegue esteticamente uma questão que retorna em

suas produções artísticas e filosóficas. Na capacidade de transformação radical e na recondução do fogo em combinação com os outros elementos, a forma-conceito anuncia a abertura de um aqui-agora para o fim do mundo como o conhecemos. Percebo Metafísica dos elementos – O E/Studio como uma rachadura que tenciona engolir silenciosamente o pavilhão, o parque, a cidade... Não em uma cena


dramática e apocalíptica, e sim como espaço para a emergência de coletividades e imaginações que se mantêm vibrando em frequências de afinidade ética. O fim reapresenta uma disputa e a necessidade de abandonar as ferramentas do pensamento moderno, que promove a dominação como finalidade, convocando à cena práticas do pensamento constantemente performando o fim, pois

jamais partiram do pressuposto de que existe uma separação ontológica entre o humano e as demais presenças que habitam o mundo. Quando as estruturas de inseparabilidade, os tetraedros, se reúnem e se transformam em mesas, bancos e arquibancadas, o studio funciona como plataforma para a emergência de encontros com intelectuais negras feministas, artistas e movimentos sociais engajados no

desmantelamento das formas antinegritude do mundo, e em demandas ecológicas pelo direito à vida, à terra e ao território. A obra dá sequência a uma série de práticas artísticas pelas quais Denise Ferreira da Silva responde ao projeto de ocuparmo-nos do mundo através do elemental thinking [pensamento elemental], promovendo um deslocamento vertiginoso e necessário aos projetos de descolonização que, no contexto brasileiro, seguem confinados a imaginar a correção das instituições, o que não tem conseguido evitar que o colapso siga dando contorno a esse território. cíntia guedes

vista de Poetical Readings/Intuiting the Political Leituras poéticas/Intuindo o político, uma conversa aberta com Denise Ferreira da Silva e Valentina Desideri no episódio 7 de Arika, We can’t live without our lives [Nós não podemos viver sem nossas vidas]. Tamway. Glasgow, 18 de abril de 2015


diego araúja e laís machado

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“Quero me acabar no sumidô.”1 Esse dito popular remonta ao verso de um vissungo2 registrado em 1929 em Minas Gerais, e provavelmente entoado por todo território onde havia gente negra explorada. Sumir como oportunidade para embarcar em uma temporalidade na qual o lambá – desgraça do trabalho escravizado e seus encadeamentos seculares – não seja o único destino da vida negra. Cantar para


uma desaparição produtiva que relaciona vida e morte não como oposições, mas como possibilidade de viver a vida outramente. É no rastro desse cântico que Sumidouro n. 2 – Diáspora fantasma se recusa a se entregar ao olhar que tudo revela. Apostando na opacidade formal de uma arquitetura monumental, a obra liga-se ao chamado ético dos trabalhos em parceria de Laís Machado e Diego Araúja

ao emergir como plataforma e congregar artistas afro-atlânticos. Encantar-se no Sumidouro n. 2 é a oportunidade de estar na presença de trabalhos que, contrariamente às forças coloniais de desaparição, jamais deixaram de ser realizados em experimentações e linguagens próprias. Como em outros trabalhos em artes visuais de Araúja e Machado, a obra conserva funções cênicas, dessa vez em sua escala,

e no jogo espectatorial promovido com a palha, matéria de funções litúrgicas, arquitetônicas e artesanais. Definida pel_s artistas como instalação-performer, a fantasmagoria que se performa não aparece como aposta surrealista de revelação do inconsciente, mas sim como possibilidade de dançar com tudo aquilo que foi sumido. Em movimento, Sumidouro n. 2 promove des/aparições; o que virá se revela em fragmentos, as obras abrigadas ofertam-se à apreensão integral e rítmica, mas não totalizante. É possível apenas contemplá-lo, mas, para estar no Sumidouro n. 2, demanda-se um corpo inteiro com qualidades da presença alarinjo – que, em iorubá, significa um corpo que canta e dança enquanto caminha, implicado no desejo de re/des/ conhecer.3 Essa é uma plataforma sinuosa, na qual se destacam o pacto coletivo, a intencionalidade do rito e o desejo de intervir nas dinâmicas de desaparição. cíntia guedes

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1/ “Ei ê lambá / quero me acabá no sumidô / quero me acabá no sumidô / lamba de vinte dia / ei lambá / quero me acabar no sumidô / Ei ererê.” Vissungo registrado em 1929, pelo filólogo e linguista Aires da Mata Machado Filho (19091985), em pesquisa sobre o repertório banto em Diamantina (mg), foi re(en)cantado elo cantor e compositor Geraldo Filme (1927-1995) no álbum O canto dos escravos, de Geraldo, Clementina de Jesus e Tia Doca, Estúdio Eldorado, 1982. 2/ Canto entoado por escravizados negros nas lavras de diamantes em Diamantina (MG) com palavras em português e línguas africanas. [n.e.] 3/ Alarinjo foi também um termo usado por Laís Machado para definir sua prática performática em Artes Cênicas.

Estudos para Sumidouro n. 1, 2022 Instalação composta por cortinas de palha da costa e sisal em trilhos de alumínio movidos por Arduino


duane linklater

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Os trabalhos de Duane Linklater jogam com conceitos de paisagem. Sabemos que o referido termo carrega o peso de um gênero histórico da pintura, além das complexas implicações presentes em uma de suas facetas: as representações dos espaços dominados produzidas pelos artistas via comissionamento dos colonizadores. Na relação sempre presente entre arte e sociedade, nessas representações podemos

aferir, diante de nossos olhos, a vasta documentação dos processos de dominação junto à mudança simbólica e aplicada dos usos dos territórios. Não me refiro a todo tipo de paisagem, mas àquelas que mais genuinamente se apresentam como campo aberto ao alcance da visão, a violenta representação do que é tornado posse. Linklater se propõe a pensar a paisagem como experiência


perceptiva da manifestação dos fenômenos naturais, como estado físico e espiritual dos seres atravessados pelas forças do mundo. Mas a referência e o peso da história oficial são importantes pontos a serem lembrados, pois os trabalhos do artista trincam a imagem frequentemente romantizada, embebida de nostalgia, ao questionar sua natureza original. Parecem mesmo habitar essa rachadura. Linklater se

apropria de elementos da arquitetura moderna e contemporânea e os assimila em sua produção. Para a 35a Bienal de São Paulo o artista apresenta uma série de pinturas que tensionam, a partir de um jogo entre forma e matéria, os legados nefastos dos sistemas escolares1 destinados a crianças indígenas – em funcionamento no Canadá entre 1880 e 1996. Nas composições que Linklater persegue desde

2015, quando inicia essa pesquisa, ele retoma as geometrias da capela Bishop Fauquier, construída com base no trabalho de crianças que frequentaram a Escola Residencial Indígena Shingwauk (com funcionamento entre 1873 a 1970). Além de obrigadas a fornecer o trabalho braçal nas construções, essas crianças realizavam sacrifícios quaresmais relacionados ao xarope de bordo. Como se lê no projeto apresentado pelo artista à 35a Bienal, “As comunidades Anishinabek desenvolveram uma metodologia específica de produção de xarope de bordo com seu conhecimento íntimo das estações, da terra e de seus processos. Portanto, não apenas as crianças foram solicitadas a renunciar ao consumo de xarope, mas isso criou uma desconexão simbólica com essas práticas e metodologias comunitárias”. Divididas em nove partes, as geometrias da capela são manejadas com outros delineamentos feitos a partir de carvão, cochonilha, chá, tabaco e outros corantes que denotam o trabalho das crianças que edificaram a construção. As pinturas que levam o título they have piled the stone / as they promised / without syrup [elas empilharam a pedra / como prometeram / sem xarope] seguem ecoando as perguntas do artista: Como podemos, como povos indígenas, viver, tomar decisões, falar, dançar e nos mover em contextos e lugares tão impossíveis? emanuel monteiro

_ 1/ O Sistema de Escolas Residenciais no Canadá foi um sistema violento e prolongado imposto pelo governo e pelas igrejas que o acompanhavam, criado especificamente para que crianças indígenas fossem separadas de suas famílias, aculturadas e colonizadas.

they have piled the stone / as they promised / without syrup, 2023 eles empilharam a pedra / como prometeram / sem xarope. Vista da exposição, Art Gallery of Hamilton (2023)


edgar calel

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A onça-pintada é uma figura proeminente nas culturas mesoamericanas, aparecendo em vários tipos de representações. Na cultura e mitologia maia, a onça-pintada tem a capacidade de transcender o espaço e o tempo, e de atravessar entre o dia e o espiritual para facilitar as comunicações e as conexões entre os mundos dos ancestrais e dos vivos.

No vídeo XAR – Sueño de Obsidiana [XAR – Sonho de Obsidiana] (2020), realizado com o cineasta brasileiro Fernando Pereira dos Santos no interior do Pavilhão Ciccillo Matarazzo da Bienal de São Paulo, durante a primeira onda da pandemia de Covid-19 no Brasil, o artista maia Edgar Calel veste a pele de uma onça enquanto caminha pelo pavilhão procurando ver e entender como o local foi originalmente

ocupado pelos indígenas que habitaram originalmente esse território. Isso constitui, a um só tempo, uma transmutação entre humanos e não humanos e uma transcendência do espaço e do tempo. É também um ato de construção de solidariedade ou de prática comunitária. Ao longo do vídeo, Calel veste um moletom azul bordado com os nomes das 22 línguas maias, enquanto recita na língua caqchikel um poema seu, composto a partir de sonhos que teve no Brasil durante a pandemia, cujo título é homônimo do filme. A partilha em comunidade é um tema fundamental para a produção artística de Calel. A instalação da Casa Guarani de Calel na 35a Bienal de São Paulo é um grande desenho imersivo sobre tela de uma casa guarani, cercada por bordados de plantas de iúcas. O desenho é uma imagem arquitetônica e, também, uma representação da epistemologia indígena − um mapa da prática da comunidade em torno de uma fogueira enquanto compartilha histórias, rituais, música e meditação. O desenho reorienta o espaço da horizontal para a vertical e convida o espectador a participar do imaginário comunitário da indigeneidade. O povo Guarani é o maior grupo indígena do Brasil, cuja população sobrevivente é estimada em 51 mil pessoas. Hoje, três aldeias guaranis, com população total de aproximadamente setecentos indígenas, vivem no bairro do Jaraguá, na periferia da cidade de São Paulo. mario gooden

Esboços para Nimajay Guarani, 2023 A grande casa guarani. Grafite sobre papel, 50 x 50 cm (cada)


elda cerrato

O que são essas estranhas formas que vibram, se aproximam, se agregam? Células-tronco mutantes? Fragmentos de corpos celestes? Momentos de vida desconhecida? Máquinas orgânicas? Paisagens domésticas ou estelares? Parece não haver figuração nem abstração na série de pinturas que Elda Cerrato (1930-2023) produziu após o nascimento do filho, em 1964, e que deu origem

ao curta-metragem de animação RF: Segmentos_CPV: Okidanokh (1964-2022) – realizado em conjunto com Ramiro Larraín, Luis Zubillaga e Luciano Zubillaga. De fato, há uma rigorosa invenção de mundos. Desde seus primeiros trabalhos surge a questão do mistério da vida e da transformação da energia em suas formas mais insuspeitas, desconhecidas, secretas. Até certo ponto, essas imagens funcionam

Algunas experiencias relativas al Okidanokh, da série Producción de Energía, 1965 Algumas experiências relativas ao Okidanokh, da série Produção de energia. Óleo sobre tela, 115 × 145 cm

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como investigações ou hipóteses, especulações ou alucinações, projeções esotéricas. Mas e se conseguíssemos encadear alguns indícios que a artista deixa a nosso alcance para desvendar seu enigma? Os títulos fornecem pistas (as menções do Ser Beta, do Laboratório da Fonte Sagrada de Energia, Okidanokh) ao remeterem a visões de mundo alternativas, como a filosofia do

Quarto Caminho, fundada por Georges Gurdjieff, da qual Cerrato e seu companheiro de vida, o músico experimental Luis Zubillaga, eram praticantes ativos desde os anos 1950. Com a concretização em imagens de uma busca espiritual, nota-se um conhecimento preciso de bioquímica (curso que a artista completou integralmente) e a prática da observação ao microscópio.

Muitas dessas imagens também devem ser abordadas em uma chave erótica: iminência de conjunção entre órgãos, encontro, fusão, montagem, penetração, gestação. Sangue fluido. Órgãos pulsantes. Essas imagens podem ser compreendidas como mapas e diagramas de uma viagem estelar até pousar na Terra, precisamente em uma América Latina abalada pela radicalização política que assolava o continente, onde se situa a série de pinturas e heliogravuras que a artista produziu nos anos 1970. Do Ser Beta à multidão nas ruas: esse é o trânsito que transfigura seu olhar partindo da busca interior ao mundo do entorno. A organicidade de seus mapas é a de um corpo vivo, que vai se alterando sem abandonar os rastros percorridos, mas retomando-os. “Visões de mundo como memórias de outros tempos”, diz Cerrato.1 Um exercício de memória e, ao mesmo tempo, projeção para o futuro. O seu tenaz desejo de não aceitar convenções e de conhecer por seus próprios meios talvez seja a chave principal para nos aproximarmos de uma trajetória que ilumina desde as margens, o seu “estar à margem” das instituições ou de tendências artísticas hegemônicas. É essa capacidade de descentralizar e entrelaçar que nos incita a continuar em busca de formas para desvendar o enigma que Cerrato nos legou. ana longoni traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ Elda Cerrato, La memoria en los bordes: entrevista, dibujos. Buenos Aires: Nobuko, 2011, p. 7.


elena asins

detalhe de Sem título (Variações offset), 1975 Impressão offset em papel, 75 × 836 cm

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No final da década de 1960, Elena Asins (1940-2015) começou a desenhar estruturas que se desdobram silenciosamente em uma superfície bidimensional; às vezes, a artista desenvolvia um elemento modulado com base em uma sequência e um ritmo específicos, exigindo que o espectador fizesse uma reconstrução mental que tensionava e ampliava o limite do papel ad infinitum. A linha – o desenvolvimento

de um ponto – descobre seu potencial dimensional ao virar, ao girar: ela dança, ela soa? De fato, para Asins, o que é desenhado é tão relevante quanto o que é pensado e não dito, conectado como está ao pensamento de Wittgenstein. Ela mesma apontou o cruzamento de seu trabalho com a música (além da literalidade dos títulos que evocam os Quartetos prussianos de Mozart ou a estrutura

do cânone de Bach). De acordo com Javier Maderuelo: “Sua arte é musical não apenas porque suas formas plásticas têm uma relação de semelhança estrutural com certos desenvolvimentos composicionais na música, mas também porque, como a música é imaterial, ela é puro processo mental”.1 Se pelo menos desde a Grécia clássica a música é escrita com signos a serem interpretados – notas mudas para os não alfabetizados –, a alfabetização é supérflua na obra de Asins, uma vez que seus signos carecem de um código consensual; suas estruturas disciplinadas, desenvolvidas com rigor, permitem que sejam traduzidas em conceito, expandindo assim a autoria em direção ao leitor. São poemas visuais ou partituras – concebidos em um sentido performativo, aberto e sonoro que vem do Fluxus – nos quais o espaço e o tempo se tornam visíveis com signos linguísticos muito simples, quase leves, inscritos em preto e branco de forma minimalista: porque nada mais é necessário. De fato, em 2023, Cantos de Orfeo (1970), uma partitura inédita dedicada ao artista Eusebio Sempere, foi executada pela primeira vez na Espanha, interpretada pelo Trío Poesía Acción H,GLAJERU;G e pelo CoroDelantal. Sinais incorporados em corpos que soam e se movem no espaço e no tempo. isabel tejeda traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ Javier Maderuelo, “Menhir dos”, in Elena Asins: Menhir dos. Ayuntamiento de Madrid, 1995.

esta participação é apoiada por: Acción Cultural Española (AC/E) e Embaixada da Espanha no Brasil.


ellen gallagher e edgar cleijne

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Vivemos o Antropoceno − no senso comum, período compreendido como uma nova era geológica sobredeterminada pela ação humana. Mas torna-se necessário refletir sobre esse conceito, que é incerto e não designa apenas um momento geológico nem se refere ao humano genérico. Assim, é fundamental reconhecer as estruturas da supremacia masculina branca como parte das transformações

predatórias e aceleradas da geobiosfera, contestar sua essência, que mantém a figura humana no centro da cena em detrimento das relações interespécies. Assim, é essencial vivenciar as obras de Ellen Gallagher e Edgar Cleijne que, em meio às violências raciais e ambientais, fazem cruzar ficções e realidades com pântanos, oceanos e ícones e símbolos racializados, levando à construção


de outras paisagens políticas e poéticas para perceber e narrar o mundo multiespécies. Pois é na água e no mar que Ellen Gallagher e Edgar Cleijne se ancoram. A artista nasceu em Rhode Island, Estados Unidos, e vive entre o Brooklyn, Nova York, e Roterdã, Holanda − cidades com um papel relevante no comércio transatlântico de escravizados. Desde 2024, ela divide o trabalho

com o holandês Cleijne. Juntes, assinam a instalação multimídia Highway Gothic (2017), seguida dos trabalhos pictóricos de Gallagher Watery Ecstatic [Êxtase aquoso] (2007, 2017 e 2021), Morphia (2008 e 2012) e Ecstatic Draught of Fishes [O caldo extasiante dos peixes] (2019 e 2021). Essas obras tensionam questões acerca do legado do colonialismo, dos impactos ecológicos, dos deslocamentos negros

e dos paradigmas da arte eurocêntrica em um processo que envolve o afrofabular1 e o afrofuturismo combinados a pinturas, cianotipias, instalações fílmicas e sonoras (a música é mnemônica e contracultural) e obras teóricas da diáspora africana, como o Atlântico negro, do escritor Paul Gilroy.2 Por meio de estéticas aquáticas, Gallagher e Cleijne propõem uma imersão nas profundezas dos oceanos em um diálogo com as criaturas marinhas, biomórficas, histórias/estórias e mitos que habitam essas profundezas. É importante salientar que, como um lugar de esquecimento, o mar traz consigo apagamentos que expressam narrativas coloniais expansionistas. Desse modo, em suas obras, em devir, es artistes imaginam a vida após a morte do tráfico atlântico. barbara copque

_ 1/ Esse é um termo-conceito trabalhado por autores como Saidiya Hartman e Tavia Nyong’o. 2/ Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução Cid Knipel Moreira 2. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: 34; Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.

Highway Gothic, 2017-2019 Vista da instalação. Cianótipo, filme 70mm e banners de tecido, caixas de luz de cianotipia, filme 16mm e projeções de filme em cianótipo, som

esta participação é apoiada por: Mondriaan Fund.


emanoel araujo

Emanoel Araujo no ateliê da ladeira do Desterro, Salvador, sem data

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Emanoel Araujo (1940-2022) foi um artista e curador brasileiro, conhecido por suas inúmeras contribuições para o fortalecimento da história e da arte afro-brasileira. De família de ourives, Araujo teve uma formação diversificada, aprendeu técnicas de marcenaria, o que o levou a apurar, dentre outros aspectos formais e estéticos, sua prática como gravurista e escultor.

Araujo iniciou sua carreira em Santo Amaro (BA) como tipógrafo e desenvolveu habilidades em gravura e escultura, explorando, ao longo de sua trajetória artística, a abstração geométrica. Como escultor, Araujo atentava à seleção dos materiais, incorporando elementos das culturas ameríndias, africanas e afro-brasileiras a suas obras. Suas esculturas frequentemente aludem a navios, a máscaras e a represen-

tações simbólicas da cosmogonia das religiões de matriz africana e afro-brasileira. Na obra exposta na 35ª Bienal, um monumental relevo, é possível constatar o modo como o artista constrói ritmo e movimento, criando peças que transmitem dinamismo visual e sensação de fluidez marcantes. A cor também desempenha um papel fundamental em seu trabalho; Araujo utilizava cores vibrantes e contrastantes que conferiam vitalidade e impacto a suas esculturas – características formais que ajudam a definir a estética e a identidade de seu trabalho. Embora o conceito de riscadura brasileira seja associado à obra do artista baiano Rubem Valentim, é possível notar reverberações desse conceito na obra de Araujo, conforme ele próprio assumia. Suas esculturas frequentemente abordam temas da cultura afro-brasileira, incorporando símbolos e motivos relacionados às tradições e à espiritualidade afrodescendentes. Além de sua atuação artística, Araujo atuou de modo relevante como curador e gestor cultural. Organizou exposições no Brasil e no exterior, exibindo obras de artistas africanos e afro-brasileiros, além de ter dirigido o Museu de Arte da Bahia, a Pinacoteca de São Paulo e ter fundado o Museu Afro Brasil. A dedicação de Araujo em promover a arte e a cultura afro-brasileira teve impacto significativo no reconhecimento e na valorização da herança africana nas cenas artísticas brasileira e internacional. Sua influência ajudou a moldar o cenário da arte contemporânea no Brasil e no exterior, tornando-o uma figura inspiradora e influente até hoje. horrana de kássia santoz

Ateliê de Emanoel Araujo em São Paulo, com a obra Espaço expandido, 2017


eustáquio neves

A tenacidade de Eustáquio Neves em observar e pesquisar os ritos e as festividades das comunidades negras remanescentes torna-o um notável restaurador de memórias. As séries Arturos (1993-1994) e os dípticos Encomendador de almas (2006-2007), apresentadas na 35a Bienal, registram uma visão abrangente do sagrado, da educação hereditária e do cotidiano dessas comunidades.

Graças a seu conhecimento dos processos químicos, adquirido com sua formação técnica, Neves interfere manualmente nos negativos das fotografias, gerando efeitos diversos. É um gesto enigmático, quase lomográfico, que penetra a operação do equipamento e expõe o caráter indeterminável e coreográfico do olhar que as compõem. No início da década de 1990, Neves realizou a série Arturos, retra-

Sem título, da série Arturos, 1993-1995 Fotografia sobre papel, impressão Fine Art

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tando um grupo familiar que rememora seu antepassado mais antigo, Artur, no município de Contagem, Minas Gerais. Esse grupo é caracterizado por suas práticas sagradas, baseadas no entrecruzamento do catolicismo com as religiões de matriz africana, durante a celebração da Festa de Nossa Senhora do Rosário, protetora das irmandades negras no Brasil colonial. Na primeira foto, há um grupo de adultos

e crianças no centro, todos elegantemente trajados. A segunda foto retrata um homem da guarda, em uma postura ereta e central, e na terceira, “O rei”, enquadrado em busto, veste uma coroa e um manto. A segunda obra apresentada é da série Encomendador de almas e retrata a comunidade quilombola do Ausente ou do Córrego do Ausente, localizada próxima ao município de Milho Verde, na região do Vale do

Jequitinhonha. O encomendador de almas é uma figura presente nas festividades da Nossa Senhora do Rosário e é responsável pelos cantos de trabalho chamados vissungos. Nos dípticos apresentados na Bienal, um deles mostra o sr. Crispim, uma pessoa muito importante na hierarquia do catopê (nome dado às Congadas na região de Minas Gerais), sentado, vestindo uma blusa clara e um manto que cobre os ombros, as mãos unidas sobre as pernas. Ao lado, há uma foto de uma espada usada para abrir caminho para o cortejo de Nossa Senhora do Rosário. No segundo díptico, o sr. Antonio aparece junto à sua casa. As imagens de Neves desafiam os limites técnicos da fotografia e performaram “uma realidade que não pode ser nomeada”, como mencionou a voz autora da publicação educativa da 35ª Bienal.1 Os povos remanescentes são uma extensão do quilombismo e, ao reconstituir tempos e personagens em uma memória aparentemente estática, Neves indica um resgate de tradições e de paisagens, como a própria incongruência da construção da memória. horrana de kássia santoz

_ 1/ Referência à frase “uma realidade que não posso nomear”, in “Correspondências entre vozes, uma carta para abrir conversas”, in Aqui, numa coreografia de retornos, dançar é inscrever no tempo: publicação educativa da 35a Bienal de São Paulo – coreografias do impossível. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2023, p. 15.

Sem título, da série Crispim/Comendador, 2007-2008 Fotografia sobre papel, impressão Fine Art


flo6x8

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Pouco tempo depois da queda da Lehman Brothers, surgiu o coletivo “ativista-artístico-situacionista-performático-folclórico-não-violento” flo6x8 na cidade de Sevilha, Espanha, ocupando temporariamente diversas agências bancárias por meio da dança e do canto flamenco, batendo os calcanhares no chão daqueles que são os responsáveis por tirar o sono e o teto dos cidadãos, cantando para o sistema

bancário sua responsabilidade no empobrecimento da população. As filiais do medo e da violência se transformaram, ao menos por um tempo, em espaços de potencial político e artístico para virar a história de cabeça para baixo: “isso não é crise, chama-se capitalismo”. O vídeo de uma dessas ações, chamado Flashmob Rumba Rave “banqueiro” e publicado em dezembro de 2010, espalhou-se pela

internet e foi usado para convocar a manifestação contra os cortes sociais que ocorreu em 15 de março de 2011 – um dos muitos precedentes do movimento 15-M1. flo6x8 antecipou algumas de suas inovações políticas: espontaneidade na ocupação do espaço, transformação radical da narrativa da crise, alegria subversiva e inventiva, abertura e porosidade contagiosas. flo6x8 consegue se mover na concatenação entre arte e revolução, onde o que importa não é tanto o que pertence a cada campo, mas como seus componentes são coreografados de forma localizada. Suas ações fazem uso do canto e da dança para produzir uma desobediência suave. Elas não utilizam os mecanismos do flamenco para serem vivenciadas passivamente, pois essa é a maneira de manter um grito de indignação por tempo suficiente para transgredir os códigos formais do protesto político e entrar em um novo terreno de incerteza no qual o público começa a duvidar, a prestar atenção, no qual a transgressão penetra de forma muito mais profunda no corpo, até doer. kike españa traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ 15-M é como ficou conhecido o movimento dos indignados na Espanha. Em 15 de maio ocuparam um grande número de praças espanholas, protestando contra os cortes sociais causados ​​pela crise econômica de 2007. [n.e.]

Bankia, pulmones y branquias. Bankia sale a bolsa 2, 2012 Bankia, pulmões e brônquios. Bankia vai a público 2. Stills do vídeo

esta participação é apoiada por: Acción Cultural Española (AC/E) e Embaixada da Espanha no Brasil.


francisco toledo

Conhecido por seus trabalhos feitos em papel, especialmente gravuras e pinturas, Francisco Toledo (19402019) navegou por diversas linguagens, como colagem, tapeçaria e cerâmica, sempre mantendo um único olhar: a construção de uma prática artística implicada com as heranças culturais, tradições e políticas de sua comunidade (Oaxaca, no México). Nesse amplo percurso, Toledo, que também era conhecido

como El Maestro – o mestre e professor – investiu intensamente na construção de projetos dedicados à educação e à manutenção das práticas culturais no México, como o Museu de Arte Contemporânea e o Instituto de Artes Gráficas de Oaxaca. A obra de Toledo alimenta-se do que o artista experimenta em livros de viagem e em memórias da infância, mas, sobretudo, no que

detail of detalhe de Papalotes de los desaparecidos, 2014 Pipas dos desaparecidos. Papel chinês e estrutura de junco com fotografias impressas em madeira gravada a laser, 43 peças, 58,2 × 51 cm (cada)

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ele observa em seu meio. As cosmologias zapotecas de Juchitán, o legado cultural pré-hispânico e o dinamismo e as atualizações dos costumes tradicionais são algumas, entre muitas, bússolas que guiam a prática de um artista que passou boa parte de sua vida-obra empinando papalotes (pipas) como forma de ação política. Um dos marcos de sua expressão e de seu engajamento social surge

em Papalotes de los desaparecidos [Pipas dos desaparecidos] (2014) – projeto exposto na 35a Bienal de São Paulo. Nesse trabalho, as pipas criadas com a colaboração dos frequentadores da Oficina de Arte e Papel de San Agustín Etla tiveram o desejo de se agregarem aos muitos protestos instaurados no México, desde 2014, quando um grupo de 43 estudantes secundaristas, em sua maioria indígenas, da escola

Normal Rural Raúl Isidro Burgos, com sede em Ayotzinapa, foram sequestrados pela polícia municipal de Iguala, Guerrero. Quando chega o Dia dos Mortos, soltam-se pipas porque se acredita que as almas descem pelo fio e chegam a terra para se alimentar das oferendas; então, no final da festa, eles voam novamente. Como já haviam procurado os alunos de Ayotzinapa no subsolo e na água, mandamos as pipas procurá-los no céu.1

Desde 2014, além das muitas vozes que se reuniram deflagrando uma das grandes feridas do México, os rostos dos normalistas seguem percorrendo diversos contextos, desejando romper o silêncio instaurado pelas instituições governamentais. Até hoje as famílias dos jovens desaparecidos procuram construir sentidos de justiça, assim como os cortes produzidos no vento pelas pipas de Toledo. tarcisio almeida

_ 1/ Depoimento do artista veiculado em diversos canais que cobriram as ações-protesto realizadas por Francisco Toledo desde novembro de 2014, quando passou a ativar a obra Papalotes de los desaparecidos (2014).

Papalotes de los desaparecidos, 2014 Pipas dos desaparecidos. Vista da exposição. Museo Universitario Arte Contemporáneo, Cidade do México (2018)


frente 3 de fevereiro

o Brasil pode ser entendido, do ponto de vista da negridade, como um projeto anti-negro. por outro lado, podemos entender a negridade como a prática teimosa y incansável de tentar viver quando não era pra você ter sobrevivido. Zumbi dos Palmares, constantemente retomado no trabalho artístico radical da Frente 3 de Fevereiro, sobretudo em Zumbi somos nós, aparece aqui, então, como o mistério que une

ONDE ESTÃO OS NEGROS? Campeonato Brasileiro, Corinthians x Ponte Preta, Estádio Moisés Lucarelli, Campinas, 14 de agosto de 2005

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essas duas formulações, colocando em xeque o Mundo que as produziu. essas duas formulações cruzam com a história da Frente, que surge como uma forma de fazer vingar a morte-vida de Flávio Ferreira Sant’Ana, jovem dentista negro assassinado cruelmente por policiais militares de São Paulo em 2004. por meio de uma prática que faz cruzar ação direta y estética, transitando entre imagem, música,

performance, literatura y uma infinidade de formas, a Frente 3 de Fevereiro elabora práticas artísticas radicais de intervenção social como forma não apenas de denunciar a situação brutal vivida pelas pessoas negras no Brasil, mas de promover a sua imprevisível força de criação y transmutação. para as coreografias do impossível, utilizando tecnologias de voice cloning y deep fake contra seus próprios

fins, o coletivo cria um complexo ambiente sônico-imagético, reanimando os movimentos, gestos y sons de Dona Marinete Lima (1942-2018), integrante do coletivo y matriarca ancestral. além dessa animação, a videoinstalação conta com arquivos de som y imagens do coletivo, registros de suas intervenções radicais que tanto denunciam o plano de morte quanto maquinam o combinado da vida. a experiência dessa videoinstalação encruzilha passado-presente, vida-morte, revolta-alegria, como um feitiço tecnológico para fazer vingar a vida preta em sua ingovernável performance de ressurreição infinita. abigail campos leal

ZUMBI SOMOS NÓS Campeonato Brasileiro, Corinthians x Internacional, Estádio do Pacaembu, São Paulo, 20 de novembro de 2005


gabriel gentil tukano

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O dedo da criação toca em mim e pulsa. É assim a luz dos Yepá Mahsã, Gente da Terra. Entre os mundos desenham a boca dos tempos em explosões seminais e espirais primordiais. O meu coração escapole e volta a viver. Fita o inverificável, habita o invisível. Tudo acontece no instante agora, entre movido e em arrancos. Corpo, pulsão, fricção, união. É o cosmo acontecendo fértil na saúde da terra.

Aqui o corpo do mundo está em gestação, transmuta-se e atualiza-se em todo e qualquer olhar que espia a presença, a escrita e o desenho do meu parente Gabriel Gentil Tukano (1953-2006). É um aceno que acontece. É um sopro quente. O mormaço da mata fala. Redemoinhos desenham no chão o prenúncio: não existe um metro quadrado sobre nossos pés que não seja criação sagrada de território ancestral. É perpétuo o que se cria em linhas. Um corpo desenha. E o traço ocorre quando a luz o revela. Uma luz que anda entre mundos criando outros mundos no centro dos inícios de todos os tempos, dos riscos e dos ritos primeiros. Na próxima luz, os meus olhos alcançarão as mãos do meu parente, pois o ponto é demarcado nos dois mundos, e o risco do nosso amor é alto, coisa de medicina forte. Um corpo escreve. Letras são desenhos amontoados que se transformam em sentidos e corpos, mas, uma vez organizadas a partir do pensamento universalizante do velho mundo, operam um habitar infértil, infante, gasto, venenoso e cadavérico. Medicina forte não cura corpo que nasce morto. Gabriel Mira. Desenha a mira. Mira e desenha. Ele é a mira. Seu corpo é o desenho e a continuidade de gestos sonhados aqui e agora, está à vista, está nas visões e nos sopros muito antigos. Continua a desenhar e mirar a ligação dos corpos antepassados que estão no futuro do mundo. Reverência São obras vivas! Gabriel Gentil Tukano é o próprio desenho acontecendo entre os mundos. déba tacana

Desenho / n. 18, c. 1970 Grafite e caneta esferográfica sobre papel 21 × 29,7 cm


george herriman

Krazy Kat Desenho original para página inteira de jornal, 8 de maio, 1917 Nanquim sobre papel, 55,8 × 48,2 cm

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“[...] é apenas uma sombra presa na teia desse carretel mortal. Nós o chamamos ‘gato’, nós o chamamos ‘louco’ [...] Perdoem-no, pois vocês não o entenderão melhor do que nós que estamos deste lado da cerca.”


Com essas palavras, George Herriman (1880-1944) refletiu sobre a condição inescrutável de Krazy Kat. Em essência, a influente história em quadrinhos narra as desventuras de Krazy, um gato cujo sexo é incerto − a ambiguidade de seu gênero jamais foi esclarecida −, loucamente apaixonado pelo rato Ignatz. Esse amor não é correspondido por Ignatz; suas constantes agressões ao protagonista, no qual atira tijolos na

cabeça, são mal interpretadas pelo felino, que as considera declarações de amor. Por sua vez, Krazy tem um admirador secreto, o cão policial Offisa Pupp, cuja vigilância constante do rato tem o objetivo de evitar essas agressões e prendê-lo quando as comete. Tudo em Krazy Kat parece querer superar as imposições tradicionais: a inversão de papéis entre o trio principal de personagens, o não

binarismo de seu protagonista, a experimentação contínua na composição de suas páginas, as novas formas de linguagem criadas pelo autor etc. Mas o que coloca Herriman em um dos dois lados da cerca? A tensão no enredo de Krazy Kat deu origem a uma infinidade de leituras, sendo uma delas a biografia do autor, por meio de sua racialização. Alguns querem ver em Krazy Kat uma representação dos conflitos que Herriman enfrenta com relação a sua identidade, como homem mestiço em um mundo totalmente branco, sob as leis segregacionistas de Jim Crow.1 A ambiguidade, não apenas do gato, mas de toda a série, poderia revelar a dualidade entre ser ou não ser algo, o que se pode extrapolar para questões não apenas de raça, mas de gênero e de classe. Hoje, a releitura dessas obras permite vislumbrar Krazy Kat e George Herriman saltando e se movendo de um lado para o outro da cerca, rompendo os limites desse cercado e lançando os tijolos do rato Ignatz como mísseis para desarmar e desativar hierarquias e identidades. rafael garcía traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ Leis segregacionistas que vigoraram em vários estados do sul dos Estados Unidos entre os anos de 1877 e 1965. [n.e.]

Krazy Kat Desenho original para página inteira de jornal, 2 de maio, 1922 Nanquim sobre papel, 54,6 × 48,2 cm


geraldine javier

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Geraldine Javier vive e trabalha na turbulência de uma crise climática em que culpa e extinção andam de mãos dadas. Em suas obras, as reações em geral pessimistas e nostálgicas a uma economia necroespeculativa são abertamente confrontadas com instalações e pinturas que apresentam um mundo automutante de plantas não mais reconhecíveis. Em Oblivious to Oblivion [Alheios ao esquecimento] (2017), instalação de

grande escala que forma uma ampla nuvem suspensa, as imagens entrelaçadas de vegetais improváveis são penduradas em meio a espelhos. Os reflexos fugazes dos espectadores nesses espelhos insistem em mostrar uma humanidade indiferenciada, desafiando seu antagonismo – profundamente enraizado – com o mundo natural. Os efeitos visuais resultantes de suas livres composições flutuantes

remetem a arranjos cósmicos que se adequam perfeitamente à composição all over [que recobre toda a superfície pictórica], típica da pintura moderna. Convidam, assim, a uma experiência imersiva, coerente com a recusa a um engajamento político direto. Como afirmam os títulos de suas obras mais recentes, Javier posiciona-se em meio a incertezas. Oscilando entre esperança e desespero, sua obra apoia-se em um horizonte de reparações. Ainda que tenha se definido como uma artista que não aborda temas políticos, a impressão geral de seus trabalhos é de uma prática afirmativa, que evita o lamento e a queixa. Diante de processos de degradação, poluição e extinção, The Creatures in Search of Their Species [As criaturas à procura de suas espécies] (2012) afirmam-se como uma matriz de seres transformadores. Em vez de apresentarem um mundo morto, fixo e perdido − caso do pensamento catastrófico e retrospectivo −, essas obras trazem à luz a gramática para o enfrentamento de um futuro regenerativo. Ao destino de destruição Javier contrapõe uma política do cuidado, que não tem similaridade com as formas políticas do passado. Enquanto suas pinturas derivam de uma prática individual, suas instalações envolvem uma atividade comunal que revela sensibilidades singulares no tratamento dos materiais, expressão da interdependência de formas de vida e cooperação intergeracional. carles guerra traduzido do inglês por gabriel bogossian

impressão ecológica de folhas de árvores nativas em tecido de algodão


gloria anzaldúa

A importância da obra de Gloria Anzaldúa (1942-2004) se encontra na radicalidade de suas contribuições para o pensamento crítico dos estudos decoloniais, feministas e da sexualidade, sobretudo ao incluir a geografia como categoria de diferença social. Professora, escritora e ativista, Anzaldúa denuncia e questiona as violências às quais estão submetidas as pessoas que nasceram e

habitam territórios e culturas de fronteira, sobretudo mulheres “de cor”1 do terceiro mundo. A fronteira de que Anzaldúa trata é aquela que divide os Estados Unidos e o México, atual estado do Texas, faixa que foi “comprada” pelos Estados Unidos em 1848, por meio do Tratado Guadalupe Hidalgo. Nascida nesse contexto, a autora articula a fronteira como espaço geográfico em disputa e como

“Transparencies for Gigs”, drawing 13, sem data “Transparências para apresentações”, desenho 13. Tinta sobre papel, 21,6 × 27,9 cm

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metáfora para a experiência social das pessoas que cotidianamente são pressionadas a escolher uma identidade única, mesmo que suas realidades sejam constituídas pelo encontro entre culturas. Exposto na 35ª Bienal de São Paulo, um dos desenhos por meio dos quais Anzaldúa elabora sua teoria em forma de imagem apresenta uma serpente roxa e sinuosa com uma enorme boca a

morder uma maçã. Abaixo do desenho, escrita em vermelho, a frase: “O proibido”. De imediato o desenho remete à cena com a serpente mais conhecida na história cristã ocidental. No entanto, aqui o fruto proibido invoca não o signo de repulsa e do temor cristão, mas o mais importante signo da América pré colombiana, a serpente que para Anzaldúa é “o símbolo do obscuro impulso sexual, o ctônico (o inframundo), o

feminino, o movimento sinuoso da sexualidade, da criatividade, a base de toda energia e de toda vida”.2 A escolha por formular o pensar em visualidades tem origem mexica, cultura indígena ancestral de Anzaldúa e referência epistemológica, que “não separava o artístico do funcional, o sagrado do secular, a arte da vida cotidiana”.3 Enquanto escrevo este texto, me deparo com a notícia4 de que os agentes de imigração dos Estados Unidos são orientados a atirar ao rio bebês e crianças imigrantes encontrados na fronteira do Texas com o México. Enquanto as políticas de vigilância e de genocídio ora criam, ora reencenam modos de manter a violência e o terror, as obras de Anzaldúa permanecem evocadas, atualizadas e em performance, nos relembrando de que “a guerra de independência é uma constante”.5 maria luiza meneses

_ 1/ No inglês “women of color”. Ver Cherrie Moraga e Gloria Alzandúa, This Bridge called my Back: Writings by Radical Women of Color (1967), 4. ed., Nova York: State University of New York Press, 2015. 2/ Gloria Alzandúa, Borderlands/La Frontera: La nueva mestiza, trad. de Carmen Valle Simón. Madri: Capitán Swing, 2016, p. 80. [tradução nossa ao português] 3/ Ibid., p. 120. 4/ “Agentes da imigração dos eua são orientados a empurrar crianças e bebês em rio na fronteira como México”, O Globo, 20 jul. 2023. Disponível em: oglobo.globo.com/mundo/ noticia/2023/07/20/agentes-da-imigracao-dos-eua-sao-orientados-a- empurrar-criancas-e-bebes-em-rio-na-fronteira-com-o-mexico.ghtml. Acesso em: 24 jul. 2023. 5/ Anzaldúa, 2016, op. cit., p. 55.

“Transparencies for Gigs”, drawing 4, sem data “Transparências para apresentações”, desenho 4. Tinta sobre papel, 21,6 × 27,9 cm


grupo de investigación en arte y política (giap)

O Grupo de Investigación en Arte y Política (GIAP) [Grupo de Pesquisa sobre Arte e Política] foi fundado em 2013 no México pela teórica e curadora chilena Natalia Arcos Salvo e pelo sociólogo italiano Alessandro Zagato. O grupo produz publicações, exposições e palestras sobre estética e autonomia, e desde 2017 também organiza residências para artistas e acadêmicos em Chiapas.

O interesse do grupo reside na poética que surge dos movimentos sociais com raízes indígenas. Essa pesquisa militante concentrou-se nos dispositivos que constituem a implantação estética do Exército Zapatista de Libertação Nacional, o EZLN, um corpus que é interpretado como um elemento central tanto da ética e da estrutura política zapatista quanto da ação autônoma de suas comunidades.

natalia arcos salvo La danza del trabajo colectivo del maíz. Bases de apoyo del Ejército Zapatista de Liberación Nacional, 2016 A dança do trabalho coletivo do milho. Bases de apoio do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Fotografia digital

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O EZLN é um movimento guerrilheiro indígena de alto impacto global que, em profunda consonância com usos e costumes ancestrais, define comunitariamente a originalidade que o caracteriza: porta-vozes, comunicados, roupas, ações, palavras e obras de arte configuram um imaginário que funciona como uma arma de sedução em massa. No zapatismo, a estética e a poética desempenham um papel

orgânico dentro da política revolucionária do movimento. Um exemplo maravilhoso dessa fusão é a grande performance em massa que ocorreu em 21 de dezembro de 2012, quando os zapatistas mobilizaram 45 mil de seus membros, ocupando de surpresa e pacificamente as mesmas cidades de Chiapas que haviam tomado à força em 1994. Esse evento encenado marcou o reaparecimento do EZLN

na esfera da mídia,1 com a intenção de mostrar a definição ampla de sua autonomia. Isso aconteceu no mesmo dia proclamado pela mídia como o dia do “fim do mundo”, de acordo com o calendário maia. Mas, com essa coreografia, os zapatistas anunciaram nesse momento o início de uma nova era para os povos oprimidos.2 Agora, o GIAP traz pela primeira vez – não só ao Brasil, mas também à América do Sul – outras artes zapatistas que narram seus processos de resistência e disseminam a prática da autonomia, tendo como centro os Caracoles, os Conselhos de Bom Governo e toda a construção desse outro mundo possível: bordados, pinturas, danças e ações milicianas. Porque nas montanhas do sudeste mexicano as baleias estão dançando há muito tempo.3 natalia arcos salvo traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ Os zapatistas guardavam silêncio na mídia desde 2008, longe de câmeras e microfones para estabelecer as bases do Bom Governo autônomo. 2/ A Marcha do Silêncio não teve discursos nem proclamações. Somente no dia seguinte apareceu um comunicado do ezln na forma de um poema: vocês ouviram? / É o som do seu mundo desmoronando. / É o som do nosso mundo ressurgindo. / O dia que foi o dia era noite. / E a noite será o dia que será o dia. / democracia! / liberdade! / justiça! 3/ Comunicado do festival de dança zapatista, jan. 2017. Disponível em: enlacezapatista.ezln. org.mx/2019/12/15/baila-una-ballena/.

La marcha del silencio. Acción masiva de Bases de Apoyo del Ejército Zapatista de Liberación Nacional, 2012 A marcha do silêncio. Ação massiva das Bases de Apoio do Exército Zapatista de Libertação Nacional. San Cristóbal de las Casas, México. Still do vídeo, editado por Rompeviento TV

natalia arcos Ejercicio del caracol encadenado. Milicianos del Ejército Zapatista de Liberación Nacional, 2017 Exercício do caracol encadeado. Milicianos do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Fotografia digital


guadalupe maravilla

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Na atualidade, uma das narrativas da América Latina é a da problemática das migrações. A mais conhecida, sem dúvida, é a do México, como um país de migrantes que se deslocam sem documentação e dos encontros e dos mal-entendidos na travessia da fronteira com os Estados Unidos. Como contrapeso, Guadalupe Maravilla conduz nosso olhar para um sul mais profundo e desconhecido, o chamado

Triângulo Norte da América Central, formado por Guatemala, Honduras e seu país de origem, El Salvador. Na década de 1980, quando El Salvador se encontrava no auge das guerras de contrainsurgência da região, o trânsito forçado de pessoas que fugiam da violência e buscavam refúgio era particularmente extremo. Maravilla foi uma das muitas crianças que fizeram a viagem para a fronteira sem docu-


mentos e sem estar acompanhadas dos pais. Hoje, o artista revisita essa experiência para desenvolver uma abordagem conceitual que alude às somatizações − no sentido mais amplo do termo − do que ele viu e vivenciou nessa travessia. Como uma extraordinária caixa de ressonância, os projetos de Maravilla contam sua história, mas narram também as histórias de milhares de pessoas que foram

marcadas por essa vasta cicatriz chamada fronteira. Como resultado, suas propostas artísticas são performances e colaborações multitudinárias, cenografias sobrecarregadas de gestos, objetos e mecanismos que são instalados como retábulos. Em muitas delas encontramos traços do jogo infantil tradicional conhecido em El Salvador como Tripa Chuca, que resulta da união de números com

linhas, bem como desenhos retirados de códices e tecidos antigos estampados com histórias pictográficas que remetem a comunidades pré-colombianas e sua participação na conquista, suas redes de conhecimento, fluxos comerciais e recursos. O conjunto resulta em um mapa de deslocamentos, miscigenação, entrecruzamentos, perseverança e formas de sobrevivência histórica. No centro dessa jornada épica, Maravilla dispõe esculturas em grande escala intituladas Disease Throwers [Lançadores de enfermidades] (2019-em curso). Essas formas estranhas, que têm características orgânicas, são montadas com materiais moldáveis e instrumentos musicais que, com uma vibração específica, geram espaços terapêuticos que convidam à resiliência. As “máquinas de cura” do artista sugerem a abertura de portais para o ancestral e a realização de uma cerimônia sonora que, nesta edição da Bienal, é a possibilidade de celebrar um ritual coletivo para curar traumas e condições do corpo. rossina cazali traduzido do espanhol por ana laura borro

trabalhos em andamento no ateliê de Guadalupe Maravilla

esta participação é apoiada por: Y.ES Contemporary.


quatro teses sobre estética rizvana bradley e denise ferreira da silva

Por que repensar a estética agora, quando catástrofe tem se tornado a palavra de ordem e quando tudo, exceto o pragmatismo mais restritivo, poderia facilmente ser interpretado como pouco mais do que frivolidade burguesa? Não é esta, afinal, a era dos “sintomas mórbidos — conceito criado pelo filósofo Antonio Gramsci [1891-1937] —, em que as muitas mentes defensoras do fascismo têm se erguido em todo o mundo? No entanto, o fascismo que a modernidade liberal e a sociedade civil sempre exigiram jamais respeitou a falaciosa separação entre político e estético. O genocídio, tanto hoje como antes, é um projeto estético. A questão, então, não deveria ser por que repensar a estética agora, e sim como sobreviver ao regime estético que esculpe e delimita a forma de nossa questão? “A busca/questão da negridade”,1 para evocar por minha boca as palavras de minha cúmplice Denise Ferreira da Silva, só pode ser enunciada mediante a perda da voz, ou melhor, mediante o ato de se render à polivocalidade, que é − sempre − a condição da possibilidade de falar. Assim, ao escrevermos juntas, Ferreira da Silva e eu não buscamos tanto uma síntese teórica quanto uma reticulação, um desenrolar dos fios de nossos pensamentos, já retorcidos e desgastados em textos e tessituras de ambas. Quatro teses, outra declinação da tríade hegeliana. Nossa proposição aberta. — rizvana bradley

1/ No original, “The quest(ion) of blackness”. [n.e.]

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Uma conversa pode ser, e geralmente é, entendida como um encontro, uma convergência, que pode apenas ser — e as melhores conversas (que também são outro nome para colaborações) são — nada mais do que o que acontece ali, naquele momento, sob aquelas circunstâncias, visando determinados fins particulares. Esta conversa, a nossa convergência, não é tanto uma oferenda, é mais um convite à leitora para juntar-se a ela e ir além. — denise ferreira da silva


infinito O mundo, como a ontoepistemologia totalizante que é gênese, limite e horizonte da modernidade, é um conceito completamente estético. Trabalhar dentro do campo da representação, ou discursar contra ela, já significa enredar-se na estética, pois é por meio do estético que o terreno ontológico, no qual se diz que estamos, se torna experiência. Nesse registro, o Homem — o Eu transparente, o sujeito universal que constrói o mundo não somente como lhe agrada — aparece, conforme a filósofa e ensaísta Sylvia Wynter, como ninguém menos que homo aestheticus. Essa é a figura ontológica consolidada no pensamento europeu pós-iluminista, cuja pressuposta capacidade de autodeterminação e autodesenvolvimento é tanto indiscernível do deslocamento expropriativo do emaranhado ecológico, que anima a (bio)história, quanto equivalente à capacidade de experiência e julgamento estéticos. O sensus communis do Sujeito, é claro, só emerge por meio da excomungação constitutiva do Selvagem (o conquistado), do Negro (a mercadoria), do Primitivo (o outro) e do Tradicional (o subdesenvolvido) — figuras que, ainda assim, surgem para assombrar o Homem como portadoras de uma dissonância ontológica, uma declinação imanente, que poderíamos chamar negridade. O que mais pode ser dito sobre o conquistado, sobre a mercadoria, sobre outro e o subdesenvolvido, além do fato de que eles correspondem a todos aqueles que não se encaixam nas fronteiras espaçotemporais pós-iluministas da figura do Homem, ou seja, do Eu transparente? Não muito, seria uma resposta apropriada, se tudo o que for levado em consideração corresponder ao que é oferecido por meio das restrições do pensamento dicotomista. Isto é, se não houvessem questões sobre as condições em que a força protetora universal, mantida pelo ético, se estende a alguns humanos (seja essa força legada pelo regente ou autor divino, em seu domínio da forma transcendental, ou seja, a razão). Ou seja, se não se fizesse a pergunta: Por que a negridade é visitada tão “naturalmente” pela violência total e simbólica. Quando a força categórica da negridade é confrontada com a violência total que sua trajetória histórica

não pode deixar de evocar, ela não pode senão refratar e fraturar o cardume transparente (o limiar da transparência) que protege a ontoepistemologia do Sujeito através de seus momentos científicos e estéticos. A exposição total da negridade permite e extingue a força do programa moderno ético, na medida em que sua capacidade disruptiva da negridade é uma busca/uma questão para o fim do mundo. A negridade é uma ameaça ao sentido, um questionamento radical do que vem a aparecer sob o(s) (termos do) “comum”. Se o mundo ordenado assegura significado por ser supostamente cognoscível, e apenas pelo Homem, se esse mundo for tudo o que o comum consegue compreender, então a negridade devolve/dirige 2 a existência à expansão: nos destroços do espaço-tempo, corpus infinitum.

2/ No original, (re)turns. [N.T]


re/de/composição Pensar a obra de arte como po/ética, como “composição que é sempre já recomposição e decomposição de composições anteriores e posteriores”,3 requer uma prontidão para o advento do devir como matéria e sua interrogação imanente da temporalidade das formas. Em contraposição a compreender a obra de arte como totalidade autônoma ou a compreendê-la consignando-a a alguma iteração da forma finalis kantiana — isto é, a atribuição redutora de uma finalidade formal ao objeto —, uma leitura po/ética enfatiza o terreno provisório onde colidem questões acerca da forma, da falta de forma e da abstração. A obra de arte, uma composição singular, não necessita simplesmente antecipar ou reiterar perguntas que supõem os princípios formais da causalidade externa (causa efficalis), da determinação interior (causa finalis) ou da percepção abstrata (causa formalis). Esses juízos, consolidados como únicas ferramentas para compreender a natureza (o reino da objetividade) e o mundo (o reino da subjetividade), sustentaram a tautologia do pensamento moderno por terem sido articulados como axiomáticos. Uma vez desprendida da antecipação da ordem e da pressuposição do significado, a obra de arte liberta-se de suas obrigações representacionais para com a natureza e o mundo. Como peça po/ética, a obra de arte expande as questões e os questionamentos da causa materialis, o indeterminável da contemplação. Re/tornando(-se)/como forma(s), um descritor po/ético para a existência não pressupõe linearidade, tampouco seus predicados: separabilidade e determinação. A reorientação convocada pela arte po/ética expressa as infinitas re/de/composições que o espaço-tempo normativo submeteria à foraclusão.4

As intensidades axiais de verticalidade e horizontalidade, a linearidade estrita, a coloração primária que sinalizam o legado formal da abstração, não indicam tanto a geometria restritiva ou a cromaticidade truncada quanto um conjunto aberto, em que, por exemplo, até mesmo a fidelidade de uma linha ou os vértices de um quadrado podem ser impostos com ênfase improvisatória. A obra poética deforma o imperativo teleológico da finalidade e a demarcação racial da (in)capacidade de julgamento estético que esse imperativo necessariamente (re)inscreve. O trabalho po/ético tende a revelar que tal esforço para reduzir, disciplinar e conter a materialidade intransigente do mundo constitui sempre uma tentativa falha. Pode-se pensar a serialidade e a deformação não como desvios formais dos principais paradigmas de arte moderna, mas como práticas estéticas que executam a decomposição do cânone histórico da arte e da canonicidade como tal. Essa decomposição se obtém não por um método de subversão, mas pela acumulação de re/tornos5 furtivos, que se reúnem ruinosamente sob o signo da obra de arte autoritária. A proliferação serial de retornos expõe a obra de arte autônoma em si como nada mais que uma re/de/composição, uma assemblage contaminada de citações e de/formações.

3/ Denise Ferreira da Silva, “In the Raw”. e-flux journal, n. 93, set. 2018. Disponível em: www.e-flux.com/journal/93/215795/in-the-raw/. Acesso em: jul. 2023.. Idem. “Em estado bruto”. Trad. Janaína Nagata Otoch. ARS (São Paulo), v. 17, n. 36, pp. 45—56, 2019. Disponível em: www.revistas. usp.br/ars/article/view/158811. Acesso em: 20 jun. 2023. 4/ Conceito psicanalítico proposto por Jacques Lacan (1901-1981) a partir do termo alemão Verwerfung [rejeição], empregado por Freud. [n.e.]

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5/ No original, (re)turns. [n.t.]


serialidade A falha perene do homo aestheticus requer a renovação perpétua do estético, operação que, independentemente de suas belezas ou de seus terrores, não deixa de ser a renovação da catástrofe. Mas essa história de revitalização estética é precedida e excedida por outro tipo de inovação, que podemos chamar de estética, mesmo que o estético jamais possa dar conta dela. Mas o que, então, pode abrir e ser aberto por uma investigação das práticas negras de serialidade? O que toma forma ou se deforma na “difusão do terror e da violência perpetuadas sob a rubrica do prazer, do paternalismo e da propriedade”,6 como profere Saidiya Hartman? Então, como lidar com essa automoldagem em série sem recorrer à ideia de abertura, na qual a ausência de limites se torna apenas outro nome para fronteira, ou seja, um cercado, uma expropriação, um descampado?7 Afinal, a historicidade interminável e a história impossível da negridade sempre anteciparam a horizontalidade da liberdade do Homem, como posição apagada e como limite inexorável desse caráter horizontal. Como encarar a insistente e contínua re/de/composição da figura (negra) em meio à abordagem da arte contemporânea, que, a um só tempo, a exalta e a reduz, ou relega o figural à cena da representação racial? Como compreender essas figurações como parte de um conjunto de intervenções — uma serialidade epigráfica, como diria Fred Moten —,8 que denota não a recusa da violência imposta serialmente como fim político, mas, sim, os meios reanimados pelos quais devem transitar quaisquer investigações estéticas da vida social? Insistimos que, mesmo que esses meios carreguem o terrível fardo do terror difusivo e do terror da difusão, a serialidade negra

não pode ser compreendida como algo redutível à separabilidade, à sequencialidade ou ao determinismo de formas e de objetos individuados. Em outras palavras, nosso pensamento estético recusa-se a presumir a serialidade negra como inteiramente coincidente ou coextensiva à imposição em série da violência antinegra, que constitui o campo moderno da representação e a história da forma, como se a enumeração violenta de corpos negros fosse, de fato, um registro ou meramente uma contabilização de danos. Nesse ponto, a arte negra encontra um entrosamento antecipatório com movimentos artísticos de vanguarda e suas respectivas performances de recusa — a rejeição da expropriação gradeada do modernismo, por exemplo, que é também uma cartografia da descartabilidade, do desrespeito, da violação abusiva, do apagamento cultural e da morte cultural. No entanto, o fato de essas performances serem ao mesmo tempo negadas e recusadas pela negridade torna nítida a disjunção radical entre essas respectivas modalidades e tradições de trabalho artístico. O trabalho artístico negro, que toma o tecido e a substância da existência social como meio alternativo de produção, refrata os legados conceituais da totalidade autônoma da obra de arte e questiona a imagem que permanece na retina. Em vez de pensar a negridade como diferença, apesar da violência do mundo, encaramos a recomposição e a decomposição em série da negridade como incitação a uma imaginação gestual totalmente divergente. Nossa atenção crítica para essas incitações segue alerta para uma diferença gestual irredutível, tanto à violência em série do regime racial de representação quanto à suposta política, que clama por reconhecimento dentro desse regime.9

6/ Saidiya V. Hartman, Scenes of Subjection: Terror, Slavery, and Self-Making in Nineteenth-Century America. Oxford: Oxford University Press, 1997, p. 4. 7/ Cf. Tiffany Lethabo King, In the Clearing: Black Female Bodies, Space and Settler Colonial Landscapes. Tese de Doutorado. College Park, Maryland: Departamento de Estudos Americanos, Universidade de Maryland, 2013. 8/ Fred Moten, The Universal Machine. Durham: Duke University Press, 2018, p. 230.

9/ David Lloyd, Under Representation: The Racial Regime of Aesthetics. Nova York: Fordham University Press, 2018.


generatividade Se a obra de arte po/ética não se preocupa mais com os perigos de seu afastamento da ontoepistemologia da modernidade e de sua articulação da existência mediante as certezas do ser, então, como podem as considerações estéticas partirem do e permanecerem com o objeto — que é ao mesmo tempo “coisa”, “mercadoria” e “outro” — sem retornar ao Homem ou ao Sujeito, ao Humano ou à Humanidade, ao Ego ou à Subjetividade? Se o pensamento estético se inicia com o “outro” como mercadoria, como menciona Hortense Spillers, tal pensamento inevitavelmente (re)confronta a violência que é a condição de possibilidade da modernidade, devastando qualquer alívio encontrado por meio das figurações da matriz colonial, racial e cis-heteropatriarcal.10 Tal pensamento inevitavelmente (re)inscreve a subjugação como origem e como horizonte? Ou será que o estético, como (tematizado na) existência negra, como orientação ética radicalmente disruptiva, encena um confronto devastador com a filosofia moderna, que, em última instância, tem como alvo seu campo estético, teórico e ético? O que acontece quando a negridade guia considerações do estético, do ético e do teórico? Aqui há duas proposições: a) o Black Study [Estudo Negro] evoca o sonoro e mobiliza-o contra o encerramento discursivo da negritude na patologia; e b) ao fazê-lo, desorganiza o campo ontoepistemológico pós-iluminista. A negridade (como objeto) perturba o terreno (estético) em que surge o Eu transparente. Portanto, a análise e a poiesis da Existência Negra desafiam os princípios da Teoria Social e da Teoria Estética, precisamente porque, como referente da violência total, rompe as fronteiras do discurso expondo as limitações de ambas as versões pós-iluministas da ontologia moderna: a filosófica e a sociológica. O Estudo Negro reorienta a conversa na cena internacional de arte contemporânea, pois apresenta 10/ Hortense J. Spillers, “Mama’s Baby, Papa’s Maybe: An American Grammar Book”. Diacritics, v. 17, n. 2, Culture and Countermemory: The “American” Connection, pp. 64-81, verão de 1987.

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às ferramentas críticas da filosofia contemporânea um conjunto de conceitos, formulações e questões que burla, sem de fato ignorar, o núcleo eurocêntrico dessa filosofia que, de outro modo, permaneceria imperturbável. A Estética Negra — ou seja, aquilo que promove, viabiliza e modula a enunciação negra — sinaliza outro lugar para a análise da criação artística, da existência coletiva e da prática política. Assim, provê uma base para um projeto que combate e, de maneira serial, enfraquece a arquitetura liberal política moderna, em suas violentas configurações e operações pós-Iluminismo, assim como os duplos fascistas que o liberalismo exige, solicita e condena a contragosto. A Estética Negra é um enunciado que, em sua imanente perturbação da gramática da modernidade, marca e é marcada pela arte da passagem, sem coordenadas ou destino de chegada, a arte da vida em partida. traduzido do inglês por jess oliveira e bruna barros



ibrahim mahama

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O trabalho dos alquimistas tem sido muitas vezes rotulado como “magia negra”, uma vez que o termo latino nigredo (em português escuridão, negrura, negridão) constitui o primeiro passo do processo alquímico e significa putrefação ou decomposição. Assim, as expressões magia negra e negritude assumem implicações niilistas. No entanto, os processos alquímicos da obra negra e da negritude

de Ibrahim Mahama, artista nascido em Gana, abordam o possibilismo e a transmutação da colonialidade. Seja a plantação colonial, seja o salão do parlamento, a ferrovia ou outros elementos do espólio colonialista, os cercos erguidos pela colonialidade são sistemáticos e interligados. Assim, o trabalho de Mahama vislumbra possibilidades nas condições materiais desses recintos e


nas habilidades de contar histórias e conectar momentos no tempo ao longo de um arco amplamente estendido: do colonialismo à globalização. Esses momentos entrecruzam-se com questões do trabalho, do extrativismo, da produção, da exploração e da justiça. Os materiais que compõem sua prática são os extraordinários objetos probatórios que revelam sistemas de crise ou de fracasso. No entanto,

as transmutações produzidas pelo artista geram condições poéticas de assemblagem, montagem e coletividade. Em sua instalação Non-Orientable Nkansa II [Nkansa não orientável II] (2017), Mahama, com vários colaboradores, produziu centenas de “caixas de sapateiro” de madeira, utilizando materiais de sucata encontrados nas cidades de Kumasi e Acra, em Gana, usados para polir

e consertar sapatos. Essas caixas continham os utensílios dos engraxates, jovens empobrecidos que, para sobreviver, percorrem a cidade diariamente polindo ou limpando sapatos. Mahama reúne e empilha essas centenas de caixas em uma parede de dimensões monumentais, em que cada caixa parece precária, ainda que impossivelmente mantida no lugar. Parliament of Ghosts [Parlamento de fantasmas] (2019) é um conjunto de objetos descartados e perdidos, reunidos para formar o cenário de uma sala parlamentar e relembrar a história da empresa ferroviária de Gana, a Ghana Railway Company. Os objetos presentes nessa obra remetem à história da produção e à crise da industrialização nos territórios coloniais. Entre esses objetos estão assentos de poltronas de vagões de trens abando­ nados, dormentes de ferroviários que foram desinstalados, documentos governamentais, ferramentas e utensílios de uma oficina de locomotivas, mapas, diários, livros e mobiliário de arquivo. Em seu último trabalho, Mahama cria um espaço de montagem que dialoga com a obra anterior, Parliament of Ghosts, se transmutando para configurar um local de trabalho coletivo negro, produção cultural e discurso ao longo da 35ª Bienal de São Paulo. Esse espaço reproduz as arquibancadas feitas de tijolos vermelhos do salão de seu estúdio RED CLAY [Argila vermelha], em Tamale, Gana. Na instalação, também há um conjunto de vasos típicos de Gana e trilhos de ferrovias, remetendo à geografia do norte de seu país, onde seu estúdio se localiza. mario gooden

Parliament of Ghosts, 2019 Parlamento de fantasmas. Red Clay Studio, Tamale (2019)


igshaan adams

A produção artística de Igshaan Adams consiste em produzir beleza a partir de materiais considerados sem muito valor, mas que estão profundamente ligados ao cotidiano das classes populares não brancas que ainda vivem nas chamadas townships sul-africanas.1 Seus trabalhos materializam experimentações por mulheres e homens trabalhadores, a partir da sua agência tensionadora do

Kicking Dust, 2022 Chutando poeira. Vista da instalação, Kunsthalle Zürich (2022)

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cotidiano marcado pela segregação racial, desigualdade e pobreza. Linhas urbanas bastante demarcadas fraquejam, envergam, ganham sinuosidade e desafiam linhas retas e rígidas impostas pelo regime do Apartheid e suas reminiscências na contemporaneidade. Bonteheuwel, fundada em 1960, é o local de nascimento e cenário das memórias de infância deste artista que viveu num lar muçul-

mano e cristão, influenciado por tradições múltiplas. As linhas que dividem rigidamente os dois lados da cidade inspiram Desire Lines [Linhas de desejo] (2022), obra que representa os atalhos criados por trabalhadoras e trabalhadores menos favorecidas que desafiam a dureza dos traçados urbanos. A tapeçaria, produção sul-africana tradicional, é a arte através da qual Adams materializa esses

caminhos alternativos, rios, estruturas mediante as quais a urbe se (des)organiza. Essa tapeçaria é composta de objetos ordinários, miçangas coloridas, conchas, búzios, fios de arame, tecidos coloridos firmemente trancados, produzindo imensos tapetes multicoloridos. Além da tapeçaria, outras produções de Adams também demonstram esse esforço das classes trabalhadoras para enfeitar seu cotidiano, e, paradoxalmente, reafirmam e relembram seu lugar social, de alegria ou de dor, de pobreza e de esperança de dias melhores. É nessa beleza um tanto onírica, que revela sentidos tanto materiais quanto estéticos, que o artista protagoniza a agência das classes populares. Desses materiais empobrecidos − vistos como sem valor, comuns, que, se trouxessem vestígios da vida das elites seriam considerados relíquias, peças de museu −, Adams compõe flores, poeiras no ar resultantes de pessoas que dançam e se vestem com tecidos ecumênicos inspirados em objetos sagrados. O doméstico ganha significado sensível e íntimo, ultrapassando a realidade e ganhando formas impensadas, quase impossíveis. luciana brito

_ 1/ Áreas criadas durante o Apartheid para confinar negros e mestiços.

Igshaan Adams em colaboração com Kyle Morland Stoflike oorskot, 2016 Resíduo empoeirado. Corda de nylon trançada, barbante e aço macio, 300 × 120 × 240 cm

Desire Lines, 2022 Linhas do desejo. Vista da instalação, The Art Institute of Chicago (2022)


ilze wolff

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A “prática do cuidado” é um exercício de recusa que gera consideração, generosidade e convívio em determinadas condições que, de outro modo, seriam representadas como abjetas. A prática do cuidado de Ilze Wolff tem início com o reconhecimento das relações espaciais, seguido de um processo de revelação do inesperado e do estranhamente familiar entre os resíduos, detritos, condições esgotadas,

recursos exauridos e detalhes e existências negligenciados na vida cotidiana. Esse tipo de cuidado constitui uma recuperação da história, do indivíduo, das epistemologias e da liberdade que a priori se associam à colonização e ao esclarecimento europeus. É uma produção cultural do previamente inimaginável ainda que conhecido, e que produz um tipo de poesia não romantizada, nem fetichizada ou sentimentalista.

No fim da década de 1970, o projeto e a construção do Centro Comunitário de Steinkopf foram encomendados pela empresa anglo-americana de extração de platina, cobre, diamantes, carvão térmico e minério de ferro no território sul-africano. A cidade de Steinkopf, na África do Sul, foi fundada em 1817 pela London Missionary Society como uma missão religiosa dirigida ao povo nativo San, do noroeste do país. A população da cidade, na época da construção do centro comunitário, era de aproximadamente 6 mil pessoas, em sua maioria mulheres e crianças, pois grande parte dos homens vivia e trabalhava nos campos de mineração na província do Cabo Ocidental. “A intenção foi proporcionar um edifício convidativo, que acomodasse todas as necessidades das pessoas e que também abrisse mais opções ambientais para a comunidade. Ele foi projetado para servir à comunidade e não o contrário.”1 A ironia dessa afirmação e do projeto arquitetônico não se perde no Hophuis, de Ilze Wolff, palavra africâner que se traduz em inglês como hop house [casa do lúpulo]. No entanto, utilizando narrativa pessoal, música e som, história fotográfica, representações arquitetônicas e elementos da ecologia natural do local, a instalação de Wolff revela uma “coreografia de cuidado e convívio” que sobrevive às vicissitudes da repressão religiosa, do racismo sistêmico e da exploração e extração econômicas. Wolff revela como esse edifício é testemunha de saberes, memórias e histórias nativas locais de alegria, libertação, apoio mútuo e solidariedade dessas pessoas que usaram o centro como espaço de reunião e local de resistência. mario gooden

_ criando som no Steinkopf Community Centre com o baterista Fernando Damon e Heinrich Wolff, 2020

1/ Architecture SA, primavera 1980, p. 13.


inaicyra falcão

O ser histórico e artístico de Inaicyra Falcão poderia constituir a transgressão de conceitos, como erudito, lírico ou do que é aceito como possível. Sua ancestralidade, como motor e inspiração, e as coreografias do seu mundo, amplo, transnacional e diaspórico, rompem com a rigidez da academia e da arte. Da voz poética, poderiam surgir outros sons, mas o que brota é um canto ancestral. Solto e liberto, seu corpo

Grupo de dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), sem data

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exala memórias de movimentos antigos e refinados, repetidos milenarmente no cotidiano humano e das divindades sagradas, o que se pode ainda observar hoje, quando estão na Terra. Como mostra a arte de Inaicyra, o impossível acontece quando a potência do corpo, da explosão física provocada pela necessidade de movimento, se encontra presente até mesmo nas divindades

Ebó Iyê, c. 1989


sagradas. Por isso, para a artista, todo corpo é dotado de memórias, inscrições ancestrais, que se revelam na consciência corporal forjada na tradição. Esse movimento é cultural, memória coletiva, mas, sobretudo, resulta de nossas histórias pessoais e de atravessamentos que habitam os corpos de pessoas negras da diáspora. A liberdade pessoal, portanto, depende desse corpo estar em movimento.

Dessa perspectiva, a educação seria mais um caminho de autonomia, mas, nesse ponto, por meio da dança. A valorização de cada história individual, o abraçar das memórias conscientes ou adormecidas, fariam parte dessa aprendizagem, que percorre um caminho contrário ao do saber das repetições, do que é considerado harmônico ou erudito. Assim, esse foi o caminho encontrado por Inaicyra

para trazer a herança africana para os currículos. Longe de significar estar presa a um passado estanque, sua percepção de mundo e da arte revela mudança, dinamismo e constante transformação de movimentos e cantos ancestrais. Assim, Inaicyra Falcão se autodefine uma “articuladora de universos”, de mundos multidimensionais, que ela faz se conectarem ao corpo e à voz. luciana brito

Ayán – Símbolo do Fogo, sem data


januário jano

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Na instalação Baptism [Batismo] (2019), observamos um conjunto de vinte fotografias que mostram Januário Jano despindo-se de uma roupa branca. A imagem do todo chama a atenção pela exuberância. No entanto, na pesquisa dos materiais, qualquer contemplação desinteressada é dissolvida: as roupas brancas são memórias das imposições civilizatórias dos colonizadores portugueses aos

angolanos. O tecido, 100% algodão, faz referência aos campos da Baixa do Cassange, onde em 1961 houve o massacre que insuflou a luta pela libertação de Angola. Tal dimensão da violência – sobretudo da resposta a ela – emerge de uma artesania que entende a pesquisa não como uma etapa para se chegar num produto, mas, sim, como a matéria viva à qual o olhar precisa retornar constante-

mente quando se dispõe a propor outros mundos. Vídeo, escultura, pintura, fotografia, instalação, costura, ou arte interdisciplinar, se quiserem. É vasto o repertório de linguagens que Jano aciona para pôr em prática suas ideias, assim como é vasto e perturbador o alcance das forças subjacentes a todo fazer artístico como consequência da história e da cultura. São muitas as mídias, as camadas e os temas em fricção quando se consideram as complexidades do campo das identidades culturais, terreno no qual ele atua para instigar o debate. Desde Luanda, em português, mas também desde a terra dos Ambundu, em Kimbundu – língua Bantu –, ou em inglês desde Londres, onde se formou e se estabeleceu. Os próprios trânsitos biográficos do artista evidenciam as marcas da colonização, tema central em seu trabalho; também por isso, é diante de si mesmo – do espelho, de sua história –, que Jano encontra a matéria-prima que ocasionalmente lhe escapa à própria vida e acaba ecoando nas palavras de uma conterrânea sua: “sobreviver à nossa história é parecido com sobreviver numa cidade implacável” – disse Djaimilia Pereira de Almeida, como poderia ter dito ele.1 igor de albuquerque

_ 1/ Djaimilia Pereira de Almeida, "Morrer de Nostalgia" in Revista Quatro cinco um, São Paulo, jun. 2023, p. 8.

Baptism, 2019 Batismo. Edição 1/3 + 2 PA. Jato de tinta sobre papel fine art 100% algodão. 50 × 44 × 2 cm (20 peças)


jesús ruiz durand

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Entre 1969 e 1974, Jesús Ruiz Durand produziu uma série de cartazes para divulgar a Reforma Agrária iniciada pelo governo do general Velasco Alvarado no Peru. Sob a noção de pop achorado – expressão que significa “rebelde, insolente, sublevado, indignado, vulgar, colérico, insurgente, insubmisso” –, esse estilo gráfico inspirou-se na população indígena que estava rompendo com a submissão escravagista que, durante séculos, fizera das propriedades rurais peruanas e da relação entre os pongos e os gamonales1 um viveiro de crueldade. Através de seu trabalho na Direção de Promoção e Difusão da Reforma Agrária (DPDRA), Ruiz Durand viajou por todo o país, fotografando e conversando com camponeses de língua quíchua que recuperavam suas terras. Desenvolveu uma técnica que consistia em fragmentar a imagem por meio de um processo de solarização (ou efeito sabattier), distribuir cores planas por áreas, enquadrá-las como histórias em quadrinhos e imprimir em offset usando o processo de quadricromia. Ao experimentar com pontos e tramas, ele investiu um contorno de fosforescência, vitalidade e otimismo nos corpos indígenas, que pareciam sair da sala de espera da história, incinerando as bases simbólicas e materiais da servidão e da expropriação no Peru. Por meio da estilização de uma antiga ilustração escolar do rosto de Tupac Amaru II, Ruiz Durand desenhou o logotipo da Reforma Agrária, que foi a figura central de dois cartazes, um amarelo e outro azul. Ao eclipsar a silhueta de frente e de perfil, inserindo-a em composições geométricas e reverberações ópticas e cromáticas, Ruiz Durand dinamizou o rosto de um

dos líderes da mais feroz insurgência andina do século 18 contra a invasão espanhola, dando-lhe uma fisionomia vibrante que podia sofrer mutações, multiplicar-se e iluminar-se por meio de sobreposições e efeitos de luz. Por meio de uma síntese formal cinética, ele sincronizou o messianismo anticolonial de Tupac Amaru II com a revolução em andamento. Mas nos contornos ondulados e amarelados que envolvem os corpos dos camponeses exibindo ferramentas ou trabalhando a terra, também é possível ver a luz dos eclipses, sob a qual os habitantes do altiplano “caminham cheios de pressentimentos”, como escreve Arguedas. A Reforma Agrária, como uma continuação da guerra anticolonial por outros meios, foi e é um instante de perigo. Essa luz cintilante antecipa, em suas sombras, o murmúrio de violência que viria apenas alguns anos depois, com a guerra interna entre o Sendero Luminoso e o Estado peruano. Ela retém a raiva sem fim do pongo, “aquela raiva que arde na semente de seu coração, como um fogo que não se apaga”. 2 fernanda carvajal traduzido do espanhol por ana laura borro

_ 1/ Pongos eram os camponeses e indígenas que trabalhavam como criados nas fazendas no Peru e os gamonales eram latifundiários da região serrana, que em geral exploravam a força de trabalho dos pongos num regime de servidão muito parecido com a forma feudal. [n.t.] 2/ José María Arguedas, “Carta a Hugo Blanco-1969”, in Hugo Blanco (ed.), La verdadera historia de la Reforma Agraria. Lima: Ediciones Lucha Indígena, 2009.


da série Reforma Agraria Peruana – Grandes cosas están pasando, 1970 Reforma agrária peruana – Grandes coisas estão acontecendo. Impressão offset sobre papel, 100 × 70 cm


jorge ribalta

Faute d’argent [Falta de dinheiro] (2016-2020) é o terceiro e último episódio de uma investigação artística e histórica de Jorge Ribalta sobre o período final de Carlos V (1500-1558), rei da Espanha e imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Sob seu reinado, a formação de uma ideia de nação correu paralelamente à conquista e à colonização das Índias Ocidentais, herdada na sua condição de neto dos monarcas católicos.

A abordagem é dupla: a manifestação de Carlos V como chave interpretativa do mundo ocidental na era da grande recessão econômica que começou em 2007 e um exercício de revisão e luto do passado colonial espanhol/imperial, resultando em uma coreografia crítica de retorno. A série se baseia na “ideia documental”, que atravessa todo o trabalho de Ribalta, seja como fotógrafo, teórico-pesquisador ou curador, pois

Seville, Emporium of the Indies (detalhe), da série Faute d’argent (Eight Short Pieces), 2016-2020 Sevilha, Empório das Índias, da série Falta de dinheiro (Oito pequenas peças). Impressões sobre papel de gelatina e prata

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ele argumenta que a fotografia contribui para explicar a complexidade social – as relações de classe e seus conflitos, bem como a relação das subjetividades com a história – e não apenas para representá-la. Em Faute d’argent, Ribalta questiona tanto a história da nação espanhola quanto a lógica imperial-financeira do capitalismo desde o início da Idade Moderna na Europa, que transborda em uma colonialidade do poder.

Seu título resume a relação dialética entre o imperador em declínio e seus banqueiros, a saga dos Fugger, ou seja, entre a necessidade e o endividamento que garantiu o status imperial no século 16, em detrimento de Castilla, a nação, e das Índias, transformadas em meros instrumentos de uma política colonial extrativista. Sem metáforas, o episódio é uma tragicomédia composta por 76 fotografias – ritmadas por notas e

citações nas margens – que rastreia os nomes e a geografia sobre os quais o Império Habsburgo e a nação espanhola foram construídos, a fim de submetê-los a uma crítica contra a corrente dos desconfortos herdados. Assim, a fotografia atua como um contradiscurso na revisão de um dos mitos fundadores do Império Espanhol e é um instrumento para questionar a modernidade europeia a partir da perspectiva da colonialidade na América. Nesse sentido, a série busca o espectro desses banqueiros hoje no eixo geográfico Augsburgo – Sevilha – México, em suas ruas, capelas e igrejas, museus, bibliotecas, minas e oficinas, que são uma transcrição do ouro, da prata e do chocolate transformados em moedas, lingotes e grãos. rocío robles tardío traduzido do espanhol por ana laura borro

esta participação é apoiada por: Acción Cultural Española (AC/E) e Embaixada da Espanha no Brasil, e realizada em parceria com o Institut Ramon Llull.


josé guadalupe posada

Calavera oaxaqueña, calaveras rotas y garbanceras, sem data Caveira de Oaxaca, caveiras fraturadas e caveiras Garbanceras. Zincografia, 14,6 × 25,5 cm

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Brincar com a morte, de pega-pega, pique-esconde ou, para os mais cerebrais, uma partida de xadrez. Só para matar o tempo, nosso coveiro. Mas isso sem esquecer de levar os materiais necessários para eternizar o encontro: pedra, papel, tesoura, lápis, tintas, buril… No caso de José Guadalupe Posada (1852-1913), foi escolhido o instrumental da litografia, pois somente assim suas gravuras poderiam

viralizar em impressões, reimpressões e reapropriações que se repetem diante dos olhos dos vivos. Um memento mori coral – trabalhos ecoando em latim a litania do “lembre-se de que você também vai morrer”. Posada pertence àquele reduzido grupo de artistas cujas obras são automaticamente reconhecíveis, mesmo que se ignore o nome de quem as assina. Suas célebres

calaveras [esqueletos ou caveiras] retiram energia das páginas baratas às quais se destinavam e fazem parte da história morta-viva do México. A Gran calavera eléctrica (1907), a La calavera oaxaqueña (1900), a La calavera revolucionária (c. 1910) e, sobretudo, a La calavera Catrina (1910/1913) são memes de memento mori anteriores à rede mundial de computadores. A um só tempo, piada e reflexão filosófica, festa da morte e resistência cultural à colonização. Interessado em produzir na tradição do que se convencionou chamar de arte popular – categoria questionável e ambígua –, o alcance de Posada estendeu-se aos analfabetos (a maioria da população à época) e recrudesceu ao longo do século 20 em um contexto de valorização das culturas indígenas, pré-colombianas e contemporâneas. Ele produziu caricaturas e ilustrações para diversos periódicos em circulação durante o tumultuado final de século 19 até 1913, quando morreu no anonimato. Publicou em muitos jornais pró-classe trabalhadora, mas sua filiação aos ideais revolucionários não é ponto pacífico. No entanto, resta uma constante inegável em sua verve satírica: ridicularizar a burguesia que se nutre da exploração do povo. Fato presente nas linhas que vão da fase costumbrista às produções tardias, que culminam no chapelão sobre o esqueleto da socialite Catrina. igor de albuquerque

Calavera de muchachos papeleros, sem data Caveira de meninos jornaleiros. Zincografia, 15,1 × 23,1 cm

El jarabe de ultratumba, sem data A dança Jarabe de além-túmulo. Zincografia, 28 × 43 cm


juan van der hamen y león

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Entre 1625 e 1628, depois de ser absolvido pelo papa e pouco antes de embarcar em sua viagem de volta para a chamada Nova Espanha, Antonio de Erauso foi imortalizado por Juan van der Hamen y León (1596-1631) no Retrato de Doña Catalina de Erauso. La monja alferez [Retrato de Dona Catalina de Erauso. A freira alferes]. Erauso, também conhecido como “a freira alferes”, nasceu

como mulher em 1592 e desafiou padrões de gênero no século 17. Até não muito tempo atrás, muitos estudiosos do período, provavelmente influenciados pela leitura da biografia de Erauso, consideravam a pintura como parte da tendência barroca de representar “o monstruoso”. Essa tendência, que deu origem a um gênero inteiro por si só, formou um amálgama no qual se incluíam tanto os corpos fora da

norma quanto as identidades sem uma definição preestabelecida. No entanto, embora imagens desse tipo tenham sido particularmente abundantes no contexto espanhol na primeira metade do século 17, o Retrato de Doña Catalina de Erauso parece questioná-las com base em sua própria excepcionalidade. A particularidade da obra faz ainda mais sentido se considerarmos que a escrita a seu redor – aquela que estabelece uma clara dissonância entre imagem e texto, razão pela qual essa anomalia foi explicada – foi um acréscimo posterior. Ao espelhar as convenções de representação do “masculino” de sua época, a composição do personagem feita por Van der Hamen involuntariamente contraria o título póstumo da pintura. Vestindo trajes militares e sustentando um olhar firme, a imagem do alferes adere inequivocamente ao regime dominante de visualidade da era colonial, com todos os seus ditames de gênero, sexualidade, raça e classe. Essa constelação de interpretações, de apêndices visuais e discursivos, foi recuperada por Cabello/ Carceller. Na exposição Una voz para Erauso. Epílogo para un tiempo trans [Uma voz para Erauso. Epílogo para um tempo trans] (2021-2022), a obra mostra novamente seu caráter mutável e excepcional e, entre o passado e o presente, confirma a performatividade inerente a todo retrato, toda história e toda construção de identidade. beatriz martínez hijazo traduzido do espanhol por ana laura borro

Retrato de Doña Catalina de Erauso. La monja alferez, c. 1625 Retrato de Dona Catalina de Erauso. A freira alferes. Óleo sobre tela, 57 × 46 cm


judith scott

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Judith Scott (1943-2005) realizou suas primeiras esculturas em 1988. Embora as formas de seus trabalhos tenham se tornado mais complexas ao longo do tempo, todas elas compartilhavam um princípio semelhante: uma estrutura central de objetos encontrados, envoltos em um entrelaçado de fios de novelos de lã, de tiras de tecidos fibras e outros elementos do cotidiano.

Por vezes, suas composições coloridas são estruturas abertas, que revelam o número infinito de extensões de materiais subjacentes em seu interior. Em outros momentos, os fios estão entrelaçados em estruturas compactas e labirínticas, e suas entranhas só podem ser reveladas mediante processos radiográficos. Em mais de uma década e meia de produção incansável, a artista

jamais deu título às suas obras. Não indicou como esses trabalhos deveriam ser exibidos e sequer registrou seus pensamentos sobre seu trabalho artístico. Na ausência de uma narrativa, quando Scott começou a atrair a atenção da crítica, uma série de rótulos e tentativas de interpretação gravitou em torno de seus trabalhos. Muitas desses indícios se apoiaram no que estava para além do entorno artístico, recorrendo à sua biografia incerta ou à redução de sua prática a classificações preconcebidas. No entanto, precisamente por serem inescrutáveis, suas obras – que permeiam o mágico e o cotidiano, o visível e o oculto – resistem à classificação. Estão inscritas no enigma, naquelas coreografias impossíveis que escapam da rigidez do unívoco e nos lembram que o significado de um objeto artístico sempre permanece inacabado e incompleto: irredutível a deter­ minado discurso, determinada imaginação ou sistema de mediação. beatriz martínez hijazo traduzido do espanhol por ana laura borro

Sem título, 1993 Tecido e objetos encontrados, 91,4 × 50,8 × 25,4 cm


julien creuzet

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Poética da relação, obra do pensador martinicano Édouard Glissant, se inicia com “A barca aberta”, um texto curto mas denso, ao qual retornei muitas vezes desde que o encontrei há cerca de quinze anos. O ensaio termina com o seguinte trecho: “está, à frente da proa doravante comum, esse rumor ainda, nuvem ou chuva ou fumaça tranquila. Nós nos conhecemos na multidão, no desconhecido que não

aterroriza. Nós gritamos o grito da poesia. Nossas barcas estão abertas, nós as navegamos em nome de todos”.1 Para mim, a obra de Julien Creuzet é uma escancarada, confusa e excitante barca aberta. Entrar em uma das instalações de Creuzet é dominar-se por cores, texturas e linhas – fios felpudos, plásticos neon, redes de pescadores, metais brilhantes, líquidos coloridos não identificados dentro


de garrafas suspensas exatamente assim, entre outros elementos. É um assalto, é assustador em sua indecifrabilidade e cintilante em sua sensualidade. É mais um poema do que um ensaio; não há figuras sólidas, apenas contornos de coisas. Onde os objetos são decifráveis, como em seus vídeos, eles se reúnem em combinações inusitadas, rebatendo uns nos outros, alterando seus significados,

associações surgindo e lembrando a “sopa de signos” de Benitez-Rojo.2 Tudo isso é deliberado, obviamente. Creuzet está comprometido com uma cadeia interminável de referência que invoca “a multidão” do pensamento e da experiência pan-africanista. Seu trabalho nos lembra que muito é compartilhado pela diáspora africana, mas muito não é. O conceito de negritude está relacionado, mas não é o

mesmo que o conceito do Black Power. Seria a Mami Wata [Mãe Água] do Haiti, a Mami Wata da Louisiana? Mami Wata é a Yemayá de Cuba? A Iemanjá do Brasil? Seria a River Mumma da Jamaica? Essas recorrentes mulheres surgidas das águas, com sua cauda de peixe, em si mesmas uma espécie de entrecruzamento, agrupando-se como “nuvem ou chuva ou fumaça tranquila”, gotículas suspensas no ar, ligadas por algo invisível, elusivo, mas inegavelmente perceptível. Creuzet não aceitaria isso de outra maneira. A exigência de transparência é por vezes violenta, porque não se deleitar na opacidade do outro, de si? Afinal, se você pudesse adentrar a instalação de Creuzet e saber exatamente o que ela é, consumindo e digerindo sem maiores consequências, afinal, seria tão bom? Você a sentiria de modo tão profundo? Acho que não. Melhor demorar, vagar, deixar seus pensamentos voltarem-se sobre si mesmos, estabelecer associações livres, dialogar com um amigo. Prazeres além do que você pode imaginar te aguardam. nicole smythe-johnson traduzido do inglês por naia veneranda

– 1/ Édouard Glissant, Poética da Relação (1997). Tradução de Marcela Vieira e Eduardo Jorge de Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021, pp. 20-30. 2/ Ver Antonio Benitez-Rojo, The Repeating Island: the Caribbean and the Postmodern Perspective. Durham: Duke University Press, 1997. (Tradução livre).

ZUMBI ZUMBI ETERNO, 2023 Stills do vídeo. Vídeo, cor, som

esta participação é apoiada por: Institut français.


kamal aljafari

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A obra de Kamal Aljafari parte da crença e da exploração do poder do cinema de prestar testemunho. Para um artista palestino trabalhando após a Nakba,1 essa afirmação pode parecer paradoxal. Nas mãos de Israel, o cinema tem constantemente servido como ferramenta de colonização, excluindo os palestinos das representações de suas próprias paisagens e espaços urbanos. Assim, como observa

Aljafari, o povo palestino é duplamente desenraizado – na vida real e também no cinema. Mas nenhuma expropriação jamais é total. Assim como as pessoas, os pixels também resistem. Em Recollection [Recordação] (2015), Aljafari se envolveu em um esforço minucioso e brilhante para desfazer o que ele chama de “ocupação cinematográfica”. Ele explorou três décadas de filmes de

ficção israelenses produzidos em Jaffa, sua cidade natal, em busca daquilo que os fotogramas involuntariamente preservam: a imagem da arquitetura da cidade como foi um dia, e a imagem de muitos palestinos, incluindo seus familiares, que acidentalmente aparecem ao fundo porque, por acaso, passavam ali quando a cena estava sendo filmada. Munido de uma confiança em imagens de baixa resolução, ele usa a montagem e a manipulação de imagens como ferramentas cinecoreográficas, para trazer esses fantasmas silenciosos ao primeiro plano, fazendo que a representação espectral surja de sua impossibilidade. Em outros projetos, como Port of Memory [Porto da memória] (2010), Aljafari enfoca espaços íntimos e familiares os quais, em uma espécie de tempo suspenso, a repetição de rituais diários aparece como uma maneira de impedir a catástrofe iminente. Em The Camera of the Dispossessed [A câmera dos despos­ suídos] (2023), seu projeto para a Bienal de São Paulo, ele experimenta com o formato da instalação, empregando justaposição, montagem e efeitos visuais para se reapropriar criticamente de imagens históricas saqueadas do Centro de Pesquisa Palestino, em Beirute, em 1982, pelo exército israelense. omar berrada traduzido do inglês por mariana nacif mendes

_ 1/ O termo árabe Nakba significa “catástrofe” ou “desastre” em português, e remete ao êxodo palestino de 1948, quando mais de 700 mil árabes palestinos, conforme dados da Organização das Nações Unidas (onu), fugiram ou foram expulsos de suas casas em razão da guerra civil de 1947-1948 e da Guerra Árabe-Israelense de 1948. [n.e.]

A Fidai Film, 2023 Um filme Fidai. Stills do vídeo


kapwani kiwanga

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o trabalho de Kapwani Kiwanga nos afeta através de sentimentos de confusão. essa afetação não é tanto um método, mas um caminho. por meio de vídeos, sons, performances y instalações, bem como de um estudo profundo, sua arte confunde os fundamentos rígidos do mundo moderno-colonial, sobretudo sua perversa lógica binária. ao abalar a rigidez dessas estruturas, como verdade/ficção, por exemplo, Kiwanga

ativa não apenas um trabalho de destituição como descolonização, mas, sobretudo, nos convida a imaginar formas radicalmente outras de conceber y de nos implicar – para recuperar Denise Ferreira da Silva – com o Mundo que somos. um Mundo de permeios, atravessamentos y confusões. para a 35a Bienal, Kiwanga traz pink-blue [rosa-azul] (2017), concebida a partir de sua pesquisa sobre


instituições totais – caso das instituições psiquiátricas y dos presídios – y o impacto da arquitetura e design punitivista sobre nossas carcaças, além da vigilância constante. a instalação traz à tona mecanismos que, na surdina, moldam, regulam y preveem as formas de sociabilidade. assim, a cor rosa, de modo especial a Baker Miller Pink, acalmaria instintos agressivos (reabilitação ou política de controle?), enquanto o

azul (neon), dificultaria a localização das veias, inibindo usuários de drogas injetáveis (prevenção de danos ou aumento de riscos?). diante desse trabalho y de seus desdobramentos, também podemos atravessar esse caminho de confusão, imaginação y implicação por meio do que nele há de embate contra o tempo colonial, marcado pela linearidade rígida entre passado, presente y futuro, dando lugar a

uma complexidade técnica não mais eurocêntrica, através da disposição das cores (azul-rosa, branco) y das formas (entrada-saída, retilíneo-diagonal) em sentido contrário daquele utilizado para cercear y oprimir. talvez aí, quando nós fazemos a passagem rumo a rotas de fuga, inventamos uma nova dança da temporalidade. se nos deixamos desorientar pela passagem de pink-blue, numa confusão entre entrada y saída, podemos ainda sentir essa instalação como uma grande y estranha lupa, geométrica, diagonal y colorida, por meio da qual podemos vislumbrar (y fazer parte de) um tempo não linear , adentrando y inventando espaços não mais comandados pela lógica do cativeiro colonial. abigail campos leal

pink-blue, 2017 rosa-azul. Tinta rosa Baker-Miller, tinta branca, luzes brancas fluorescentes, luzes azuis fluorescentes. Vista da instalação, Yuz Museum, Xangai (2018)


katherine dunham

A trajetória singular de Katherine Dunham (1909-2006) como antropóloga e bailarina permitiu imprimir sentidos outros ao corpo negro, fissurou os clichês e imaginários coloniais sobre danças, corpos e contextos de origem africana e respondeu às contingências de seu momento histórico mais amplo. Ao fomentar a conversa entre a antropologia e a dança de modo tanto insuspeito quanto inovador,

etnografando danças do Caribe e da América do Sul com um jogo de corpo vigoroso e pioneiro, fez emergir a antropologia da dança como disciplina, e edificou posteriormente uma técnica de dança e uma escola de formação que hoje são legados fundamentais. Rigorosa em suas criações e ideias, colocou em relação elementos do balé clássico europeu e as danças rituais caribenhas, cons-

Apresentações de Katherine Dunham, filmadas em 1947 e 1956 Stills dos filmes Shango, Charm Dance from “L’Ag’Ya”, Ag’Ya Fight from “L’Ag’Ya” and Washerwoman. Xangô, Dança do encanto de L’Ag’Ya, briga Ag’Ya de L’Ag’Ya e Lavadeira

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truindo uma técnica com linhas, isolamentos e ondulações, além de variedades de tempos e ritmos mais amplos do que as formas de dança de concerto da primeira metade do século 20. Ao apontar semelhanças, deixou igualmente emergirem as diferenças, sem temer as contradições inevitáveis desse movimento, causando surpresa aos olhares eurocêntricos, por demais convencidos da limitação do corpo dos Outros.

Em seus espetáculos, acendiam-se narrativas diaspóricas ilustrativas de ritualísticas, dramaticidades, espiritualidades e modos da vida cotidiana que eram catalisadores da experiência comunitária. Sua investida nas realidades caribenhas tornou-se uma maneira de estabelecer laços com a memória e a ancestralidade africanas e de retomar arquivos para recriá-los, à luz de uma percepção que questio-

nava os modos coloniais de ver o mundo negro. Sua articulação com a diáspora negra em termos práticos e conceituais foi de tamanha relevância que pode ter antecipado a própria ideia de Atlântico Negro. Dunham vislumbrava a noção de diáspora africana em sua dimensão intercultural e geográfica, mostrando ainda como o modernismo das danças negras contribuiu para o campo mais expandido da dança. O trabalho da coreógrafa evidenciava como a dança podia se relacionar às questões que atravessavam a vida social. Em 1950, durante turnê pelo Brasil, sofreu uma ofensa racista no Hotel Alvorada, em São Paulo, que desencadeou intensas discussões no campo das relações raciais, culminando na promulgação da Lei Afonso Arinos no país (Lei n. 1.390/1951), que considerava as práticas racistas como contravenção penal. Cabe ressaltar que nessa mesma época a coreógrafa estabeleceu contato com a bailarina brasileira Mercedes Baptista, que posteriormente ingressaria em sua companhia em Nova York. Dunham, através de suas coreografias e de seus movimentos ao redor do mundo, imaginou e fez circular representações sobre o que pode ser o corpo afro-diaspórico, e com isso disseminou um conhecimento próprio e de toda uma comunidade. Sua visão humanista e seu ativismo contribuíram de maneira multidimensional para os campos das artes, da educação e da luta antirracista, entrelaçando esferas artísticas e acadêmicas de modo pertinente e necessário. luciane ramos silva


kidlat tahimik

Indio Genius Brazil Remix, 2023 Índio Gênio Brasil Remix. Colagem digital

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Mais conhecido como cineasta independente, Kidlat Tahimik é autor também de instalações feitas em grande escala. Enormes e complexas, suas cenografias desenvolvem narrações indígenas que confrontam as narrativas coloniais e imperialistas. Preocupado principalmente com o extermínio e a destruição de figuras mitológicas genuínas, o artista recria, com nuances épicas, os choques entre culturas. As múlti-

plas histórias e as muitas cenas que ganham forma em suas esculturas de madeira parecem saídas da mente de um roteirista de Hollywood. Por fim, personalidades históricas mesclam-se a personagens fictícias, promovendo um colapso no tempo, nos períodos consolidados e em geografias distantes. Para a instalação na 35ª Bienal de São Paulo, Tahimik propõe um friso improvável que dispõe, lado a

lado, figuras mitológicas ancestrais: Igpupiara (termo tupi que significa monstro marinho) e Syokoy (espécie de homem-sereia), originárias respectivamente de povos indígenas brasileiros e de povos filipinos. Esse é apenas um capítulo da viagem de circunavegação do explorador Fernão de Magalhães, na qual a invasão abre espaço para a necropolítica que se estende para muito além dos seres humanos. Primeiro representadas como monstros, depois exterminadas, as figuras de Igpupiara e Syokoy personificam o assassinato de imaginários tribais, um profundo e implacável genocídio cultural que amplifica sua tragédia com o capitalismo ecocida racial. Helicópteros, motosserras e mísseis num confronto desigual com criaturas meio humanas, meio animais, em cenas que ecoam parques temáticos interculturais, de algum modo inspirados na lógica das exposições do século 19, organizadas pela empresa colonial. Ao desorganizar os cronótopos herdados dos discursos modernos, que fizeram do saque e do extrativismo formas legítimas de governo planetário, o artista dispõe em primeiro plano outra sombra da violência. Desfazer as narrativas imperiais por meio da lógica degenerativa das histórias contadas uma e outra vez constrói uma forte contraimagem do progresso. Em um mundo pós-colonial, a capacidade inventiva apoia-se em torções, combinações e mesclas do passado, a despeito das categorias que mantêm separadas formas de vida, construções imaginárias comuns e conhecimento. Desse modo, estabelecer contato com as instalações de Tahimik é como entrar em um ferro-velho legado por todos os regimes imperiais. carles guerra traduzido do inglês por gabriel bogossian

Rain Forest Manugal Jar, 2023 Jarra de floresta tropical de Manugal. Colagem digital


leilah weinraub

O tempo no filme SHAKEDOWN (2018) é um habitat, como afirma sua realizadora. Por mais de dez anos, entre 2002 e 2014, Weinraub reuniu um precioso acervo de entrevistas e imagens do clube de strip-tease Shakedown, de e para lésbicas negras, em uma Los Angeles à beira da gentrificação e com violentas incursões policiais. Interrompendo a concepção linear e consecutiva ocidental e suscitando temporalidades e

SHAKEDOWN, 2018 Still do filme; 60’22’’

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espacialidades que entrelaçam passado, presente e futuro, Weinraub apresenta uma obra-pesquisa de 72 minutos desmontada em mais quatrocentas horas de filmagens, flyers e inúmeras fotografias produzidas quando a artista trabalhava como fotógrafa e videolady do clube que dá título ao longa-metragem. O resultado é um filme-experiência, íntimo, ousado e celebrativo da lesbiandade negra afro-americana.


Em 2020, SHAKEDOWN se tornou o primeiro filme não pornográfico lançado na plataforma Pornhub. O filme, que remonta em novas sensibilidades, visualidades e temporalidades as histórias de Ronnie-Ron e das Shakedown Angels − Egypt, Ms Mahogany e Jazmyne −, é um documento no qual se entrecruzam várias camadas, como as indagações sobre o que é trabalho? e sua ligação com o indivíduo e com a privaci-

dade, o dinheiro, o poder, o erótico, a excitação, os afetos, as intimidades, as personas performáticas, a ilegalidade, as sexualidades fluidas, as famílias, os conceitos de cinema e de imagem, o tempo e o clube como abrigo e possibilidade de ser. Aos desavisados, SHAKEDOWN poderia ser compreendido apenas como um documentário de resistência da cena underground de Los Angeles, capital e refúgio queer estadunidense, mas

Weinraub resiste à ideia de documentário e o define como sendo “sua própria cápsula”, realizado em determinado momento como um espaço para a curiosidade e a fantasia. Além disso, o que Weinraub fez em SHAKEDOWN foi uma obra de arte visceral. barbara copque


luana vitra

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A transmissão de histórias orais é uma das fontes da pesquisa de Luana Vitra. De origem mineira, cresceu ouvindo relatos de parentes que envolvem desde celebrações, saberes e tecnologias afro-diaspóricas, aos traumas do passado escravista da região de Ouro Preto, onde vive sua família. Assunto constante são as histórias que envolvem o legado de séculos de economias extrativistas que

ainda promovem a degradação dos ecossistemas locais. Desses relatos, Vitra se recorda de ouvir sobre pessoas escravizadas que costumavam levar canários para o trabalho em minas de ouro. Pássaro de canto incessante e metabolismo acelerado, era utilizado como sentinela. Seus pulmões reagiam em instantes à presença de gases tóxicos emanados pela extração mineral, e seu silêncio era o alerta para que os


mineiros abrissem caminhos para escapar daquelas galerias, evitando os perigos de uma intoxicação letal. A sobrevivência daquelas pessoas significava a morte das aves, evidenciando como o regime escravagista não devastou apenas vidas humanas, mas estendeu seu terror sobre outras espécies. A narrativa acima é o ponto de partida da obra de Luana Vitra para a 35ª Bienal de São Paulo. A ins-

talação tem como elemento principal uma série de flechas-patuás preparadas para o desbloqueio de caminhos. Feitas de ferro, material paradigmático e de uso recorrente em seus trabalhos, elas atuam como condutores, apontando para lugares de prosperidade onde a “possibilidade prevalece”. Ao centro da instalação, nota-se que algumas delas estão agrupadas e posicionadas diagonalmente entre si. Para

Registro de produção da obra comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo para a 35a Bienal

Vitra, essa composição cria um caminho que espacializa os significados e as possibilidades que cada agrupamento carrega. Somam-se à composição do trabalho, cuias de cobre, pássaros banhados em prata e cobre, metais de alto caráter condutivo e pó de anil, substância frequentemente utilizada para limpeza energética. thiago de paula souza


luiz de abreu

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A investigação em dança e em performance conduzida por Luiz de Abreu presentifica o corpo negro em estado de denúncia. Os vídeos que compõem sua participação na 35a Bienal constituem documentos do Brasil entre meados dos anos 1990 e meados dos anos 2000. Neles, o artista enfrenta a experiência de um racismo que resistia à elaboração coletiva e institucional, mas com pungentes efeitos de subjugação

racial em níveis econômicos, sociopolíticos e subjetivos. As coreografias presumidas para pessoas negras no contexto do mito da democracia racial são exploradas no trabalho do artista, que entrega seu corpo para responder aos estereótipos que surgem e confinam o repertório simbólico esperado para as artes negras. O país é a presença que sustenta e conforma as cenas, seja como pano de fundo do cenário em

Black Fashion [Moda negra] (2006), como bandeira que veste o palco e o artista em Samba do crioulo doido (2004), ou mediante temas clássicos da brasilidade que compõem a trilha sonora das obras. Mas, afinal, como dança um corpo negro? E que efeitos e afetos uma pergunta elaborada nesses termos é capaz (ou não) de gerar? Embora o artista relate que não cria com base em gêneros,1 o riso branco, cisgênero e perverso da plateia afirma comédia, uma vez que é acionado em cenas que poderiam causar profundo desconforto caso o público fosse capaz de reconhecer a tragédia vivida pela negritude. O riso do performer, ao contrário, entra e sai de cena demonstrando a marcação coreográfica; trata-se de uma alegria que revela sua artificialidade, porque é decomposta enquanto gesto, assim como todas as qualidades e movimentos atribuídos ao corpo negro o são. Em Autópsia (1997), o espaço do riso se fecha. Na insuportável reprodução do horror dos relatos de violência narrados em off, abre um espaço gregário para solidariedade e para o ritual, retornando, talvez, à memória de uma dimensão litúrgica que sua dança, sem dúvida contemporânea, apreendeu desde os terreiros de umbanda. cíntia guedes

_ 1/ Conforme entrevista concedida à Rádio França Internacional Brasil, no programa RFI Convida Luiz de Abreu, em 13 mar. 2020. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=g0ALs1cTW0Q&ab_channel=RFIBrasil. Acesso em: 18 maio, 2023.

Samba do crioulo doido, 2004 Registro de performance


m’barek bouhchichi

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A questão da raça é surpreendentemente ausente na produção artística do norte da África. Pelos últimos dez anos, M’barek Bouhchichi vem elaborando formas e métodos para abordá-la. Sua intenção não é tanto confrontar a brutal realidade do racismo antinegritude, mas resgatar a substância e os ritmos da vida negra que, para ele, são principalmente aqueles do trabalho artesanal, em especial no sudeste

marroquino: as texturas do que as mãos negras produzem, a textura do tempo passado com famílias artesãs, ouvindo suas palavras, vendo suas reiterações culturais de gestos ancestrais e sua ética de paciência diante da discriminação. Para Bouhchichi, esses ceramistas e ferreiros são poetas (no sentido grego do verbo poiein, que significa “fazer”). Eles criativamente moldam a matéria e dão

vida nova a ela. Com seu modo tátil de testemunhar uma história de racialização, eles desempenham um papel semelhante ao dos poetas orais Amazighs que, uma geração após a outra, têm registrado a vida de suas comunidades em canções e recitações. A poesia é importante para a prática de Bouhchichi. Ele tem prestado especial atenção a M’barek Ben Zida (1925-1973), poeta-camponês negro que se revoltou contra seu status de parceiro de arrendamento no sul do Marrocos. Bouhchichi coleta as palavras em grande parte esquecidas de Ben Zida e as grava em esculturas. Para a Bienal de São Paulo, Bouhchichi une poesia e cerâmica enquanto transpõe lacunas geográficas que mantêm a diáspora africana dispersa. Inspirado pela obra do ceramista estadunidense escravizado David Drake (c. 18001870), ele cria uma série de vasos gravados com versos de poetas negros do norte da África, afro-brasileiros e afro-americanos – como uma partitura para uma dança alternativa de emancipação que elimina as fronteiras nacionais ao encenar debates entre mãos negras de ambos os lados do Atlântico. Com esse trabalho, o artista busca desaprender as hierarquias da arte ocidental, ao mesmo tempo em que aponta para um mundo estruturado, não pela reação à opressão, mas por uma trama ativa e poética de relações entre línguas e geografias. omar berrada traduzido do inglês por mariana nacif mendes

projeto para Nous sommes ce qui vous ne voulez pas voir, 2023 Nós somos aqueles que vocês não querem ver. Nanquim, grafite e aquarela sobre papel


mahku

acelino sales tuin Nahene Wakame, 2022 Acrílica sobre tela, 163,5 × 260 cm

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Desde 2013, quando foi fundado por Isaías Sales (Ibã), Txaná dos cânticos Huni Meka, e seus filhos Acelino, Bane e Maná, o Movimento dos Artistas Huni Kuin vem estabelecendo uma iconografia singular, cujas soluções formais permitem uma rápida identificação. Caracterizadas pela presença de figuras humanas e não humanas, integradas por uma complexa trama gráfica que reflete a estrutura das

pinturas corporais ao mesmo tempo que reservam pequenas áreas de cores intensas, a pintura do MAHKU dispensa as codificações ocidentais: renuncia à mimesis, à perspectiva, às regras de proporção e à técnica canônica, para se comprometer unicamente com às forças de miração, experiências de visões estimuladas pela ingestão de ayahuasca durante os rituais de nixi pae. As pinturas podem apresentar também tradu-

ções de narrativas míticas e histórias ancestrais, descritas nos cânticos rituais, cujo aspecto comum é a presença viva dos entes da natureza e a relação de continuidade entre eles. Resulta desses procedimentos uma combinação de formas e cores, que reacende o problema do movimento em pintura, deslocando-o do terreno da ilustração para o da experiência interior (que Ibã chama de “arte espiritual”), e procuram dar conta dos diferentes ritmos de narração dos mitos nos cantos. Na iconografia Huni Kuin, a área de imprecisão entre o sonho e o mito é frequentemente marcada por uma moldura que se adapta ao suporte trabalhado, assegurando a autonomia da história e garantindo sua livre manifestação. No perímetro da miração, não há hierarquias entre os entes representados e a fratura entre abstração e figuração perde todo sentido. O que encontramos é o resultado de uma imagem-processo, realizada por muitas mãos, a partir do diálogo e do aprendizado entre os envolvidos, cujo objetivo final é a cura, tanto de quem a realizou quanto do observador que a acessa, transformando-a em experiência espiritual. renato menezes


malinche

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entre os anos de 1500 e 1529, viveu Malinche, uma Nahua que nasceu provavelmente no que hoje chamamos de costa do Golfo do México, y Malinche seria a forma distorcida de Malintzin captada pelo ouvido espanhol, que é apenas mais um dos tantos nomes atribuídos a ela, cujo nome de nascimento é desconhecido. nos registros oficiais da História, Malinche é conhecida por suposta-

mente ter atuado como tradutora y conselheira de Hernán Cortés na invasão y destruição do Império Asteca (1519-1521). em Lienzo de Tlaxcala1 deparamos com a recriação de um momento histórico cuja violência poética apenas podemos vislumbrar: o brutal encontro entre Tlaxcalanos y Castelhanos. diante dessa imagem misteriosa, somos convocadas a presenciar o inominável: o barulho

ensurdecedor dos mosquetes, crianças que choram diante do cadáver de seus pais ensanguentados, cabanas incendiadas, jovens sendo violentadas por espanhóis, saques, destruição, soldados espanhóis assassinados sem ao menos saber de onde partiu a flecha. mas podemos também nos questionar: que histórias guardam essas manchas estranhas? ou que acontecimentos imprevisíveis anunciam esses rasgos? Malintzin foi conhecida por ser uma colaboradora da invasão ibérica. entretanto, podemos questionar: será que ela apenas estava tentando sobreviver ao extermínio que se anunciava? será, ao contrário, que seu trabalho silencioso era de um ataque interno, por meio de sabotagem y contágio? de qualquer forma, suas habilidades linguísticas notáveis podem nos servir como caminho para ir além da História, erodindo a sua linguagem. será que em Lienzo de Tlaxcala se encontra criptografada alguma pista? talvez aí estejam contidos elementos para fabularmos um outro tipo de refeitura profética do passado. assim, esse mapa não indica as coordenadas para um país geográfico, mas para lugares há muito esquecidos y que ainda estão para serem imaginados. abigail campos leal

_ 1/ O Lienzo de Tlaxcala é um códice colonial pintado por volta de 1552. Ele conta a história da conquista do México da perspectiva dos Tlaxcallans, antigos inimigos dos Astecas. Disponível em: nmdigital.unm.edu/digital/collection/ achl/id/1609/. Acesso em: jul 2023.

Lienzo de Tlaxcala, 1522 Desenho policromado sobre papel de casca de árvore, 65 × 26,5 cm


manuel chavajay

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Atitlán é o lago que banha as margens de diversos vilarejos no departamento de Sololá, na Guatemala. Protegido por três gigantescos vulcões, ele é o produto de uma erupção ocorrida há 84 mil anos. Em suas margens, habitam descendentes dos grupos Caqchiquel e Tzutuhil. Manuel Chavajay, nascido na cidade guatemalteca San Pedro la Laguna, é um desses descendentes.


Como uma extensão desse lugar surpreendente, seu trabalho o explora como um local sagrado, onde sua existência acontece e é tecida com o conhecimento de seus ancestrais. Para os habitantes, Atitlán é um epicentro do turismo e um lugar que contribuiu com a ideia do que constitui o repertório nacional. Mas, para Chavajay, as forças vinculantes que surgem da experiência de pertencer a

esse lugar são superiores a qualquer clichê. Em sua performance em vídeo Oq Ximtali (2017/2023), pode-se observar isso. Esse projeto é o registro de uma ação comunitária, surgida da preocupação do artista com esse local e do convite a um grupo de pescadores para que amarrassem seus barcos tradicionais − conhecidos como cayucos − enquanto remavam nas águas translúcidas do lago. A ima-

gem, registrada por um drone, é um círculo quase perfeito dos vinte barcos que carregam vários recursos e objetos simbólicos. As embarcações fluem com as correntezas da água ou exercem forças opostas. No final da ação, o artista sugeriu aos participantes que poderiam se desamarrar, movendo-se de acordo com sua vontade ou coordenando-se para retornar juntos à margem, o que gerou um momento de confusão. A expressão Oq Ximtali, na língua tzutuhil, significa “eles nos amarraram” ou “nós estamos amarrados”. Essa ação explora ou recupera a dinâmica da comunidade que está se desarticulando e desaparecendo em razão da interferência de culturas opostas. No trabalho de Chavajay, sempre se encontram reflexos de um intenso senso de dor histórica que se alterna ao senso de esperança; certo medo que surge com a resiliência; a força do trabalho na terra e na água funde-se ao grande senso de vulnerabilidade. Em uma poética excepcional, Oq Ximtali sugere esse sentimento recorrente de impossibilidade que se tornou uma característica proeminente do presente e que ameaça o equilíbrio das comunidades, das relações humanas e interespécies. rossina cazali traduzido do espanhol por ana laura borro

Oq Ximtali, 2017/2023 Fotografia digital, 91 x 61 cm


marilyn boror bor

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Para a Bienal de São Paulo, a artista de origem Maya-Caqchiquel Marilyn Boror Bor apresenta dois projetos que exploram seu compromisso com a visão contraetnográfica e com a desarticulação de formas de colonialidade. Seguindo os modelos do monumento europeu e da museografia etnográfica, os objetos e as ações de Bor modificam as percepções hegemônicas e o escrutínio de um público condi-

cionado por estereótipos e por preconceitos. Monumento vivo (2023) é uma ação na qual o corpo da artista, vestido com o traje maia, é disposto em uma base na qual suas pernas ficam momentaneamente presas no cimento. Nos quitaron la montaña, nos devolvieron cemento [Tiraram a montanha de nós, nos devolveram cimento] (2022) consiste em uma série de objetos tradicionais produzidos com cimento.

Simulando breves ficções, Boror Bor substitui o milho da comida pelo cimento, a argila dos potes pelo peso desse outro material, por meio do qual a alma (cux, na língua caqchiquel) e o valor simbólico originais dos objetos vão se perdendo. Ambas as obras constituem uma resposta aos debates sobre o modelo de desenvolvimento econômico na Guatemala e o extrativismo feroz que afeta tantas pessoas no continente e, em particular, em San Juan Sacatepéquez, cidade onde a artista nasceu. Tanto o monumento quanto os objetos configuram um ato de enunciação dos conflitos gerados pela implementação de uma indústria que literalmente recobre de pó de cimento os campos férteis, as fontes de água e todos os recursos vivos dessa região. Não existe a palavra arte entre os povos nativos. O uso de elementos ocidentais associados ao mundo da arte é uma estratégia para revelar a situação difícil, mas também para resgatar a presença e a reverberação dos referentes originais. A intenção de Boror Bor é tirar proveito de certas características dessas linguagens totalizantes, institucionalizadas e acadêmicas para desmantelar os lugares-comuns que o multiculturalismo proporcionou. Como artista indígena contemporânea, seu desejo é resgatar cosmogonias que foram invisibilizadas e fragmentadas ao longo dos séculos. rossina cazali traduzido do espanhol por ana laura borro

Monumento vivo, 2021 Registro de performance, Bienal Sur, Ciudad de Guatemala


marlon riggs

Tongues Untied, 1989 Línguas desatadas. Stills do filme; 55’

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Desde que passou por uma revaloração por meio do trabalho de pesquisadores, curadores e distribuidores,1 os filmes de Marlon Riggs (1957-1994) têm sido frequen­temente reverenciados pelo conteúdo e pelo potencial de identificação que geram. Proponho, contudo, que destaquemos sua obra como integrante de uma história das formas nas artes, em especial no cinema.

O cinema de Riggs é da ordem do antissilêncio e, como tal, promove a valorização do expressar-se. Voz e ritmo constituem as principais estratégias formais de sua obra. Não representa um acaso que a poesia, com suas infinitas possibilidades de arranjos sonoros e elípticos, representa um traço inconfundível de seus filmes. Tongues Untied [Línguas desatadas] (1989) inaugura a fase mais

inventiva da carreira de Riggs e reúne os traços estilísticos que costumamos associar à sua obra. Como muitos de seus filmes subsequentes, Tongues Untied transita do radicalmente pessoal – avizinhando-se, assim, de um confessionário – ao indubitavelmente coletivo – enamorando-se, portanto, da polifonia. Falar de Riggs é também reconhecer que o paradigma da política dos autores na análise fílmica – ou seja, atribuir o que emana da mise en scène quase exclusivamente ao diretor – impõe limites. Para melhor compreendê-lo, seria útil observá-lo como um criador em interlocução com uma coletividade de indivíduos artisticamente brilhantes e intelectualmente rigorosos: ativistas negros-gays, intelectuais do feminismo negro e poetas, como Essex Hemphill. As realizações de Riggs empenharam-se para que homens negros-gays tanto fizessem parte da experiência negra como da americanidade. Investidos de uma reconciliação de identidades, seus filmes buscaram o acerto de contas rumo a uma redenção possível junto a três identidades estruturantes: negro, estadunidense e gay. Em Tongues Untied, Riggs postula essa reconciliação assertiva como projeto estético e político. heitor augusto

_ 1/ entre eles, destaco Bruno F. Duarte, Cornelius Moore, Louis Massiah e Rhea L. Combs, além de meu trabalho como curador e professor.


maya deren

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A principal contribuição de Maya Deren (1917-1961) para a coreografia é considerar a própria câmera como parte integrante da realidade dinâmica da dança. A câmera não é apenas um instrumento para registrar um evento cênico diante do qual é colocada, mas para ela mesma dançar em uma estrutura holística. E com a câmera, quem a segura. Maya se interessa pela dança pela sua afinidade com a

poesia e sua produção não literal de significado; a fluidez inatingível do movimento é consistente com a ideia do cinema como uma arte do tempo, não da representação. Para ela, a arte é a produção formal de uma realidade e experiência autônomas. Em suas próprias performances, Maya mergulha nessa realidade, que não é dada, mas construída por meio de recursos técnicos com os quais nunca


deixa de experimentar: montagem invisível, slow motion, quadros congelados, uso de diferentes lentes, inversão de movimento, dissociação de imagem e som. E é essa dupla experiência, de atuar e fazer, de estar dentro e fora, no trabalho técnico e na criação poética, no mundo material e no transcendente, que se revela em Meditation on Violence [Meditação sobre a violência] (1948). Esse filme

é o inverso dos rituais de possessão que tanto a fascinaram (e que ela mesma praticou) no Haiti. Em contraste com esses rituais, a dança mostrada aqui é um exercício de autocontrole, que a câmera compartilha, assumindo a própria gravidade do dançarino, aquela aparente leveza que só é alcançada por meio do treinamento e da inteligência do corpo. O resultado é um filme que pode ser considerado perfeito em

sua construção formal. Perfeito em sua precariedade: um conjunto de papel fotográfico e um manuseio hábil da edição nos permitem transcender o plano de Maya e a singularidade de Chao-Li Chi para produzir um movimento circular e infinito, a forma perfeita que contém todas as formas. A despersonalização do dançarino e da câmera é tocada pelo abandono típico dos rituais de posse, mas aqui a violência é contida, silenciada, não para negá-la, mas precisamente para mostrá-la à distância, em sua contiguidade com a beleza e com a vida. O olhar distanciado nos aproxima do divino de uma maneira quase oposta à do corpo em transe: aqui isso é alcançado graças ao trabalho com a matéria (o corpo, o papel, a arquitetura, a flauta, os tambores) e a forma (movimento, velocidade, enquadramento, edição de imagem e som) como meios da dança e do cinema. josé antonio sánchez traduzido do espanhol por ana laura borro

Meditation on Violence, 1948 Meditação sobre a violência. Stills do filme. Filme digital HD, preto e branco, som (do original em 16mm); 12’25’’


melchor maría mercado

Embora tenha sido exibido pela primeira vez quase um século depois, em 1991, o Álbum de paisajes, tipos humanos y costumbres [Álbum de paisagens, tipos humanos e costumes] foi produzido entre 1841 e 1869, nos primórdios da República da Bolívia. Indo na contramão da historiografia tradicional e do gosto neoclássico predominante, Melchor María Mercado (1816-1871) tece outras formas de “narrar a nação”.

As centenas de aquarelas que compõem a obra traça uma genealogia própria por meio de diferentes grupos humanos, costumes e regiões do país, nos quais as populações indígenas e as cholas desempenham um inegável papel de liderança. No entanto, ao mesmo tempo em que captura a cultura, a arquitetura e a natureza boliviana, o artista aponta a fragilidade do poder político (que vivenciou em

Sem título (Los pecados capitales), século 19 Os pecados capitais. Aquarela sobre papel, 20,5 × 33 cm

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primeira mão) e satiriza a corrupção das elites coloniais. Dessa forma, além de uma tentativa inicial de implantar uma memória e uma episteme andinas, também é possível perceber as fraturas e ambivalências que marcaram o período: a marginalização de certas identidades ou classes sociais e uma obstinada dominação colonial que se revelou como o outro lado do célebre triunfo do mercado e da democracia.

Há uma maneira particular de abordar o espaço e o tempo em Álbum. Contra a visão única e linear da história escrita, propõe-se um formato sequencial e dialógico, em que cada obra é – em si mesma e em relação às outras – uma cintilação discursiva. A socióloga Silvia Rivera Cusicanqui, que estudou detalhadamente a prática de seu compatriota, falou da terra natal como um punhado de imagens queridas

República Boliviana. Paz. Danzantes, século 19 República Boliviana. Paz. Dançantes. Aquarela sobre papel, 20,5 × 33 cm

e contraditórias. Assim, longe de prefigurar o que mais tarde seria instituído como um mapa, a obra de Melchor María Mercado sugere zonas de encontro e conflito em uma alegoria entre o vivido e o significado. beatriz martínez hijazo traduzido do espanhol por ana laura borro


min tanaka e françois pain

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Uma pessoa vestida com trapos caminha com dificuldade. As roupas modestas talvez tenham alguma relação com o filme A louca de Chaillot.1 Desajeitada, a figura quase parece que está aprendendo a andar. No entanto, seu aprendizado não é nada funcional, e sua maneira de se relacionar com o mundo não é comum. Mas essa dificuldade resulta em uma beleza de movimentos que se torna algo


mais belo do que uma simples sequência de passos: é uma dança. Todas as partes do corpo atuam e interagem entre si, mas não da forma esperada. Pés, pernas e braços se movem de forma inverossímil, gerando correlações e reciprocidades inesperadas com tudo o que está à sua volta, seja humano ou não. Essa ação foi realizada pelo dançarino e ator (como ele mesmo se descreve) Min Tanaka

na clínica francesa La Borde, onde Félix Guattari trabalhou por um tempo com Jean Oury, fundador da clínica. Ambos psicanalistas, Félix e Jean procuraram criar um espaço que não reproduzisse relações hierárquicas de poder, um lugar de intercâmbio entre assistentes e pacientes, entre equipes de serviços e médicos. A forma como ele se relaciona com os pacientes de La Borde evoca acompanhamento,

afeto e aprendizado mútuo. Esse é o elemento coreográfico do impossível que permeia esta obra. Tanaka é um dançarino japonês que atua na contramão da dança tradicional. Desde 1974, tem desenvolvido um modelo muito específico de performance que rompe com as disciplinas e que ele chama de hiperdança, enfatizando a unidade psicossocial de um corpo sem órgãos ou funções predeterminadas. Ao longo de sua carreira, desenvolveu uma prática que é impossível de ser classificada. Em suas palavras: “uma dança sem nome”. Tanaka já disse em alguma ocasião que juntos encarnamos um corpo único que não pertence a ninguém: o corpo da terra. Min Tanaka à La Borde [Min Tanaka em La Borde] (1986) foi realizado por François Pain, um cineasta francês que colaborou com Félix Guattari em La Borde, e cuja obra se concentra em questões de esquizoanálise e antipsiquiatria, entendendo o cinema como uma máquina para gerar espaços de cuidado. sylvia monasterios e tarcisio almeida

_ 1/ Dirigido por Bryan Forbes, A louca de Chaillot (1969) é um filme de comédia dramática, de coprodução britânica e estadunidense, baseado na peça La Folle de Chaillot (1945), de Jean Giraudoux.

Min Tanaka à La Borde, 1986 Min Tanaka em La Borde. Stills do vídeo. Vídeo, cor, som; 24’


morzaniel ɨramari

Mãri Hi, 2023 A árvore do sonho. Still do vídeo. Vídeo, cor, som; 17’.

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Estamos diante de Watorikɨ – a casa dos espíritos –, uma presença rochosa que os não indígenas tentam traduzir pelas palavras serra do vento. Mas, a partir de agora, escutaremos a língua dos Yanomami ao longo de percursos traçados entre os sons das matas. Caminhos que Morzaniel Ɨramari, decide percorrer modulando as perspectivas a partir de sua cosmovisão. Nos filmes apresentados na 35a Bienal

de São Paulo, Mãri Hi [A árvore do sonho] (2023) e Urihi Haromatimapë [Curadores da terra-floresta] (2014), o cineasta investiga a realidade dos sonhos dos Yanomami, para quem as dimensões dos mundos físico, onírico e espiritual se encontram intimamente conectadas a cada elemento da vida na floresta. Ou melhor, da terra-floresta – como costumam chamá-la –, pois é preciso que eles nos relembrem de

que a floresta é o mesmo planeta compartilhado por todos nós. Nessa jornada sonho adentro, a voz-guia é soprada pelo corpo de Davi Kopenawa. O discurso, então, infiltra-se nos desvãos das imagens e materializa zonas de criação cuja existência seria impossível em registros literais ou etnográficos. Vemos vultos em meio à folhagem, as lentes não enfocam o óbvio; um brilho excessivo cintila de repente; a sensação do pó de Yãkoana. O que os Yanomami veem no sonho? “Outras coisas que vocês brancos”, diz Kopenawa. Se a fumaça lógica da colonização ameaça os Yanomami – garimpo ilegal, doenças e desmatamento –, ela também volta-se contra os não indígenas colonizando cada centímetro da vida, até mesmo as recônditas regiões dos sonhos, quantificando-os e algoritmizando-os para domesticá-los nas cidades. A filmografia de Ɨramari propõe visões desse mesmo-mundo-outro que os demais terráqueos insistem em ignorar, como quem foge às responsabilidades. No final de Mãri Hi, os esforços tradutórios fecham as rotas de fuga com a seguinte fala-sonho de Kopenawa, que surge na tela com um caderno na mão: “essas palavras foram traduzidas em outras línguas dos brancos e agora são capazes de entendê-las. Vamos compartilhar este pensamento para juntos ficarmos mais sábios”. igor de albuquerque


mounira al solh

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Em décadas recentes, as guerras em curso no Líbano e na Síria pairam sobre a obra de Mounira Al Solh. Ao contato com migrantes e pessoas deslocadas, ela responde com uma prática conversacional frenética, que reconecta todos esses indivíduos que adquiriram status diaspórico pelo distanciamento de sua terra natal. Por meio desses encontros, uma língua cotidiana, popular, que carrega

vestígios de experiências biográficas, emerge como matéria-prima da artista, partindo o corpo político anteriormente unificado que a língua árabe poderia ter representado em infinitas histórias, contadas por pessoas ao redor do mundo. Cada obra de Al Solh exala uma patologia não declarada do exílio. Vídeos, patchworks e performances costuram fragmentos coletados durante as conversas e sua

experiência nômade. Um exemplo emblemático é Lackadaisical Sunset to Sunset [pôr do sol a pôr do sol] (2022), pequeno tapete que a artista estendeu ao longo do tempo nos diferentes lugares em que viveu, recolhendo fragmentos e marcas de uma vida cotidiana. Como muitos de seus trabalhos, o resultado é absolutamente terapêutico e insiste na dimensão patológica e na condição daqueles representantes de uma cidadania global marcada pela exclusão e pela vida precária. Em séries de patchworks como Sama’ / Ma’as (2014-2017), Al Solh apresenta a arbitrariedade radical que, ao desestabilizar sentidos fixos, faz as palavras funcionarem como signos polissêmicos. As obras dessa série enfatizam a fonética – e, portanto, o performativo e o iterativo –, como se uma vida precária fosse uma vida a ser vivida por meio de identidades mutantes e heterogêneas. O desejo pelo coletivo e uma agência feminista com frequência redimem as consequências dramáticas de guerras e de exílios. carles guerra traduzido do inglês por gabriel bogossian

Sama’/Ma’as – (‫توت‬-‫( – )توت‬Fruto/Buzina), 2014 Cortina dupla-face com patchwork de tecidos, 273 × 278 cm


pensamento filosófico, linguagem e corpo-pessoa em performance: o cosmograma, as vibrações e o “v” tiganá santana

A sentença em linguagem proverbial, que se encontra em um lugar especial no processo de comunicação, é a depuração do conhecimento de trocas de ondas e de radiações (minika ye minienie, na língua africana kikongo) no ato da enunciação de certas palavras (com ressonâncias pretéritas dos antepassados e atuais para as diversas circunstâncias). Há uma energia (ngolo) que não é proveniente da sonorização das palavras ou dos significantes, mas aquela que evoca toda uma maneira de se referir à existência, uma cosmologia e cosmograma (Dikenga dia Kongo) inerentes e, sobretudo, a crença em um efetivo poder de realização.1 Há também o reconhecimento de que esse é um princípio sistêmico, apenas (de)codificado por aquelas pessoas que compartilham certa forma de experienciar a linguagem e ser/viver culturalmente, conforme sublinhado pelo pensador congolês Bunseki Fu-Kiau: Um entendimento sistêmico, portanto, é possível apenas se alguém pode experimentar e sentir a beleza da radiação [n’niènzi a minienie] da língua que gera a cultura em questão.2 Em sua obra Self-Healing Power and Therapy: Old Teachings from Africa [Poder de autocura e terapia: antigos ensinamentos da África], ainda de modo mais assertivo, esse autor afirma: “Ondas e radiações podem se converter em formas e imagens que podem falar”.3 As sentenças em linguagem proverbial, portanto, como síntese e cabeceira de narrativas existenciais, são receptores (tambudi), com 1/ Este texto é parte do ensaio de Tiganá Santana, “Cosmologie en performance: sentences proverbiales africaines bantu”, publicado originalmente em Agnès Levécot e Ilda Mendes dos Santos (orgs.), Littératures Africaines d’Expression Portugaise, n. 21, Paris, Presses Sorbonne Nouvelle, pp. 93-127, 2021.

antenas (mièkese), para que as ondas e as radiações possam presentificar conteúdos e símbolos ancestrais. É importante enfatizar que, de acordo com o que interpretamos da cultura bantu-kongo, à luz do que indica Bunseki Fu-Kiau em sua obra, a ancestralidade não é algo pretérito, encerrado em um passado com marcos temporais definitivos. Ela é sempre atualizada por uma ideia de origem, à qual se deve referir uma pessoa kongo (mukongo), uma vez conferido o sentido (necessariamente, coletivo) à sua vida. O ku mpemba, insondável mundo espiritual, é um espaço-tempo do qual partem os referenciais do todo vivenciado e imaginável, mas é, a cada devir, a proximidade do último porvir experienciado no ku nseke, mundo físico. No ku mpemba, locus ancestral por excelência, encontram-se, conforme desenha o Dikenga dia Kongo (cosmograma Kongo),4 forçosamente, os estágios Musoni e Luvemba de qualquer ser existente, ou seja, o início invisível e o fim visível, de tudo o que há e pode ser capturado pela experiência humana kongo. Assim, vamos ao encontro do que afirma Jarbas Siqueira Ramos, no que tange à sua pesquisa acerca da ação performativa no Congado: Assim, o corpo-voz durante a ação performativa […] não se limita apenas a repetir um hábito; como sugere Martins (2003), ele institui, interpreta, revisa e reatualiza periodicamente o próprio ato performativo, sendo a memória grafada, registrada, transmitida e modificada conforme a ação acontece.5 Ao analisar aspectos da epistemologia africana dogon (no contexto da acepção “epistemologia — e filosofia — da

2/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, African Cosmology of the Bantu-Kongo: Principles of Life and Living. 2. ed. Nova York: Athelia Henrietta Press, 2001a, p. 11. Cf. idem, ibidem. No original em inglês: “A systematic understanding therefore is possible only if one can taste and feel the radiation beauty [n’niènzi a minienie] of the language that generates that culture”.

4/ Lembramos, nesse ponto, que o aludido cosmograma, conforme já asseveramos em trabalhos anteriores, é uma interpretação inscrita do mundo que lê sua lógica da perspectiva de eventos que se dividem (e entrecruzam) entre estágios (Musoni, Kala, Tukula e Luvemba) a representar, respectivamente, o não visto, o que desponta, o que atinge o ápice — ontológico — e o morrer.

3/ Idem, Self-Healing Power and Therapy: Old Teachings from Africa. Clifton: African Tree Press, 2001b, p. 97. No original em inglês: “Waves and radiations can change to forms and images that can speak”.

5/ Jarbas Siqueira Ramos, “O corpo-encruzilhada como experiência performativa no ritual congadeiro”. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 7, n. 2, pp. 296-315, maio/ago. 2017, p. 308.

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ancestralidade” por ele cunhada), estabelecendo diálogo com os antropólogos franceses Marcel Griaule (1898-1956) e Germaine Dieterlen (1903-1999) − notáveis investigadores da cosmologia dos dogon, do Mali −, o filósofo Eduardo Oliveira conduz à especial reflexão quanto ao conceito (e à experiência) de vibração. Essa vibração anima a existência e pode se desdobrar, se irradiar a partir do humano seminal, conforme, em similar compreensão, Fu-Kiau defende no âmbito dos bakongo. Oliveira assim afirma: A pequena semente é ao mesmo tempo a menor parte do Universo e o Universo inteiro, posto que se alastra por todo planeta, germinando-o. Diferentemente das metafísicas que concebem o Ser como uma mônada, seja ela estática ou dialética, os Dogon entendem que o que anima a existência é uma vibração.6 Já os Bantos — cf. Pe. Altuna — concebem a Força Vital como a energia que anima o mundo. Se isto é uma verdade no Sul da África, o é também na África Setentrional (por exemplo, entre os Dogon). Pensa-se a existência a partir de uma vibração, da energia e da emanação. A fonte dessa metafísica que é mais uma infra-física nos permitirá elencar mais um princípio fundamental da Forma Cultural Africana, a saber: O Princípio da Emanação.7 Não colocaríamos, nesse ponto, como contrastivas a “Força Vital”, resgatada por Oliveira da afirmação do autor Raul Ruiz Altuna, e a “vibração” dogon. As ondas e radiações bantu, a partir dos ba-kongo, constituem tal força. A movência, as transmutações, o que permanece, o que se desconhece, o que se experiencia, o que se virtualiza, tudo, substanciando e sendo substanciado por essa força, acontece de modo vibrátil. O ser humano (muntu) é a síntese 6/ Os grifos desse excerto são do autor do excerto. 7/ Eduardo Oliveira, “Epistemologia da ancestralidade”, pp. 5-6. Disponível em: filosofia- africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/ eduardo_oliveira_—_epistemologia_da_ancestralidade.pdf. Acesso em: 23 jun. 2023.

dessa dinâmica, porque ele a vive-pensa e dela emana, assim como observa Oliveira no exemplo dogon: O homem é síntese do processo de germinação da semente, o universo síntese da germinação humana e tudo é processo iniciado e veiculado pela vibração que anima tanto a pequena semente quanto a imensidão do universo. Cada qual é processo em si mesmo e síntese do outro. Toda essa dinâmica é relacional, processual, e sua dinâmica articula a singularidade da existência territorializada como a cosmovisão da cultura estruturante. Ao mesmo tempo cada qual é inteiro o que se é! Mais!, ao mesmo tempo é coisa e símbolo, signo e objeto, fagulha e escuridão. Ao mesmo tempo, e encerrados no mesmo instante, é-se processo e evento, acontecimento e passado, acontecimento e futuro. É-se realização e possibilidade, desconstrução e construção, criatividade e conservação.8 Para que o existente cumpra sua vocação para a transmutação (nsoba) é necessário que vibre (tatala). O existir é parte do humano, mas deve expandir-se para o extra-humano que, muitas vezes, constitui a anterioridade geratriz do humano. Pode, assim, vir antes, ainda que por meio do humano, todo um fio de memória a se reportar à “categoria analítica”9 da ancestralidade. A memória viceja no tempo presente — eis onde vige o ancestral — como ntima, mesmo termo, em kikongo, para coração. Aliás, assim como nos desenhos etimológicos latinos, nos quais saber de cor é saber de coração. A memória vibrátil é encarnada pelo que pulsa no tempo, sangra, se dilata, se comprime, não pode parar, fazendo parte das interioridades mais individualizadas e a mesma coisa ou princípio em qualquer pessoa. Se tentarmos uma transposição conceitual (que não nos parece estúrdia), o fio da memória diz do planeta que 8/ Id., ibid., p. 7. 9/ Ibid.


humanamente habitamos, nos reportando- ao Sistema Solar, que, depreendido da Via Láctea, nos leva a perceber uma ancestralidade desdobrada, chegando ao insondável. O maior de todos os ancestrais é o insondável, o que não se sabe. Nzambi (ou Kalunga) é, até onde, por ora, conseguimos chegar, ser (verbal) existindo a partir de si e de onde advêm as outras coisas que são. Toda essa comunicação memorial ressoa e faz ressoar. Entre os bantu zulus, para ratificar essa linha de pensamento, o historiador sueco Bengt Sundkler (1909-1995), em sua obra Bantu Prophets in South Africa (Profetas bantu na África do Sul),10 lembra-nos de que o deus elevado, uNkulunkulu, designa o antigo. Assim, em um contexto no qual a ancestralidade é a cavidade originária, o mistério é sempre o amorfo corpo central a (re)fecundar o que é. O escritor-pensador congolês Zamenga Batukezanga (1933-2000) afirmou: […] o corpo inteiro é emissor e receptor. O que somos, nossos gestos, nossa vibração, afetam nosso ambiente e atuam como ondas na água, no oceano. Os choques das nossas vibrações, isto é, nossos gestos, falas, transmitem-se a longas distâncias, ainda mais, por serem munidos de uma potência energética. As técnicas e energias modernas só servem para aumentar as naturais dispostas em nosso corpo.11 Os corpos tangíveis vibram tanto quanto o imaterial. E tudo, como estamos a ver, vibra a anterioridade, o pre-

10/ Bengt G. M. Sundkler (1948), Bantu Prophets in South Africa. 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 1961. 11/ Zamenga Batukezanga, Kindoki: source des philosophies et des religions africaines. Kinshasa: Zabat, 1996, p. 19. No original em francês: “[...] le corps tout entier est à la fois émetteur et récepteur. Ce que nous sommes, nos gestes, notre vibration influent sur notre environnement et opèrent commes des vagues dans l’eau, dans l’océan. Les chocs de nos vibrations, c’est-à-dire, nos gestes, nos paroles se transmettent à de longues distances d’autant plus qu’ils sont chargés par une puissance énergétique. Les techniques et les énergies modernes ne nous servent qu’à augmenter celles naturelles disposées dans notre corps”.

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sente, o devir. Tudo vibra memória — linha de força que reúne as temporalidades possíveis. As sentenças em linguagem proverbial são, por sua vibração e ininterrupta memória, o que o pesquisador angolano Óscar Ribas (1909-2004) chamou de “património espiritual dum povo — a riqueza tradicional acumulada desde a primitividade de sua consciência”; ou, como afirmou, em seguida, “os provérbios constituem o píncaro de sua sabedoria. Na profundidade das sínteses, quais cristalizações do pensamento, contêm a essência dos ensinamentos da vida”.12 A professora e pesquisadora Maria Antonieta Antonacci, por seu turno, ao retomar Marcel Griaule e os encontros desse antropólogo “com o sábio africano Ogotemmêli”,13 lembra que ele já enfatizara, em relação aos dogon, a força de coesão social alcançada em sociedades tradicionais africanas, onde a noção de pessoa, indissociável da palavra, conecta-se à de sociedade, visão de mundo e divindade.14 Conforme nossa reflexão, também, entre os ba-kongo, a ideia e a vivência que delineiam a pessoa (muntu) estão ligadas à palavra como experiência. Especificamente, no que diz respeito à palavra incorporada na sentença proverbial, Antonacci, agora em diálogo com o linguista francês Jean Cauvin, citando-o, menciona que: Desfazendo ideias preconceituosas a comunidades orais africanas, Jean Cauvin, que ficou oito anos junto aos Minyanka (Mali), a propósito do viver proverbial registrou: “O homem mynianka ‘diz’ e ‘faz’ a sociedade pelos provérbios”, chamando atenção para injunções, imaginário e realidade proverbial [Cauvin, 1977, p. 39]. 12/ Óscar Ribas, Missosso I. Luanda: Ministério da Cultura, 1958, p. 154. 13/ Maria Antonieta Antonacci, Memórias ancoradas em corpos negros. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2015, p. 354-55. 14/ Id., ibid. (Grifo nosso.)


Conforme esse linguista, na Costa do Marfim, nem toda “população fala via provérbios, mas todos estão aptos a compreendê-los. Provérbios formam a armadura e a fina base de um tipo de comunicação mais vasta: a linguagem por imagens” [Cauvin, 1981, p. 3].15 Como desdobramento do que estamos a tratar, no tocante à palavra e a seus vetores de realização imagético-material, lembremo-nos de que, segundo o pensador suíço Paul Zumthor (1915-1995), no primeiro ensaio de seu livro Escritura e nomadismo, a vocalidade — não somente a oralidade — é o que pode trazer uma “presentificação performancial” vinculada a uma recepção. O “investimento de energia corporal” que interfere ou mesmo estabelece uma intermediação com o contato com um texto (poético) define, de acordo com Zumthor, o que seja poesia.16 Portanto, assumindo a leitura zumthoriana, as sentenças em linguagem proverbial configuram realização poética, requerem performance, em sua disposição originária (na acepção do que o estudioso classificou como “performance completa”), assim como podem requerer “performance ao mesmo tempo truncada e interiorizada” no ato da “leitura, visual e solitária”.17 Assim, Zumthor, em um contraste entre texto e obra, gera a seguinte ideia de performance: • o texto é a sequência linguística que constitui a mensagem, e cujo sentido global (o sabemos) não é redutível à soma dos efeitos de sentido particulares produzidos por seus componentes sucessivos; • a obra é aquilo que é poeticamente comunicado, aqui e agora: texto, sonoridades, ritmos, elementos visuais e situacionais: o termo abarca a totalidade dos fatores da performance, fatores 15/ Id., ibid., p. 355. 16/ Paul Zumthor, Escritura e nomadismo, trad. Jerusa Pires Ferreira e Sônia Queiroz. Cotia: Ateliê Editorial, 2005. 17/ Ibid.

que produzem juntos um sentido global, que também não é redutível à adição de sentidos particulares. Neste sentido, a obra é por natureza teatral; o teatro é a sua forma acabada, mas toda performance o sustenta de alguma forma. • do texto, a voz em performance18 extrai a obra. Ela se submete a este fim, ao funcionalizar todos os elementos aptos a sustentá-la, amplificá-la, a declarar sua autoridade, sua ação, sua intenção persuasiva. Utiliza o próprio silêncio que ela motiva e torna significante.19 Há uma “voz em performance” que lê-enuncia-desloca-traduz, ou “tradiz” (como concebe Alexandre Nodari na porta de entrada do livro Algo infiel: corpo performance tradução,).20 O/a performer não é somente quem apresenta uma obra, poiesis, ao mundo, com base no fato de ser enunciador(a) original de um texto. Quem recebe tal obra, e a interpreta, gerando novas poéticas, pode vocalizar (considerando-se as pausas e os silêncios) e oferecer obras ao mundo, igualmente. São obras suas provenientes de outrem. Entre os primeiros ensaios do livro supracitado, Guilherme Flores e Rodrigo Gonçalves afirmam que: No dom da poesia há algo que se troca sempre, algo que em sua materialidade recusa o partido das coisas, a mercancia fácil das coisas; a troca da poesia, troca impossível em algum nível, tem base no comércio (Hermes, Mercúrio — deus do mercado, dos ladrões, da linguagem, da hermenêutica, do truque) e ainda assim o rompe, a troca da poesia poderia ser uma troca de promessas: o poeta, o aedo, o bardo, o xamã, o exu, o performer entrega a obra e na obra uma promessa de mundo; nessa promessa o jogo se encena de ainda lançar mundos no mundo, abrir brechas no mundo dado; ao leitor, ouvinte, corpo que 18/ Grifo do autor do excerto. 19/ Paul Zumthor, op. cit., p. 142. 20/ Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves. Fotografias Rafael Dabul. Algo infiel: corpo performance tradução. São Paulo: n-1 edições, 2017.


joga, caberia a contrapromessa interminável: interpretar, nos dois sentidos de uma interpretação, fazer o jogo da hermenêutica, fundar sentido nas promessas de mundo, sim, analisar, descrever, pensar a obra-mundo e seu efeito-mundo, mas mais, incorporar a obra no seu próprio mundo, dar um corpo à obra, dar-se corpo à obra, dar seu corpo à obra, enfim, assumir o lugar do poeta, bardo, xamã, como intérprete (ou inter-pres, inter-pretium21 — mediação, comércio, mensagem) da música. Esse é o potencial mais profundo das promessas de mundo em jogo na poesia: uma performance exige outra performance, porque o dom é um performativo. “Eu te dou isto”, diz o poeta; e ao ouvinte não cabe resposta fácil, como “Não quero”; o poeta retorna “Eu já te dei”, algo aconteceu, performou-se no momento de uma entrega. “Está dado.22 O orixá Exu, evocado pelos autores, força esférica de todas as mediações, de acordo com a cosmologia africana iorubá, de maneira sincrético-tradutória, no Brasil, associou-se à imagem da encruzilhada. Tal configuração é bastante cara aos bantu-kongo. Na realidade, como a yowa que sintetiza o cosmograma mencionado anteriormente neste ensaio. A encruzilhada (sobretudo, a de quatro pontas), desse modo, diz sobre o não visto, sobre o que onticamente desponta, sobre o que atinge o ápice do realizar e o que se desintegra, como o sol no ocaso. Nas práticas de espiritualidade afro-brasileiras, Exu, igualmente força da comunicação, do movimento e das sínteses, é também, em outra leitura e tradição, Nzila, ou seja, caminho. O caminho repleto de frequências e convivências intertemporais que se estabelecem entre o/a performer-poeta de uma sentença proverbial e o ativo corpo-ouvinte que realiza e completa a obra poética de enunciação-ato é a manifestação desse orixá ou nkisi — com base nas tradições bantu-kongo — no que podemos cunhar como uma ética negra do dizer. Jarbas Siqueira Ramos, com base na ideia de cultura de encruzilhada, assinalada por Leda Maria Martins, apresenta-nos o conceito de corpo-encru21/ Todos os grifos são dos autores do excerto. 22/ Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves, op. cit., pp. 23-24.

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zilhada: “De modo geral, entendo o corpoencruzilhada como uma metáfora que permite localizar no corpo em ato performativo o ponto nodal de atravessamentos”.23 Em conversa com Jarbas Siqueira Ramos, podemos pensar que o corpo que performa a enunciação-ato de sentenças em linguagem proverbial, ao tempo em que estabelece a mediação entre universos temporais distintos (considerando-se a existência do tempo ancestral e do tempo-espaço circunstancial, que, presente, indica um abismal devir), entrega a outrem novas possibilidades de preenchimento do relevante lugar ocupado por sentenças que vêm de longe e atravessam tempos. De modo análogo, poderíamos mencionar neste ponto, ao dizer (inteiramente corporal) de um oriki (poema sagrado iorubá) ou à ação dos cânticos públicos nos terreiros (espaços sagrados) de Candomblé, Umbanda, Quimbanda, Xambá, Xangô, Tambor de Mina, Batuque, entre tantos outros, como poéticas de realização com base nas presenças corporais e no que não se vê/tangencia. Note-se que a bifurcação categórica entre performances artísticas e perfomances culturais não abrange o que trazemos neste ensaio. Identificam-se poéticas (no sentido grego de um conjunto de feitos) que podem ser interpretadas como arte-cultura-filosofia-ciência a um só tempo. O “inacabamento” dos feitos artísticos afro-diaspóricos, conforme reflexão do pensador britânico Paul Gilroy,24 termo que talvez substituíssemos, em nossa análise, por abertura, não permite trazer tais acontecimentos performativos em epistemologias estanques; ao contrário, em epistemologias abrangentes, entrecruzadas e, para seguir um conceito-imagem bantu-kongo trazido à tona por Bunseki Fu-Kiau, em sua obra,25 abertas em forma de V.

23/ Jarbas Siqueira Ramos, op. cit., p. 310. 24/ Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência, trad. Cid Knipel Moreira, 2. ed. São Paulo; Rio de Janeiro: 34; Universidade Cândido Mendes, 2012. 25/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, 2001a, op. cit.


Tukula

Kala

Luvemba

Musoni O cosmograma kongo (Dikenga dia Kongo) pode auxiliar a ampliar a compreensão do que diz respeito à enunciação-ato de sentenças em linguagem proverbial. Seguindo ainda a lógica do que explica Fu-Kiau,26 há um primeiro estágio de ser, Musoni (a guardar o radical sona:27 registrar, gravar, ter a memória de), que não se dá a ver ao mundo físico (ku nseke). Musoni é, em linhas gerais, não ser ainda físico, tangível. Kala, que vem a significar, literalmente, ser (em sua acepção principalmente verbal),28 corporifica o estágio em que esse ser como ação torna-se ente visível. Em um terceiro estágio, encontramos Tukula (do verbo 26/ Id., ibid. 27/ Cf. Wyatt Macgaffey, Religion and Society in Central Africa: the Bakongo of Lower Zaire. Chicago: University of Chicago Press, 1986. MacGaffey, a propósito da semana kongo − dividida em quatro dias: nkandu, konzo, nkenge, nsona, observa que: “Nsona e nkandu eram dias dos ancestrais e de ressurreição, próprios para emergir de isolamento ritual (sona, ‘fazer marcações rituais no corpo’)” (Id., ibid., p. 51). No original em inglês: “Nsona and nkandu were days of the ancestors and of resurrection, suitable for emerging from ritual seclusion (sona, ‘to make ritual markings on the body’)”. 28/ Em kikongo, “ser”, como substantivo, é denominado, frequentemente, kadi ou be, na acepção de Bunseki Fu-Kiau. Conforme o Novo dicionário português-kikongo (compilação de Francisco Narciso Cobe. Luanda: Mayamba, 2010), encontramos, ainda, para “ser”, em sua forma substantiva, os termos vangwa, ma, kima, zingu e nkala.

kula crescer, amadurecer, desenvolver[-se]) e as coisas e situações em seu estado de zênite, de mais ativa proficuidade, de ação propriamente dita. Por fim, Luvemba29 configura o estágio de desintegração física, o morrer, o findar-começar, as grandes transmutações das coisas que são, ou seja, o desintegrar-se da dimensão tangível e o ir a um plano insondável. Conforme o cosmograma, dispomos de quatro “Vs” demarcados graficamente pelos espaços Musoni-Kala, KalaTukula, Tukula-Luvemba, Luvemba-Musoni. Como havíamos afirmado, ressaltamos, assim, segundo Fu-Kiau,30 um dos principais conceitos bantu-kongo, o V, difundido ao mundo de leitores, pela primeira vez, pelo pensador: Foi aos pés de alguns desses mestres secretos que aprendi não somente a respeito do “V” (a base de todas as realidades), como também da fundamentação do sistema de pensamento dos Bântu, suas cosmologias. Ninguém pode, verdadeiramente, compreender o “V” sem algum conhecimento básico sobre a cosmovisão Bântu ou suas cosmologias. Nosso trabalho, segundo escreveriam mais tarde dois estudiosos americanos, é o primeiro no assunto...31 Ainda sobre o V, Bunseki Fu-Kiau salientou: O “V” é a base de todas as realidades inspiradas, tais quais as grandes ideias, imagens, ilustra29/ Metaforicamente, com base no que explicita Bunseki Fu-Kiau, MacGaffey (op. cit., p. 43), na perspectiva da vida humana, lembra que se trata esse estágio, um “pôr do sol”, daquele que “significa a morte do homem e o despontar do seu renascimento, ou a continuidade da sua vida”. No original em inglês: “[…] signifies man’s death and its rising his rebirth, or the continuity of his life”. 30/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, 2001a, op. cit. 31/ Id., ibid. p. 129. No original: “It is at the feet of some of these underground masters that I learned not only about the ‘V’ (the basis of all realities), but the foundation of the Bântu people system of thought as well, their cosmologies. No one can truly understand the ‘Vee’ without any basic knowledge upon Bântu world view, or their cosmologies. Our own work, as would later write two American scholars, is the first on the subject…”


ções, invenções de todas as ordens (incluindo-se as obras de arte), guerras e concepções, tanto biológicas quanto ideológicas. Ele é o processo [dingo-dingo] para todas as mudanças: sociais e institucionais; naturais e não naturais; vistas e não vistas. Falar do “V” é falar das realidades, quer sejam biológicas, inspiradas ou ideológicas; materiais ou imateriais. Todas elas estalam em nossas mentes nas formas do “V” (feixe de extensão do “V”) dentro de nós, na zona do Musoni da cosmologia Kôngo. Buscamos ideias e imagens através do ”feixe aberto do V” dentro de nossas mentes, e, ao contrário, focalizamos os detalhes e especificidades sob o feixe reverso do “V”.32 Cada estágio que demarca o cosmograma kongo possui o seu V, isto é, sua disposição para expandir-se e retrair-se, com denominações e significações específicas. O V da concepção, emanado por Musoni, chama-se Vangama. O segundo V desponta no estágio ontológico Kala e denomina-se Vaika. O advindo de Tukula se faz conhecer pelo nome Vanga, que, conforme Bunseki Fu-Kiau, é uma denominação “a derivar-se do termo arcaico ‘ghânga’ — realizar, fazer”,33 representando o V crucial da vida humana no mundo físico. Vunda — de repousar, extinguir; pensemos, também, que o verbo vonda designa matar — é o V encontrado em Luvemba, último

32/ Ibid., p. 130-31. No original: “The ‘Vee’ is the basis of all inspirational realities such as great ideas, images, illustrations, inventions of all orders (including works of art), wars and conceptions, both biological and ideological as well. It is the process [dingo-dingo] to all changes, social and institutional; natural and unnatural; seen and unseen. To talk about the ‘V’ is to talk about realities, whether they are biological, inspirational or ideological, material or immaterial. They all pop into our minds in forms of the Vee (beam span of the Vee) inside us at the Musoni zone of the Kôngo cosmology. We seek for ideas and images through ‘the open beam of the Vee’ inside our mind and on the contrary we focus details under reverse beam of the ‘Vee’”. 33/ Ibid. No original: “[…] derived from the archaic word ‘ghânga’ to perform, to do”.

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estágio, cuja “função completa-se em fwa,34 ato de morrer”.35 Alicerçado nos “feixes do V” (presentes no cosmograma), o corpo que enuncia kingana (sentença proverbial) pressupõe etapas de expansão e foco, como sugere a própria forma do V. Diante de uma sentença em linguagem proverbial bantu-kongo, deparamos com uma concentração de ondas e radiações (minika ye minienie) culturais, de pensamento, de linguagem, de narrativas que se amparam nos ancestrais (bakulu), isto é, no mundo invisível, ku mpemba. Todo esse registro concentrado remete-nos ao estágio, no processo de enunciação e realização, de Musoni, bem como à figuração de uma sentença em linguagem proverbial (kingana) que simboliza o afunilamento de um facho de expansão anterior, ancestral, ou, se quisermos, narrativas acumuladas sobre o mundo e um novo ponto de partida para expansões ou deslocamentos vindouros. Essa dinâmica entre o que se faz concentrar para de novo expandir, em uma cinética sem-fim das experiências hermenêuticas e de criação da pessoa kongo (mukongo), poderíamos chamar de dingo-dingo — o processo, sempre em movimento, de cada coisa, para tornar-se, necessariamente, outra coisa, de rumar a outro estado ôntico. Há uma necessidade, por princípio, de imprimir a devida relevância filosófica ao desfazimento. O corpo que enuncia-age, em conformidade com as sentenças proverbiais, concilia construções e desintegrações diante de sua presença e de outras presenças. É a vida-morte, kala-zima (acender-apagar), despontando a um só instante em um acontecimento performativo negro, que, como sabemos, não permaneceu somente no continente africano. A seguir, temos exemplos de algumas sentenças em linguagem proverbial, mesmo na ausência de corpos que as enunciem e da cena das realizações-presença. Os textos de outras realidades pluridimensionais não se encerram nas paredes deste ensaio a cumprir certos ritos acadêmicos. Ei-las:

34/ Grifo nosso. 35/ Kimbwandende kia Bunseki Fu-Kiau, 2001a, op. cit., p. 141. No original: “function is completed under the fwa, die action”.


Kutombi didi dia (ngolo za) zunga ko kwidi zungwa. Não procure conhecer o centro regional das forças motrizes; elas confinam. Nga nzenza muntu katunga fu kia bwala? Uma pessoa alheia faz um sistema de sua não aldeia? Wampana nsengo, kunkambi kwe ngatu bwe isadila yo ko. Dando-me a enxada, saberei como usá-la. Kanda diasala nsang’a n’kento ka ditumbukanga ko. A comunidade, pela mulher, não se extingue. Mbungi a kanda va kati kwa nsi ye yulu. O vão originário da comunidade, no centro, entre a terra e o céu. Kanda kandu: ka kiloswa; ka kisambu. Comunidade é tabu: não se deixa; não se venera. Kolo diakanga nganga, kutula nganga. Kolo feito e desfeito por nganga: cada nó tem seu mestre.


nadal walcot

Jamaica, 1986 Serigrafia sobre papel, 54,5 × 36 cm

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No ato da repetição reside a potência da variação. Nesse teatro de sombras da memória, as imagens vão e vêm, mas nunca são as mesmas, pois, no detalhe, toda coisa é outra coisa. O punho que inclina o facão no corte da milionésima cana-de-açúcar, o quadril espiralando-se nos bailes de rua, ano após ano, a mão curvando-se à vontade imperiosa de um desenho que exige mais esforço físico

e mais tinta no papel. Ninguém faz a mesma coisa duas vezes: é isso o cotidiano. Nos canaviais, nas cidades ou nos ateliês. O artista dominicano Nadal Walcot (19452021) estava ativamente a par desse estado de coisas – sem esconder uma dívida que tinha com M.C. Escher. Walcot, que aprendera muitas línguas em seu ofício juvenil de intérprete, acaba por operar outro tipo de tradução: das

cenas do dia a dia para a linguagem do desenho. As locomotivas fumegantes, a exploração do trabalho nos engenhos de açúcar, as tramas e transações da mercancia nos portos. As paisagens são sempre humanas, mesmo se virmos apenas a figura de um trem. Quando criança, Walcot costumava entrar escondido em um vagão e passava dias fugido de casa, para, na volta, ser chicoteado pela avó. Também na dança revela-se a inteligência de seu traço, inclusive quando incorpora e recria as expressões da música e dos bailes cocolos (termo usado na República Dominicana para designar os imigrantes hispanofalantes de ascendência africana do Caribe). Nessas obras, as linhas das figuras humanas carregam-se na mesma matriz energética das culturas que compõem as coreografias da memória pessoal e coletiva. Assim, emergem dos assuntos – bem como da forma – a força das contradições subjacentes a uma realidade histórica, testemunhada e modificada por um artista que interpreta a violência colonial mas também a euforia do povo nas festas; que vê o avanço da industrialização chegar apenas para os poderosos. igor de albuquerque

Davi & Golias, 2010 Nanquim sobre papel, 53,3 × 44,5 cm


nadir bouhmouch e soumeya ait ahmed

Cada projeto de Soumeya Ait Ahmed e Nadir Bouhmouch é uma tentativa de esculpir espaços coletivos para criar e compartilhar “a partir de baixo”. Em sua opinião, a arte deve estar conectada às formas populares de cultura e aprender com os modos ancestrais de relação. A dupla não visa representar uma cultura “nacional”, tampouco busca a “universalidade”. Para os artistas, tais categorias

Fadma Boutalaa, Zahra Hicham e Aicha Amoum numa sessão de gravação musical no pomar de maçãs, 2022

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servem apenas para homogeneizar a produção cultural. Ao contrário, eles evidenciam tradições locais e específicas, e se esforçam para fazê-las existir em uma escala maior por meio de formas de solidariedade que se estendem além das fronteiras nacionais. Esse modo de pensar tornou-se evidente durante a Documenta 15, no espaço de hospitalidade oferecido pelo Le 18, coletivo de

Marrakesh do qual Bouhmouch e Ait Ahmed são integrantes destacados. É também um mecanismo essencial de seu projeto Awal, que investiga maneiras de documentar artes tradicionais orais e de decolonizar práticas contemporâneas nas regiões do Atlas e do sudeste do Marrocos. Amussu (2019), longa-metragem dirigido por Bouhmouch, retrata a resistência de uma comunidade

rural contra a maior mina de prata da África, que se apropriou de sua água e a poluiu, destruindo oásis e amendoeiras. O filme destaca o cotidiano e os gestos dos aldeões e suas formas autóctones e criativas de organização política e construção de memórias (círculos de diálogo multigeracionais, poesia oral etc.). O processo de produção cinematográfica adotou esses mesmos mecanismos como referência: Bouhmouch colaborou ativamente com a comunidade de aldeões, que se tornaram os produtores do filme. O projeto de Bouhmouch e Ait Ahmed para a Bienal de São Paulo reúne os diversos formatos de seu trabalho (vídeo, publicações, performances, encontros) em torno de um desafio: a área da exposição deve aspirar a ser uma assays, ou seja, uma praça central na tradição Amazigh, um espaço de assembleia, como declaram em sua proposta para a exposição: “uma tecnologia na qual a oralidade produz mecanismos horizontais para a tomada de decisões populares, resolução de conflitos, criação artística, troca de conhecimento e produção agrícola – tudo de uma só vez”.1 omar berrada traduzido do inglês por mariana nacif mendes

_ 1/ Nadir Bouhmouch & Soumeya Ait Ahmed, texto do projeto submetido à 35a Bienal.

Um piquenique com Fadma ao lado de um de seus campos, desta vez com a presença de Nabil Himich, artista visual e ilustrador das capas da série de publicações Against Monoculture [Contra a monocultura], 2023


nikau hindin

Nikau Hindin aplicando a wai tohu (textura em relevo) final na fibra aute

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Nikau Hindin recupera a prática tradicional Maori – desaparecida há mais de um século – de confecção de aute: tecido obtido a partir de um longo processamento da casca da amoreira. As operações de Hindin se desdobram na transmissão dessa prática em ações coletivas, de modo que todo o sistema de conhecimento e a cosmovisão envolvidos possam renascer e se restabelecer atualmente, como

um trabalho de reconexão dos que estão aqui com seus ancestrais. Da criação e do uso de ferramentas típicas para produzir incisões na casca da amoreira e abri-la até os utensílios para bater e abrir a trama dessa pele de árvore, embebida em água, tornando a secá-la para depois banhá-la outra vez, a matéria-prima desse processo é feita de tempo, e é nele e por ele que se dá a transformação mágica da qualidade material da casca em tecido. Tanto a casca quanto essa matéria derivada da fibra vegetal são um invólucro, um tipo de pele. Os poetas sabem que casa e corpo partilham da mesma natureza. Que a árvore quando em pé nos faz sonhar altitudes do céu e que suas raízes nos levam às profundezas do ser. Quando deitada, facilmente o devaneio pode transformá-la em canoa. As imagens são ricas em proteção e em potencial deslocamento. O sistema gráfico elaborado com pigmentos à base de terra nas pinturas de Hindin fazem referência aos mapas estelares, método dos antigos Maori para observar os deslocamentos das estrelas no céu, como forma de orientação no espaço e no tempo, para navegar e viver. Linhas e setas produzem dinamismo em movimentos de subida e descida, representando a oscilação das estrelas, tomando o horizonte como ponto de referência. Sua pesquisa abrange um sistema de valores e nos convoca a realizar uma genealogia dos processos, uma genealogia da memória e o exercício do respeito aos ciclos e padrões da natureza, no balanço entre água e tempo. emanuel monteiro

Nikau Hindin batendo o pano de casca em seu marae, Ngai Tūpoto ki Motukaraka no extremo norte de Aotearoa, Nova Zelândia


niño de elche

Niño de Elche, que se identifica como “ex-flamenco”, compartilha com o “cinemista” Val del Omar uma inquietação transcendental e uma disposição experimental. A inquietação transcendental o incentiva a se aventurar em direção às margens da realidade social e política, colocando o canto flamenco em um lugar de envolvimento e denúncia, ou em direção à realidade vivenciada nas profundezas do carnal e

do espiritual. Essa segunda busca, que durante séculos foi o domínio do religioso, pode entrar em conflito com a primeira e produzir confusões ideológicas e lamentações pessoais. Niño de Elche não os evita, assim como Val del Omar, que não conseguiu escapar de seu contexto, nos anos mais sombrios da ditadura de Franco, sob a ideologia católica nacional de inspiração falangista. Entretanto, sua criação não teve

vista da exposição: Auto Sacramental Invisible. Una representación sonora a partir de Val del Omar. Auto sacramental invisível. Uma representação sonora baseada em Val del Omar. Museo Reina Sofía, Madri (2020)

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motivação política, mas foi visionária. A sua busca pelo absoluto o levou à produção de um cinema total, que ele chamou de “mecamística” e que consistia em uma série de invenções técnicas que foram patenteadas e que conceberam uma expansão do cinema por meio do transbordamento da tela, o som diafônico, a TactilVisión e outros, nos quais trabalhou até sua morte no laboratório PLAT.

Auto Sacramental Invisible. Una representación sonora a partir de Val del Omar [Auto sacramental invisível. Uma representação sonora baseada em Val del Omar] (2021) é um projeto que revela a devoção de Val del Omar à experimentação acústica. Em seu título e estrutura, se refere aos autos sacramentales, peças teatrais com conteúdo alegórico, que reinterpretou para expressar suas obsessões: a água das

fontes, o pecado original, a bomba atômica, a experiência de um tempo à margem da história, Granada como um caldeirão de culturas, entre outros. Em sua realização projetada, esse auto assumiu a forma de uma instalação sonora; o “invisível” refere-se à ideia de uma meia-luz que favorece a audição em um espaço iluminado apenas por lâmpadas votivas. Foi daí que Niño de Elche partiu, de uma escuta ativa, de uma leitura atenta do roteiro e de suas instruções de palco e do arquivo de som, composto por centenas de fitas cassete. As fonografias do “cinemista” atravessam o corpo do “ex-flamenco” em uma espécie de ritual de posse. A técnica vocal é colocada a serviço dessa experiência transcendental e poética, que não precisa se desprender do material para alcançar o invisível. A carne também é barro, a voz também é água, mas seu meio pode ser a eletrônica. O canto é transferido para o meio magnético (agora digital), torna-se concreto, realizando o sonho de Manuel de Falla (que havia especulado sobre a música mecânica e o som gravado como meios que possibilitam dispensar o intérprete). E a coletividade teatral desaparece do palco, mas se manifesta na multidão de vozes que compõem o palimpsesto do roteiro e na multidão de olhos e mãos que intervieram ao longo dos anos para tornar essa instalação possível. O teatral também é realizado no convite ao espectador para participar dessa outra coreografia não espetacular: aquela composta com os movimentos na escuta ativa de um som espaçado, sempre fugaz, como as lâmpadas e as imagens que contribuem para a invisibilidade. josé antonio sánchez traduzido do espanhol por ana laura borro

esta participação é apoiada por: Acción Cultural Espanola (AC/E) e Embaixada da Espanha no Brasil.


nontsikelelo mutiti

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Ao longo da diáspora negra podemos nos maravilhar com a capacidade dos povos africanos de afirmar a força de suas tradições, de sua imaginação e sua capacidade criativa. De tão marcante, além de intensa e plástica, a produção africana disseminou-se por diversos territórios, resultando uma cultura nova e ancestral. Na diáspora, a beleza das permanências e das releituras deram origem


a uma cultura afro-americana, atraindo novos símbolos e sentidos, sobretudo estéticos e políticos, fruto de elementos e vivências cotidianas que constantemente ganham novos sentidos. A produção artística de Nontsikelelo Mutiti, nascida no Zimbábue, promove um mergulho nos significados das tranças e dos cabelos como um dos elementos da diáspora africana que carregam não

só sentidos políticos e estéticos, mas subjetivos, que dizem muito do cotidiano, das experiências e da história das pessoas negras na diáspora. A capacidade de produzir uma técnica e uma cultura visual que se manifesta em determinado tipo de trançado, cujas repetições, no todo, produzem um padrão singular, são consideradas pela artista uma técnica carregada de sentidos culturais de intensa força política.

A trama de tranças que ornamenta os oris de pessoas negras, sobretudo mulheres, além de estar diretamente ligada ao desejo de manifestar beleza, desde a década de 1970 também está ligada ao desejo de afirmação da ancestralidade africana. O corpo como instrumento político, que deixa mensagens por onde passa, foi habilidosamente utilizado como ferramenta de demonstração da beleza e da conexão com o continente africano, seja nas ruas do Brasil, dos Estados Unidos, Inglaterra, França, Colômbia, Cuba, assim como em todo o continente africano. Assim, ocorreu a apropriação que transformou em artístico-político-cultural aquilo que antes, talvez, fosse artístico-cultural-ancestral. Para mergulhar nesse universo de apropriações na diáspora, Mutiti explorou o espaço das lojas de produtos de beleza (Beauty Supply Stores), identificando elementos estéticos e visuais que se repetem e que demonstram anseios de beleza e humanidade, que se manifestam através de uma gramática particular dos desejos de pessoas negras na diáspora: African Pride, Africa’s Best, Dark and Lovely, Africare, Black Thang são expressões que, antes de chegarem às embalagens dos produtos de beleza, fizeram parte de um vocabulário político. Tão fluidas como os fios que atravessam o espaço entre os dentes do pente, para Mutiti são a imaginação e a capacidade criativa africana e afro-diaspórica. luciana brito

T(H)READ postcard, 2023 Cartão-postal T(H)READ. Impressão digital


patricia gómez e maría jesús gonzález

1. os projetos e as intervenções dessas duas artistas partem de espaços conflituosos e residuais: bairros gentrificados, prisões desativadas, hospitais psiquiátricos em desuso ou, como em À tous les clandestins [Para todos os clandestinos] (2019), centros abandonados de detenção de imigrantes.

2. essas periferias de sentidos articulam discursos de tensões e saturações semânticas que, aludindo ao marginal, escrevem a centralidade do que não vemos porque não queremos ver.

acima, da esquerda para a direita: Celda 3-3. Centro de Retención de Migrantes de Nouadhibou, Mauritania, 2015 Please don’t paint the wall. CHARLIE-I. 1-d. CIE El Matorral, Fuerteventura, 2014 Please don’t paint the wall. CHA-D-1i-8689. CIE El Matorral, Fuerteventura, 2014 Favor não pintar a parede. Impressão mural sobre tela

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3. ler no esquecimento dessas margens − na degradação desses resíduos sociais − implica escrever, com base nas ruínas do silêncio, o núcleo de uma memória que constitui uma sobreposição de textos.

4. o centro de detenção de imigrantes de Nouadhibou, na Mauritânia, criado para controlar o movimento migratório feito pelo mar, da África para as Ilhas Canárias, responde a uma realidade física e, portanto, simultaneamente, a uma realidade moral.

5. a proposta de María Jesús González e de Patricia Gómez ajusta-se, em essência, a essa realidade física. De fato, nesse e em outros projetos, elas trabalham seguindo diretrizes artístico-técnicas tradi­ cionais: estamparia, gravura, arranque de murais, fotografia e vídeo. Por sua vez, a exposição das dessas obras produzidas também se faz de modo tradicional. No entanto, o que se propõe, além do estético, não nos coloca diante de um objeto, mas de um sujeito: um sujeito ativo que nos ativa e nos desafia eticamente. 6. o sujeito proposto parece que diz respeito, narrativamente, à memória, uma vez que todas as intervenções das artistas têm um sentido arqueológico que se baseia na recuperação sistemática de estratos diferenciados de signos. Apesar disso, essa arqueologia não se baseia nem em uma restau­ ração da experiência vivida nem em seu resgate documental, mas em nos fazer experimentar a recupe­ ração que foge à nostalgia da memória e a seus desvios românticos tardios. 7. assim, o trabalho apresentado não configura um resultado, mas as pegadas de um processo: o de nossa experiência como sujeitos éticos. david pérez traduzido do espanhol por ana laura borro

duas imagens abaixo, da esquerda para a direita Le Centre, 2015-2023 O centro. Stills do vídeo. Vídeo HD, cor

terceira imagem abaixo Le processus, 2015-2023 O processo. Still do vídeo. Vídeo HD, cor

esta participação é apoiada por: Acción Cultural Española (AC/E) e Embaixada da Espanha no Brasil.


pauline boudry / renate lorenz

Paredes, pisos, tecidos, persianas e vidros. Luz e fumaça. Superfícies escuras e opacas, foscas, brilhosas, transparentes ou semirreflexivas. Caixas pretas recortadas pelo enquadramento do olho de vidro da câmera, que também dança. Correntes e perucas em locais improváveis, sapatos coloridos, invertidos, mirando duas direções simultaneamente. A frente é o verso é a frente é o verso. A edição vai e

(No) Time, 2020 (Sem) tempo. Videoinstalação HD e 3 cortinas; 20’

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vem, sorrateira, espelhando a linha do tempo sem jamais revelar seus pontos de virada. O fim é o início é o fim é o início. Assim é o deslocamento coreográfico dessas peças: multidirecional. Exercícios para despistar o olhar que, condicionado à linearidade, espera encontrar tempo progressivo e continuidade espacial. Ensaios para guerrilha e fuga na pista de dança portátil que são os corpos. Permanecer na som-

Les Gayrillères, 2022 Instalação em vídeo em 2 canais (projeção e LED); 18’


bra por escolha, desaparecer. Voltar o foco de luz para fora, ofuscar o olhar de quem vê. As videoinstalações apresentadas por Pauline Boudry e Renate Lorenz experimentam espaço-temporalidades não mensuráveis pela física newtoniana. A linearidade progressiva e hierárquica (algo sempre fica atrás, ou abaixo, ou no passado), que rege a visão moderna sobre a matéria, entra em colapso.

Tanto o movimento das performers como os elementos visuais e fílmicos dos trabalhos são regidos por paradoxos fundamentais às vidas minoritárias: a congruência entre hipervisibilidade e opacidade, transparência e reflexividade. Aqui é possível se mover simultaneamente em mais de uma direção. Corpos fílmicos e corpos dançantes desconfiguram os condicionamentos político-culturais preestabele-

Moving Backwards, 2019 Movendo-se para trás. Videoinstalação HD; 23’ Set de Moving Backwards, Pavilhão da Suíça, Veneza, 2019.

cidos e aproximam-se da dinâmica subatômica que também os constitui. Adentramos a esfera quântica, na qual tudo existe em inesgotáveis dimensões se movendo em infinitas direções; onde tudo é essencialmente não localizável e, por isso, incapturável; onde se pode, finalmente libertos das amarras do tempo, imaginar outros mundos. miro spinelli

esta participação é apoiada por: Fundação Suíça para a Cultura Pro Helvetia América do Sul.


philip rizk

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Terrible Sounds [Sons terríveis] (2022) consiste em um tríptico composto de uma projeção de vídeo em dois canais, acompanhada de uma série de gravuras. Três elementos conceituais embasam essa obra. O primeiro deles nos leva a 1922, ano em que os britânicos consentiram em dar ao Egito sua independência. Foi nesse ano que o arqueólogo Howard Carter (1874-1939)

encontrou a tumba de Tutancâmon, que daria início a um movimento de egiptomania em escala mundial. Por desentendimentos com as elites locais, a expedição britânica de Carter foi forçada a abandonar o local. A tumba, como todas as antiguidades egípcias, servira para alegações sobre a grandeza dos britânicos. Ela foi reaberta em 1924, a pedido do rei Fuad I, como símbolo do passado glorioso do Estado


africano e de suas demandas por independência nacional. O segundo elemento conceitual é a música, tanto como poder libertador quanto por seus laços com o colonialismo e o neocolonialismo. Em 1932, como parte de um movimento geral de elites ansiosas pelo reconhecimento do Egito como participante da modernidade ocidental, foi organizada a Conferência da Música Árabe,

que tinha o intuito de ocidentalizá-la. Em um texto que acompanha Terrible Sounds, Rizk elabora algumas perguntas centrais: “Como nos dirigirmos para os sons do colonialismo? Como nos dirigirmos para os sons do neocolonialismo? Mas, mais importante, como nos dirigirmos para o som de nenhum deles?”. A resposta à última pergunta é sugerida pela história de Hartmut Geerken (1939-2021),

músico alemão que, fascinado pelo caráter afrofuturista da obra do compositor afro-americano Sun Ra (1914-1993), mudou-se em 1967 para o Cairo, onde foi um dos criadores do primeiro grupo egípcio de free jazz. A segunda projeção mostra uma gravação musical de 2021, na qual Geerken, ao lado de músicos egípcios e libaneses, responde com uma sessão de improvisação à intenção da Conferência de ocidentalizar a música árabe em formas europeias. O terceiro elemento conceitual, que surge nas duas projeções, assim como nas gravuras em exibição, são alusões às revoltas camponesas que levaram os britânicos a anunciar a independência nominal do Egito em 1922. Em Terrible Sounds, é possível reconhecer alguns dos traços típicos da obra de Rizk, que utiliza com maestria materiais de arquivo, rompendo a linearidade cronológica e espacial, reorganizando a narrativa hegemônica de uma perspectiva decolonial. marco baravalle traduzido do inglês por gabriel bogossian

Terrible Sounds, 2022 Sons terríveis. Stills do filme


quilombo cafundó

No dia 20 de novembro de 2009, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decreta o reconhecimento da comunidade Quilombo Cafundó como área de interesse social, mas sua história vem de muito antes, pelo menos desde 1887, quando o casal Joaquim e Ricarda Congo herda as terras do seu senhor depois de ganhar a alforria. Até hoje seus descendentes habitam o território localizado na área rural

Registro fotográfico do Quilombo Cafundó, agosto de 1980

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de Salto de Pirapora, a doze quilômetros do centro de Sorocaba, no estado de São Paulo. Seu Otávio Caetano era músico, sanfoneiro de primeira, dono das melhores festas, contador de histórias, responsável por manter e transmitir o dialeto1 para os mais novos. A gente está aqui graças à estratégia do sr. Otávio, grande mestre. Em meados de 1970, quase um século depois de Joaquim e Ricarda,

Dona Cida, benzedeira, rezadeira, yá do terreiro do Quilombo do Cafundó e liderança comunitária nas décadas de 1980 e 1990, sem data Registro fotográfico do Quilombo Cafundó, 1978-déc. 1990


os quilombos da região de Sorocaba começaram a cair. O último a ser extinto foi o do Caxambu, que era um quilombo irmão. E testemunhando esses ataques, o seu Otávio temia que o mesmo acontecesse com o Quilombo Cafundó, que na época tinha diminuído até sete alqueires e meio de terra. E quando essas ações começaram a ficar mais violentas, seu Otávio juntou a sua família e entendeu que a vida do

preto não tinha valor. E que, se eles quisessem continuar vivos, precisavam ir atrás de vidas de valor. Então ele vai até o centro sorocabano e começa a cupopiar, isto é, a falar no dialeto, o que chama tanta a atenção, a ponto de o Jornal Cruzeiro do Sul fazer uma reportagem em que afirma que no Cafundó, que na época ainda era um bairro, há um povoado onde se fala uma língua “estranha”.

A notícia tem uma grande repercussão, atraindo alguns pesquisadores, antropólogos e linguistas, que vêm até o quilombo e ficam aqui para estudar esse dialeto. E a presença dos acadêmicos dentro do Quilombo Cafundó fez com que os ataques diminuíssem. Aquelas eram as vidas que importavam, que o seu Otávio tanto queria trazer e trouxe para a comunidade. E com essas pessoas brancas e poderosas (orofombe, em cupópia) dentro da comunidade a conversa ficou diferente. O sonho do seu Otávio Caetano era saber ler e escrever. Ele morreu sem conseguir isso, mas hoje a gente sabe que ele dominava outros saberes que foram pouco valorizados. Hoje a gente tem a certeza de que ele era um homem muito além do seu tempo. A sua estratégia muito ajudou o Cafundó nesse processo de resistência e sobrevivência.2 cintia delgado, uma das líderes da comunidade, em conversa com sylvia monasterios

_ 1/ A cupópia é uma língua falada no Quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, São Paulo, Brasil. A língua combina a estrutura do português com palavras de origem africana, especialmente do quimbundo. 2/ O sr. Otávio também foi quem entrou com um processo de usucapião, que garantiu a permanência dos quilombolas na Gleba A (os 7,5 alqueires que restaram para a comunidade).

Seu Jovenil segurando o retrato do seu tio Otávio Caetano, mestre da cupópia e festeiro da comunidade, sem data

Seu Otávio Caetano, Dona Dita Pires e outros moradores do Quilombo Cafundó, sem data


raquel lima

Em Rasura (2021), Raquel Lima revisita e reinventa uma história permeada por traumas − traumas íntimos, sociais, coletivos. Entre abandonos, ruínas, camadas de escritas e hábitos, sua poesia-performance transpõe os muitos séculos precedentes por meio de reminiscências que subsistem e voltam à superfície como em um ciclo eterno. Não é possível interromper o tempo que corre, mas Lima

Rasura, 2021 Stills do vídeo

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encontra maneiras de atravessá-lo, moldá-lo com sua voz e decifrá-lo com o corpo em movimento. Usa a palavra “rasura” para além de sua semântica, tendo nela a chave de decodificação e de tradução. E se essa palavra não for o ponto de partida de seu pensamento, é, com certeza, seu ponto de chegada. Em contraponto a “apagamento”, a anulação total de uma ideia, de uma identidade ou de


uma história, “rasura” pressupõe o erro ou a intenção de apagar algo parcialmente ou um refazer sem disfarces. Na obra, “rasura” significa também resistência. Do interior de pequenos barcos abandonados, Lima nos põe a olhar pela janela o oceano ao redor e, nele, vemos outros barcos abandonados à deriva. Mais do que vida, houve ali exploração e algo sucumbiu – mas não foi apagado.

Na ilha de São Tomé, no golfo da Guiné, em São Tomé e Príncipe, as casas coloniais outrora abandonadas guardam rachaduras, vazios assombrosos, paredes com tintas descascadas, ruínas sobre ruínas que, ainda assim, são habitadas em seu precário permanecer. Quem ocupa esse cenário são corpos negros, parte da história primordial do lugar para o qual seus ancestrais foram levados como mercadoria − o

humano tornado coisa, rasurado, mas não apagado. O trauma dos séculos de escravidão cujas consequências seguem tendo reflexos no destino das populações negras é elaborado com cuidado nas palavras com as quais a artista se expressa performática-poética-visualmente. As palavras estão inscritas na “oratura” – uma dimensão ontológica que propõe outras formas de narrar o cotidiano e a história; uma cosmovisão – que coreografa sentidos em tempos distintos. Nenhum passado pode ser apagado, mas seus vestígios podem ser transmutados pela arte. Ao menos pela arte emancipatória, um caminho transpassado pela interseccionalidade consciente, que é percurso, movimento e que dá novas possibilidades aos tempos históricos. pérola mathias

esta participação é apoiada por: República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes.


ricardo aleixo

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Ricardo Aleixo compõe poemas, performa palavras, dança ideias e vocaliza imagens. Seu trabalho destrincha a inter-relação dos códigos nos processos – não necessariamente lineares – de criação. No entanto, a ideia de códigos é insuficiente, porque, antes da palavra, a letra pode expressar não uma linguagem, e sim várias: a imagem, a vocalização e seu som. Nas palavras do próprio poeta,

“escutar a letra e escrever a voz” é a síntese do que é sua obra e atuação artística. A poesia de Ricardo Aleixo, que se dedica ao ofício há mais de quarenta anos, se conecta com o dia a dia, mas não só. Informa afetos, mas não só. Ela é/pode ser o próprio sentimento; pode narrar um sonho ou ser ela mesma o sonho. Ao “Palavrear”, abre os caminhos para que possamos perambular pelo labirinto que ele conhece “por tê-lo / de cor na ponta dos pés”. Nesse percurso, a paisagem de suas “composições” é continuamente alterada pelos contextos, reais e históricos, que impõem contingências ao poeta, ao indivíduo, ao local onde habita e à língua que fala. Aleixo atualiza o conceito utilizado pelos poetas concretos a partir da obra de James Joyce e chama sua poesia de “reverbivocovisual”, trabalhando a dimensão escrita, visual e sonora. O corpo soma-se a isso como instrumento que emula, incorpora, apresenta e até carrega a poesia. E nesse corpo poético tudo é expressão, como nas performances com o “poemanto”, uma espécie de parangolé com o qual ele faz as “corpografias”. pérola mathias

Ricardo Aleixo: Afro-atlântico, 2023 Still do filme. Direção: Rodrigo Lopes de Barros


rolando castellón

“Minha religião é a natureza e o museu, minha igreja”, declara o artista Rolando Castellón, uma das grandes referências da arte na América Central. Nascido na Nicarágua e com fortes laços com a Costa Rica, Castellón iniciou sua vida artística a partir de uma lembrança, a de sua tia Rosa, que costumava desenhar com a ponta de uma vassoura no chão de sua casa, depois de varrê-lo e molhá-lo

com água. Herdeiro daquele gesto, durante muitos anos, Castellón formou seu itinerário de rituais e poéticas, e a lama e todo objeto inerte descartado ou substância viva, de origem vegetal ou animal, eram sua matéria-prima. As caminhadas na praia ou na cidade, sua aguda observação, a coleção de objetos e elementos desvalorizados levados para seu estúdio, os efeitos do clima, o abandono, a escuridão,

Dossier – Inventário abreviado, 1960-2010 Livro de artista

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a presença de vermes e os ciclos das plantas, são as dinâmicas que ele usa para moldar estratégias performáticas. Na impossibilidade de reduzir seu trabalho a um único projeto, a presença de Castellón nesta edição da Bienal de São Paulo consiste em uma seleção − ou melhor, um inventário − de obras. No espaço expositivo estão depositados apenas fragmentos de um universo

extraordinário, que inclui o que ele chama de “objetos encontrados”, bem como desenhos feitos com lama, imagens e composições nas quais o acidental impera. Mas o todo não compõe algo simples ou meramente naturalista. Em toda a obra de Castellón estão embutidas a ironia e os paradoxos dos possíveis diálogos entre as culturas industriais e a natureza, a história pré-colombiana e pós-colombiana e

a contemporaneidade. Esse corpus de múltiplos trabalhos também identifica uma produção artística cuja ética se baseia na peculiaridade dos materiais, sua harmonia visual, seu poder conceitual e o respeito pelo contexto físico e natural. Como um observador atento do micro, Castellón explora a plasticidade e a harmonia visual de folhas secas, cadáveres de insetos, sementes ou espinhos, para reintroduzi-los no regime do simbólico e do ritualístico. rossina cazali traduzido do espanhol por ana laura borro


rommulo vieira conceição

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Milton Almeida dos Santos (19262001) talvez tenha sido o mais proeminente e importante geógrafo brasileiro do século 20 que se especializou em estudos urbanos e teorizou as condições sociais e políticas da urbanização brasileira, antes que os estudos pós-coloniais ganhassem base acadêmica. Em seu livro A natureza do espaço: Técnica e tempo. Razão e emoção. Razão e Emoção, de 1997, Santos

afirmava que a cidade moderna de hoje é “luminosa” e que a “naturalidade” da tecnologia e da informação resulta em uma condição rotineira e mecânica da vida cotidiana. Por outro lado, os espaços da cidade ocupados pelos pobres são áreas urbanas “opacas”; no entanto, elas representam os espaços de aproximação e de criatividade em oposição às zonas luminosas e aos “espaços de exatidão”. São os

espaços inorgânicos que se abrem e, por escaparem às racionalidades hegemônicas, as populações pobres, excluídas e marginalizadas, são fonte de criatividade e de possibilidades futuras. Em seu último trabalho, Rommulo Vieira Conceição recorre às teorias espaciais de Santos, bem como a fotografias das condições espaciais cotidianas, elementos arquitetônicos e detalhes de espaços opacos margina­lizados de cidades brasileiras, como a Favela Nova Jaguaré, em São Paulo, a Favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, e o Bairro Humaitá, em Porto Alegre. Nesses espaços opacos, que por vezes estão sob pressão da polícia militar, Conceição aborda a construção criativa de experiências localizadas e suas críticas implícitas à fusão entre capitalismo, colonialismo e poder. Em sua instalação escultórica para a 35ª Bienal de São Paulo, o artista constrói paredes com materiais de construção e com detalhes comumente usados em favelas e bairros das periferias, como tijolo de barro seis furos, telha cerâmica e balaústres coloniais. Essas paredes e colunas dóricas greco-romanas sustentam frontões neoclássicos que expressam valores socioculturais e políticos. Eles são justapostos por escudos suspensos da brigada militar com imagens de batalhões de choque, remetendo a janelas ou espelhos. Por fim, uma série de carrinhos de supermercado são dispostos e espalhados pela obra, uma referência ao capitalismo e ao consumo, mas também à mobilidade que oferece a possibilidade dos encontros, além da construção e do redesenho de valores. mario gooden

O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção, 2021 Vista da instalação, Instituto Inhotim, Brumadinho (2021). Metal, madeira, resina, fibra de vidro, polipropileno, poliuretano e pintura automotiva


rosa gauditano

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As fotografias relacionam-se com o tempo. E essa experiência insere-se em uma dinâmica do olhar, que parte de um lugar no passado que aponta para outro tempo que jamais cessa de se reconfigurar. É desse modo que as fotografias de Rosa Gauditano abrem para nós o tempo. Era 1964 quando a ditadura interveio nos costumes visando a moralização da sociedade. A repressão era, explícita e predominantemente, dirigida


aos “subversivos”, aos “comunistas”, às pessoas “anormais” e às pessoas com comportamentos “desviantes”. Assim, pessoas negras e LGBTs1 foram perseguidas, detidas de modo arbitrário, violentadas e mortas. Ao mesmo tempo, em um contraponto, lésbicas criavam movimentos de resistências. E uma dessas ações foi a manutenção de locais de sociabilidades, como bares e boates. Em 1979, Gauditano, contratada pela

revista Veja e sensível aos acontecimentos políticos, tornou visível o invisibilizado ao registrar e celebrar os corpos lésbicos, durante dois meses, no Ferro’s Bar, em São Paulo. São registros marcados por uma forte proximidade entre a fotógrafa e as frequentadoras. São imagens que, para além das estigmatizações vigentes, narraram a intimidade dos casais, os elos afetivos estabelecidos no bar, as novas configurações fami-

liares, e expunham, esteticamente, uma resistência política. Apesar de o ensaio ter sido censurado, a jovem fotojornalista não imaginava que seu olhar apontaria para o futuro, tempo em que as mulheres lésbicas do presente ocupariam o mesmo espaço das mulheres do passado. Assim, as cenas captadas suscitam novas experiências, recriando memórias e sendo renovadas por elas, pois, em 19 de agosto de 1983, o bar, testemunha do processo de formação política do grupo Lésbica-Feminista (LF), protagoniza o Levante do Ferro’s Bar – a primeira manifestação organizada por lésbicas contra a discriminação e o silenciamento da sexualidade entre mulheres. Essa data, desde 2008, é reconhecida em São Paulo como o Dia do Orgulho Lésbico. E, em 2023, Lésbicas de Rosa Gauditano retornam como propositoras de novas reflexões. barbara copque

_ 1/ Aqui optou-se por manter a grafia da época.

Vidas proibidas, da série Lésbicas, 1979 Impressão sobre papel de gelatina e prata


rosana paulino

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Hipersexualização, trabalho servil e mãe preta. Esses são alguns estereótipos de mulheres negras presentes no imaginário brasileiro. Essa coisificação e apropriação sexual do corpo regulam condutas e constroem identidades sempre nocivas. Naturalizam, reduzem e fixam esses corpos em uma relação de dominação que perpassa gênero, raça e classe, sujeitando as mulheres negras a situações de grande vulnerabilidade social.

Em um movimento de contestação que perpassa toda a sua trajetória, Rosana Paulino, ao confrontar as tais violências, desconstrói estereótipos e as representações do corpo feminino racializado, ao tensionar (ou revelar) como as teorias científicas fundamentaram as teorias raciais na história oficial. Educadora, pesquisadora com doutorado em artes visuais e intérprete do Brasil, Paulino faz do corpo um


lugar de memória; um corpo que opera pensamento e abriga questões a serem revisitadas. Falando por e para esse corpo, ela tece, desestabiliza e subverte as certezas da colonialidade que nos atravessa. O corpo da artista também carrega o tempo. Um tempo transformador que interrompe violências e que perturba o sossego do rio, reconfigura memórias e tece outras narrativas e mitologias. Nas

séries de 2019 Búfala, Senhora das plantas e Jatobá, ao questionar a construção de uma subjetividade que não contempla o feminino negro, Paulino constrói outros arquétipos e reivindica as afetividades e as psiques expropriadas, revelando a proximidade dessas mulheres com a natureza, cujos corpos se fundem com plantas e animais, enraizando, cultivando galhos e ampliando a valorização

de outras sabenças, todas enredadas pela ancestralidade. E estar enredado, nas religiões de base africana e afro-brasileira, é ser um pouco as coisas, ou seja, nessas religiões, as mulheres são constituídas e constituem a natureza. Como é o caso da série Mulheres-Mangue (2022-2023), a avó das avós da série Jatobá, que, com suas raízes aéreas − já não é mais necessário se esconder – e conectadas, como é o pensamento afro-diaspórico, possibilita trocas e vivem entre mundos: é vida e morte, começo e fim, terra e água, salgado e doce, preto e branco, e é o meio, como a lama. barbara copque

Rosana Paulino em seu ateliê, São Paulo, 2023


rubem valentim

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O artista Rubem Valentim (19221991) combinava elementos do modernismo e da abstração geométrica com as culturas africanas e afro-brasileiras, e com várias correntes filosóficas e místicas orientais, sempre em busca de uma consciência da terra, do povo. Em um trabalho vigoroso por constituir uma linguagem universal, Valentim incorporava símbolos e motivos inspirados em rituais reli-

giosos, oriundos da cosmogonia do candomblé, abrindo caminho para uma geometria numinosa e abstrata que impregnava suas pinturas, relevos e esculturas. Por meio de círculos, triângulos, trapézios, retângulos e cores do panteão dos orixás, o artista criou a cada obra uma nova rítmica. Rigoroso e inventivo, o artista alcançou o equilíbrio entre forma e cor, que pode ser observado na monumentalidade do conjunto de esculturas e relevos que compõem a obra Templo de Oxalá, exibida parcialmente e pela primeira vez em 1977 na 14ª Bienal de São Paulo. Um dos textos fundamentais para a historiografia da arte, foi com o emblemático “Manifesto ainda que tardio” (1976), em que Valentim declarou seu propósito político e conceitual, e lançou as bases de sua contribuição estética radical para a tradição artística brasileira e internacional. Desse modo, a presença integral do Templo de Oxalá na 35ª Bienal de São Paulo, sem dúvida, concretiza o pensamento e o legado do artista. O templo é a celebração e a manifestação de uma poética visual brasileira, que estabelece a riscadura brasileira, uma identidade mobilizadora de insígnias geométricas e elementos simbólicos para expressar suas conexões entre o físico e o metafísico. O templo é um ato que cinde o tempo, é como flecha que nunca tarda. horrana de kássia santoz

Rubem Valentim em seu ateliê, sem data


rubiane maia

Atirar insistentemente uma sequência de pedras em direção ao oceano, investigar o corpo como receptáculo da força dos ventos, realizar deslocamentos em sinergia com o reino mineral, esgarçar o tempo da escrita em relação à duração das plantas, respirar memórias a partir da capacidade sônica para acessar tempos imemoriais, lixar madeiras para escavar os textos presentes na própria pele, são

alguns (entre os muitos) gestos que estruturam a tessitura conceitual e transdisciplinar de Rubiane Maia. O que está em jogo nas situações propostas pela artista, que tem sua produção guiada por um híbrido entre performance, imagens e escrita, é sempre a construção de um estado de percepção que permite ao seu próprio corpo (e ao de quem com ele se afeta) a possibilidade de alargamento e trans-

Speirein, 2021 Espiões. Registro de performance, PSX: a decade of performance art in the UK, Londres

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mutação do que nele está inscrito através do tempo. Um corpo que escuta, alimenta e multiplica as frequências, vozes e gritos que nos antecedem. Se cada um de nós é a condensação da história vivida desde o nascimento e antes dele, quando uma memória [ou um conjunto de memórias] se atualiza por meio de uma ação

performática, ela deixa de ser memória ou fantasma para se tornar uma percepção coletiva, uma constelação.1

Nesse sentido, o corpo, nos contextos que são evocados por Maia, extrapola (ou mesmo recusa) as concepções biológico-histórico-ocidentais a ele atribuídas, tornando-se um conjunto de forças em estado de diferenciação capazes de

mobilizar novas paisagens, saídas e saúdes. Sempre considerando a paisagem e o meio (sobretudo não humano) como cocriadores de suas obras, a artista [re]afirma seu compromisso com a vida em um jogo que envolve tanto um exercício de fabulação crítica (e clínica) como um brotamento daquilo que poderíamos chamar de cuidado. Esse cuidado, contudo, eleva-se, amplia-se em direção a um estado coletivo, carregando em si uma rede de histórias, relacionamentos e perceptos coletivos e individuais. Em Book-Performance [Performance-Livro], projeto em desenvolvimento e apresentado na 35a Bienal de São Paulo, Rubiane Maia organiza uma série de ações, pensadas em resposta a textos autobiográficos particularmente influenciados por memórias transgeracionais traumáticas ligadas a questões de gênero e raça. Através do gesto e da colaboração com outras performers (sempre atravessadas por questões comuns a sua história, inscrita pela migração, pela maternidade e pelo pensamento diaspórico), a artista elabora uma metodologia texto-corporal que deseja “metabolizar memórias complexas ou indigeríveis em pequenas doses de cura e liberdade”.2 tarcisio almeida

_ 1/ Notas sobre a prática da artista. Ver mais em: www.rubianemaia.com/. 2/ Ibid.

Preparação para Exercício aéreo, a montanha, 2016 Still do vídeo de Rubiane Maia e Manuel Vason


criar instituições transcorpóreas: coreografias transfeministas para corpos e espaços ilenia caleo

um corpo é um corpo é um corpo / coreografias políticas Um corpo está ao lado de um corpo que está ao lado de um corpo. O corpo é sempre um corpo em um espaço. O ambiente é gerado pelo corpo: pelo volume que ocupa, pela duração, pela postura, por como se move. Os corpos estão em relação não somente entre si, mas também com o espaço conectivo que os ativa. Um corpo não fica ali, sozinho, não é um objeto isolado, hermético, apoiado no ambiente como se este fosse um fundo inerte. Esse espaço-entre é uma matéria ativa: pode-se imaginá-lo como um fluxo vibrante e viscoso, uma casa infestada de temporalidades distintas e simultâneas, um todo pleno e denso de afetos. O corpo modifica o espaço ao redor e vice-versa, e a relação que se cria entre os corpos modifica os corpos e o espaço; o espaço habilita ou desabilita a relação entre os corpos, modificando-a, por sua vez. Nesse campo de forças, o trânsito é multidirecional e as influências, recíprocas. Cedem as fronteiras entre os corpos, onde um acaba e o outro inicia, e afloram zonas intermediárias, que permanecem sem nome. Nem um nem outro. Essas zonas de subsidência nos interessam particularmente, porque nelas, naquele contato, naquele esfregar-se de superfícies, ocorrem misturas. As fronteiras das identidades distintas se desfazem, as matérias mesclam-se. Deixamos de considerar os corpos entidades singulares e uma dimensão de transcorporeidade emerge.1 O espaço-entre é regulado por uma série de condições, por vezes explícitas, mais frequentemente implícitas: a proximidade que os corpos podem manter entre si, a possibilidade de contato, a liberdade para um corpo se mover em direção ao outro, se pode se inclinar, se esticar, tombar sobre o outro ou ser forçado à verticalidade, quanto espaço cada corpo está autorizado a ocupar, se esse espaço é o mesmo para todos os corpos, e assim por diante. Essa é a descrição de uma prática coreográfica, mas também 1/ Stacy Alaimo, “Trans-corporeal Feminisms and the Ethical Space of Nature”, in Stacy Alaimo e Susan Hekman (eds.), Material Feminisms. Bloomington; Indianápolis: Indiana University Press, 2008, pp. 237-64.

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a descrição de como funciona o espaço público. Vetores, tensões, inclinações, movimentos: coreografias, ou seja, escrituras políticas dos corpos. Relacionada não aos objetos, mas a movimentos, transições, sequências, a escritura coreográfica nos põe em contato com o informe, com a variação contínua, treinando a percepção e a sensibilidade. Assim, entendida como escrita dos corpos e do movimento no espaço, a coreografia pode ser considerada não tanto uma disciplina, mas um modo de pensar os problemas, para compor novos problemas no contexto da dimensão da corporeidade.2 Corporeidade de todos os corpos, não somente dos corpos humanos. Uma ideia de coreografia expandida.

corpos híbridos, corpos artificiais Nas artes ao vivo, a copresença de performers e espectadores gera um espaço de comunalidade artificial e transitório — uma artificialidade que oferece bons exercícios de imaginação política. De fato, na performance as condições que tornam qualquer coisa visível, perceptível, legível, mudam continuamente e divergem do senso comum. Às vezes, ocorre um curto-circuito: não estamos em condições de reconhecer imediatamente um corpo na cena, ou um movimento, ou uma composição de corpos no espaço. E, assim, algo está acontecendo; quando a percepção habitual oscila, novas assemblages corpóreas se criam. A artificialidade própria das artes, que nas artes performativas diz respeito a corpos vivos, fornece, portanto, um instrumento ulterior para desmontar o binarismo natureza-cultura em uma aliança com os pensamentos feministas. Mais que no campo da análise, estamos em um terreno de experimentação: novos órgãos de percepção despontam e ramificam-se, todo um mapeamento impensado do sensível aflora — as partituras ficcionais da performance movem o corpo entre o natural, o cultural e o artificial, interpelando o estatuto mesmo da corporeidade. Concebendo novas assemblages, criam um efeito de realidade. 2/ Bojana Cvejić, Choreographing Problems: Expressive Concepts in European Contemporary Dance and Performance. Londres: Palgrave Macmillan, 2015.


É desse modo que a arte gera zonas impuras, interstícios entre os corpos dotados de uma autonomia singular, corpos ambíguos, híbridos, não formados. Ela os torna visíveis. Corpos impossíveis, ilegíveis e impensáveis podem ganhar vida em cena, mesmo que apenas de passagem. Corpos habitados, incorporações que deixam entrever novas misturas, novos compostos. Nas artes ao vivo, fazemos desse vivente mesclado, impuro, incerto, transitório, artificial, uma experiência direta. Uma experiência compartilhada, que consolida um espaço comum de sensibilidade, intensificando e modificando os sistemas de percepção.3 Podemos reconhecer na arte uma capacidade de “antecipar” algumas mutações — antecipação que não é da ordem da declaração intencional, mas de um deixar entrever, de um fazer brilhar. Uma modalidade queer da visão, como de soslaio, não inteira, que nos aproxima da utopia.4 Uma atividade de prefiguração, um atributo eminentemente político da imaginação.

corpos e instituições: partituras Na tradição mais heterodoxa da filosofia política ocidental, de David Hume a Gilles Deleuze, a relação entre artifício e instituição é fundante,5 e conecta o plano da política ao da fantasia, da imaginação, da capacidade de estabelecer associações. Há, portanto, certa intimidade entre a arte e as instituições. As instituições não são um dado da natureza, mas uma invenção, uma convenção, e essa é uma verdade tanto no nível macrossocial como no âmbito das singularidades corpóreas: o corpo é instituído por forças simbólicas e materiais, lugar de fantasias, espectros, imagens, memórias, depósitos, contratos e identificações. É um campo de batalha. Não há nada de natural em nossos corpos. 3/ Jacques Rancière, Le Partage du sensible: Esthétique et politique. Paris: La Fabrique Éditions, 2000. 4/ José Esteban Muñoz, Cruising Utopia: The Then and There of Queer Futurity. Nova York: NYU Press, 2009. 5/ David Hume, A Treatise of Human Nature: Being an Attempt to Introduce the Experimental Method of Reasoning into Moral Subjects, 1739; Gilles Deleuze, Instincts et institutions. Paris: Hachette, 1953.

É na performatividade, ou seja, nos comportamentos, nas condutas, nos repertórios e na repetição dessas partituras dadas que os corpos se tornam socialmente inteligíveis, legítimos, “straight”. Mas o pensamento queer feminista sobre o performativo não é apenas um instrumento de desconstrução e desnaturalização de corpos, sexualidades, identidades e instituições existentes, mostrando sua artificialidade.6 A performatividade é um modo de ação que modifica o mundo e é também uma atividade transformativa, subversiva, instituinte. Sara Ahmed inaugura uma leitura feminista da proximidade entre corporeidade e instituições. “Fazer coisas” depende não tanto de uma capacidade que o sujeito possui, individualmente, mas “dos modos pelos quais o mundo está disponível como espaço para ação”,7 um espaço plástico no qual as coisas podem ter lugar. A instituição é assim definida em termos materiais e espaciais — um modo corpóreo. Ela consiste em modelos, protótipos e esquemas de ações incorporadas, mas também em repertórios, partituras, posturas, gestualidades, comportamentos. As coreografias e as partituras posturais e gestuais instalam-se tão profundamente em nossos corpos que se tornam automáticas. Como se movem os corpos no espaço? Quais partituras os corpos seguem? Podemos nomear essas partituras? Que história tem esse meu gesto? Como liberar outras partituras, como mudar as codificações dadas, como dar corpo a coreografias políticas subversivas? Em meio a insurgências, movimentos sociais, comportamentos coletivos autorregulados, formas de vida não normativas ou minoritárias se inventam novas instituições, novos modelos de agir compartilhado. Não só instituições cristalizadas e lugares de poder, portanto: os processos instituintes, generativos, sociais, de baixo, são práticas abertas que possibilitam a capacidade de agir, potencializando-a — materialmente, tomam forma em termos de proximidade corpórea, de tendências: aquilo com que 6/ Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. Nova York: Routledge, 1990. 7/ Sara Ahmed, “A Phenomenology of Whiteness”. Feminist Theory, v. 8, n. 2, pp. 149-168, 2007, p. 153.


entramos em contato nos modela, “os corpos são plasmados por esse contato com os objetos”.8 Fazer ao nosso redor um mundo comum.

práticas de novas instituições: um posicionamento Eu também, agora, falo de um espaço específico, e de práticas que atravessei e que produziram pensamentos e saberes coletivos, em particular as lutas dos comuns e as lutas feministas queer. A partir da crise econômica de 2008, e em reação às políticas neoliberais de privatização e cortes de direitos sociais, ou como uma demanda por inclusão democrática na gestão da crise, foram desenvolvidos no sul da Europa e em torno do espelho do Mediterrâneo movimentos sociais que experimentaram de maneira radical o tema das instituições do comum: na Itália, os movimentos locais pelos bens comuns e a luta pela água como bem público, seguidos das ocupações culturais,9 o 15M e o movimento dxs Indignados na Espanha, mas também os protestos em torno do Parque Gezi, em Istambul, e depois em toda a Turquia, as praças da revolução árabe na Tunísia e no Egito.10 É também como reação à força dessas mobilizações que se pode ler a onda soberanista e reacionária em curso hoje na Europa e o fechamento dos espaços de viabilidade política em direcionamento autoritário na Tunísia, na Turquia e no Egito. Nesses momentos de insurgência, emergiu dos movimentos a nomeação de um espaço político que prefigurou o Euromediterrâneo. Apostando, como europeus, na ideia de uma Europa alternativa à das finanças, federativa e construída de baixo. Uma Europa meridional. 8/ Ibid., p. 152. 9/ A partir de 2011: Teatro Valle Occupato (Roma), Torre Galfa e Macao (Milão), L’Asilo Filangieri (Nápoles), Teatro Coppola (Catânia), Teatro Garibaldi (Palermo), Teatro Rossi Aperto (Pisa), Sale Docks (Veneza), La Cavallerizza (Turim), Cinema Palazzo e Cinema America (Roma). Ver também Silvia Jop (ed.), Com’è bella l’imprudenza. Arti e teatri in rete: una cartografia dell’Italia che torna in scena, Il Lavoro Culturale, 21 dez. 2012. Disponível em: www.lavoroculturale.org/imprudenza/silvia- jop/ (em italiano). Acesso em: 2 jul. 2023. 10/ Lampejos que encontram ressonância nos movimentos #occupy, nos Estados Unidos.

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As lutas da década de 2010 põem em foco a prática da ocupação, com declinações diversas nos diferentes contextos. A materialidade da dimensão corpórea e espacial foi determinante. Foram ocupados espaços públicos, estradas, praças e parques urbanos, que se tornaram locais de assembleias, de sociabilidade, de organização política e de cuidado coletivo. Mas também algumas instituições existentes foram assim tomadas e ressignificadas: os teatros e os espaços culturais na Itália e na Grécia, onde foram ativadas subjetividades precárias da arte e da cultura; e, no caso específico da Grécia, a ocupação e o autogoverno dos hospitais. A dimensão transnacional foi forte: foram desenvolvidas redes e networks, e multiplicados os contatos. Sem que houvesse um programa ou um acordo prévio, palavras e práticas comuns ressoaram nas margens do Mediterrâneo: a ocupação como prática performativa que mobiliza os corpos no espaço e o transforma; o autogoverno como prática de democracia direta; o comum como contestação da propriedade e invenção de outras instituições. As subjetividades ativadas foram as transversais, precárias, trabalhadores temporários, profissionais da arte e da cultura, estudantes e pesquisadorxs precárix da universidade, cidadãos, ativistes dos movimentos sociais, para a defesa dos territórios, pelo direito à cidade e ao habitar. Nesse emaranhado de inesperadas subjetividades, pensar os processos em curso não como reação de protesto, mas como matriz de novas instituições, fortaleceu a ação e a experimentação.

partilha dos comuns — uma arte do conflito Esta sequência — ocupação/autogoverno/comuns — assinala uma vocação que vai além da autorrepresentação e flui em uma ação imediatamente performativa, ou seja, produtiva, que envolve a gestão dos meios de produção, a construção de economias informais e de novos sistemas relacionais. Uma arte do governar-se “de outra forma”. Dessa experiência política aprendi que considerar a dimensão corpórea e de contato das novas instituições significa pôr continuamente em foco a questão do conflito. Não por acaso, a prática assim difusa da ocupação implicou amplas margens de ilegalidade. Ocupar como modo


de fazer-espaço, para fazer-mundo: a cena não é a de uma demanda por reconhecimento por parte de instituições constituídas ou estatais, mas, em vez disso, de uma partilha dos comuns que institui de outro modo, de uma reapropriação que se transforma em redistribuição — de espaço, de economias, de relações, de potência e de alegria. A partilha dos comuns convoca não o plano das coisas existentes, mas o dos processos e das ações. Um deslocamento que faz emergir a qualidade performativa e transformativa da cooperação social, capaz de autorregular-se e de inventar modelos próprios. O foco se desloca da ontologia, que define o que são os bens comuns em si, para a performatividade dos comuns, ou seja, o como das práticas e das subjetividades encarnadas.11 Transformar para re/criar. Em “Performing the Institution ‘As If It Were Possible’” [Performar a instituição “Como se ela fosse possível”], Athena Athanasiou define a “reconfiguração performativa das instituições como um infinito e não determinado lugar de conflito”.12 Desse modo, a prática do instituir-de-outro-modo se desvincula dos processos de institucionalização e de cristalização. Pensar instituições autônomas, comuns, queer, feministas, decoloniais significa prefigurar sistemas relacionais em contínua transformação, que escapem da oposição binária entre movimento e instituição. Ou, em termos coreográficos, entre codificação e improvisação.

por instituições transcorpóreas O espaço de imaginações e de alianças aberto pelos movimentos da década de 2010 foi quebrado pela violência das políticas migratórias mais recentes e pelo desfecho repressivo das revoluções no norte da África. O Mediterrâneo é 11/ Michael Hardt e Antonio Negri, Commonwealth. Cambridge; Londres: Harvard University Press, 2009; Pierre Dardot e Christian Laval, Commun: Essai sur la révolution au XXIe siècle. Paris: Éditions La Découverte, 2014. 12/ Athena Athanasiou, “Performing the Institution ‘As If It Were Possible’”, in M. Hlavajova e S. Sheikh,(eds.), Former West: Art and the Contemporary after 1989. Cambridge; Londres: The MIT Press, 2016, p. 684.

hoje ainda mais fraturado, espaço de relações de força e de necropolíticas13 — a ideia de uma Fortaleza chamada Europa conseguiu erguer muros no corpo líquido das águas. Mas em pouco tempo, se acenderia outro ciclo de lutas, a maré transfeminista do Nem Uma a Menos que, da Argentina, se estendeu ao Chile, ao México e a outros lugares da América Latina, e, depois, pelo sul da Europa , Itália e Espanha com mais intensidade, e em uma modalidade específica na Polônia.14 Outras alianças, outras correntes. Outras ressonâncias, outras partituras. É das perspectivas feministas geradas por essa última onda que podemos voltar a olhar para as relações entre corpos e instituições.15 A questão dos gêneros e da violência masculina nos forçou a pôr em foco outras zonas de ativação política: a intimidade, a sexualidade, a corporeidade, o trabalho afetivo e de reprodução, e o cuidado. E as instituições que as governam. Um corpo não permanece ali sozinho, dizíamos: a interdependência radical é um traço constitutivo das comunidades lésbicas, bichas, trans, queer, de mulheres e/ ou racializadas; das subjetividades mais vulneráveis. Não é um sinal de inferioridade, mas um potencial político, e nos leva a imaginar instituições-outras, que imprimam consistência aos sistemas relacionais mais informais e às redes de outras intimidades.16 Esse é um ponto sobre o qual os recentes movimentos queer feministas na Itália e na Espanha 13/ Na obra de estudiosxs e ativistxs decoloniais, tem se desenhado a ideia de um Mediterrâneo Negro. Para a Itália, ver Camilla Hawthorne, “Geografie del Mediterraneo Nero”. Geographica Helvetica, n. 77, pp. 179192, 2022, e Gabriele Proglio, Mediterraneo Nero: Archivio, memorie, corpi. Roma: Manifestolibri, 2019. 14/ Para um olhar interno a esses movimentos, ver Verónica Gago, La potencia feminista: O el deseo de cambiarlo todo. Buenos Aires: Tinta Limón, 2019. 15/ Para uma perspectiva feminista dos commons ver Federica Giardini, “Politica dei beni comuni: Un aggiornamento”. DWF, n. 2, 2012; Idem, “Beni comuni, una materia viva”, in Laboratório Verlan (org.), Dire, fare, pensare il presente. Macerata: Quodlibet, 2011; Silvia Federici, “Il femminismo e la politica dei beni comuni”. DEP. Deportate, esuli, profughe, n. 20, 2012. 16/ Sobre a ideia de infraestrutura queer caracterizada por uso e movimento, ver Laurent Berlant, “The commons: Infrastructures for troubling times”. Environment and Planning D: Society and Space, v. 34, n. 3, pp. 393-419, 2016.


insistiram muito: consolidar infraestruturas de mutualismo para construir uma economia alternativa da intimidade, dos afetos, do cuidado dos corpos, do habitar. É assim que as formas de cuidado coletivo se tornam práticas verdadeiras e próprias de autodefesa, no ponto em que violência e precariedade se adicionam, multiplicando seus efeitos. Constitui um inventar novas coreografias políticas que componham corpos, relações e afetos com a materialidade e a precariedade das vidas mais expostas. Instituições táteis, tentaculares, úmidas, transcorpóreas. Mesmo nas instituições artísticas e culturais há a necessidade desses locais de conflito e, ao mesmo tempo, de modelos de ação comum, de outras formas de vida, bem diferentes das etiquetas queer ou decolonial em voga na Europa, que deixam o sistema inalterado. A questão da vulnerabilidade e da interdependência emergiu com força na pandemia de Covid-19, tomando o centro do discurso público e politizando, muito além do âmbito da militância feminista, o tema do cuidado.17

para políticas mais-que-humanas da interdependência Soa tão intuitivo e evidente dizer onde acaba um corpo e onde começa um outro, o dentro e o fora dos vivos, seja a pele, a superfície ou o exoesqueleto. Uma linha clara. No entanto, o vírus SARS-CoV-2, do Covid-19, pôs em crise o conceito de corpo hermético e autossuficiente, unitário e homogêneo — o vírus é corpo entre os corpos; é minúsculo, invisível e, apesar disso, atuante. Não respeita as fronteiras impostas pela pele. No contágio, convém pensar não por corpos individuais, mas por transcorporeidades, por sistemas complexos e inter-relacionados. Somos já habitados por outros corpos, somos permeáveis. 17/ Ver The Care Collective, The Care Manifesto: The Politics of Interdependence. Londres; Nova York: Verso, 2020. Para um mapeamento das práticas de auto-organização na crise do cuidado, ver Pirate Care Collective, Pirate Care Syllabus, 2020. Disponível em: syllabus.pirate.care. Acesso em: 2 jul. 2023. Sobre violência racista e transformação, ver Grada Kilomba, Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism. Münster: Unrast Verlag, 2008. [Ed. bras.: Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.]

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Para gerir a emergência sociossanitária, as retóricas estatais adotam as metáforas relacionadas à guerra, ao inimigo, à invasão e à imunidade entendida como defesa militar dos corpos. Reforçar as fronteiras, erguer muros, individuar um inimigo — discursos de guerra que, no plano simbólico, prepararam a guerra material (na Ucrânia). Os posicionamentos transfeministas, ao contrário, nos proporcionaram outras palavras, outras linhas de fuga, aproveitando a ocasião para repensar o humano e suas hierarquias. Nos anos de pandemia, aprendemos a reconhecer concretamente a condição difusa de interdependência — dos corpos, dos sujeitos, mas também das causas entre eles. E a identificar formas diversas de vulnerabilidade, de outro modo invisibilizadas. A interdependência é um traçado que desenha mapas políticos ocultos, que nos sugerem como tecer alianças imprevistas. Conectar as diversas formas de precariedade, as múltiplas formas de violência.18 Se a autossuficiência do indivíduo é um mito liberal e patriarcal, do mesmo modo o é a separação dos corpos. Remediar o individuado, cicatrizar os cortes produzidos pela ideia de que a autossuficiência é sinônimo de liberdade.19 Assim, a atividade performativa e transformativa que plasma o que nos circunda, aquela capacidade criadora e instituinte, pode ser entendida como uma forma de cuidado; para as pensadoras feministas neomaterialistas, cuidado é sinônimo de re-criar,20 refazer o mundo. O cuidado, então, não é mais simples atividade de manutenção, mas transformação em um mundo mais-que-hu18/ As cartografias da violência e da exploração nos servem para criar outras alianças. Ver Veronica Gago, op. cit. As lutas dos entregadores na Itália e na Europa, durante a pandemia, quando, de uma subjetividade fragmentada e violentamente precarizada, se tornaram setor estratégico na logística urbana, adotaram o slogan “Não para nós, mas para todxs”. 19/ Para o conceito de reparação, amplamente empregado na questão das restituições de objetos de arte no contexto das conquistas coloniais, ver K. Attia, “La Réparation c’est la conscience de la blessure”, in L. Cukierman et al. (eds.), Décolonisons les arts! Paris: L’Arche, 2018. 20/ Valeria Graziano, “Recreation at Stake”, in Ana Vujanović e Livia Andrea Piazza (eds.), A Live Gathering: Performance and Politics in Contemporary Europe. Berlin: b_books, 2019. Sobre o conceito de worlding [fazer o mundo], ver D. J. Haraway, Staying with the Trouble: Making Kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.


mano, atividade que é exercida por um emaranhado de forças, entidades e sujeitos humanos e não humanos.21 Um fazer coletivo que se encarrega da dependência recíproca, uma manutenção que é também um manter-na-vida, forma de autogoverno que se assemelha à capacidade regulatória de um ecossistema. Reconhecer a capacidade expressiva e atuante das muitas forças em jogo, além das forças humanas, tem impacto político imediato.22 E nos restitui a visão de uma materialidade vital, mas não harmônica, não pacificada, composta de forças que colidem, de coreografias de corpos humanos e de corpos não humanos. traduzido do italiano por gabriel bogossian

21/ Maria Puig de la Bellacasa, “Matters of Care in Technoscience: Assembling Neglected Things”. Social Studies of Science, v. 41, n. 1, 2011, pp. 85-106. 22/ Essa é uma perspectiva encontrada no neofeminismo materialista, mas que o pensamento e a cosmologia das culturas indígenas e não eurocêntricas desenvolveram de modo autônomo. Ver Jane Bennet, Vibrant Matter: A Political Ecology of Things. Durham: Duke University Press, 2010, e Michel Serres (1977), Lucrezio e l’origine della fisica. Palermo: Sellerio, 2000.


sammy baloji

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Há 130 anos era concluída a obra do Hotel Tassel em Bruxelas, na Bélgica. Assim nascia a art nouveau, estilo que celebrava a modernidade e sua classe dirigente, a burguesia industrial, que acumulara enorme riqueza ao entrelaçar seu destino com o dos assuntos coloniais. Em Hobé’s Art Nouveau Forest and Its Lines of Color [A floresta art nouveau de Hobé e suas linhas de cor] (2021), Sammy Baloji reproduz

um display em estilo art nouveau, incorporando alguns padrões inspirados pela tradição têxtil congolesa. Padrões similares, na realidade, foram integrados ao design do Museu Real da África Central, em Tervuren, na Bélgica, para não mencionar a arquitetura e os objetos geralmente feitos com materiais da colônia congolesa: cobre, marfim e madeira. Baloji enfatiza essa conexão entre o estilo floral da art


nouveau e a expropriação colonial. Além disso, as cores escolhidas pelo artista foram as mesmas que o escritor e historiador W.E.B. Dubois utilizou para os diagramas mostrados em Exhibit of American Negroes [Exposição de negros americanos] durante a Exposição Universal de 1900, em Paris. Essa escolha, de acordo com Baloji, alude à intenção de “confundir a leitura etnográfica que se poderia ter

dessas obras ao enfatizar o aspecto moderno dessas práticas antigas”.1 O arquivo colonial é explorado para romper o monopólio ocidental da modernidade. Assim, duas liturgias coloniais, a missa católica e o trabalho na fábrica, são apresentadas no filme Tales of the Copper Crosses Garden: Episode I [Conto do Jardim das Cruzes de Cobre: Episódio 1] (2017). Nele, imagens de uma fábrica de

processamento de cobre na província de Katanga, na República Democrática do Congo, são acompanhadas da gravação de cantos católicos da era colonial. As canções são executadas pelo coro congolês dos Cantores da Cruz de Cobre. Em uma fotografia em preto e branco que Baloji justapõe ao filme, a cruz de cobre, também conhecida como Cruz de Katanga, decora as batinas dos coralistas. Esse tipo de cruz, no entanto, era utilizado como moeda na região desde o século 13. Chamar a atenção para esse fato demonstra, mais uma vez, a habilidade desse artista para desnudar conexões ocultas do colonialismo, dessa vez com a religião, o extrativismo e a economia. marco baravalle traduzido do inglês por gabriel bogossian

_ 1/ Portfólio do artista. Disponível em: imanefares.com/wp-content/uploads/2020/04/ if-sammybaloji-portfolio-eng-1.pdf. Acesso em: jul. 2023.

Hobé’s Art Nouveau Forest and Its Lines of Color, 2021 A floresta art nouveau de Hobé e suas linhas de cor. Vista da exposição, Beaux-Arts de Paris (2021)


santu mofokeng

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“Quem foram essas pessoas? Quais foram suas aspirações? Qual era a ocasião? Quem está olhando? Olhe para mim.”

Essas questões e provocações mesmerizantes feitas pelo fotógrafo Santu Mofokeng (1956-2020) surgem entremeadas aos cativantes retratos de famílias negras trabalhadoras e de classe média de um período em que o mundo foi à guerra duas vezes e o regime do Apartheid tomou conta das regiões meridionais do continente africano. Feito em colaboração com dez famílias das províncias de Gauteng, Noroeste e


Estado Livre de Orange (África do Sul), The Black Photo Album / Look At Me: 1890-1950 [O álbum de fotos negro / Olhe para mim: 1890-1950] é uma monumental instalação de imagens e textos disfarçada como uma apresentação de slides de um álbum de fotografias. Revelando mais de oitenta diapositivos (35 imagens e 45 textos), a obra contrapõe formas conceituais e vernáculas; sujeitos individuais e coletivos; mundos

espectrais e materiais. Como conjunto, The Black Photo Album / Look At Me: 1890-1950 constitui tanto um arquivo quanto uma assemblagem, formulação que o teórico Achille Mbembe considera “uma história que adquire coerência pela capacidade de produzir vínculos entre o início e o fim”.1 Abarcando múltiplos recortes temporais, a peça começa durante os anos iniciais da democracia

sul-africana, quando Mofokeng trabalhou no departamento de documentação visual do Instituto de Estudos Africanos da University of the Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul. Embora muitos se limitassem a representar o futuro da esfera pública em technicolor, Mofokeng voltou-se para dentro, orquestrando esse projeto de pesquisa aprofundado, fundamentado no passado monocromático. Ele disse que “estava fazendo esse projeto, não para negar outras histórias, outras narrativas, mas tentando inserir esse trabalho no conjunto de conhecimentos sobre o passado”.2 Apresentado pela primeira vez na Bienal de Joanesburgo de 1997, The Black Photo Album / Look At Me: 1890-1950 ressoa de modo ainda mais poderoso hoje, em São Paulo, no início de outro século. A obra subverte as narrativas dominantes do Estado nacional ao se concentrar em minorias históricas, por meio de conturbadas formas de relação que somente podem ser geradas fotograficamente. oluremi onabanjo traduzido do inglês por alexandre barbosa de souza

_ 1/ Achille Mbembe, “The Power of the Archive and its Limits”, in C. Hamilton et al. (ed.), Refiguring the Archive. Cidade do Cabo: David Philip, 2002, p. 21. 2/ Santu Mofokeng, citado em entrevista a Tamar Garb. Figures and Fictions: Contemporary South African Photography. Göttingen: Steidl, 2011, p. 283.

The Black Photo Album / Look at me: 1890-1950, 1997 O álbum de fotos negro / Olhe para mim: 1890-1950. Slides de 35 mm


sarah maldoror

suzanne lipinska Retrato de Sarah Maldoror em Guiné Bissau, c. 1970 Impressão sobre papel de gelatina e prata

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Desde a escolha do próprio nome, retirado dos cantos de Lautréamont, Sarah Maldoror (1929-2020) sempre uniu sua visada de poeta a um gesto político que rechaça narrativas institucionalizadas para compor cada uma de suas obras: sejam as escritas ou as cinematográficas, que somam mais de vinte produções entre documentários e ficções. Diferentes facetas do pensamento pan-africano e protagonistas de processos de

resistência constituem traços marcantes da obra de Maldoror. Franco-antilhana no Movimento Popular de Libertação de Angola, filmou a guerra colonial pelos olhos de uma mulher, em Sambizanga (1972) – filme em exibição na 35a Bienal – convicta de que a luta estaria fadada ao fracasso se não envolvesse toda a população em ações em seu dia a dia e não como mera operação de militares. Esse trabalho que deflagra o que historicamente foi invisibilizado é também o legado artístico construído da perspectiva daquela que, na Paris de 1956, foi a única mulher entre os 63 delegados no Primeiro Congresso de Escritores e Artistas Negros e contribuiu para a construção de um teatro no qual a presença africana suplantasse personagens serviçais, com a fundação da companhia Les Griots. Ao se tratar do trabalho de Sarah Maldoror, torna-se incontornável abordar o que não foi possível realizar. Os enfrentamentos todos, de gênero e de raça, além das dinâmicas Primeiro-Terceiro Mundo – hoje Norte-Sul Global –, das complexidades dos Estadosnações que emergiram da descolonização africana a partir de meados da década de 1950, se expressam ainda em projetos e roteiros nunca filmados e por isso também integram as coreografias do impossível. Dos achados entre seus documentos pessoais se reforça, sobretudo, seu projeto poético e singular em favor do coletivo. heitor augusto

Sarah Maldoror, 1974 Impressão sobre papel de gelatina e prata


sauna lésbica por malu avelar com ana paula mathias, anna turra, bárbara esmenia e marta supernova

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Quando questionada sobre sua obra Sauna lésbica, Malu Avelar responde, cruzando memórias pessoais e coletivas, que não há como pensá-la sem a compreensão de seu corpo e do lugar de onde ela veio. Retomando questões que perpassam seus marcadores de identidade, Malu ressalta as formas como reage a um território que estruturalmente violenta, muitas vezes de modo silencioso, tudo aquilo que


dele se diferencia. “Estruturada em um modelo binário de gênero, essa é uma cidade que leva as pessoas de outras identidades a viver em permanente estado de alerta e de vulnerabilidade”.1 E esse silencioso habitar a morte iminente somado ao questionamento sobre as saunas gays − “imagine se existisse uma sauna lésbica?”2 −, o encontro que teve com artistas sapatões durante a residência artística PlusAfroT/

Alemanha3 e o desejo de assentar seu corpo levaram a artista à proposição desse trabalho. A obra, que teve sua primeira edição em 2019 no Festival Internacional Valongo, em Santos (SP), é relacional, instalativa e traz em sua fachada um letreiro em neon: Sauna lésbica. Cabe lembrar que a lesbianidade foi construída com base em políticas de esquecimentos e silenciamentos, sendo

nas últimas décadas reivindicada por um sentido coletivo e politizado. Com base em negociações e ações provocativas de artistes convidades, Malu Avelar com Ana Paula Mathias, Anna Turra, Bárbara Esmenia e Marta Supernova propõem um projeto coletivo e transformam a obra em um espaço a ser coreografado por aqueles que o ocupam. Um espaço que se organiza em torno do desejo de encontros que atravessam os limites visíveis e invisíveis que impedem as existências dissidentes e conformam os seus estereótipos. Através de um exercício de abstração e imaginação radical a instalação tensiona as contradições das políticas identitárias ao mesmo tempo que celebra a presença de mulheres pretas lésbicas e sapatonas: um espaço de escutas, fabulações, de deslocamentos de subjetividades e de performatividade dos corpos em contato com a Sauna. barbara copque

_ 1/ Malu Avelar em conversa gravada com a autora. 2/ Ibid. 3/ A residência PlusAfroT aconteceu em 2019 na Villa Waldberta, em Munique, Alemanha. Disponível em: amlatina.contemporaryand.com/ pt/editorial/plusafrot/. Acesso em jun. 2023.

malu avelar Sauna lésbica, 2019 Vista do Festival Valongo, Santos (2019)


senga nengudi

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É a partir de duas obras concebidas em um período de quase trinta anos, o tríptico Masked Taping [Fita adesiva/mascarada] (1978-1979) e a videoinstalação Warp Trance [Trama em transe] (2007), que Senga Nengudi responde à provocação curatorial da 35a Bienal − coreografias do impossível. De inegável relevância histórica, suas obras promovem a re/de/composição radical das coreografias com as quais eram

elaboradas as implicações entre artes visuais e política. No contexto de suas primeiras produções, o mergulho da artista na abstração transbordou a ecologia simbólica que sitiava o que era reconhecido como arte afro-americana, e o gesto da artista demandou que os ambientes das artes fossem afetados pelo que se apresentava fora dos limites estabelecidos pelas categorias da representação.

Nengudi aposta em práticas coletivas, estratégias de engajamento, intervenções estéticas territorialmente situadas e no que define como reflexões abstraídas de corpos usados.1 Na pesquisa de materiais efêmeros e profundamente assentados em usos cotidianos, como meias-calças de segunda mão da famosa instalação R.S.V.P. (1997/2003) ou a fita adesiva branca com a qual a artista mascara seu corpo em Masked Taping, Nengudi trabalha os múltiplos usos da matéria transformada. Na performance, o corpo em movimento íntimo com a matéria ordinária atualiza a dimensão do rito, e percebe-se o tríptico Masked Taping como a presentificação de um rastro de memória ancestral, a artista dançando para incorporar uma herança transcultural. Em Warp Trance, a profunda implicação do material utilizado com o campo social persiste; desta vez, a máquina é quem dança e opera a modificação da matéria. Projetada em cartões Jacquard, invenção que revolucionou a padronagem de tecidos, a obra abre uma fenda de imagens em composições abstratas inicialmente ruidosas, que ganham ritmo, embalando sonoramente a sobreposição de texturas e, por fim, de cores. Experimentamos a duração da confecção da linha em tecido, em dimensões poéticas, como uma espécie de reflexão sensual sobre o tempo. cíntia guedes

_ 1/ Esta definição encontra-se em “Declaração sobre trabalhos com malha de náilon”, de 1997, publicada no catálogo Senga Nengudi − Topologias. Munique; São Paulo: Lenbachhaus; masp, 2020, p. 117.

Masked Taping, 1978-1979 Fita adesiva/mascarada. Folha de contato, impressão em gelatina e prata


sidney amaral

Na parte final de sua vida, Sidney Amaral (1973-2017) trabalhou como professor de arte na rede pública de ensino do município de Mairiporã, em São Paulo. Essa experiência, aliada à sua sensibilidade e a seu projeto político-ideológico, acabou por galvanizar uma obra que ressaltava do cotidiano proletário uma complexidade que frequentemente lhe é sonegada. Daí que elementos da literatura

e da arte clássica são às vezes reinterpretados em suas narrativas plásticas e incorporados a elas, as quais não excluem, igualmente, aspectos psicológicos e dados biográficos do autor que, mesmo perturbadores, são por ele assim enfrentados. O amálgama do artista, pesquisador e professor resultava na realização de uma constelação de proposições poéticas, que especularam intensamente com as linguagens do desenho, da pintura, da escultura, da gravura e da instalação. Em O estrangeiro (2011), o artista realiza, com tinta acrílica, mais um de seus característicos autorretratos. De fato, de maneira recorrente, Sidney Amaral apresenta o próprio corpo como território conflagrado pelas expressões mais introvertidas, íntimas e particulares – e ainda por aquelas de caráter extrovertido e social. Na obra em questão, Amaral assume o papel de Caronte, barqueiro que na mitologia grega transporta as almas do reino dos vivos para o dos mortos. Essa travessia também era a do artista, que enfrentava os obstáculos de um momento muito menos favorável do que hoje à circulação da produção simbólica afro-diaspórica. Estrangeiro em ambos os domínios, da vida e da morte, o artista e sua obra são os elementos que conectam esferas díspares. Essa penosa jornada não era, claro, apenas a dele, e o artista compreendia isso. É muito significativo que, na sua 35ª edição, a Bienal de São Paulo inverta essa equação e a obra de Amaral, precocemente morto, seja agora consagrada no Olimpo que ele antes retratou como obstáculo. claudinei roberto da silva

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O estrangeiro, 2011 Acrílica sobre tela, 210 × 138 cm


simone leigh e madeleine hunt-ehrlich

Simone Leigh e Madeleine Hunt‑Ehrlich trabalham juntas há muitos anos como parte de uma associação informal de mulheres artistas, acadêmicas e outras produtoras culturais, em sua maioria negras, várias das quais aparecem em Conspiracy [Conspiração] (2022). Antes desse projeto, ambas participaram do arquivo da United Order of Tents – o mais antigo grupo de mulheres afro-america-

nas nos Estados Unidos, criado por ex-escravizadas em 1867. Esse envolvimento levou ao “documentário surrealista” de Hunt-Ehrlich, Spit on the Broom [Cuspir na vassoura] (2019), que buscava demarcar o significado do grupo, sem revelar os segredos que ajudaram aquelas mulheres a sobreviver por mais de um século. Essa preocupação – como falar sobre uma história que é secreta e cujo poder deriva desse

Conspiracy, 2022 Conspiração. Stills do vídeo; 24’

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segredo – é central para as práticas dessas duas artistas. Em Conspiracy, Leigh e Hunt‑Ehrlich sobrepõem fotos renderizadas das ferramentas e processos do ofício de Leigh, com vocalizações e narrações fantasmáticas extraídas dos livros Flash of the Spirit: arte e filosofia africana e afro-americana,1 de Robert Farris Thompson, e Tell My Horse, de Zora Neale-Hurston.2 A amplitude diaspórica dos inte-

resses das artistas fica clara em ambos os textos, que discutem as práticas tradicionais na África Central e no Caribe, respectivamente. A voz de Deborah Anzinger, também participante da 35a Bienal, e a canônica artista performática Lorraine O’Grady também aparecem no filme. Uma apreensão completa desse trabalho requer que você tenha ideia de quem é O’Grady,

do significado dela para a história da arte e o lugar que as mulheres negras ocupam (ou deixam de ocupar) nesse campo. Você também vai perder alguma coisa se não conhecer a exploração contínua de Ehrlich-Hunt sobre a interioridade e os arquivos das mulheres negras – como seu trabalho sobre Suzanne Roussi-Césaire, escritora martinicana e ativista feminista anticolonial. Há também algo na inclusão de Deborah Anzinger, sua leitura de Hurston, ela mesma um pivô diaspórico. Se por acaso você reconhecer a autora Sharifa Rhodes-Pitts, outra co-conspiradora de longa data, e conhecer o suficiente de seu trabalho para entender por que ela foi incluída, terá entendido um pouco mais. O filme nos provoca, pois nem os nomes de Anzinger nem de Rhodes-Pitts aparecem nos créditos. Afinal, é uma conspiração. Entendedores entenderão. Você pode tentar se inscrever nesses acontecimentos como eu fiz, por exemplo, procurando o álbum de 1974 de Jeanne Lee que deu nome ao filme. E olha, estou feliz por ter feito isso. O que você está esperando? Não vou te dizer. Já listei muitos nomes. O que posso te contar é que existe uma razão para este ser um filme sobre o trabalho. Até então, sente-se e fique assistindo aquela coisa que foi investida de tanto valor, aqueles objetos mais exaltados que os pobres mortais que os produziram, queimar. nicole smythe-johnson traduzido do inglês por naia veneranda

_ 1/ Robert Farris Thompson, Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro-americana (1984). São Paulo: Museu Afro Brasil, 2011. 2/ Zora Neale-Hurston, Tell My Horse (1938). Nova York: Harper Collins, 2008.


sonia gomes

“Um fio invisível e tônico Pacientemente cose a rede De nossa milenar resistência.” – conceição evaristo1

Véu de Maia, 2022 Tecidos diversos, 203 × 265 cm

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Os materiais pedem à artista que lhes dê outra vida. Ela, então, costura, torce, encapa, amarra e transforma retalhos, tecidos, fios e arames em objetos escultóricos. Ato contínuo, a artista convida a espectadora a se mover, se deslocar, ver com o corpo suas criações. Impossível apreciar o trabalho de Sonia Gomes apenas com os olhos. Suas criações convocam a nos deslocarmos de uma posição


passiva para a de uma espectadora engajada, que se movimenta, se abaixa, inclina o corpo, levanta a cabeça, ginga, em uma dança com o objeto, a fim de percebê-lo de outro ângulo, de descobrir e atentar ao detalhe que se esconde na próxima torção, no outro lado, ali embaixo ou lá em cima. Suas obras não são figurativas e, ainda assim, temas como raça, gênero e temporalidades surgem

nas várias leituras críticas sobre seu trabalho artístico. Quais são as histórias, as memórias, os afetos guardados nos tecidos e nos panos utilizados por Sonia Gomes? Quais são as origens dos materiais e quais caminhos eles ainda percorrerão depois desta exposição? O tempo em que esses objetos ainda tinham uma função utilitária – o vestido de casamento, a blusa de festa, o uniforme da escola, a toalha de mesa,

a capa de proteção, a calça de linho etc. – para um novo tempo em que, amarrados, torcidos, esgarçados e costurados, se transformam em objetos escultóricos. Na 35ª Bienal de São Paulo serão apresentadas dezenas de obras da artista mineira, formando um corpo robusto e representativo de sua poética e trajetória. Obras de parede, pendentes, vergalhões e algumas peças da série Torção – marca registrada de Gomes – irão compor o espaço. Desse modo, o tempo condensado, tônico e de memórias enredadas da milenar resistência de mulheres negras ganha forma e se manifesta nas coreografias do impossível. juliana de arruda sampaio

_ 1/ Conceição Evaristo, “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, in Cadernos negros, vol. 19, org. Márcio Barbosa, Sônia Fátima Conceição & Esmeralda Ribeiro. São Paulo: Quilombhoje; Ed. Anita, 1996.

Sem título, da série Torção, 2004-2021 Costuras, amarrações, diversos tecidos e rendas, 180 × 100 × 80 cm


stanley brouwn

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stella do patrocínio

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Como pouco se sabe sobre a história de Stella do Patrocínio (1941-1992), as palavras que movimentamos para falar dela, sempre fugitivas, precisam fabular a partir das coreografias do impossível. É assim também que o falatório, sua prática corpo-vocálica da palavra, requer que nos conectemos com ele – cerrando os olhos para ouvir o colapso das fronteiras. A cada minuto que se passa em 1 hora, 39 minutos e 15 segundos

dessas gravações, Patrocínio opera uma nova dobra no tempo, fazendo curvar aquelas linhas horizontalizadas – das que foram desenhadas pelo manicômio às da literatura –, que lhe roubaram o corpo, que quiseram lhe roubar a palavra. Essa debandada, até pouco tempo atrás ecoada por taras degenerativas, eugenias, o fetiche da loucura, a poesia!, se vê estraçalhada por um falatório que refunda a própria


arena de guerrilha. E afirma: apesar de Eco, estes são os meus termos. Eco, a ninfa forçada a repetir as palavras de outros. Ou ainda Eco – o consenso branco.1 Exu, movimento, força vital – faz circular o tempo e a mensagem.

No conclave entre Eco e Exu, o placar não está zerado, tampouco a dívida;

mas o tempo espirala: atravessada por forças de asfixia – a polícia, a literatura, o serviço doméstico, o eletrochoque –, Stella do Patrocínio abre seu falatório exuriano à criação de rotas de fuga e ao revide, à fabulação estética no espaço da clausura. E é nessa opacidade que baila o falatório – nem somente poesia, nem testemunho, tampouco quaisquer outras classificações que, sozinhas, não se bastam:

Se eu rasgar aquela pesada no meio de meio a meio, der der der lambada no chão, na parede, jogar fora, no meio do mato, ou do outro lado de lá do muro, é um malezinho prazeres [...] Matar a família [do cientista] toda. Que faça um carro, bote tudo morto e vá pra longe.2

Stella afirma ser do tempo do cativeiro, porque compreende a maquinaria-fantasiosa que há por detrás dos encarceramentos de corpos pretos desde os tempos de sua bisavó. Diz em voz alta: Clarice, Celeste, Meritempe, Luzadia, Adelaide – nomes sobre os quais talvez nunca saibamos muito além do carinho com o qual ela os profere. Numa linguagem que vadia em pretuguês3 ritmado, sincopando a repetição das diferenças, Stella desaloja noções prévias do que seja o tempo, espaço, casa, família, ciência, o corpo e seu estudo – e segue para o mais longe possível. Sua vocálica contém vértebras, e constrói mundos de linguagem para lançar um falatório-exu que rasga o tempo e que mata, hoje, os ecos de ontem. sara ramos

_ 1/ Referência a Grada Kilomba, Ilusões vol. I – Narciso e Eco. In Grada Kilomba: Desobediências poéticas. Catálogo de exposição. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2019. 2/ cd2_01. Terceira parte dos depoimentos/entrevistas/falas. 6’53’’. In: Sara Martins Ramos, Stella do Patrocínio: entre a letra e a negra garganta de carne. 2022. Dissertação de Mestrado. Disponível em: dspace.unila.edu.br/handle/123456789/6465. Acesso em: 2 jun. 2023. 3/ Referência a Lélia González, “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, pp. 223-44, 1984.

Stella do Patrocínio em liberdade antes da internação forçada


tadáskía

Ave preta mística, 2022 Grafite, lápis de cor, pastel oleoso e spray sobre papel, 65 × 50 cm

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Logo no início de Ave preta mística (2022), o primeiro livro de páginas soltas de Tadáskía, a artista anuncia que as palavras que vêm na sequência são dedicadas a suas aliadas. Orientando-nos durante a revoada, ela se apresenta como uma irmã e corporifica a ave que se dirige aos membros de sua confraria. Ela está entre nós, porém a vibração altiva de suas palavras sobressai a seu tom amável e a posiciona como a

matriarca do bando, “the mother of the house” [mãe da casa]. Nós nos unimos a ela em seu voo onírico e, como se fosse uma prece, a cada mudança de página, a cada batida de asa, percebemos em seus versos que uma vida sem amarras é um exercício constante e coletivo. A obra se divide em escritos bilíngues, com referências à pensadora feminista negra Audre Lorde, e desenhos de diferentes cores e espessuras, que parecem “plumagens arrepiadas”. As linhas tortas e curvas traçadas naquelas folhas, seja em seus versos ou em seus desenhos, são o gesto matriz de Ave preta mística. A alternância entre os escritos e as páginas com imagens coloridas dá a forma e o ritmo da narrativa. Como a formação de uma revoada, cada parte do livro é uma expressão singular: são elementos que se relacionam e se reconfiguram a cada nova passagem. Para a 35ª Bienal de São Paulo, além de apresentar as páginas do livro espacializadas em uma sala, Tadáskía exibirá um grupo de trabalhos que deriva de materiais usuais em sua produção: são três esculturas feitas de bambu, palha e taboa, semelhantes na forma, mas com elementos diferentes em suas bases – na primeira delas, um prato com ovos costurados; na segunda, uma seleção de frutas que deve ser consumida pelo público e pela equipe da instituição ou ser renovada antes de se deteriorar; na terceira, uma quantidade de pó facial de diferentes cores. Na parede interna da sala, Tadáskía exibirá um desenho de grande dimensão feito de pastel seco e carvão. thiago de paula souza


taller 4 rojo

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No início da década de 1970, o Taller 4 Rojo articulou uma visualidade crítica e realizou ações diretas acompanhando movimentos sociais durante os governos da Frente Nacional. Essa aliança entre os partidos Liberal e Conservador resultou em um dos períodos mais autoritários da Colômbia, com violação aberta de direitos humanos, assim como consolidou o conflito armado no país.

Nesse contexto, o Taller 4 Rojo fundou uma escola popular e vinculou-se a comunidades camponesas e indígenas, sindicatos e setores de marginalização urbana, realizando trabalho de campo e documentando suas experiências. Seus registros, juntamente com imagens coletadas da imprensa, eram a substância testemunhal que o grupo transfigurava por meio de operações emprestadas da arte gráfica e do


cinema latino-americano da época: a montagem, a formação de séries e sequências e o trabalho com tramas e alto contraste. A gramática visual do Taller 4 Rojo não foi o produto de uma distância analítica, mas do caminhar lado a lado com as comunidades que logo foram trazidas para suas imagens. Cartazes como A la huelga 100 a la huelga 1000 [À greve 100 à greve 1000] (1978) foram realizados

ao longo dos anos de colaboração com o sindicalismo independente. A pasta Testimonios [Testemunhos] (1974) foi uma das primeiras a pôr em evidência as práticas de tortura conduzidas pelas forças militares em meio à perseguição de movimentos políticos dissidentes em todo o país. As gravuras mostram corpos feridos e amarrados, com os olhos vendados ou gritando em meio a paisagens abertas e despovoadas. Na trilogia

América II, a montagem e a serigrafia fotográfica partem do corpo torturado e o reinserem em uma trama mais complexa, que parece assinalar a natureza teológico-política dos pactos de poder como continuidade histórica. A emblemática trilogia fotosserigráfica Agresión del imperialismo a los pueblos, A la agresión del imperialismo: guerra popular e Vietnam nos señala el caminho [Agressão do imperialismo às aldeias, À agressão do imperialismo: guerra popular e Vietnã nos mostra o caminho] foi feita em 1971-1972 em solidariedade à resistência popular no Vietnã, mas também a outros processos de luta anti-imperialista na América Latina e na África. O que nos acontece hoje, quarenta anos depois, quando vemos a sequência da nota de dólar se desintegrando e o avião de guerra despedaçado em um campo? Por um momento, essas imagens parecem antecipar o ponto em que a guerra e o capital se molecularizam, abrindo caminho para a financeirização, para a sofisticação tecnologizada do massacre. Mas esse ponto de virada também é um ponto de interrupção dos impulsos totalizantes da história do capital. Entre as três imagens, é possível reter o movimento do corpo de uma camponesa, que vai adquirindo diferentes tonalidades, ganhando espaço e proximidade, sinalizando esse outro tempo dos corpos que não tiram os pés do chão, e se regeneram entre as ruínas que a mercadoria e o necropoder deixam em seu rastro. fernanda carvajal traduzido do espanhol por ana laura borro

Agresión del imperialismo a los pueblos, A la agresión del imperialismo: guerra popular, Vietnam nos señala el caminho, 1971-1972 Agressão do imperialismo às aldeias, À agressão do imperialismo: guerra popular, Vietnã nos mostra o caminho. Serigrafia sobre papel, 100 × 216,6 cm


taller de gráfica popular charles white elizabeth catlett john woodrow wilson leopoldo méndez margaret taylor goss burroughs

“Sou negra, mulher, escultora e gravurista. Também sou casada, mãe de três filhos e avó de cinco garotinhas (agora sete meninas e um menino) [...] todos esses estados-de-ser influenciaram meu trabalho e os tornaram isso que você vê hoje.” – elizabeth catlett

Os processos colaborativos têm uma tradição fecunda no México, e uma das iniciativas amplamente difundidas é a do Taller de Gráfica Popular [Oficina de gráfica popular], mais conhecido como TGP, que data de 1937. Vários dos fundadores dessa iniciativa vieram da Liga de Escritores e Artistas Revolucionários (LEAR). Trazendo a reverberação dos preceitos promovidos pelo muralismo, eles promoveram uma produção visual comprometida com as lutas e a justiça social, denunciando situações vividas por camponeses e trabalhadores e, principalmente, resistindo e questionando mensagens, efeitos ou práticas ligados aos fascismos dominantes. Os trabalhos gráficos do TGP – que traziam o espírito de agitação e de propaganda – circulavam também por meio de cartazes, folhetos e calendários, apelando para a militância visual e a crítica aos modelos de produção centrados no artista individual. O TGP promovia, em vez disso, recursos organizacionais de natu-

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reza coletiva, por meio de reuniões e assembleias, como se pode observar pelas fotografias. Nelas, discutia-se o que representar, como formar o grupo de voluntários que produziria a imagem, cuidando para que o agente responsável fosse reconhecido e, ao mesmo tempo, o exercício coletivo por meio do carimbo/logotipo característico do TGP. Em março de 1938, o TGP aprovou um documento no qual seus interesses e objetivos foram detalhados. Esse documento era uma espécie de manifesto ou declaração no qual concordaram em trabalhar com litografia, gravura em metal, madeira e linóleo. Esta oficina é constituída com o objetivo de estimular a produção gráfica em benefício dos interesses do povo do México e, para isso, propõe-se a reunir o maior número de artistas em torno de um trabalho constante, principalmente por meio do método de produção coletiva.1

Embora esse documento não tenha sido publicado, anos depois, em março de 1945, eles publicaram sua Declaração de princípios, na qual se autorreafirmaram como um centro de trabalho coletivo cuja função consistia na realização de uma arte a serviço do povo, de modo que sua produção deveria refletir as realidades sociais de seu tempo. Como outras estratégias coletivas empreendidas ao longo do tempo, o TGP teve vários momentos de coesão e tensão interna, seus participantes variaram em número e origem geográfica. Entre eles estavam artistas como Leopoldo Méndez, Pablo O’Higgins, Luis Arenal e Adolfo Mexiac. Também contou com importante participação de mulheres artistas, como Mariana Yampolski, Rini Templeton, Elizabeth Catlett e Margaret Taylor Goss Burroughs, cujos trabalhos,

no contexto dos novos feminismos e da depatriarcalização da história, têm sido reavaliados e ressituados. Dado o grande desempenho artístico e a profusa atividade política do TGP, vários artistas estrangeiros (principalmente estadunidenses) se ligaram temporariamente à oficina para contribuir com seus trabalhos na produção de gravuras sociopolíticas. Esses artistas eram chamados “artistas convidados” e alguns deles eram John Woodrow Wilson, Hannes Meyer, Lena Bergner, Charles White, Eleanor Coen, Margaret Taylor Goss Burroughs, Rini Templeton, Elizabeth Catlett, entre outros. Esses vínculos consolidaram o caráter internacional do TGP e, de certa forma, fizeram surgir outros projetos relacionados, como os Workshops of Graphic Art [Oficinas de Arte Gráfica], em Los Angeles, San Francisco e Nova York, nos Estados Unidos.2

_ 1/ Humberto Musacchio, El Taller de Gráfica Popular. México: FCE, 2007, p. 25. 2/ Ver Alberto Hijar Serrano, Catálogo TGP 80 años. Taller de Gráfica Popular. Cidade do México: Museo Nacional de la Revolución, 2017, p. 39; Humberto Musacchio, op. cit., pp. 30-60.


A produção de Elizabeth Catlett (1915-2012) se distingue pela representação visual determinada e politizada de mulheres trabalhadoras e de outros agentes que desafiaram o racismo e a violência imposta às comunidades violentadas, principalmente as comunidades afro-americanas e indígenas. Em 1946, Catlett ganhou uma bolsa da Julius Rosenwald Fund e deu início a um trabalho com uma série inspirada

em mulheres trabalhadoras da Carver School, com a qual ela pôde viajar para o México acompanhada por Charles White. Catlett declarou que, a partir do TGP, ela desenvolveu “uma nova compreensão de como queria trabalhar como artista e pelo que exatamente queria lutar”,3 ao realizar um trabalho para o povo mexicano, em vez de enquadrá-lo em circuitos de galerias ou museus. Da mesma forma, a presença de Catlett acrescentou novos eixos de trabalho ao TGP, como a conscientização sobre raça e gênero. Uma de suas séries emblemáticas é The Black Woman [A mulher negra] (1946), composta de quinze gravuras feitas em linóleo, nas quais ela instaura uma espécie de manifestação da opressão, resistência e sobrevivência das mulheres negras norte-americanas. Após ter permanecido por um período no TGP, a produção de Catlett continuou a se concentrar em temas afro-americanos, produzindo obras que se tornaram icônicas no movimento pelos direitos civis dos cidadãxs afro-americanxs, como Negro es bello [Negro é lindo] (1969) e Malcolm X nos habla [Malcolm X fala conosco] (1969).

_ 3/ Dina Comisarenco Mirkin, “Negro woman y la postmemoria de la esclavitud en Elizabeth Catlett”. La Ventana − Revista de estudios de género, v. 6, n. 54, pp. 110-42, 2021. Disponível em: www.scielo.org.mx/scielo.php?pid=S1405-94362021000200110&script=sci_arttext_plus&tlng=es. Acesso em: 16 jul. 2023.

elizabeth catlett Negro es bello II, 1969 Negro é lindo. Litografia, 78 × 57 cm


Outro artista convidado foi Charles White (1918-1979), como Catlett, de origem afro-americana, cuja produção se concentrou principalmente no combate às distorções e aos estereótipos sobre os afro-americanos, que eram disseminados na cultura visual popular. Com o passar do tempo, seus interesses ligaram-se a realidades políticas, sindicais e de gênero. White viajou para o México em 1946, acompanhado por Catlett,

e, ao entrar em contato com o TGP, reafirmou seu interesse pela gravura, dado o alcance que ela poderia ter em virtude da reprodutibilidade, da diáspora e da circulação que as tiragens permitiam e de seu baixo custo de produção. White retornou a Nova York em 1949 e colaborou com o New York Graphic Workshop, que, assim como o TGP mexicano, teria um importante efeito na disseminação

da arte gráfica social, especialmente na defesa dos direitos dos afro-americanos. Alguns de seus retratos se sobressaem, como o de Bessie Smith, pioneira desse estilo e popularmente conhecida como a “imperatriz do blues”, que foi enterrada em um túmulo sem lápide até que Janis Joplin escreveu o seguinte epitáfio: “A maior cantora de blues do mundo jamais deixará de cantar. Bessie Smith, 1895-1937”; ou o retrato de Frederick Douglass, que esteve ligado a várias iniciativas antiescravagistas e promoveu o abolicionismo. Douglas nasceu no cativeiro e, portanto, desenvolveu perspectivas críticas sobre liberdade e direitos humanos, principalmente em relação às comunidades afro-americanas que, como ele, foram submetidas ao regime da escravidão.

charles white Exodus, 1961 Êxodo. Linoleogravura sobre papel, 80 × 125 cm

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No caso de John Woodrow Wilson (1922-2015), o artista afro-americano foi ao México com o interesse de conhecer um dos principais representantes do muralismo mexicano, José Clemente Orozco, cujas exposições ele havia visitado e se identificado com a maneira de representar o contexto das classes oprimidas no México. Embora Orozco já tivesse falecido, Wilson entrou para o TGP e encontrou um

john woodrow wilson The Trial, 1951 O julgamento. Litografia em papel velino creme, 40,8 × 32,4 cm

contexto coletivo de produção de imagens amplamente distribuídas por meio da gravura. No TGP, foi contemporâneo de Catlett e White, com quem compartilhava o interesse por trabalhar com e para a comunidade afro-americana, promovendo sua visibilidade. Um exemplo disso é a obra The Trial [O julgamento] (1951), litografia na qual um jovem de origem afro-americana está em pé (proporcionalmente diminuído) diante de três juízes brancos que o observam de modo ameaçador, tornando claro o tratamento desigual e vertical ao qual foram submetidos os afro-americanos. Em sua produção no México, Woodrow pintou um mural que posteriormente foi destruído, chamado The Incident [O incidente] (1952), que narra de forma pictórica a violência e o terror do linchamento de um afro-americano pela Ku Klux Klan. Esse título funciona como um terrível sarcasmo diante da violência xenofóbica e supremacista normalizada.


Em 1952, a artista e poeta estadunidense Margaret Taylor Goss Burroughs (1915-2010) também se ligou ao TGP. Seus interesses também estavam concentrados na expressão de sua identidade racial e cultural, e em ensinar arte. Ela esteve envolvida na formação de importantes projetos políticos nas artes visuais, foi cofundadora do Sur Side Community Art Center (1939), que incluía uma galeria e

um espaço de ateliê para artistas afro-americanos, e do DuSable Museum of African American History (1961), ambos em Chicago, Estados Unidos. Durante sua estadia no México, pintou um retrato da intérprete Bessie Smith, contribuindo para a representação dos afro-americanos proeminentes em um contexto temporal no qual o racismo prevalecia de forma ampla e sem críticas.

margaret taylor goss burroughs Bessie Smith, Queen of the Blues, 1953 Bessie Smith, rainha do blues. Litografia, 46,5 × 40 cm

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Em relação à participação do artista mexicano Leopoldo Méndez (1902-1969), considerado um dos mais importantes gravuristas mexicanos, uma perspectiva social e coletiva se refletia nas produções que realizou para várias organizações, como a Liga de Escritores e Artistas Revolucionários, o Partido Comunista Mexicano, o Partido Socialista Popular do México e a Confederação dos

Trabalhadores Latino-Americanos. A produção artística de Méndez tomou forma quando ele se ligou ao movimento estridentismo, e seu trabalho promoveu ideais de esquerda e pós-revolucionários que lhe possibilitaram gerar um amplo vocabulário visual ligado à história sociopolítica do México, além de criticar e denunciar a violência promovida por projetos fascistas europeus.

Essas obras – pioneiras na conformação de outras subjetividades – longe de operarem em um nível exclusivamente retiniano, contribuíram para a inserção de outros sujeitos de representação continuamente insultados na tradição da representação artística ou, alternativamente, realocando-os e enquadrando-os de forma digna e em outra ordem estético-político-simbólica, que hoje pode ser lida de uma perspectiva proto-decolonial. A validade da TGP – em um presente em que se disputam direitos, novos surtos de violência existem e no qual a produção artística pode atravessar a encruzilhada arte/ política por meio das artes gráficas – demanda não apenas reflexão, mas também que sustentemos de modo permanente pontos de vista, representações e enquadramentos que incitam uma leitura crítica a partir do e no presente. getsemaní guevara e sol henaro traduzido do espanhol por ana laura borro

leopoldo méndez Fusilado (para la película Un día de vida), 1950 Fuzilado (para o filme Um dia de vida). Linoleogravura sobre papel, 47,7 × 58,8 cm


taller nn

Impressa em Lima, em 1988, Carpeta negra [Pasta negra], do coletivo Taller NN, foi, na época de sua publicação, um dispositivo visual e textual insuportável tanto para a cultura oficial como para a cultura peruana de esquerda. Suas folhas ousavam tocar o intocável, manchando com uma maquiagem cromática monstruosamente sedutora os rostos míticos da revolução de um amplo espectro da esquerda, de Mao Tsé-tung a José Carlos Mariátegui, de José María Arguedas a Edith Lagos ou Che Guevara. Nelas estava impresso um código de barras, com o enigmático número 424242 (em referência ao número de telefone para o qual a população era incentivada a ligar a fim de fazer denúncias anônimas de pessoas suspeitas de terrorismo). A imagem do estudante Javier Arrasco Catpo, morto pela guarda civil durante um protesto em 1988, é o ponto de virada para outro conjunto de imagens, que mostram diferentes massacres – Guragay, El Sexto, Pucayacu, Uchuraccay e El Frontón –, e a palavra “Peru” é sobreposta a elas como uma marca-país. Imagens de valas comuns ou de corpos de jornalistas em sacos de lixo, extraídas do circuito anestesiado dos meios de comunicação de massa, também são coloridas como uma forma de lhes devolver a capacidade de gritar. Ambas as séries, os rostos individualizados da revolução

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e os corpos anônimos do massacre, são marcadas pelo capital, que inscreve seus signos nelas – o código de barras, o logotipo –, talvez como uma senha para o antigo nó entre capital e colonialidade, que precede e excede a cronologia do trabalho. Carpeta negra constrói um dispositivo móvel de memória parcial e precária dos anos que fizeram do Peru um depósito de horror a céu aberto, atuando como chave para a nova fase de acumulação de capital em escala global. Mas, a partir da audácia de sua ironia antidogmática, sem um Estado ou um partido como interlocutor, o Taller NN gerou um dispositivo capaz de construir uma inter-relação com o tempo, em todos os tempos. O que acontece quando essas imagens olham para trás e entram em contato com o período anterior da Reforma Agrária (1969-1975)? Ou que imagem Carpeta negra devolve ao Peru hoje, nas revoltas que eclodiram de forma descentralizada em meio à população principalmente indígena e camponesa em dezembro de 2022, e que mais uma vez mostram uma ferida colonial, impossível de suturar? fernanda carvajal traduzido do espanhol por ana laura borro


NN Perú (Carpeta negra), 1988 NN Peru (Pasta negra). Serigrafia e fotocópia sobre papel, 43 × 30 cm


tejal shah

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Between the Waves [Entre as ondas] (2012), instalação de Tejal Shah, evoca paisagens que parecem ser simultaneamente extraterrestres e demasiado terrenas. É possível reconhecer o deserto, a varanda, o mangue, a cidade, o aterro sanitário, o mar ou a piscina como locações corriqueiras, lugares comuns do planeta. Ao mesmo tempo, a indumentária das performers e o tipo de relação que elas estabelecem

entre si e com o entorno produzem excitante estranheza. A sensualidade rege o contato entre os corpos – sejam eles vegetais, animais ou minerais, materiais brutos ou manufaturados –, assim como a forma como são retratados: detalhadamente. Cores, texturas e sons desse universo igualmente cru e imaginado não são diferenciados ou organizados por hierarquias taxonômicas. Nessa horizontalização sensorial,

trai-se um elemento central dos discursos modernos e universalizantes: o sujeito que produz a si mesmo como humano pela separação, classificação e consequente posse das coisas do mundo. Nessa obra, tudo é tocado e retratado como superfície sensível, excitável, inseparável de todo o restante. Os ornamentos de cabeça destacam-se pelo contraste da cor branca e pela verticalidade por meio da qual cortam a imagem, aspecto fálico sem necessária correspondência genital. Apesar de assumirem uma função penetrativa nas cenas mais explícitas, também passam por chifre, nadadeira, funil ou cone, conferindo uma espécie de animalidade e objetualidade aos corpos em movimento. Além dessas próteses contrassexuais,1 há outro elemento cuja carga simbólica e performativa vale a pena notar: o arranjo de flores artificiais, esponjas de banho e outros objetos coloridos cuidadosamente depositado no fundo de uma piscina, na qual as performers nadam ao redor dele, como peixes em volta de corais marinhos. Não há contradição entre natureza e artifício, há apenas brilho e beleza, e, entre as ondas, os corpos orbitam seu entorno. miro spinelli

_ 1/ Sobre as noções de contrassexualidade e prótese, ver Paul B. Preciado, Manifesto contrassexual. São Paulo: n-1, 2014. Nesse livro, o autor lembra que o falo não é uma substituição do pênis, mas o contrário, e que o pênis, por sua vez, não passa de um dildo de carne.

Between the Waves, 2012 Entre as ondas. Stills do vídeo. Videoinstalação em 5 canais. Cor & preto e branco, som multicanal; 85’25’’


the living and the dead ensemble

A espiral é a imagem que abre Ouvertures (2019), primeiro filme do coletivo transnacional The Living and The Dead Ensemble [algo como Conjunto dos Vivos e dos Mortos]. A imagem é a síntese do que move o processo de criação do grupo: uma linha sinuosa em contínuo movimento de aproximação/afastamento, de dentro/ para fora, sem começo ou fim. Nos filmes e nas instalações desse

coletivo, criar é uma questão de percorrer, deslocar − Haiti-França, floresta-praia, passado-futuro, revolução-crise. Poesia, performance, cinema, música e teatro mesclam-se com intensidades variadas e indistintas − como em The Wake [A vigília] (2019 - em curso), o segundo trabalho do grupo, que é a um só tempo instalação multicanal, peça, filme e manifesto preto radical.

The Wake, 2021 A vigília. Stills do vídeo. Videoinstalação em 3 canais, full HD, cor, som; 35’

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A espiral dá forma ao processo criativo que se constrói em ato, em encarnação e em evocação dos fantasmas − tornando visível e vivo aqueles e aquilo que jamais deixaram de estar ali. Assim, ao ritmo do créole, poetas e revolucionários de diferentes épocas encontram-se e conversam por meio de processos de fabulação e ativação. A fala dilui as fronteiras entre os mortos e os vivos − como o nome

do grupo anuncia. Frankétienne, Toussaint Louverture, Édouard Glissant, Patrick Chamoiseau e tantos outros artistas/intelectuais/ revolucionários confabulam na proposição de uma imaginação caribenha utópica, urgente e atemporal. Nessa sinuosidade, as vozes − dos fantasmas, dos revolucionários e dos integrantes do coletivo − sobrepõem-se em imagens multiplicadas em telas simultâneas ou

em sons que são ecoados pelos integrantes do grupo que estão sobre um palco. Nesse amálgama proposto pelas criações, raps, discursos, narrativas de revoltas pretas, forma-se um coro cacofônico no qual a materialidade caótica de sons e de histórias é intrínseca aos sentidos das obras. E o fogo (elemento recorrente dessas produções) arde nas noites em que se sonham e se lembram das revoluções. As chamas destroem e transformam − também em movimento contínuo. Seguindo esse deslocamento por entre (mundos, tempos, países), a música e a dança performada pelos integrantes do coletivo convocam o corpo também a queimar, e convidam a quem assiste a vislumbrar na carne das obras utopias (im)possíveis. kênia freitas


torkwase dyson

Ao ser perguntado, na edição de março de 1982 da revista de arquitetura Skyline, se “há algum projeto arquitetônico, passado ou presente, que lhe pareça representar forças de libertação ou resistência”, o teórico francês Michel Foucault respondeu: “não importa quão terrível determinado sistema seja, sempre restam possibilidades de resistência, desobediência e de constituição de grupos que se oponham a

tal sistema. [...] A liberdade é uma prática... a liberdade é o que se deve exercer”.1 No entanto, o exercício da liberdade compreendido em relação ao espaço, ao tempo e ao ser leva ao entendimento de que a libertação é uma prática espacial. Fundamental para essa compreensão é o questionamento acerca das condições locais e das relações entre poder e espaço, corpo e autonomia, subjetividade e percepção.

Liquid a Place, 2021 Líquido um lugar. Aço, latão pintado, espelho e grafite, 3 peças, 243,8 × 365,8 × 121,9 cm (cada)

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A construção da perspectiva europeia baseia-se em um sujeito sob o disfarce do “homem” ideal vitruviano, cujos olhos são a origem de uma linha ao longo do centro de visão, que designa todo o conhecimento a ser compreendido. Além disso, a pintura e o desenho em perspectiva posicionam esse homem ideal num mirante com um ângulo de visão de 60 graus para uma linha do horizonte que

existe no infinito. Compreender a prática espacial da libertação desafia a noção de universalismo e do sujeito ideal cujo olhar vigia, objetifica e busca subsumir o mundo à epistemologia e ao colonialismo europeus. Em seu trabalho que aborda a construção espacial arquitetônica do pensamento composicional Negro, a artista Torkwase Dyson levanta as questões: Qual foi a experiência ocu-

lar de pessoas Negras nos porões de tumbeiros? Nos espaços autoemancipatórios do sotão ou do caixote?2 Ou sob a arquitetura medieval de castelos e fortes escravagistas? Ou sob as condições do capitalismo racial, da escravidão, do imperialismo, da colonização e de todas as formas de terror, invasão e clausura? Na obra On Ocular Brutality [Sobre brutalidade ocular] (2023), em referência específica ao Castelo Garcia d’Ávila/Forte Garcia d’Ávila, em Mata de São João, Bahia, Dyson questiona: “Como olhar se tornou algo extraordinário?” Nesse castelo do século XVI, com vistas para o oceano Atlântico e para os engenhos coloniais de cana-de-açúcar onde povos indígenas eram escravizados, e que abrigava uma câmara dupla de tortura, onde pessoas que tentavam fugir da escravização eram presas e submetidas ao terror e à morte por um animal capturado e submetido a um longo período de inanição forçada, Dyson investiga o trabalho ocular de corpos ocultados, obscurecidos, encobertos ou irrastreáveis. As esculturas da artista constituem instrumentos para novas – e ainda desconhecidas – formas de ver e são ferramentas para refletir sobre o “estado de vida” das pessoas que morreram em cativeiro. mario gooden traduzido do inglês por bruna barros e jess oliveira

_ 1/ Tradução nossa. Texto completo com tradução de Pedro Levi Bismarck disponível em www. revistapunkto.com/2015/04/espaco-saber-e-poder-michel-foucault_88.html. Acesso em jul. 2023. [n.t.] 2/ Ver, por exemplo a autobiografia de Harriet Ann Jacobs e de outras pessoas escravizadas, como o caso de Henry Box Brown, que se libertou da escravização organizando o envio de si mesmo em uma caixa de madeira para a Filadélfia, no estado abolicionista da Pensilvânia. [n.t.]

Force Multiplier 1 (Bird and Lava), 2020 Multiplicador de forças 1 (Pássaro e lava). Grafite, acrílica e nanquim sobre papel, 27,9 × 35,6 cm

Force Multiplier 2 (Bird and Lava), 2020 Multiplicador de forças 2 (Pássaro e lava). Grafite, acrílica e nanquim sobre papel, 27,9 × 35,6 cm


trinh t. minh-ha

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Partir do pressuposto mais elementar do filme – o olhar – rumo ao desconhecido, até às últimas consequências, até chegar novamente ao olhar. Questionado, expandido, recortado, revirado, esse ato-motor a todo momento pulsa na obra de Trinh T. Minh-ha, obra que escorre – como a água de Surname Viet Given Name Nam [Sobrenome Viet primeiro nome Nam] (1989) – pelos caminhos do cinema, da antro-

pologia, da pós-colonialidade, da música e da teoria literária, áreas nas quais vem produzindo intensamente desde os anos 1980. O olhar em xeque: o fazer fílmico, a observação do outro, as regiões intersticiais que nos constituem enquanto indivíduos e grupos. “O que eu vejo é a vida me olhando”, diz a voz off de Minh-ha em Reassemblage [Remontagem] (1982), filme-ensaio que contesta


a visão de uma etnografia fundada na objetividade científica e na ansiedade do registro totalizante do real. Essa contestação é materializada sobretudo na forma, na linguagem, na artesania de quem, ao invés de pensar no binômio “forma-conteúdo”, produz tendo em conta tudo o que escapa ao controle quando se considera a política das “formas e forças” resistentes à lógica unificadora dos gêneros (de

acordo com os escritos teóricos da própria Minh-ha). Assim, algumas questões se retroalimentam sem cessar: Quem está olhando? Quem está olhando quem ou o quê? Quem está olhando de volta? Quem vai olhar quem estava olhando de volta para quem estava olhando? E a espiral pode seguir dando voltas indefinidamente. Tão dinâmicos e complexos quanto as abstrações de forma-força

são os interesses e culturas que movem a artista: Senegal, China, a música experimental do grupo The Construction of Ruins, Japão, Togo, Vietnã… Também montanhas e desertos (The Desert Is Watching [O deserto está assistindo], 2003, e Bodies of the Desert [Corpos do deserto], 2005), onde os transportes e percursos do olhar refletem sobre a fugaz estadia humana no contexto geológico deste planeta cujo ritmo e dança – através do entrelugar fundado por Minh-ha – já não nos permitem nenhuma contemplação desinteressada. igor de albuquerque

Bodies of the Desert, 2005 Corpos do deserto. Vídeo; 20’


ubirajara ferreira braga

“o artista plástico mais profícuo da colônia”: quase 3 mil telas pintadas.

Autorretrato, 1987 Guache sobre papel, 66,5 × 50 cm

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dos quase sessenta anos até quase morrer, no ano 2000 (quando o milênio não bugou, diferentemente da psiquê), Ubirajara Ferreira Braga (1928-2000) pintou milhares de quadros. e imprimiu também um cartão de visitas, no qual orgulhosamente expunha sua profissão: “artista plástico”. diz um filme que sua ficha diagnóstica o pintava como um “morador calmo, cons-

ciente” da colônia (psi-qui-á-tri-ca) do Juquery. e os arquivos públicos que a www guarda contam que ele foi, também, por um período breve, traficante de suas próprias obras – naquele outro tipo de morada que era mesmo um manicômio, que entrou pra história como a “cidade dos loucos”, construída na cidade de franco da rocha, e que tinha regras pétreas quanto à circu-

lação externa das obras feitas pelos moradores. um outro tipo de história, contada à boca-menor dos que lutam por justiça, chama também aquela cidade de “a cidade dos mortos”: 50 milhares. pois foi na rocha franca sobre a qual essa cidade ambígua, dos loucos, dos mortos, se ergueu, que Ubirajara Ferreira Braga, de prenome tupi, cujo significado O Senhor da Lança revela tanto de sua história, pintou seus quase 3 mil quadros. nessas voltas etimogeográficas, reside alguma coisa ali entre Ogum, o ferreiro (como o sobrenome do pintor; Deus da forja, das tecnologias de sobrevivência), o Xangô da verdade, que é um tipo – sempre – de justiça (e da pedreira, como a que abrigava a cidade da cidade dos loucos), e, é claro – aqui era onde essas palavras queriam chegar, desde o início – o Oxóssi: caçador, lançador, enlouquecido, enlouquecedor. morador da mata. tem uma lenda que diz que foi por enlouquecer (de amor?) que Oxóssi foi parar no meio da mata, querendo apartar-se do mundo. só sua filha amada, Iansã, dançou sua morte, por muitas noites e dias, permitindo assim que seu espírito chegasse ao Orum, um outro tipo de céu. um outro tipo de morada. talvez calma. onde talvez Ubirajara agora resida. sem tanto vermelho, como vi nas obras que pintava dentro das paredes do Juquery. tatiana nascimento

Artistas-pacientes, 1987 Guache sobre papel, 66,5 × 50 cm


ventura profana

É fim de tarde em um domingo ensolarado. Em um bairro residencial, crianças brincam na calçada, algumas com bola, outras de corda, algumas em casa no celular. Há homens e mulheres na frente das casas, conversando e olhando suas crias, filhas, sobrinhas. Em uma das casas há música enquanto o churrasco começa a beirar o início da noite. Em certo momento, uma criança aponta para o céu e anuncia: “Mãe, pai,

vem aqui, rápido! O que é isso? Está voando?” Aos poucos, todos começam a olhar na direção indicada. Cegos por um brilho irradiante, veem se aproximar uma figura muito bonita, brilhante e dourada, resplandecente como o Sol, deslizando sobre brumas em direção ao chão. Ao se aproximar, a criança pergunta: “Você é Deus?”, e a resposta é clara: “Podem me chamar de Deize, tenho algo a dizer a vocês”.1

RESPLANDECENTE, 2019 Videoclipe; 5’20’’

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Ventura Profana é uma artista com práticas diversas, profeta gloriosa, pastora em sua função divinal. Ao produzir músicas, videoclipes, colagens digitais, instalações e fotografias, cria visualidades e performances de vida que edificam novos imaginários sobre religião e fé. Nesses imaginários, as existências que fogem aos controles tradicionais de gênero e de sexualidade são possíveis. As existências às quais

a artista se refere são as travestilidades, guardiãs das fontes da vida, das florestas e dos mangues, aquelas que se fazem vivas em meio ao mar Morto, que são como os montes de Sião que não se abalam, guardiãs de ecossistemas e da vida sagrada. Em seu trabalho é possível reconhecer as corporalidades dissidentes como ponto de torção entre uma tradição inflexível e a criação de outras perspectivas emanci-

patórias. Em outras palavras, sua produção elabora modos de epistemologia crítica aos sistemas de verdades e crenças conservadoras e coloniais. Para isso, Profana realiza inversões e inserções nos recursos linguísticos, visuais e performáticos neopentecostais herdados do contexto familiar. Entre algumas de suas intervenções na ordem do discurso, ao substituir Senhor pela travesti, a artista coloca esse modo de existência como elemento central e disruptivo do pensamento tradicional, elaborando um discurso sem Senhor, tecendo tanto uma crítica aos dogmas neopentecostais, quanto antipatriarcal, quanto antimilitarista. Assim, é possível reconhecer que a produção de Ventura Profana clama por vida em abundância, ela mesma o corpo missionário que profetiza e louva por saúde, amor e liberdade para todas as travestis. No limite, sua produção artística amplia a percepção de que, ao fundar um mundo no qual a vida travesti é possível, todas as vidas serão possíveis, imersas em poder e glória. maria luiza meneses

_ 1/ Fabulação da autora sobre como poderia ser a descida de Deize à Terra, com base em referências visuais da artista. [n.e.]

CONCÍLIO DAS LAMENTAÇÕES, 2020 Impressão pigmentada sobre Photo Matt Fibre 200g, 140 × 100 cm


wifredo lam

O artista cubano Wifredo Lam (1902-1982) realizou as ilustrações para a obra Fata Morgana (1941),1 do escritor francês André Breton, em um contexto de exílio político e de uma iminente jornada transatlântica. Os desenhos incluem o repertório visual característico que ele desenvolveu em obras posteriores: criaturas dotadas de chifres, cabeças em formato quadrado, luas crescentes com olhos e a figura

de meio mulher, meio cavalo, que se tornou sua célebre femme-cheval interespécie, observada em Mujer sentada [Mulher sentada] (1949). Em sua obra, Lam dá ênfase à cultura negra por meio de uma sinédoque visual com a santería (também conhecida como Regla de Ocha e Lucumí), religião afro-diaspórica amplamente assentada em crenças e tradições iorubás, temperada com certos aspec-

Le Matin vert, 1943 A manhã verde. Óleo sobre papel montado em tela, 186,7 × 123,8 cm

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tos do catolicismo. Títulos como Le Sombre Malembo, Dieu du carrefour [Malembo sombrio, Deus das encruzilhadas] (1943) identificam Malebo, centro de comércio de escravizados na África Ocidental, e Eleguá, um orixá ou deidade iorubá que é o guardião das encruzilhadas, representado por Lam com chifres e olhos redondos. Aqui, as encruzilhadas podem se referir à Passagem do Meio, assim como à

jornada do artista em seu retorno a Cuba. É chave para essa obra o modo como ele decoloniza códigos representacionais, com figuras híbridas que deslocam as distinções entre homem/mulher, humano/animal, animal/planta e que desafiam sistemas de classificação ocidentais e divisões ontológicas. Lam também dá corpo a esses deslocamentos em transmutações pictóricas que operam no nível

do uso do material, como a tinta diluída em Omni Obini (1943) e seu aspecto de aquarela, que intensifica o deslocamento intencional da cor – azuis e verdes, com passagens de vermelhos, laranjas e amarelos – para animar as relações entre elementos de seus mundos pictóricos. Ao fazer isso, Lam utiliza a força vital dos orixás, seu aché,2 como método decolonial que flui através do humano, do animal e do vegetal, e que ele traduz visualmente não só em seres híbridos, mas também por meio de seu entrelaçamento com o entorno e da interpenetração de figura e fundo. Seu deliberado emaranhado de oposições também sugere como diferentes entidades podem se interligar em modos não hierárquicos para serem reciprocamente transformadas. No centro do que chamo de modernismo aché de Lam se encontra, portanto, a natureza cambiante da identidade e da corporificação, por meio da qual cruzamentos ontológicos e aberturas relacionais chamam a atenção para a vivacidade das relações entre os mundos material e imaterial. kaira cabañas traduzido do inglês por gabriel bogossian

_ 1/ A edição apresentada na 35a Bienal é a seguinte: André Breton, Fata Morgana. Ilustrada por Wifredo Lam. Buenos Aires: Éditions des Lettres Françaises, 1942. 2/ Este termo, no contexto da santería cubana, é o equivalente ao axé, associado às religiões afro-brasileiras, sendo ambos derivados do termo iorubá àṣẹ, ou axę.

Omi Obini, 1943 Óleo sobre tela, 178 × 126 cm

esta participação é apoiada por: Institut français.


will rawls

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A prática artística do coreógrafo, dançarino, escritor e professor Will Rawls investiga as poéticas negras, se interessa pelos limites e encontros da dança com a linguagem, explora as ambiguidades, questiona as noções de poder e forma. Mexer o corpo, dançar com letras, (des)construir e jogar com palavras e frases, soletrar em voz alta a letra escolhida, arranjar,

rearranjar, arranjar de outro jeito, numa coreografia aberta e em construção. PELE é a versão para o público da Bienal de São Paulo da performance Uncle Rebus [Tio Rebus], realizada anteriormente em outros espaços. A própria dinâmica da performance convida os espectadores a ler as palavras formadas, as quais se transformam em outras ao longo da ativação.


Em Uncle Rebus, o texto que serve de base para a ação é o conjunto de fábulas Brer Rabbit, narrado pelo personagem Uncle Remus e escrito pelo folclorista Joel Chandler Harris, um homem branco do Sul dos Estados Unidos. Tio Remus é uma espécie de identidade compósita criada com base nas histórias da cultura oral das plantações às quais Harris teve acesso. Repletas de preconceitos linguísticos, as

histórias são escritas a partir do que o autor interpreta como sendo o dialeto dos negros do Sul na época. Ao manipularem as letras disponíveis, os performers vão ao mesmo tempo soletrando em voz alta partes do texto, desestabilizando os dialetos ficcionalizados pelo autor, explorando os limites da normatividade linguística e do discurso escrito. Na versão da performance para a 35ª Bienal de São Paulo,

um outro texto servirá de base para a ativação da obra. Podemos esperar a formação de palavras tanto conhecidas como inusitadas. O convite é para a abertura e o reconhecimento de diversos sotaques e acentos, para a formação coletiva e interativa de palavras que geram reflexões. PELE/ LEPE/ EPLE/ PEL/ PLE/ ELP/ ELE/ EE…

juliana de arruda sampaio

Uncle Rebus, 2018 Tio Rebus. Registro de performance, High Line – 17th Street, Nova York


xica manicongo

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esse documento deveria nos possibilitar imaginar um rosto, entretanto, diante dele nos deparamos apenas com um túmulo. é a História quem jaz no túmulo. o arquivo da história da escravidão transatlântica é a marca de um desaparecimento. esses documentos não passam, portanto, de cinzas. porque se escolheu preservar o relato de um colono europeu, y não a vida de uma estrela preta? a res-

posta a essa pergunta é irrelevante. o estrago já foi feito. chegamos tarde demais. o que importa, no entanto, é que, passados mais de quatrocentos anos, nem sabemos o nome desse tal de... mas lembramos com muito carinho o nome de Xica Manicongo. esse nome que é também uma fábula. Manicongo é uma forma distorcida de dizer Mwene Kongo, senhor do Congo;


já Xica foi uma forma que dissidentes de gênero, sobretudo pretas, utilizaram para resgatá-la de uma nomeação violenta cujo mundo da escravidão lhe havia endereçado: Francisco. assim, Xica Manicongo é uma forma de fabular a assinatura sônica dessa criatura cuja beleza insondável jamais iremos ouvir. Xica foi trazida forçadamente para Salvador em fins de século 16. segundo relatos, um tal de... , um... ,

teria se incomodado com a performatividade de gênero y sexualidade radicalmente livres de Xica, denunciando-a para a Santa Inquisição. Xica defendeu sua recusa, escolheu permanecer livre. por fim, para evitar a morte, decidiu recuar, enganar os usurpadores usando suas fantasias de homem. teria sido esse o primeiro registro de Drag King da história do território invadido chamado Brasil?

o que podemos imaginar diante dessas letras tortas dispostas nesse papel mofado? uma memória. a memória de que mesmo o esquecimento nunca é absoluto. a memória da imprevisibilidade, na qual aquilo que deveria ter sido aniquilado ressurge de outra maneira num outro lugar: Sertransneja, Coletiva Xica Manicongo, Jaqueline Gomes de Jesus, Bixarte, Xica a peça, Xica Manicongo... a memória da risada aberta, do gingado sereno, da força bruta y da coragem indomável, dessa que hoje chamamos de Xica Manicongo. as cinzas são usadas há muito em África y Abya Yala como um componente de fertilização dos solos. aí, então, somos convocadas a imaginar, diante desse túmulo, novos frutos selvagens da diáspora de África no Brasil que rebentam y rebolam uma outra forma de escrever para atravessar o Tem/po. abigail campos leal


yto barrada

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Yto Barrada leva o jogo a sério. Para essa eterna aprendiz, o jogo é uma poderosa ferramenta educacional que apela tanto para os sentidos quanto para o intelecto. Por exemplo, Land and Water Forms [Formas da terra e da água] (2019), uma série de trabalhos de acrílica e gesso sobre papelão, revela uma gramática de formas naturais adaptada de bandejas de moldes Montessori. Por outro lado,


o jogo educacional é um quadro ideal para experimentação artística – a alegria de criar e quebrar regras. O vídeo Tree Identification for Beginners [Identificação de árvores para iniciantes] (2017) narra a história da primeira viagem da mãe da artista para os Estados Unidos – e histórias maiores da Guerra Fria e de ativismo pelos direitos civis – através de uma montagem cativante e hilária de

locução, sonoplastia e brinquedos Montessori animados. Historiadora de formação, Barrada se interessa pelas inúmeras maneiras pelas quais eventos históricos e o tecido social se constituem mutuamente. Como artista, ela está sempre buscando formas que possam traduzir a complexidade dessas relações. A política permeia seu trabalho, mas sempre obliquamente, pois

questões sérias são mais bem abordadas com humor. Veja a leveza dos trocadilhos em seus cartazes (“Não sou exótica, estou exausta”; “Sheik Spear é árabe”...) ou o texto satírico “Uma modesta proposta para modernizar o Marrocos e maximizar seus recursos e eficiência” (2010), atribuído a um personagem fictício cujo nome, Yahia Sari, é uma adaptação árabe de Jonathan Swift. Muitos personagens reais também vieram povoar seus trabalhos fotográficos e videográficos ao longo dos anos. The Sleepers [Os adormecidos] (2006), The Smuggler [O traficante] (2006) e The Magician [O mágico] (2003) são belos marginais que encontram maneiras criativas de resistir ao domínio neoliberal. Além disso, alguns personagens históricos se repetem; o maior deles é Hubert Lyautey, o primeiro Residente Geral francês no Marrocos (1912-1925), um colonizador brutal admirado por alguns por sua introdução do urbanismo modernista e sua (seletiva) preservação de tradições artesanais locais. Além do afeto superficial, Barrada expõe a figura de Lyautey, jogando com suas citações muito conhecidas e o famoso bigode em cartazes e colagens, ou oferecendo seu nome como uma brincadeira de (des)construção nas várias versões de seu Lyautey Unit Blocks. Nesta, como na maior parte de sua obra, política e jogo, seriedade e irreverência, caminham juntos. omar berrada traduzido do inglês por mariana nacif mendes

Sem título (Blocos de unidades de Casablanca – com Bettina), 2023 Modelo para obra comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo para 35a Bienal


zumví arquivo afro fotográfico

Desfile de Carnaval do bloco afro Olodum, com o tema “Os tesouros de Tutancâmon”, largo do Pelourinho, Salvador, BA, 1993 Ampliação digital de fotografia analógica, 70 × 105 cm

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O que significa constituir um arquivo fotográfico da vida afro-brasileira, através dela e para ela? O Zumví Arquivo Afro Fotográfico é a resposta mais próxima que temos para essa pergunta. Fundado em 1990 por Lázaro Roberto, Ademar Marques e Raimundo Monteiro, e fisicamente instalado entre o Pelourinho e a Fazenda Grande, em Salvador, Bahia, Zumví abriga 30 mil fotografias (além de documen-

Protesto da Irmandade do Rosário dos Pretos no Largo do Pelourinho, durante as comemorações da Independência da Bahia, dia 2 de julho, 2012 Ampliação digital de fotografia analógica, 80 × 120 cm


tos pessoais, cartazes, cartões-postais e documentos diversos) que abrangem três décadas. Em sua essência, é um arquivo comunitário, que existe sem apoio institucional nem burocracia. Seu vasto acervo de imagens combina pontos turísticos e rotas de protesto com cenas cotidianas de rua, formando um espaço visual que revela de modo preciso como as esferas social e política se desenrolaram na Bahia

nas últimas décadas do século 20. Envolvendo várias perspectivas fotográficas, essas imagens captam a dor e o orgulho, o amor e a insistente possibilidade incorporada à negritude. De modo geral, Zumví constitui uma afirmação da existência e da autonomia afro-brasileiras, articulada por meio da noção de aquilombamento. Mais do que um acúmulo de representações, a clareza política

da finalidade do arquivo é imediatamente legível em seu nome: uma contração simultânea de zum-vi (zoom da lente fotográfica e o verbo ver no modo pretérito perfeito do indicativo) e uma invocação a Zumbi, líder do quilombo dos Palmares, uma monumental comunidade de quilombos que resistiu aos portugueses e aos holandeses por um século inteiro (1595-1695). Por meio dos esforços contínuos de Lázaro Roberto e de seu sobrinho José Carlos, o espírito de autodeterminação do Zumví Arquivo Afro Fotográfico integra a fotografia como um local de luta sociopolítica, um lugar em que o trabalho de movimento pode acontecer. A acadêmica e ativista sergipana Beatriz Nascimento (19421995) argumenta que “o quilombo é fundamentalmente uma condição social, um lugar onde se pratica a liberdade [...], é a aceitação da cultura negra”.1 Levando-se a sério esse seu argumento, o arquivo então pode ser considerado uma extensão pictórica dessa condição social. Zumví é uma passagem fugitiva tornada fotográfica, um lugar onde a consciência negra é cultivada na fixação da imagem e se expande para além do enquadramento. oluremi onabanjo traduzido do inglês por naia veneranda

_ 1/ Beatriz Nascimento, “O conceito de quilombola e a resistência afro-brasileira.” Afrodiáspora, n. 6-7, 1985, pp. 41-49.

Autorretrato do fotógrafo Lázaro Roberto, 1980 Ampliação digital de fotografia analógica, 50 × 75 cm

Roda de capoeira no Dia da Consciência Negra, parque São Bartolomeu, Subúrbio Ferroviário, Salvador, BA, 2013 Ampliação digital de fotografia analógica, 70 × 105 cm


performances da oralitura: corpo, lugar da memória leda maria martins

“Entre silêncio e som riem tambores e sombras. Os meninos criaram memória antes de criar cabelos." — edimilson de almeida pereira, Nós, os Bianos, 1996 “Partir de uma palavra. Partir numa palavra. Texto, lugar do encontro." — ruy duarte de carvalho, Hábito da terra, 1988 Observando-se o belo programa deste evento,1 nota-se o reiterado uso do significante memória, orquestrado em um de seus lugares de reconhecimento, a escrita. Este texto lhes é oferecido como um convite para pensarmos a memória em um de seus outros ambientes, nos quais também se inscreve, se grafa e se postula: a voz e o corpo, desenhados nos âmbitos das performances da oralidade e das práticas rituais.2 Na literatura escrita no Brasil predomina a herança dos arquivos textuais e da tradição retórica europeia. Mesmo os discursos que se alçaram como fundadores da nacionalidade literária brasileira, no século 19, tinham na série e na dicção literárias ocidentais sua âncora e base da criação literária. A textualidade dos povos africanos e indígenas, seus repertórios narrativos e poéticos, seus domínios de linguagem e modos de apreender e figurar o real, deixados à margem, não ecoaram em nossas letras escritas. [Roger] Bastide já isto antes observara. Risério o reitera: Quando os europeus principiaram a produzir textos no território hoje brasileiro, os indíge1/ Palestra proferida na XXXI Semana de Letras — VII Seminário Internacional de Língua e Literatura promovidos em conjunto pelo curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) em outubro de 2002. 2/ Texto originalmente publicado na revista Língua e Literatura: Limites e Fronteiras, Santa Maria (RS), n. 26, pp. 61-81, jun. 2003.

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nas já vinham, há tempos, produzindo os seus. E assim como os europeus transportaram para cá um dilatado e fecundo repertório textual, também os africanos, engajados à força no maior processo migratório de toda a história da humanidade, conduziram suas formas verbais criativas ao outro lado do Atlântico. Logo, ao se voltar pioneiramente para a história do texto criativo em nossa extensão geográfica, o romantismo deveria se defrontar, em tese, com os conjuntos formados por textos ameríndios e textos africanos. Em tese. De fato, não foi bem isto o que aconteceu. [...] O texto criativo africano foi ladeado ou ignorado, invariavelmente, naquele nosso ambiente. [...] Dito de outro modo, palavras negras passaram em brancas nuvens.3 Nessa ordem, o domínio da escrita torna-se metáfora de uma ideia quase exclusiva da natureza do conhecimento, centrada no alçamento da visão, impressa no campo ótico pela percepção da letra. A memória, inscrita como grafia pela letra escrita, articula-se assim ao campo e processo da visão mapeada pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento. Tudo que escapa, pois, à apreensão do olhar, princípio privilegiado de cognição, ou que nele não se circunscreve, nos é ex-ótico, ou seja, fora de nosso campo de percepção, distante de nossa ótica de compreensão, exilado e alijado de nossa contemplação, de nossos saberes. E somos férteis em nossos recursos de resguardo dessa memória: os nossos livros, arquivos, bibliotecas, monumentos, parques temáticos e, mais recentemente, os avanços tecnológicos, como hardwares e softwares cada vez mais sofisticados. Mnemosyne, a musa das lembranças, certamente com isso se inquieta, pois na narrativa mítica, todo o saber que se quer reminiscência não pode prescindir de Lesmosyne, o esquecimento, esquecimento este que se inscreve em toda grafia, em todo traço que, como significante, traz em si mesmo as lacunas e rasuras do pró3/ Antônio Risério, Textos e tribos. Rio de Janeiro: Imago, 1993, pp. 69-70.


prio saber. Nessa perspectiva o graphen grego é muito mais expansivo e inclusivo do que as seculares seleções semânticas, eleitas pelo Ocidente, nos fazem crer, pois os locais de memória não se restringem, na própria genealogia do termo, à sua face de inscrição alfabética, à escrita. O termo nos remete a muitas outras formas e procedimentos de inscrição e grafias, dentre elas à que o corpo, como portal de alteridades, dionisicamente nos remete. Nos voltejos das etimologias, tentemos uma outra aproximação. Em umas das línguas banto, do Congo, da mesma raiz, ntanga, derivam os verbos escrever e dançar, que realçam variantes sentidos moventes, que nos remetem a outras fontes possíveis de inscrição, resguardo, transmissão e transcriação de conhecimento, práticas, procedimentos, ancorados no e pelo corpo, em performance. Mas o que é performance? Pelos vários prismas mesmo de seu uso conceitual e metodológico, pelo alcance e quiçá amplitude desmesurada, o termo performance, conforme Richard Schechner,4 é inclusivo, podendo a performance ser abordada tanto quanto um leque (ou ventilador) quanto como uma rede. Como um leque inclui por aderência modal ritos, performances do cotidiano, cenas familiares, atividades lúdicas, o teatro, a dança, processos do fazer artístico, assim como, dentre outras práticas, performances de grande magnitude. No leque, todas essas práticas, com seus modos próprios e convenções específicas, estão dispostos como ambientes não hierarquizados, numa paisagem horizontilínea, processando-se como um continuum. Pensado como rede, em um outro desenho e visada epistemológica, esse sistema organiza-se mais dinamicamente, não mais pelas relações de disposição no continuum, mas sobretudo pelas interações ali processadas. A teoria de Schechner, que abraça e tem por objeto tanto as performances teatrais experimentais (no sentido estrito da ação teatral), quanto as cerimônias litúrgicas de culturas predominantemente ritualísticas, desenvolve-se na liminaridade mesma das relações entre a prática teatral e a 4/ Richard Schechnner. Performance Theory. Revised and expanded edition. New York and London: Routledge, 1988, p. xii e xiii. 1988, p. xii-xiii.

antropologia. Daí o seu alcance e as possibilidades ímpares que nos oferece em termos macroscópicos para pensarmos os âmbitos das teorias da performance e as adjunções temáticas, conceituais e metodológicas que daí derivam. Nesse viés, o termo performance se acomoda quer no âmbito, por exemplo, do teatro ou das narrativas orais, quanto escapa a uma colagem sinonímica com os termos representação e encenação já também inflacionados e saturados semanticamente. Todas essas práticas, no entanto, ostensivamente revelam o que Schechner denomina “estruturas profundas”, que os conectam performaticamente, por modulações ou qualidades (repetitividade, provisoriedade, incompletude, transitoriedade, modos de duração e de consignação do espaço etc.), pelas técnicas e procedimentos; pelas relações entre os performers e sua audiência, real ou virtual; pela inclusão ou exclusão de atividades pré e pós-performance que, em muitas práticas, constituem a própria performance; pelos seus efeitos imediatos e/ ou extensivos, em termos históricos, culturais e sociais. Cada uma dessas práticas (o teatro, a dança, o ritual, o esporte, as atividades lúdicas, os jogos, encenações coletivas, atos artísticos e mesmo expressões pulsionais emotivas) são modos subjuntivos, liminares, gêneros performáticos cujas convenções, procedimentos e processos não são apenas meios de expressão simbólica, mas constituem em si o que institui a própria performance. Numa performance da oralidade, por exemplo, o gesto não é apenas uma representação mimética de um sentido possível, veiculado pela performance, mas também institui e instaura a própria performance. Ou ainda, o gesto não é simplesmente narrativo ou descritivo, mas performativo. As práticas performáticas não se confundem com a experiência ordinária, são sempre provisórias e inaugurais, mesmo quando se sustentam em modos e métodos de transmissão profundamente enraizados e tradicionais; sempre se apoiam em convenções, estilos e molduras espaciais e temporais, ainda que escorregadias (por exemplo, a constituição e designação do espaço, seja ele o edifício-teatro, a rua, um beco, a praça pública, a igreja, um auditório; ou ainda a modulação da duração temporal em horas, dias, anos). Pensar, pois, uma poética da performance exigiria de nós considerar não apenas o modo, o escopo, o


tamanho e a duração da performance, como também seu deslocamento e “extensão através das fronteiras culturais e sua penetração nos mais profundos estratos da experiência humana pessoal e histórica”.5 Esse modo inclusivo de se pensar a performance, tanto como uma qualidade contingente e um atributo de algumas práticas artísticas e culturais, assim como um possível sistema de universais que encontra seus modos e convenções particulares culturalmente, não encontra uma fácil definição, sendo o termo utilizado por Schechner6 na acepção de restored behavior conditioned/permeated by play ou twice-behaved behavior, ou seja, como dupla repetição de uma ação já repetida, repetição provisória, sempre sujeita à revisão, sempre passível de reinvenção; repetição que nunca se oferece da mesma maneira, mesmo quando sustentada pela constância da transmissão. Explorando a rica arqueologia do termo e as relações entre performance e memória, corpo e conhecimento, Joseph Roach propõe-se pensar as genealogias da performance através de três princípios básicos: imaginação cinética, vórtices de ação (hábitos) e transmissão deslocada: As genealogias da performance apoiam-se na concepção dos movimentos expressivos como reservas mnemônicas, incluindo movimentos padronizados, rememorados pelo corpo, movimentos residuais retidos implicitamente em imagens ou palavras (ou no silêncio entre elas), movimentos imaginários fabulados pela mente, rião anteriores à linguagem, mas constitutivos da linguagem, um ensaio psíquico para ações físicas retiradas do repertório que a cultura provê.7

5/ Richard Schechner, 1988, op. cit., p. 283. 6/ Idem, 1988, op. cit., p. 95. Cf. Também Richard Schechner, “O que é performance?”, in Percevejo. Revista de Teatro, Crítica e Estética, ano 11, n. 12, 2003, p. 34. 7/ Joseph Roach, Cities of the Dead: Circum-Atlantic Performance. Nova York: Columbia University Press, 1996, p. 26.

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É dentre desse amplo espectro epistemológico que venho atualmente desenvolvendo minhas pesquisas, que têm por objeto a performance e as cenas rituais, por meio das quais penso o corpo e a voz como portais de inscrição de saberes de vária ordem. Minha hipótese é a de que o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico etc. No âmbito dos rituais afro-brasileiros (e também nos de matrizes indígenas), por exemplo, essa concepção de performance nos permite apreender a complexa pletora de conhecimentos e de saberes africanos que se restituem e se reinscrevem nas Américas, recriando-se toda uma gnosis e uma episteme diversas. Nessa perspectiva e sentido, como afirma ainda Roach, “as performances revelam o que os textos escondem”.8 Afinal, como também nos alerta Pierre Nora,9 a memória do conhecimento não se resguarda apenas nos lugares de memória (lieux de mémoire), bibliotecas, museus, arquivos, monumentos oficiais, parques temáticos etc., mas constantemente se recria e se transmite pelos ambientes de memória (milieux de mémoire), ou seja, pelos repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes. As performances rituais, cerimônias e festejos, por exemplo, são férteis ambientes de memória dos vastos repertórios de reservas mnemônicas, ações cinéticas, padrões, técnicas e procedimentos culturais residuais recriados, restituídos e expressos no e pelo 8/ Ibid., p. 61. 9/ Pierre Nora, “Between Memory and History: Les Lieux de memoire”, in Geneviève Fabre e Robert O’Meally (ed.), History and Memory in African-American Culture. Nova York; Oxford: Oxford University Press,1994.


corpo. Os ritos transmitem e instituem saberes estéticos, filosóficos e metafísicos, dentre outros, além de procedimentos, técnicas, quer em sua moldura simbólica, quer nos modos de enunciação, nos aparatos e convenções que esculpem sua performance. No âmbito dos rituais afro-brasileiros, a palavra poética, cantada e vocalizada, ressoa como efeito de uma linguagem pulsional e mimética do corpo, inscrevendo o sujeito emissor, que a porta, e o receptor, a quem também circunscreve, em um determinado circuito de expressão, potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e acontecimento performático, a palavra proferida e cantada grafa-se na performance do corpo, portal da sabedoria. Como índice de conhecimento, a palavra não se petrifica em um depósito ou arquivo estático, mas é, essencialmente, kinesis, movimento dinâmico, e carece de uma escuta atenciosa, pois nos remete a toda uma poiesis da memória performática dos cânticos sagrados e das falas cantadas no contexto dos rituais. O estudo dessa textualidade realça a inscrição da memória africana no Brasil em vários domínios: nos feixes de formas poéticas, rítmicas e de procedimentos estéticos e cognitivos fundados em outras modulações da experiência criativa; nas técnicas e gêneros de composição textual; nos métodos e processos de resguardo e de transmissão do conhecimento; nos atributos e propriedades instrumentais das performances, nas quais o corpo que dança, vocaliza, performa, grafa, escreve. Dentre esse repertório formal e processual, Antônio Risério destaca os orikis, forma poética nagô-iorubá, como uma das muitas artes da palavra transplantadas de África: O oriki nasce no interior da rica malha de jogos verbais, de ludi linguae, que se enrama no cotidiano iorubá. [...] A expansão de uma célula verbal é fenômeno comum no mundo dos textos. Joles fala de provérbios que se expandem até se converterem em longos poemas proverbiais. Coisa semelhante se passaria entre o oriki-nome e o oriki-poema, com o nome atributivo se expandindo verbalmente em direção ideal à constituição de um corpo sígnico claramente

percebido e definido como “poético”. [...] Na verdade, a expressão “oriki” designa nomes, epítetos, poemas. Cobre portanto de uma ponta a outra o espectro da criação oral em plano poético.10 No oriki-poema, por exemplo, Risério observa a expansão de uma célula temática mínima que se desdobra e se expande, “agregando outras unidades que a ela se vinculam por laços de parentesco linguístico, ou por afinidades sintáticas”; “o giro hiperbólico da palavra”; as imagens “amplas, coruscantes e contundentes”; o insólito das metáforas, a nominação encadeada “de uma série de sintagmas que, dispostos em sequência ou justapostos, atualizam um paradigma do excesso”, configurando a fisionomia do objeto recriado; a técnica de encaixes e o jogo de intertextualidades descentradas, aspectos que, em síntese, fazem do oriki uma “fanomelopeia intertextual”. Na paisagem textual de reminiscência banto, outras formas poéticas não apenas recriam, na ordem dos enunciados, a memória das diásporas africanas no Brasil, como também a inscrevem, como responsos, nas técnicas e performances de muitos gêneros narrativos, nas treliças da enunciação criativa da palavra e dos jogos poéticos de linguagem, transcriando a memória de muitos saberes, de outras dicções e fraseados, de outras nervuras poéticas, assim manifestos e vibrantes nesse belíssimo cântico, performado em variados timbres vocais e rítmicos, nos rituais dos Congados: Zum, zum zum Lá no meio do mar Zum, zum, zum Lá no meio do mar É o canto da sereia Que me faz entristecer Parece que ela adivinha O que vai acontecer

10/ Antônio Risério, Oriki orixá. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 35.


Ajudai-me, rainha do mar Ajudai-me, rainha do mar Que manda na terra Que manda no ar Ajudai-me, rainha do mar Zum, zum zum Lá no meio do mar Zum, zum, zum Lá no meio do mar É o canto da sereia E seus prantos muito mais Naquele mar profundo Adeus, minas gerais. Ajudai-me, rainha do mar... (Cântico dos Congados Mineiros) A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla voz, e expressa, nos seus modos constitutivos fundacionais, a disjunção entre o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e o que, por inúmeras práticas, realmente diziam e faziam. Nessa operação de equilíbrio assimétrico, o deslocamento, a metamorfose e o recobrimento são alguns dos princípios e táticas básicos operadores da formação cultural afro-americana, que o estudo das práticas performáticas reiteram e revelam. Nas Américas, as artes, ofícios e saberes africanos revestem-se de novos e engenhosos formatos. Como afirma Soyinka,11 sob condições adversas as formas culturais se transformam para garantir a sua sobrevivência. Ou como argumenta Roach: Na vida de uma comunidade, o processo de substituição não começa ou termina, mas, sim, continua quando lacunas reais ou pressentidas ocorrem na rede de relações que constitui o tecido social. Nas cavidades criadas pelas perdas, seja pela morte, seja por outras formas de vacân11/ Wole Soyinka, “Theatre in African Traditional Cultures: Survival Patterns”, in Michael Huxley e Noel Witts (ed.). The Twentieth-Century Performance Reader. Londres: Routledge, 1996, p. 342.

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cia, penso que os sobreviventes tentam criar alternativas satisfatórias.12 A cultura negra também é, epistemologicamente, o lugar das encruzilhadas. O tecido cultural brasileiro, por exemplo, deriva-se dos cruzamentos de diferentes culturas e sistemas simbólicos, africanos, europeus, indígenas e, mais recentemente, orientais. Desses processos de cruzamentos transnacionais, multiétnicos e multilinguísticos, variadas formações vernaculares emergem, algumas vestindo novas faces, outras mimetizando, com sutis diferenças, antigos estilos. Na tentativa de melhor apreender a variedade dinâmica desses processos de trânsito sígnico, interações e interseções, utilizo-me do termo encruzilhada como uma clave teórica que nos permite clivar algumas das formas e constructos que daí emergem.13 A noção de encruzilhada, utilizada como operador conceitual, oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. Na concepção filosófica nagô/iorubá, assim como na cosmovisão de mundo das culturas banto, a encruzilhada é o lugar sagrado das intermediações entre sistemas e instâncias de conhecimento diversos, sendo frequentemente traduzida por um cosmograma que aponta para o movimento circular do cosmos e do espírito humano que gravitam na circunferência de suas linhas de interseção.14 Da esfera do rito e, portanto, da performance, a encruzilhada é lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, 12/ Joseph Roach, 1996, op. cit., p. 2. 13/ Leda Maria Martins, A cena em sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995. 14/ Cf. Robert Farris Thompson, Flash of the Spirit, African and African: American Art and Philosophy. Nova York: Vintage Books, 1984; Leda Maria Martins, Afrografias da memória, o reinado do rosário no Jatobá. São Paulo; Belo Horizonte: Perspectiva; Mazza, 1997.


origem e disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como um lugar terceiro, é geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais. Nessa concepção de encruzilhada discursiva destaca-se, ainda, a natureza cinética e deslizante dessa instância enunciativa e dos saberes ali instituídos.15 No âmbito da encruzilhada, a própria noção de centro se dissemina, na medida em que se desloca, ou melhor, é deslocada pela improvisação. Assim como o jazzista retece os ritmos seculares, transcriando-os dialeticamente numa relação dinâmica, retrospectiva e prospectiva, as culturas negras, em seus variados modos de asserção, fundam-se dialogicamente, em relação aos arquivos e repertórios das tradições africanas, europeias e indígenas, nos voltejos das linguagens, nos ritos e em muitas outras práticas performáticas que instauram. Nesse ambiente de reminiscências, os Congados e Reinados negros, por exemplo, merecem uma especial atenção. Para além de todo um aparato representacional do sagrado que as cerimônias litúrgicas dos Congados restauram (por mim já revisitados no livro Afrografias da memória: o reinado do rosário no Jatobá),16 há que se enfatizar nas performances dos Congados toda uma plêiade de procedimentos mnemônicos e de técnicas estilísticas por meio das quais alguns dos mais caros princípios filosóficos africanos são reprocessados e inscritos na formação etno-cultural brasileira, como veículos de civilização, verdadeiros, dentre eles os princípios da ancestralidade, ou seja, de celebração dos antepassados e o de uma concepção alterna e alternativa do tempo. Os Congados, ou Reinados, são um sistema religioso alterno que se institui no âmbito mesmo da encruzilhada entre os sistemas religiosos cristãos e os africanos, de origem banto, através do qual a devoção a certos santos católicos, Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, Santa Ifigênia e Nossa Senhora das Mercês, processa-se por meio de performances rituais de estilo africano, em sua simbologia metafísica, convenções, coreografias, estrutura, valores,

concepções estéticas e na própria cosmovisão que os instauram. Performados por meio de uma estrutura simbólica e litúrgica complexa, os ritos incluem a participação de grupos distintos, denominados guardas, e a instalação de um Império negro, no contexto do qual autos e danças dramáticas, coroação de reis e rainhas, embaixadas, atos litúrgicos, cerimoniais e cênicos, criam uma performance mitopoética que reinterpreta as travessias dos negros da África às Américas. Relatos de viajantes e outros registros orais e escritos mapeiam sua existência desde o século 17, em Recife, e sua disseminação por outras regiões do território brasileiro, em muitos casos vinculados às Irmandades dos Pretos. Em sua estrutura, os festejos dos Congados são ritos de aflição e religação fundados por um enredo cosmogônico que se desenvolve através de elaborada estrutura simbólica; um teatro do sagrado, cuja performance festiva nos remete ao cenário do ritual, concebido por Turner17 como uma orquestração de ações, objetos simbólicos e códigos sensoriais, visuais, auditivos, cinéticos, olfativos, gustativos, repletos de música e de dança. Como tal, portam valores estéticos e cognitivos, transcriados por meio de estratégias de ocultamento e visibilidade, procedimentos e técnicas de expressão que, cinética e dinamicamente, modificam, ampliam e recriam os códigos culturais entrecruzados na performance e no âmbito do rito, em cujo contexto a realidade cotidiana, por mais opressiva que seja, é substituída e alterada, na ordem simbólica e mesmo na série histórico-social. Todos os atos rituais emergem de uma narrativa de origem, que narra a retirada da imagem de N. S. do Rosário das águas. O resumo de uma das versões conta-nos que na época da escravidão uma imagem de Nossa Senhora do Rosário apareceu no mar. Os escravizados viram a santa nas águas, com uma coroa cujo brilho ofuscava o sol. Eles chamaram o senhor da fazenda e lhe pediram que os deixasse retirar a senhora das águas. O fazendeiro não permitiu, mas lhes ordenou que construíssem uma capela para ela e a

15/ Leda Maria Martins, ibid., pp. 25-6.

17/ Victor Turner, From Ritual To Theatre, the Human Seriousness of Play. Nova York: PAJ Publications, 1982, p. 109.

16/ Id., ibid.


enfeitassem muito. Depois de construída a capela, o sinhô reuniu seus pares brancos, retiraram a imagem do mar e a colocaram em um altar. No dia seguinte, a capela estava vazia e a santa boiava de novo nas águas. Após várias tentativas frustradas de manter a divindade na capela, o branco permitiu que os escravos tentassem resgatá-la. Os primeiros negros que se dirigiram ao mar eram um grupo de Congo. Eles se enfeitaram de cores vistosas e, com suas danças ligeiras, tentaram cativar a santa. Ela achou seus cânticos e danças muito bonitos, ergueu-se das águas, mas não os acompanhou. Os pretos mais velhos, então, muito pobres, foram às matas, cortaram madeira, fizeram três tambores com os troncos das árvores, os candombes sagrados, e os recobriram com folhas de inhame. Reuniram o grupo e, cantando e dançando, entraram nas águas. Com seu ritmo sincopado, surdo, com sua dança telúrica e cânticos de fortes timbres africanos, cativaram a santa que se sentou em um de seus tambores e os acompanhou até à capela, onde todos, negros e brancos, cantaram e dançaram para celebrá-la. Durante as celebrações, esse mito fundador é recriado e aludido nos cortejos, falas, cantos, danças e fabulações, em um enredo multifacetado, em cujo desenvolvimento o místico e o mítico interagem com outros temas e narrativas que recriam a história de travessias do negro africano e de seus descendentes brasileiros. Os protagonistas do evento são muitos, dependendo da região e das comunidades. As festividades rituais apresentam uma complexa estrutura, incluindo: novenas, levantamento de mastros, cortejos, danças dramáticas, banquetes, embaixadas, cumprimento de promessas, sob a batuta dos reis Congos. Em Minas Gerais, a diversidade de guardas18 engloba, dentre outros, Congos, Moçambiques, Marujos, Catopés, Vilões e Caboclos. Dentre esses, dois grupos, no entanto, destacam-se: o Congo e o Moçambique, os que agenciaram a retirada da santa das águas. Ambos vestem18/ No léxico próprio dos congadeiros o termo “guarda” ou “terno” designa um grupo específico de dançantes com suas vestes, funções litúrgicas e características próprias. Outras variações da narrativa, assim como um estudo mais detalhado sobre os Congados, podem ser encontradas no meu livro Afrografias da memória: o reinado do rosário no Jatobá, op. cit.

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-se de calças e camisas brancas. Os Congos, entretanto, além dos saiotes, geralmente de cor rosa ou azul, usam vistosos capacetes ornamentados por flores, espelhos e fitas coloridas. Movimentam-se em duas alas, no meio das quais se postam os mestres, os solistas, e performam coreografias de movimentos rápidos e saltitantes, às vezes de encenação bélica e de ritmo acelerado. O grupo de Congos representa a vanguarda, os que iniciam os cortejos e abrem os caminhos, rompendo, com suas espadas e/ou longos bastões coloridos, os obstáculos. O terno de Moçambique, que mais se aproxima do som original dos candombes, recobre-se, geralmente, de saiotes azuis, brancos ou rosa por sobre a roupa toda branca, turbantes nas cabeças, gungas (guizos) nos tornozelos, portando tambores maiores, de sons mais surdos e graves. Dançam agrupados, sem nenhuma coreografia de passo marcado. Seu movimento é lento e de seus tambores ecoa um ritmo vibrante e sincopado. Os pés dos moçambiqueiros nunca se afastam muito da terra e sua dança, que vibra por todo o corpo, exprime-se, acentuadamente, nos ombros meio curvados, no torso e nos pés. O terno de Moçambique é o guardião das majestades, o que representa o poder espiritual maior e a força telúrica dos antepassados, que emanam dos tambores sagrados e guiam o rito comunitário. Seus cantares acentuam, na enunciação lírica e rítmica, a pulsação lenta de seus movimentos e os mistérios do sagrado. Todas as variantes da lenda, nas mais diversas regiões brasileiras, permitem sublinhar o núcleo comum narrado, através do qual se processa essa reengenharia de saberes e poderes na estrutura dos Reinados negros. Há, basicamente, nas dramatizações e performances, três elementos que insistem na rede de enunciação e na construção do seu enunciado: 1o) a descrição de uma situação de repressão vivenciada pelo negro escravo; 2o) a reversão simbólica dessa situação com a retirada da santa das águas, sendo o canto e dança regidos pelos tambores; 3o) a instituição de uma hierarquia e de um outro poder, o africano, fundados pelo arcabouço mítico e místico. Ao retirar a santa das águas, imprimindo-lhe movimento, o negro escravo performa um ato de apropriação e reconfiguração, invertendo, na dicção do sagrado, as


posições de poder entre brancos e negros. A linguagem dos tambores, investida de um ethos divino, agencia os cantares e a dança e, de forma oracular, prenuncia uma subversão da ordem social, das hierarquias escravistas e dos saberes hegemônicos. Esse deslocamento interfere na sintaxe do texto católico, engravidado agora por uma linguagem alterna que, como um estilo e um estilete, grafa-se e pulsa na conjugação do som dos tambores, do canto e da dança, entrelaçados na articulação da fala e da voz de timbres africanos. O próprio fundamento do texto mítico católico é rasurado, nele se introduzindo, como um palimpsesto, as divindades africanas. Assim, a santa do Rosário evoca também, por deslocamento, as grandes mães ctônicas africanas, senhoras das águas, da terra e do ar. Numa perspectiva que transcende o contexto simbólico-religioso, esse ato de deslocamento e repossessão induz à possibilidade de reversibilidade e transformação das relações de poder do contexto histórico-social adverso. Cresce, portanto, em significância o fato de as narrativas e as performances realçarem o agrupamento de diferentes nações e etnias africanas, sobrepondo-se às históricas divergências e rivalidades étnicas e linguísticas. O coletivo superpõe-se, pois, ao particular, como operador de formas de resistência social e cultural que reativam, restauram e reterritorializam, por metamorfoses emblemáticas, um saber alterno, encarnado na memória do corpo e da voz. Tanto no enunciado da narração mítica, quanto na performance dramática que cenicamente a representam, a superação parcial das diversidades étnicas recria o ethos comum e o ato coletivo negro como estratégias de substituição e reorganização das fraturas do conhecimento. Torna-se possível, assim, ler nas entrelinhas da enunciação fabular o gesto pendular: canta-se a favor da divindade e celebram-se as majestades negras e, simultaneamente, canta-se e dança-se contra o arresto da liberdade e contra a opressão, seja a escravidão, no passado, seja a do presente. Desse gesto emerge o segundo movimento dramatizado nas narrativas: o estabelecimento de uma estrutura alterna de poder que reorganiza as relações étnicas negras e as posições estratégicas aí imbricadas. As guardas de Congo abrem os cortejos e limpam os caminhos, como uma

força guerreira de vanguarda. O Moçambique, alçado como líder dos ritos sagrados e guardião das coroas que representam as nações africanas e a Senhora do Rosário, conduz reis e rainhas. O timbre de seus tambores representaria, numa relação especular engendrada pela fábula, a voz mais genuinamente africana, a reminiscência da origem que, iconicamente, traduziria a memória de África. Senhor das coroas e guardião dos mistérios, o Moçambique é a força telúrica e também guerreira que gerencia o continuum africano, reorganizando as relações de poder, nem sempre amistosas, entre os povos negros dispersos pela Diáspora. Estabelecem-se, portanto, na estrutura paralela de relações espaciais dos Reinados negros, novas hierarquias fundadoras do microsistema social, que operacionalizam as redes de comunicação e as relações de poder entre os próprios negros, e entre negros e brancos. A fábula nos revela ainda um processo de substituição na produção de objetos e adereços litúrgicos e a ressignificação do ambiente geográfico e simbólico. Assim os escravos produzem seus tambores sagrados com troncos, folhas e cipós, e utilizam as contas-de-lágrimas e os materiais disponíveis na geografia americana, no lugar dos opelês e de outros adereços. Importa-nos assinalar que, em África, assim como nas culturas afro-americanas, um dos modos de escrita do corpo está na utilização de conchas, sementes e outros objetos côncavos, em tamanhos e cores diferentes, para a feitura de colares, pulseiras e outros adornos que revestem o sujeito, além de outros arabescos que ornamentam sua pele e cabelo. Alinhadas numa certa posição e ordem contíguas, as contas, sementes e conchas, assim como certos desenhos, funcionam como morfemas formando palavras, palavras formando frases e frases compondo textos, o que faz da superfície corporal, literalmente, texto, e do sujeito, signo, intérprete e interpretante, simultaneamente. Escrita nos e pelos adornos, “a pessoa emerge dessas escrituras, tecida de memória e fazendo memória”.19 19/ Mary N. Roberts e Allen F. Roberts, “Body Memory. Part. 1: Defining the Person”, in Mary N. Roberts e Allen F. Roberts (ed.), Memory, Luba Art and the Making of History. Nova York; Munique: The Museum for African Art; Prestei, 1996, p. 86.


Toda a história de constituição dos Congados (violentamente reprimidos e perseguidos da segunda metade do século 19 até meados do século 20), e das culturas negras em geral, parece-nos revelar a primazia desses processos de deslocamento, substituição e ressemantização, suturando os vazios e as cavidades originadas pelas perdas. A instituição desse poder alterno, que ainda hoje fermenta várias comunidades negras, prefigura as estratégias de resistência cultural e social que pulsionaram as revoltas dos escravos, a atuação efetiva dos quilombolas e de várias outras organizações negras contra o sistema escravocrata. Como nos revela o aforismo popular, “as contas do meu rosário são balas de artilharia”. Ou como afirma Roach, “os textos podem obscurecer o que a performance tende a revelar: a memória desafia a história na construção das culturas circum-atlânticas, e revisa a épica ainda não escrita de sua fabulosa cocriação”.20 Na narrativa mitopoética, nos cantares, gestos, danças e em todas as derivações litúrgicas do cerimonial do Reinado, o congadeiro canta e dança a divindade católica e, com ela, as nanãs das águas africanas, Zâmbi, o supremo Deus banto, os antepassados e toda a sofisticada gnosis africana, resultado de uma filosofia telúrica que reconhece na natureza uma certa medida do humano, não de forma animística, mas como expressão de uma complementaridade cósmica necessária, que não elide o sopro divino e a matéria, em todas as formas e elementos da physis cósmica. A fábula, portanto, configura o rito de passagem de uma situação de aflição, fragmentação e desordem para uma nova ordem social, política, artística e filosófica que reconfigura o corpus cultural, subverte a relação dominador/dominado e insemina o tecido religioso católico com a telúrica teologia africana. Toda a memória desse conhecimento é instituída na e pela performance ritual dos Congados, por meio de técnicas e procedimentos performáticos veiculados pelo corpo, em vários de seus atributos, dentre eles a voz, numa refinada estilização estética e artesanal. O universo de

cognição expresso nos rituais dos Congados transcria, nas Américas, estilos artísticos africanos, modos de vivência e de pertencimento, uma percepção e uma compreensão do cosmos diferenciadas, assim como uma singular reflexão sobre o sagrado que transcende os idiomas metafísicos ocidentais. Um conhecimento, enfim, veiculado pela palavra proferida e cantada, e pela música, coreografada na dança. Segundo o filósofo Bunseki Fu-Kiau, a África é o “continente dançante”, na medida em que a música e a dança permeiam toda e qualquer atividade, sendo uma forma de inscrição e transmissão de conhecimentos e valores. Todo som, todo gesto, em África, significam, o que faz Robert Farris Thompson afirmar que a “África introduz uma diferente história da arte − a história de uma arte dançante”.21 No âmbito da performance dos Congados, por exemplo, em seu aparato − cantos, danças, figurinos, adereços, objetos cerimoniais, cenários, cortejos e festejos −, e em sua cosmovisão filosófica e religiosa, reorganizam-se os repertórios textuais, históricos, sensoriais, orgânicos e conceituais da longínqua África, as partituras dos seus saberes e conhecimentos, o corpo alterno das identidades recriadas, as lembranças e as reminiscências, o corpus, enfim, da memória que cliva e atravessa os vazios e hiatos resultantes das diásporas. Os ritos cumprem, assim, uma função pedagógica paradigmática exemplar, como modelo e índice de mudança e deslocamento, pois, segundo Turner, “como um ‘modelo para’ o ritual pode antecipar, e até mesmo gerar mudança; como um ‘modelo de’ pode inscrever ordem nas mentes, corações e vontade dos participantes”.22 Esse processo de intervenção no meio e essa potencialidade de reconfiguração formal e conceitual fazem dos rituais um modo eficaz de transmissão e de reterritorialização de uma complexa pletora de conhecimentos, dentre eles uma instigante concepção de cronos, o tempo. No caso brasileiro, os ritos de ascendência africana, religiosos e seculares, reterritorializam uma das mais importantes concepções filosófica e metafísica africanas, a da ancestralidade que 21/ Robert Farris Thompson, African Art in Motion: Icon and Act. Los Angeles: University of California Press, 1979, p. xii.

20/ Joseph Roach, 1995, op. cit, p. 61.

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22/ Victor Turner, op. cit., p. 82.


constitui a essência de uma visão que os teóricos das culturas africanas chamam de visão negra-africana do mundo. Tal força faz com que os vivos, os mortos, o natural e o sobrenatural, os elementos cósmicos e os sociais interajam, formando os elos de uma mesma e indissolúvel cadeia significativa....23 A concepção ancestral africana inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma complementariedade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir. Segundo Ngũgĩ wa Thiong’o, na cosmovisão africana, nós que estamos no presente somos todos, em potencial, mães e pais daqueles que virão depois. Reverenciar os ancestrais significa, realmente, reverenciar a vida, sua continuidade e mudança. Somos os filhos daqueles que aqui estiveram antes de nós, mas não somos seus gêmeos idênticos, assim como não engendraremos seres idênticos a nós mesmos. [...] Desse modo, o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva.24 Essa percepção cósmica e filosófica entrelaça, no mesmo circuito de significância, o tempo, a ancestralidade e a morte. A primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene transformação. Nascimento, maturação e morte tornam-se, pois, contin23/ Laura Cavalcante Padilha, Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na ficção angolana do séc. XX. Niterói: EDUFF, 1995, p. 10. 24/ Ngũgĩ Ngugi wa Thlong’o, Writers in Politics: a Re-engagement with Issues of Literature and Society. A revised and enlarged edition. Oxford; Nairóbi; Ports Mouth: James Currey; EAEP; Heineman, 1997, p. 139.

gências naturais, necessários na dinâmica mutacional e regenerativa de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta. Para Bunseki Fu-Kiau,25 nas sociedades nicongo, vivenciar o tempo significa habitar uma temporalidade curvilínea, concebida como um rolo de pergaminho que vela e revela, enrola e desenrola, simultaneamente, as instâncias temporais que constituem o sujeito. O aforisma kicongo, “Ma’kwenda! Ma’kwisa!, o que se passa agora, retomará depois” traduz com sabor a ideia de que o que flui no movimento cíclico permanecerá no movimento. Essa mesma ideia grafa-se em uma das mais importantes inscrições africanas, transcriada de vários modos nas religiões afro-brasileiras, os cosmogramas, signos do cosmos e da continuidade da existência, também presentes nas coreografias dos Congos. Nessa sincronia, o passado pode ser definido como o lugar de um saber e de uma experiência acumulativos, que habitam o presente e o futuro, sendo também por eles habitado. A mediação dos ancestrais, manifesta nos Congados pela força (axé) dos candombes (os tambores sagrados), é a clave-mestra dos ritos e é dela que advém a potência da palavra vocalizada e do gestus corporal, instrumentos de inscrição e de retransmissão do legado ancestral. Na performance ritual, o congadeiro, simultaneamente, espelha-se nos rastros vincados pelos antepassados, reificando-os, mas deles também se distancia, imprimindo, como na improvisação melódica, seus próprios tons e pegadas. Nos rituais, “cada repetição é em certa medida original, assim como, ao mesmo tempo, nunca é totalmente nova”.26 Esse processo pendular entre a tradição e a sua transmissão institui um movimento curvilíneo, reativador e prospectivo que integra sincronicamente, na atualidade do ato performado, o presente do pretérito e do futuro. Como um logos em movimento do ancestral ao performer e deste ao ancestre e ao infans, cada performance ritual recria, restitui e revisa um círculo fenomenológico no 25/ K. K. Bunseki Fu-Kiau, “Ntangu-Tandu-Kolo: The Bantu-Kongo Concept of Time”, in Joseph K. Adjaye (ed.), Time in the Black Experience. Westport; Londres: Greenwood Press, 1994, p. 33. 26/ Margaret Thompson Drewal, Yoruba Ritual, Performers, Play, Agency. Bloomington; Indianapolis: Indiana University Press, 1992, p. 1.


qual pulsa, na mesma contemporaneidade, a ação de um pretérito contínuo, sincronizada em uma temporalidade presente que atrai para si o passado e o futuro e neles também se esparge, abolindo não o tempo, mas a sua concepção linear e consecutiva. Assim, a ideia de sucessividade temporal é obliterada pela reativação e atualização da ação, similar e diversa, já realizada tanto no antes quanto no depois do instante que a restitui, em evento. Na genealogia performática dos Congados, a palavra vocalizada ressoa como efeito de uma linguagem pulsional do corpo, inscrevendo o sujeito emissor num determinado circuito de expressão, potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e acontecimento, a palavra proferida grafa-se na performance do corpo, lugar da sabedoria. Por isso, a palavra, índice do saber, não se petrifica num depósito ou arquivo imóvel, mas é concebida cineticamente. Como tal, a palavra ecoa na reminiscência performática do corpo, ressoando como voz cantante e dançante, numa sintaxe expressiva contígua que fertiliza o parentesco entre os vivos, os ancestres e os que ainda vão nascer. Força e princípio dinâmicos, a palavra faz-se linguagem “porque expressa e exterioriza um processo de síntese no qual intervêm todos os elementos que constituem o sujeito”.27 Por isso necessita da música, da dança, do ritmo, das cores, do gestus performático e da adequação para a sua realização. Daí a natureza numinosa da voz e o poder aurático do corpo nas religiões afro-brasileiras, ressonâncias da sua africanidade. Segundo Sodré, junto “com as palavras, junto com o som, deve dar-se a presença concreta de um corpo humano, capaz de falar e ouvir, dar e receber, num movimento sempre reversível”.28 Assim, “cantar/dançar, entrar no ritmo, é como ouvir os batimentos do próprio coração − é sentir a vida sem deixar de nela inscrever a morte”;29 sendo o próprio ritmo o movimento “do impulso que leva o corpo a garimpar a falta”.30 27/ Juana Elbein dos Santos, Os nagô e a morte: Pàde, Àsese e o culto Egum na Bahia, 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1988, p. 49. 28/ Muniz Sodré, Samba, o dono do corpo, 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 67. 29/ Id., ibid., p. 23. 30/ Ibid., p. 68.

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Para o congadeiro, esse saber institui-se também espacialmente. Espaço visitado é sítio consagrado, reterritorializado. Os cortejos e caminhadas revisitam lugares reconhecidos, refazem os círculos em torno de mastros, cruzeiros e igrejas, percorrem caminhos antes talhados pelos antepassados, e trilham novas estradas. As coreografias das danças mimetizam essa circularidade espiralada, quer no bailado do corpo, quer na ocupação espacial que o corpo em voleios sobre si mesmo desenha. Por meio dessa evocação constitutiva, o gesto e a voz da ancestralidade encorpam o acontecimento presentificado, prefigurando o devir, numa concepção genealógica curvilínea, articulada pela performance. Nesta, o movimento coreográfico ocupa o espaço em círculos desdobrados, figurando a noção ex-cêntrica do tempo. Em outras palavras: o tempo, em sua dinâmica espiralada, só pode ser concebido pelo espaço ou na espacialidade do hiato que o corpo em voltejos ocupa. Tempo e espaço tornam-se, pois, imagens mutuamente espelhadas. Essa temporalidade enunciativa não concebe o presente como “presente do próprio ser que se delimita, por referência interna, entre o que vai se tornar presente e o que já não o é mais”.31 Pelo contrário. No âmbito do tempo espiralar, o corpo em performance, nos Congados, é o lugar do que curvilíneamente ainda e já é, do que pôde e pode vir a ser, por sê-lo na simultaneidade da presença e da pertença. O evento encenado no e pelo corpo inscreve o sujeito e a cultura numa espacialidade descontínua que engendra uma temporalidade cumulativa e acumulativa, compacta e fluida. Como tal, a performance atualiza os diapasões da memória, lembrança resvalada de esquecimento, tranças aneladas na improvisação que borda os restos, resíduos e vestígios africanos em novas formas expressivas. Assim, a representação teatralizada pela performance ritual, em sua engenhosa artesania, pode ser lida como um suplemento que recobre os muitos hiatos e vazios criados pelas diásporas oceânicas e territoriais dos negros, algo que se coloca em lugar de alguma coisa inexoravelmente submersa nas 31/ Émile Benveniste, Problemas de linguística geral, trad. Eduardo Guimarães et al. São Paulo: Pontes, 1989, v. II, pp. 85-6.


travessias, mas perenemente transcriada, reincorporada e restituída em sua alteridade, sob o signo da reminiscência. Um saber, uma sapiência. A esses gestos, a essas inscrições e palimpsestos performáticos, grafados pela voz e pelo corpo, denominei oralitura, matizando na noção deste termo a singular inscrição cultural que, como letra (littera) cliva a enunciação do sujeito e de sua coletividade, sublinhando ainda no termo seu valor de /litura, rasura da linguagem, alteração significante, constitutiva da alteridade dos sujeitos, das culturas e de suas representações simbólicas.32 O significante oralitura, da forma como o apresento, não nos remete univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais da tradição verbal, mas especificamente, ao que em sua performance indica a presença de um traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente constituinte, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade. Como um estilete, esse traço cinético inscreve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilos. A oralitura é do âmbito da performance, sua âncora; uma grafia, uma linguagem, seja ela desenhada na letra performática da palavra ou nos volejos do corpo. Como já grifamos, em uma das línguas banto do Congo, o mesmo verbo, tanga, designa os atos de escrever e de dançar, de cuja raiz deriva-se, ainda, o substantivo ntangu, uma das designações do tempo, uma correlação plurissignificativa, insinuando que a memória dos saberes inscreve-se, sem ilusórias hierarquias, tanto na letra caligrafada no papel, quanto no corpo em performance. Nessa perspectiva podemos pensar, afinal, que não existem culturas ágrafas, pois nem todas as sociedades confinam seus saberes apenas em livros, arquivos, museus e bibliotecas, mas resguardam, nutrem e veiculam seus repertórios em outros ambientes de memória, suas práticas performáticas. Nas danças rituais brasileiras, sejam de ascendência banto ou nagô-iorubá, as coreografias côncavas e convexas que criam um espaço de circunscrição do sujeito e do cosmos remetem-nos não apenas ao universo semântico

e simbólico da ação ali reapresentada, mas constituem em si mesmas a própria ação instituída e constituída pela performance do corpo. Dançar é performar, inscrever. A performance ritual é, pois, um ato de inscrição. Nas culturas predominantemente orais e gestuais, como as africanas e as indígenas, por exemplo, o corpo é, por excelência, o local da memória, o corpo em performance, o corpo que é performance. Como tal esse corpo/corpus não apenas repete um hábito, mas também institui, interpreta e revisa o ato reencenado. Daí a importância de ressaltarmos nas tradições performáticas sua natureza metaconstitutiva, nas quais o fazer não elide o ato de reflexão; o conteúdo imbrica-se na forma, a memória grafa-se no corpo, que a registra, transmite e modifica dinamicamente. O corpo, nessas tradições, não é, portanto, apenas a extensão de um saber reapresentado, e nem arquivo de uma cristalização estática. Ele é, sim, local de um saber em contínuo movimento de recriação formal, remissão e transformações perenes do corpus cultural. Nas tradições rituais afro-brasileiras, arlequinadas pelos seus diversos cruzamentos simbólicos constitutivos, o corpo é um corpo de adereços: movimentos, voz, coreografias, propriedades de linguagem, figurinos, desenhos na pele e no cabelo, adornos e adereços grafam esse corpo/corpus, estilística e metonímicamente como locus e ambiente do saber e da memória. Os sujeitos e suas formas artísticas que daí emergem são tecidos de memória, escrevem história. O corpo em performance restaura, expressa e, simultaneamente, produz esse conhecimento, grafado na memória do gesto. Performar, nesse sentido, significa inscrever, repetir transcriando, revisando e representa “uma forma de conhecimento potencialmente alternativa e contestatária”.33 A memória dos saberes dissemina-se por inúmeros atos de performance, um mais-além do registro gravado pela letra alfabética; por via da performance corporal − movimentos, gestos, danças, mímica, dramatizações, cerimônias de celebração, rituais etc. − a memória seletiva do conhecimento prévio é instituída e mantida nos âmbitos social e cultural. Assim, na oralitura dos Congados, o corpo é um portal que,

32/ Cf. Leda Maria Martins, 1997, op. cit., p. 21.

33/ Joseph Roach, op. cit., pp. 46-7.


simultaneamente, inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local, ambiente e veículo da memória, “um lugar de transferência, [...] um espelho que contém o olhar do observador e o objeto do olhar, mutuamente refletindo-se um sobre o outro”.34 Conta-se que, há muito tempo atrás, escravizados africanos nas Américas desenhavam, no casco de tartarugas marinhas e nas plumagens de certos pássaros, cosmogramas de, suas culturas de origem, para comunicar aos ancestrais, que repousavam em Africa, suas paragens nas longínquas paisagens americanas. Nas formas poéticas que nos sustêm, em responso aos gestos da ancestralidade podemos ecoar o poeta angolano Ruy Duarte de Carvalho: Não há lugar achado sem lugar perdido. Casam-se além as falas de um lugar, no encontro da memória com a matriz.35 Os Congados nos testemunham que, assim como não há uma reminiscência total, absoluta e eterna, o esquecimento também é da ordem da incompletude. Nas genealogias de sua performance, os congadeiros irrigam os pergaminhos da História e nos restituem um sujeito que, clivado de memória, cartografa, com seu corpo negro arlequinado, os muitos matizes da cultura brasileira e dos territórios americanos. Afinal, a numinosidade da voz, como alethéa, aparição, e o corpo, domus dos saberes, confirmam ao olhar e aos ouvidos os cursos dos sons, dos gestos, trazendo consigo os seres e os âmbitos em que são, recriando uma outra arkhé, um outro axé, espelho de um outro logos. Como diz o poeta Edimilson:36

34/ Mary N. Roberts e Allen F. Roberts, op. cit., p. 86. 35/ Ruy Duarte Carvalho, Lavra: poesia reunida 1970-2000. Lisboa: Cotovia, 2005, p. 231. 36/ Edimilson de Almeida Pereira, op. cit.

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Família Lugar Um rio não divide duas margens. O que se planta nos lados é que o separa. .................... Para um devoto tudo é muitas coisas. Uma ravina de águas que envolve vivos e mortos. .................... Estamos nós, os Bianos, de enigma resolvido. A lagoa onde somos tem ideias de rio. Aqui e lá são peças dos olhos em movimento. Como são na diferença os mesmos Deus e Zambiapungo. A textualidade afro-brasileira e as performances da oralidade nos oferecem um amplo feixe de possibilidades de percepção, caligrafando a história e a memória dos negros. Essa memória do conhecimento grafa-se, também, como aletria, nas pautas do papel e do corpo. Um saber que se borda pela fina lâmina da palavra ou no delicado gesto. Littera e litura. Gravuras da letra, do corpo e da voz.

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ensaios e colaborações

ensaios diane lima é curadora, pesquisadora, escritora e uma das principais vozes do feminismo negro na arte contemporânea brasileira. Em 2021 foi premiada com o Ford Foundation Global Fellowship, programa que celebra a próxima geração de líderes de justiça social ao redor do mundo. Sua trajetória composta por projetos que desafiam as práticas institucionais e curatoriais resultou na organização do livro Negros na Piscina: Arte contemporânea, curadoria e educação (2023) e Textes à lire à voix haute (2022). Outros projetos recentes incluem as exposições Paulo Nazareth: Vuadora (Pivô, São Paulo, 2022); Antônio Obá: Path (Oude Kerk, Amsterdam, 2022) e Frestas – 3ª Trienal de Arte Sesc-SP – O rio é uma serpente (Sesc Sorocaba, São Paulo, 2020-21). Mestra em comunicação e semiótica pela PUC-SP, suas palestras e textos tem ressoado em diversas instituições e publicações internacionais. grada kilomba é artista interdisciplinar, escritora e doutora em filosofia pela Universidade Livre de Berlim, Alemanha. Lecionou em diversas universidades internacionais, como a Universidade de Artes de Viena, na Áustria. Suas obras levantam questões sobre conhecimento, poder e violência cíclica, e foram exibidas em eventos significativos como a 10ª Berlin Biennale; Documenta 14; La Biennale de Lubumbashi VI; e 32ª Bienal de São Paulo; assim como em inúmeros museus e teatros internacionais. Seu trabalho dispõe de diferentes formatos como performance, leitura cênica, textos, vídeo e instalação, tendo como foco memória, trauma, gênero e pós-colonialismo. Obras de sua autoria integram coleções públicas e privadas como a da Tate Modern (Inglaterra).

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hélio menezes é antropólogo e internacionalista pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador associado do BrazilLab, da Universidade de Princeton. Foi curador de arte contemporânea do Centro Cultural São Paulo de 2019 a 2021, onde também atuou como curador de literatura entre março e outubro de 2019, e coordenador internacional do Fórum Social Mundial de Belém (2009), Dakar (2011) e Túnis (2013). Alguns de seus trabalhos mais recentes são Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros (IMS Paulista), Histórias afro-atlânticas (MASP e Instituto Tomie Ohtake) e dos brasis (Sesc). Em 2021, foi reconhecido pela ArtReview Magazine como uma das cem pessoas mais importantes da arte contemporânea no mundo. manuel borja-villel é doutor em história da arte pela City University de Nova York, foi diretor do Museu Reina Sofía (Madri, Espanha) entre 2008 e 2022, sendo responsável pelo desenvolvimento e profunda releitura da coleção do museu. Nos últimos anos, o Reina Sofía fortaleceu sua posição como referência para a produção cultural pelo trabalho realizado com uma rede assimétrica de instituições que inclui, entre outros, museus, universidades e instituições independentes. Dirigiu a Fundación Antoni Tàpies (Espanha) desde sua criação, em 1990, até 1998, e fez da fundação uma instituição experimental com uma programação centrada na crítica institucional. Já à frente do Museu d’Art Contemporani de Barcelona de 1998 a 2008, colocou a gestão pública a serviço da agenda cidadã, criando um lugar de dissidência por meio da pedagogia radical, da crítica e da experimentação institucional. Ele reflete sobre esses e outros temas em seu último livro: Campos magnéticos: escritos de arte y política (2020).


denise ferreira da silva é artista, filósofa, professora e diretora do The Social Justice Institute-GRSJ da University of British Columbia (Canadá). Entre seus trabalhos estão os filmes Serpent Rain (2016), 4 Waters: Deep Implicancy (2018) e Soot Breath/Corpus Infinitum (2020), este último em colaboração com Arjuna Neuman. gladys tzul tzul, do povo Maya K’iche’, é doutora em sociologia e autora de livros de ensaios. Tem atuado como testemunha especialista em tribunais da Guatemala, em defesa de autoridades comunitárias encarceradas, e em Honduras apresentou perícia de gênero no julgamento pelo assassinato da ativista ambiental Berta Cáceres. hagar kotef é professora de teoria política no Departamento de Políticas e Estudos Internacionais da SOAS University of London (Inglaterra). É autora de The Colonizing Self: Or Home and Homelessness in Israel/ Palestine (2020) e Movement and the Ordering of Freedom: On Liberal Governances of Mobility (2015). ilenia caleo é performer, ativista e investigadora. Mestra em filosofia contemporânea, é pesquisadora da Università Iuav di Venezia e cofundadora do programa de mestrado em estudos de gênero e política da Università Roma Tre (Itália). Sua pesquisa se concentra em corpos, epistemologias feministas, artes cênicas experimentais e novas instituições culturais.

leda maria martins é poeta, ensaísta, dramaturga e professora. Publicou, entre outros, Afrografias da memória: O reinado do Rosário no Jatobá (2021) e Performances do tempo espiralar: Poéticas do corpo-tela (2021). rizvana bradley é professora assistente de filme e mídia na University of California, Berkeley (EUA). Suas pesquisas e textos sobre arte contemporânea, cinema e mídia têm sido publicados em vários periódicos e oferecem um exame crítico do corpo negro em distintas práticas artísticas experimentais. tiganá santana é compositor, poeta, multiartista, tradutor e pesquisador, além de professor de artes na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Foi o primeiro compositor, no Brasil, a apresentar um álbum com canções em línguas africanas.


colaborações abigail campos leal transita entre arte e filosofia para criar poéticas anticoloniais. É professora no curso de especialização em Ciências Humanas e Pensamento Decolonial da PUC-SP. Apresentou performances no Museu da Imagem e do Som do Ceará e no Itaú Cultural (SP). Entre suas publicações está ex/orbitâncias: os caminhos da deserção de gênero (2021).

claudinei roberto da silva é curador convidado do Museu Afro Brasil Emanoel Araujo. Foi curador das exposições Sidney Amaral: O banzo, o amor e a cozinha (2015), no Museu Afro Brasil Emanoel Araujo, 13ª Bienal Naïfs do Brasil (2016), no Sesc, e 37º Panorama da Arte Brasileira: Sob as cinzas, brasa (2022), no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

ana longoni é escritora, curadora, pesquisadora e professora na Universidad de Buenos Aires (UBA) (Argentina). Estuda as intersecções entre arte e política na Argentina e na América Latina de meados do século 20 até o presente. É autora de Parir/Partir (2022), entre outros.

david pérez é professor de chaves do discurso artístico contemporâneo na Universitat Politècnica de València e membro do Centro de Investigación Arte y Entorno, na mesma universidade (Espanha). É autor de vários ensaios sobre arte, estética e pensamento.

barbara copque é professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), antropóloga-que-fotografa, membra do Comitê de Antropologia Visual da Associação Brasileira de Antropologia e conselheira do Museu Afrodigital Rio de Janeiro. Participa do grupo Afrovisualidades, do projeto Mapeando Arte e Cultura Visual Periférica e possui obras no acervo do Museu de Arte do Rio.

déba tacana é artista visual, pesquisadora e professora na Universidade Federal do Acre (UFAC). Desenvolve uma investigação poética das dimensões visíveis e invisíveis por meio da matéria: corpo cerâmico × corpo indígena × corpo-território, em diálogo com transformações das fronteiras e paisagens de guerra em Abya Yala.

beatriz martínez hijazo é pesquisadora. Mestra em história da arte contemporânea e cultura visual pela Universidad Complutense de Madrid, foi cocuradora da mostra Un acto de ver que se despliega – Colección Susana y Ricardo Steinbruch (2022) no Museo Reina Sofía (Espanha). carles guerra é artista, escritor e pesquisador independente. Foi diretor de La Virreina Centre de la Imatge, curador-chefe do Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona (MACBA) e, de 2015 a 2020, diretor executivo da Fundació Antoni Tàpies (Espanha). Foi curador da mostra Francesc Tosquelles: Like a Sewing Machine in a Wheat Field (2022) no Museo Reina Sofía (Espanha). cíntia guedes é artista multidisciplinar, professora e pesquisadora. Doutora em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com ênfase em relações raciais e colonialidade do poder e produção da subjetividade.

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emanuel monteiro é artista e professor de artes visuais na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Desenvolve pesquisa nas linguagens de desenho e pintura. fernanda carvajal é socióloga e trabalha com a intersecção entre arte, sexualidade e políticas. Atualmente é pesquisadora no Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet) (Argentina) e membra da Red Conceptualismos del Sur (RedCSur). getsemaní guevara romero é historiadora da arte, arquivista e curadora. Atualmente colabora no Centro de Documentación Arkheia, do Museo Universitario Arte Contemporáneo (MUAC) (México). Seus interesses de pesquisa giram em torno de feminismos, memória e arquivo. heitor augusto atua nas intersecções entre curadoria e programação de filmes, pesquisa, escrita e ensino no campo do cinema. É programador-chefe do Instituto Nicho 54.


horrana de kássia santoz é curadora, educadora e realizou a pesquisa curatorial das mostras 40 anos do Videobrasil, da Associação Cultural Videobrasil, e Zonas de sombra, na Pinacoteca de São Bernardo do Campo (SP). Desde 2007, atua no desenvolvimento de novas práticas educativas em museus e espaços culturais.

kênia freitas é curadora e programadora do Cinema do Dragão (CE). Doutora em comunicação e cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pesquisadora independente com foco em afrofuturismo, cinemas negros, curadoria e crítica de cinema. Integra o FICINE – Fórum Itinerante de Cinema Negro.

igor de albuquerque é editor, tradutor e ensaísta. Editou a Revista Barril e hoje edita a Revista Canarana. Em 2022 venceu o prêmio de ensaísmo da Serrote. Autor de -13, -38: Amanhã de novo (2019), atualmente prepara uma tese na Universidade de São Paulo (USP) sobre arte e filosofia na obra de Carlo Michelstaedter.

kike españa é pesquisador e ativista, baseado em Málaga (Espanha). É editor na casa editorial Subtextos e faz parte da livraria coletiva Suburbia e do centro social e cultural La Casa Invisible (Espanha).

isabel tejeda é professora titular na Universidad de Murcia (Espanha). Foi curadora de mais de oitenta mostras na Espanha, Itália, Marrocos, França, Reino Unido, Porto Rico e Argentina. É especialista em feminismos e artistas modernas e contemporâneas. josé antonio sánchez é autor de Brecht y el expresionismo (1992), Dramaturgias de la imagen (1994), Prácticas de lo real en la escena contemporánea (2007) e Cuerpos ajenos (2017). É professor na Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM) e fundador do grupo de pesquisa ARTEA (Espanha). Tem colaborado em mostras e programas públicos em diferentes museus na Espanha, no México e na Colômbia. juliana de arruda sampaio é antropóloga e atua como pesquisadora e assistente curatorial. Mestra em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP), tem se dedicado à pesquisa sobre artes visuais, feminismo negro e curadoria. kaira cabañas é diretora associada para Programas Acadêmicos e Publicações no Center for Advanced Study in the Visual Arts (The Center) da National Gallery of Art, Washington, D.C. (EUA). É autora, entre outros, de Immanent Vitalities: Meaning and Materiality in Modern and Contemporary Art (2021) e Learning from Madness: Brazilian Modernism and Global Contemporary Art (2018), que será lançado em 2023 no Brasil.

luciana brito é historiadora e professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). É autora de Temores da África: Segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista (Prêmio Thomas Skidmore, 2019) e colunista do Nexo Jornal. luciane ramos silva é artista da dança, antropóloga e educadora. Doutora em artes da cena e mestra em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisa as corporeidades afrodiaspóricas e africanas, articulando as ideias de pluralidade, transformação e escritas contra-hegemônicas. É coeditora da revista O Menelick 2º Ato. marco baravalle é pesquisador, ativista e curador. Membro do Sale Docks, espaço coletivo e autogerido para artes visuais e ativismo em Veneza, faz parte do Institute of Radical Imagination (IRI) e é bolsista de pesquisa na Università Iuav di Venezia (Itália). É autor de L’autunno caldo del curatore: Arte, neoliberismo, pandemia (2021) e coeditor de Art for UBI (Manifesto) (2022). maria luiza meneses é curadora independente. Graduanda em história da arte pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), integra os coletivos Red LEHA, Nacional Trovoa e Rede Graffiteiras Negras. Realiza o projeto Pinacoteca Digital Mauá e foi curadora da exposição Travessias do moderno em Mauá.


mario gooden é arquiteto de práticas culturais e diretor do Mario Gooden Studio: Architecture + Design. Sua prática envolve a paisagem cultural e a interseccionalidade entre arquitetura, raça, gênero, sexualidade e tecnologia. É professor na Graduate School of Architecture, Planning and Preservation (GSAPP) da Columbia University, onde é diretor do programa de mestrado em arquitetura e codiretor do Global Africa Lab (GAL) (EUA). É autor, entre outros, de Dark Space: Architecture, Representation, Black Identity (2016). miro spinelli é artista e pesquisador. Doutorando em estudos da performance pela New York University (NYU) (EUA), atua nas imbricações entre performance, escrita, artes visuais e teoria. Sua prática artística e intelectual está engajada em estratégias anticoloniais elaboradas através de um irmanamento radical com coisas, matérias e os invisíveis produzidos nas relações com e entre elas. natalia arcos salvo é curadora, pesquisadora e teórica da arte. É uma das fundadoras do Grupo de Investigación en Arte y Política (GIAP) em Chiapas (México), onde dirige o centro de residências artísticas desde 2013. nicole smythe-johnson é escritora e curadora independente de Kingston (Jamaica). Doutoranda no Departamento de Arte e História da Arte da University of Texas at Austin (EUA), foi curadora da mostra If we are here… (2023-2024) no Visual Arts Center da UT Austin e trabalhou na Kingston Biennial de 2022 e na exposição John Dunkley: Neither Day Nor Night (2017-2018), no Pérez Art Museum Miami. oluremi onabanjo é curadora associada do Departamento de Fotografia do Museum of Modern Art (MoMA) e doutoranda no Departamento de História da Arte e Arqueologia da Columbia University (EUA). omar berrada é um escritor e curador marroquino cujo trabalho se concentra na política de tradução e na transmissão intergeracional. É autor da coleção de poesia Clonal Hum e atualmente estuda a dinâmica racial no norte da África.

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pérola mathias é socióloga, pesquisadora da música brasileira contemporânea e atua como jornalista. philippe cyroulnik foi diretor do Le Crédac e do Le 19, Crac (França). Foi curador de exposições individuais e coletivas, além de autor de textos sobre Magdalena Jitrik, Martin Reyna, Ceija Stojka, Alain Clément, Jean-Louis Delbes, Joël Kermarrec, entre outros. rafael garcía faz parte do Departamento de Exposições Temporárias do Museo Reina Sofía (Espanha) desde 2003, tendo sido responsável pela coordenação e gestão de mais de quarenta exposições, várias delas organizadas com museus como o Museum of Modern Art (MoMA) (EUA) e a Pinacoteca de São Paulo. renato menezes é doutorando em teoria e história da arte pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (França). Coeditou o livro França Antártica: Ensaios interdisciplinares (2020). Atualmente é curador da Pinacoteca de São Paulo. rocío robles tardío é PhD em história da arte e professora assistente no Departamento de História da Arte da Universidad Complutense de Madrid. É curadora de diferentes instituições (Museo Reina Sofía, Artium Museoa), pesquisadora em projetos nacionais/internacionais e autora de vários ensaios e livros, como Dora Maar: codificado documentário para la serie fotográfica “Guernica” de Picasso (2023) e Informe “Guernica”: Sobre el lienzo de Picasso y su imagen (2019). rossina cazali é curadora independente e pesquisadora. Recebeu o John Guggenheim Fellowship e o Prince Claus Award por seu trabalho. Foi curadora de exposições de arte contemporânea da Guatemala, em museus como o Museo Universitario Arte Contemporaneo (MUAC) (México), o Museo de Arte y Diseño Contemporáneo (MADC) (Costa Rica) e o Museo Reina Sofía (Espanha). Atualmente dirige o projeto LABORAL e é cofundadora do projeto LAICA de pesquisa e experimentação em arte contemporânea e design.


sara ramos é pesquisadora, editora, tradutora e poeta tocantinense. Mestra em literatura comparada pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), é autora da plaquete pequeno manual da fúria (2022). sol henaro é curadora especializada em políticas da(s) memória(s) e integrante da Red Conceptualismos del Sur (RedCSur) desde 2010. É curadora do Acervo Documental e responsável pelo Centro de Documentación Arkheia do Museo Universitario Arte Contemporáneo (MUAC) (México). sylvia monasterios é curadora, gestora cultural e tradutora venezuelana. Mestra em arte, educação e história da cultura, foi curadora do Núcleo de Artes Visuais do Centro Cultural São Paulo e programadora na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. tarcisio almeida é curador independente e pesquisador. Doutorando pelo Núcleo de Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO-UFMT) e mestre em psicologia clínica pelo Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP), atualmente dedica sua pesquisa a experimentos artísticos e modos de criação baseados em liberação, liberdades e justiças cognitivas a partir do campo das artes visuais. tatiana nascimento é artista e pesquisadora em poéticas negras sexual-dissidentes. Publicou, entre outros livros, Palavra preta (2021), Lundu (2016), Oriki de amor selvagem (2018) e Leve sua culpa branca pra terapia (2019). thiago de paula souza é curador, educador e pesquisador. Doutorando pela HDK-Valand – Academy of Art and Design da Universidade de Gotemburgo (Suécia), é responsável pela cocuradoria do Nomadic Program 2022/2023 do Vleeshal Center for Contemporary Art (Holanda) e integra o comitê de curadores da Nesr Art Foundation (Angola).


josé olympio da veiga pereira

presidente – fundação bienal de são paulo

​ cada dois anos, o Pavilhão Ciccillo Matarazzo é palco das A obras e dos assuntos mais urgentes do mundo da arte. O visitante que caminha entre as pinturas, esculturas, desenhos, pesquisas, instalações e tantas outras linguagens em constante transformação, e realizadas por artistas oriundos dos mais diversos cenários, pode imaginar o esforço que há por trás de cada trecho da exposição. Orquestrar uma mostra da envergadura da Bienal de São Paulo, e com o grau de excelência que ela demanda, é uma tarefa possível somente graças ao trabalho coletivo de profissionais das mais diferentes áreas de especialização. Tudo começa com a escolha do projeto curatorial, sempre novo, sempre renovador. A partir desse momento, se iniciam os preparativos, que terminam somente quando a exposição se encerra. As infinidades de reuniões e de decisões difíceis, as trocas de correspondência e os contratos que precisam ser assinados, os cronogramas e suas múltiplas revisões, o orçamento e a captação de recursos, e o estreitamento de laços com o poder público e a iniciativa privada em uma rede de patrocinadores, apoiadores e parceiros. Tudo deve ser negociado com transparência e projetado de modo a respeitar os limites de conservação do próprio pavilhão, uma joia da arquitetura modernista, e do meio ambiente, em acordo com as diretrizes institucionais que buscam mitigar, inclusive, a pegada de carbono do próprio evento. A produção da mostra transforma o abstrato em concreto. Estabelece pontes entre as coleções, trabalha lado a lado com fornecedores dos mais variados ofícios, alinha deslocamentos, trata da programação e cria as condições necessárias para que as obras façam parte da exposição com segurança, zelo e criatividade. A equipe de educação apresenta cursos de formação para educadores, estabelece ações de difusão em escolas e em centros de pesquisa, produz publicações educativas, suas ferramentas de trabalho, e media a relação entre as obras e os visitantes interessados em criar novas conexões entre suas vivências e a arte ali exibida. A comunicação, por sua vez, leva a notícia e anuncia os conteúdos da mostra para um público da Bienal cativo e exigente; ao mesmo tempo, convida pessoas que nunca tiveram a oportunidade de conhecer a exposição de perto. Também cabe a ela coordenar as publicações,

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sinalizar o espaço, amarrar textos e imagens. Trabalhando em consonância com a saúde financeira e administrativa do evento, juntas, essas equipes fornecem o ambiente preciso para a realização da Bienal. A montagem ocorre em um prazo apertado, e cada passo dessa etapa deve ser previamente estudado e medido. Em um primeiro momento, as paredes são erguidas e a arquitetura ganha vida. O pavilhão é tomado por construtores, madeira, gesso e ferro. Uma vez preparado o edifício, chega a hora de acolher as obras e suas caixas de acondicionamento, que são desembaladas para que os montadores fixem com precisão e delicadeza os trabalhos. Em meio a um oceano de detalhes e acabamentos, legendas de obras são instaladas, luzes se acendem, orientadores de público se posicionam, e mais uma Bienal abre suas portas. Para a 35ª Bienal de São Paulo, o coletivo curatorial formado por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel selecionou mais de uma centena de participantes que, de incalculáveis maneiras, coreografaram o impossível. A Fundação Bienal de São Paulo tem orgulho de realizar esta mostra e de também, à sua própria maneira, fazer parte dessa coreografia do impossível, compassada pelo trabalho coletivo.


margareth menezes

ministra da cultura do brasil

Compartilhando da histórica missão do Ministério da Cultura do Governo Federal de promover o crescimento do campo cultural e torná-lo mais acessível, além de fomentar a economia criativa, a Bienal de São Paulo chega agora a sua 35a edição com mais um projeto curatorial inovador e afinado com as questões mais urgentes de nossa época. Esta é uma marca na trajetória deste evento, cujo objetivo sempre foi o de receber um público amplo e mostrar o que há de mais atual no mundo das artes, ao mesmo tempo que promove a sustentabilidade e os direitos humanos, essenciais para o fortalecimento de uma cultura cada vez mais cidadã. Desde a sua primeira edição, em 1951, a Bienal de São Paulo tem ocupado um lugar de prestígio na cultura nacional que vai muito além de suas exposições. Sua consistente continuidade ao longo dos anos foi responsável por formar e capacitar trabalhadoras e trabalhadores da cultura nos mais variados campos, como educadores, críticos de arte, montadores, arquitetos, produtores, editores, comunicadores, designers e tantos outros ofícios, com cada projeto impactando direta e indiretamente um contingente extraordinário de pessoas, famílias e vidas. Dentre os impactos da mostra, é importante destacar a impecável atuação educativa da Bienal. Cada uma de suas edições cria as condições necessárias para se alcançar novos públicos e fomentar o conhecimento crítico de novos visitantes de todas as idades. Com uma equipe de educação permanente, a Fundação Bienal de São Paulo desenvolve cursos livres, ações de mediação e programas de formação para educadores e mediadores, além de produzir as publicações educativas, ferramentas de trabalho imprescindíveis para projetos artístico-pedagógicos. Nesse quadro colorido e múltiplo da Bienal de São Paulo, são criadas oportunidades para aprendermos mais sobre nós mesmos, apreciarmos a diversidade do mundo e celebrarmos a cultura. Para o Governo Federal, aqui representado pelo Ministério da Cultura, não há união nacional sem arte, e não há arte sem democracia. Vamos festejar mais uma Bienal de São Paulo. Viva a arte!


itaú cultural

instituto cultural vale

Em sua trajetória de 35 anos, o Itaú Cultural (IC) tem desempenhado um papel fundamental para a valorização da arte e da cultura nas suas mais diversas linguagens e manifestações. Essa atuação se dá por meio da pesquisa, da produção de conteúdo, do mapeamento, do incentivo e da difusão, mas também das parcerias firmadas com agentes alinhados com os nossos valores, como a Fundação Bienal de São Paulo. O apoio à Bienal de São Paulo – importante espaço de encontro e intercâmbio entre artistas, curadores, críticos e público – reafirma o compromisso do IC com a promoção das artes visuais e o seu papel transformador. Nesse campo, a organização articula diversas ações, sejam exposições físicas e em ambientes virtuais, sejam atividades de caráter formativo. Entre as exposições recentes, Um século de agora apresentou um panorama da arte e da cultura produzidas atualmente no Brasil a partir da curadoria conjunta de Júlia Rebouças, Luciara Ribeiro e Naine Terena. A arte urbana também teve seu espaço, com Além das ruas: histórias do graffiti, em cartaz até o fim de julho. No site itaucultural.org.br, o público encontra as mostras virtuais Filmes e vídeos de artistas, que traz produções audiovisuais de caráter experimental, e Livros de artista na Coleção Itaú Cultural, cujos recursos imersivos e interativos permitem uma apreciação detalhada. No âmbito formativo, o programa Entreolhares promove cursos e oficinas voltados para o desenvolvimento daqueles que atuarão profissionalmente no campo das artes visuais. Essa e outras formações são disponibilizadas na Escola Itaú Cultural (escola.itaucultural.org.br). Já a Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia.itaucultural.org. br) é uma importante ferramenta de compartilhamento de saberes, oferecendo acesso a verbetes de personagens, de obras e de eventos de artes visuais.

O Instituto Cultural Vale tem a alegria de fazer parte da realização desta 35ª Bienal de São Paulo — coreografias do impossível e de seu programa educativo, que nesta edição experimenta novos formatos e abordagens. Diante da proposta curatorial de criar um “espaço de experimentação aberto às danças do inimaginável”, como definem os curadores, nos unimos a essa iniciativa que conecta arte e educação, expande o acesso à cultura e aproxima estudantes, professores e famílias de vivências interdisciplinares. Com uma curadoria conjunta, horizontal e diversa, a Bienal — maior exposição de arte contemporânea do hemisfério Sul — nos convida a pensar a arte como exercício de diálogo, de abertura a novas narrativas e como espaço de aprendizado. Nesse sentido, também se conecta ao propósito do Instituto Cultural Vale: o de ampliar oportunidades para aprender, refletir, desenvolver novos olhares e compartilhar arte, cultura e educação, dentro e fora dos museus, em todo o Brasil.

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bloomberg

sesc são paulo

A Bloomberg se orgulha de patrocinar coreografias do impossível, a 35a edição da Bienal de São Paulo. Há mais de uma década temos apoiado as excepcionais exposições de arte contemporânea da Bienal no deslumbrante Pavilhão Ciccillo Matarazzo no Parque Ibirapuera, e também pelo Brasil, através da nossa parceria com a Fundação Bienal. A edição deste ano continua a tradição de apresentar instalações de arte cativantes e provocativas, que são gratuitas e abertas ao público. Todos os dias, a Bloomberg conecta importantes tomadores de decisão a uma rede dinâmica de informações, pessoas e ideias. Com mais de 19 mil funcionários em 176 escritórios, levamos informações financeiras e de negócios, notícias e conhecimento ao mundo todo. Nossa dedicação à inovação e às novas ideias se estende através do apoio de longa data às artes, que, segundo acreditamos, constituem um caminho importante para motivar cidadãos e fortalecer comunidades. Através de nossos patrocínios, ajudamos a promover o acesso à cultura e a empoderar artistas e organizações culturais para atingir novos públicos.

Diante das incessantes questões da humanidade, talvez valha a pena conviver um pouco mais com algumas perguntas em aberto, tomando amparo em recursos que permitam escavar e construir proces­sualmente as respostas. Nesse sentido, a arte, em suas variadas faces, oferece sumo fértil para elaborações críticas acerca do mundo e de nós mesmos. O encontro entre arte e educação — ambas entendidas como campos do saber — permite a torção do tempo e do espaço: passa a ser possível, assim, suspender neutralidades e dilatar o que se precipita nas estruturas. Até onde essa aproximação é capaz de inferir o real e nele interferir? Ela permite (re)povoar imaginários, descompassar o estatuto universalizante atribuído a conceitos, práticas e pessoas, e assim talhar a realidade com narrativas que articulem o individual e o coletivo, de modo processual e coerente em relação às questões que atravessam a existência. É segundo esse panorama que o Sesc São Paulo e a Fundação Bienal, por meio da 35ª Bienal de São Paulo, reiteram sua longeva parceria, mutuamente comprometida em fomentar experiências de convívio com as artes visuais, ampliando o acesso às ações culturais e ao exercício da alteridade. Esta parceria, que se constitui e se renova há mais de uma década, tem resultado na promoção de projetos como exposições simultâneas, encontros públicos, seminários e formações para educadores, bem como a consolidada mostra itinerante com recortes da Bienal entre unidades do Sesc no interior paulista. A confluência de escolhas e proposições se integra à perspectiva institucional da cultura como um direito, e concebe, junto a uma das maiores mostras do país, um horizonte acessível para a arte contemporânea no Brasil.


fundação bienal de são paulo Fundador Francisco Matarazzo Sobrinho · 1898 –1977 presidente perpétuo Conselho de administração Eduardo Saron · presidente Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires · vice-presidente Membros vitalícios Adolpho Leirner Beno Suchodolski Carlos Francisco Bandeira Lins Cesar Giobbi Elizabeth Machado Jens Olesen Julio Landmann Marcos Arbaitman Maria Ignez Corrêa da Costa Barbosa Pedro Aranha Corrêa do Lago Pedro Paulo de Sena Madureira Roberto Muylaert Rubens José Mattos Cunha Lima Membros Alberto Emmanuel Whitaker Alfredo Egydio Setubal Ana Helena Godoy Pereira de Almeida Pires Angelo Andrea Matarazzo Antonio Henrique Cunha Bueno Beatriz Yunes Guarita Camila Appel Carlos Alberto Frederico Carlos Augusto Calil Carlos Jereissati Claudio Thomaz Lobo Sonder Daniela Montingelli Villela Danilo Santos de Miranda Eduardo Saron Fábio Magalhães Felippe Crescenti Flavia Buarque de Almeida Flávia Cipovicci Berenguer Flavia Regina de Souza Oliveira Flávio Moura Francisco Alambert Gustavo Ioschpe Heitor Martins Helio Seibel Isay Weinfeld Jackson Schneider

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Joaquim de Arruda Falcão Neto José Olympio da Veiga Pereira (licenciado) Kelly de Amorim Ligia Fonseca Ferreira Lucio Gomes Machado Luis Terepins Maguy Etlin Manoela Queiroz Bacelar Marcelo Mattos Araujo (licenciado) Miguel Wady Chaia Neide Helena de Moraes Octavio Manoel Rodrigues de Barros Rodrigo Bresser Pereira Ronaldo Cezar Coelho Rosiane Pecora Sérgio Spinelli Silva Jr. Susana Leirner Steinbruch Tito Enrique da Silva Neto Victor Pardini Conselho fiscal Edna Sousa de Holanda Flávio Moura Octavio Manoel Rodrigues de Barros Conselho consultivo internacional Maguy Etlin · presidente Pedro Aranha Corrêa do Lago · vice-presidente Andrea de Botton Dreesmann e Quinten Dreesmann Barbara Sobel Catherine Petitgas Frances Reynolds Mariana A. Teixeira de Carvalho Mélanie Berghmans Miwa Taguchi-Sugiyama Paula Macedo Weiss e Daniel Weiss Sandra Hegedüs

Diretoria José Olympio da Veiga Pereira · presidente Marcelo Mattos Araujo · primeiro vice-presidente Andrea Pinheiro · segunda vice-presidente Ana Paula Martinez Daniel Sonder Francisco J. Pinheiro Guimarães Luiz Lara Maria Rita Drummond


Equipe Superintendências Antonio Thomaz Lessa Garcia · superintendente executivo Felipe Isola · superintendente de projetos Joaquim Millan · superintendente de projetos Caroline Carrion · superintendente de comunicação Superintendência executiva Giovanna Querido Marcella Batista Relações institucionais e parcerias Irina Cypel · gerente Deborah Moreira Laura Caldas Marjorie Faria Raquel Silva Viviane Teixeira Superintendência de projetos Produção Dorinha Santos · coordenadora de produção Ariel Rosa Grininger Bernard Lemos Tjabbes Camila Cadette Ferreira Camilla Ayla Carolina da Costa Angelo Manoel Borba Nuno Holanda de Sá do Espírito Santo Tatiana Oliveira de Farias Educação Simone Lopes de Lira · coordenadora de produção Thiago Gil de Oliveira Virava · coordenador de conteúdo André Leitão Danilo Pera Diana Dobránszky Giovanna Endrigo Regiane Ishii Renato Lopes

Superintendência de comunicação Ana Elisa de Carvalho Price · coordenadora – design Adriano Campos Eduardo Lirani Felipe de Melo Gomes Francisco Belle Bresolin Julia Bolliger Murari Luciana Araujo Marques Marina Fonseca Rafael Falasco Arquivo Bienal Ana Luiza de Oliveira Mattos · gerente Laís Barbudo Carrasco · gerente Amanda Pereira Siqueira Ana Helena Grizotto Custódio Anna Beatriz Corrêa Bortoletto Antonio Paulo Carretta Daniel Malva Ribeiro Kleber Costa Timoteo Marcele Souto Yakabi Melânie Vargas de Araujo Pedro Ivo Trasferetti von Ah Raquel Coelho Moliterno Sheila Virginia Rocha de Oliveira Castro Leandro Melo · consultor de conservação Aila Passeto Castro de Sousa · estagiária Fernanda Lustosa · estagiária Júlia Maia Lisboa · estagiária Julia Schettini Alves · estagiária Milena Ondichiatti Bessan · estagiária

Administrativo-financeiro Finanças Amarildo Firmino Gomes · gerente Edson Pereira de Carvalho Fábio Kato Silvia Andrade Simões Branco Gestão de materiais e patrimônio Valdomiro Rodrigues da Silva Neto · gerente Larissa Di Ciero Ferradas · coordenadora Angélica de Oliveira Divino Daniel Pereira Victor Senciel Vinícius Robson da Silva Araújo Wagner Pereira de Andrade Planejamento e operações Rone Amabile Vera Lucia Kogan Recursos humanos Higor Tocchio Juarez Fonseca dos Reis Junior Matheus Andrade Sartori Tecnologia da informação Ricardo Bellucci Jhones Alves do Nascimento Matheus Lourenço


35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível Curadoria Diane Lima Grada Kilomba Hélio Menezes Manuel Borja-Villel Sylvia Monasterios · assistência de curadoria Tarcisio Almeida · assistência de curadoria Matilde Outeiro · assistência de curadoria 2022 Conselho curatorial Omar Berrada Sandra Benites Sol Henaro Thomas Jean Lax Arquitetura e expografia Vão – Autoria: Anna Juni Enk te Winkel Gustavo Delonero Equipe: Luiza Souza Gabriela Rochitte Luisa Barone Identidade visual Nontsikelelo Mutiti Agência publicitária DOJO Ambulância e posto médico Premium Serviços Médicos Ltda. Assessoria de imprensa Index · assessoria de imprensa nacional Sutton PR · assessoria de imprensa internacional

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Audiovisual Maxi Mit Arte · consultoria de audiovisual Bombeiro civil Local Serviços Especializados Ltda. – Me Cenografia Cinestand Metro Cenografia Conservação Alice Gontijo Camila Marchiori Carolina Lewandowski Daniel Mussi Luanda Andrade Patrícia Reis Pollynne Santana Consultoria de acessibilidade Mais Diferenças Consultoria de acústica João Miguel Torres Galindo Consultora da programação pública Dora Silveira Corrêa Conteúdo audiovisual e registro fotográfico Bruno Fernandes Danilo Komniski Freddy Leal Leo Eloy Levi Fanan Desenvolvimento da área externa Movediça + Junta · arquitetura Sagaz Esportes · produção Design Tamara Lichtenstein · assistência de design Distribuição elétrica AGR Elétrica Ltda.

Editorial Cristina Fino · coordenação editorial Igor de Albuquerque · pesquisa e conteúdo Mariana Leme · assistência editorial Pérola Mathias · pesquisa e conteúdo Educação Bruna de Jesus Silva · assessoria Tailicie Paloma Paranhos do Nascimento · assessoria Guilherme Batista Leite · auxiliar Maria Eduarda Sacramento de Sousa · auxiliar Educação · estágio Amira Rodrigues Varteresian Ana Beatriz de Andrade Cangussu Lima Ana Beatriz Nascimento Pazetto Beatriz Soares Rodrigues Beatriz Teles Bruno Felipe Tavares Corrêa Caroline de Alencar Goncalves Eduardo André Gal Rodrigues Gladys UJU Balbino Agbanusi Gustavo Albanese Pose Ribeiro da Fonseca Hellen Nicolau Henrique Camargo Vidigal Larissa Morales Maria Giovana de Lira Pereira Marina Akemi Fukumoto Rafael Santos Silva Rafael Tae Hyun Kim Tuca Palhares de Macedo


Educação · mediação Ana Krein Anali Dupré Andre Pereira de Almeida Ânella Fyama de Sousa Barbosa Bruno Costa dos Santos Caio de Sousa Feitosa Camila Aparecida Padilha Gomes Caroline Luz Cristina Alejandra Mena Bastidas Dandara Kuntê Dani Silva Dilma Ângela da Silva Fauston Henrique Della Flora Zandona Gabri Gregório Floriano Giuliana Takahira Iberê Terra de Souza Oliveira Jacob Alves Bezerra Junior Janaina Eleuterio Jhow Carvalho Júlia Iwanaga Kennedy Maciel da Silva Leonel Vicente Mendes Lia Cazumi Yokoyama Emi Lua Luis Carlos Batista Luiz Fernando Dias Diogo Malu Bandeira Maria Trindade Mario Tadeo Urzagaste Galarza Mira Lima Mohamed de Azambuja de Ávila Natália Dias da Mota Santos Nivea Matias Silva Pietra de Ofa Cunha Serra Rafaella Canuto Ricarda Wapichana Roberta Uiop Rose Mara Kielela Selva Campos Sonia Cristina Guirado Cardoso Stephanie Oliveira da Silva Tui Xavier Isnard Vinícius Quintas Massimino Yurungai

Gerência da exposição Danilo Lorena Garcia Sergio Faria Lima · assistência Iluminação Fernanda Carvalho Emília Ramos Luana Alves Cristina Souto Internet ITS Online Limpeza MF Produção e Eventos e Serviços Ltda. Logística de transporte Luiz Santório · internacional Nilson Lopes · nacional Montagem Gala Art Installation Recepção de convidados internacionais Janaina Fainer Segurança Prevenção Vigilância e Segurança Ltda. Seguro Geco corretora de seguros Chubb Liberty Transportadoras Alves Tegam Millenium Website Namibia Chroma e Fluxo


agradecimentos

indivíduos Adele Nelson Agar Ledo Alba Sagols Alberto Cruz Alice Olausson Alicia Pinteño Aline Torres Almudena Díez García Amanda Carneiro Ana Carolina Ralston Ana Hikari Ana Longoni Ana Roman Ana Tomé Andrea Meneghelli Anielle Franco Annabelle Birchenough Annouchka de Andrade Antoine Frerot Aquiles Coelho Silva Astrid Fontenelle Audrey Hörmann Augusto Luitgards Barbara Alves Beatriz Martínez Hijazo Benedita Aparecida da Silva Betty Rudman Bruce Brouwn Bruno Duarte Camila e Francisco Horta Calixto Neto Carina Kurta Carla Guagliardi Carlos Vogt Carmen Accaputo Carmen Silva Carmo Jonhson Carolina González Caroline Bourgeois Caroline Thompson & Jean-Pierre Weill Cecilia Sicupira Cécile Zoonens Chantal Wong Charlene Vollenhoven Charles Esche Chema González Christophe Cherix Chia Lee Cintia Delgado Claudia Marchetti

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Cleusa Garfinkel Dalton Paula Dandara Queiroz Daniel Rangel Daniella Conceição Mattos Araújo Danielle Freire David de Jesus Nascimento Djamila Ribeiro Douglas Rodrigues Eduardo F. Costantini Eduardo Guzman Cordero Elielton Ribeiro Elisa Salazar y Jaime Soubrie Emilio Payán Emily Epelbaum-Bush Eskil Lam Facundo Guerra Fernanda Simon Florencia Malbran Francis Djiwornu Françoise Vergès Gabril Planella Gabriel Calparsoro Garry Trudeau Geni Núñez Geraldo Sena Gilson Rodrigues Gustavo e Cristina Penna Hacco de Ridder Henda Ducados Henilton Parente de Menezes Henry Jackman Hilde Koch-Ockier & Rudy Koch-Ockier Holly Bynoe Igi Ayedun Irene Larraza Aizpurua Iris Fabre Isaac Rudman Isaac Silva Isabel de Naverán Isabel Izquierdo Janaron Uhãy Pataxó Jardis Volpe Javier Mora João Fernandes João Paulo Quintella Johanna Stein Jorge Fernández José Andrés Torres Mora José Antonio Sánchez José Carlos Ferreira José Paulo Agrello Juan Manuel Casado Julia Borja Juliana de Arruda Sampaio Julie Ludwig Justo Navarro Kananda Eller Kathleen Fuld Kevin David Kim Dang Laís Franklin Léa Chikhani Leon Macedo Weiss Letícia Velozo Lluís Alexandre Casanovas Lorraine Leu Lourdes Fernández Luanda Vieira Luciano Zubillaga Lucimery Ribeiro

Luísa Matsushita Luiza Adas Mabel Tapia Mami Kataoka Manuel B. Burbano Manuela Gómez Mara e Marcio Fainziliber Marcelo Expósito Márcia e Marcus Martins Marco Antonio Nakata Marco Túlio e Vanessa Gomes Margareth Menezes Margherita Belcredi Mari Stokler María Amalia García María Amalia León de Jorge Maria Aparecida Weiss Maria Carolina Casati Maria Elena Ortiz Maria Lucia Veríssimo Maria Luisa Marinho Maria Luiza Meneses Maria Prata Marie-Ann Yemsi Marie-Christine Dunham Pratt Mario Cader-Frech Marjolaine Calipel Marta Rincón Max Levai Mercedes Vilardell Mel Duarte Michelle Louise Miguel López Mira Bernabeu Monique du Plessis Naine Terena Natalia Delgado Nesrine Miloudi Nicola Liucci-Goutinkov Pompidou Nicola Wohlfarth Noëlig Le Roux O'Neil Lawrence Pamela Joyner Patrice Pauc Paula Alves de Souza Paulo Borges Paulo Petrarca Philip Berg Philippe Gellman Rachel Maia Rafael García Horrillo Rania Moussa Morin Raphaële Bianchi Regina Casé Regina Pereira Renan Quinalha Ricardo Resende Rita Carreira Rodrigo Toledo Roger Buergel Roland Groenenboom Rolando Ignacio Bulacios Rongomai Kapiri-Marama Rosario Peiró Ruli Moretti Ryan Lynch Sabina Sabolovic Sabrina Fidalgo Saidiya Hartman Sam Krack Sandra Birmaher


Santiago Herrero Amigo Sasha-Kay Nicole Sepake Angiama Simone Leigh Soledad Liaño Sônia Guajajara Sonia Sassi Stefano Carta Stephanie Ribeiro Stuart Bernstein Sueli Carneiro Suely Rolnik Teresa Carvalho Teresa Velázquez Thai de Melo Thais Blucher Thiago Baron Tony Webster Valeria Intrieri Vasif Kortoun Victoria Fernández-Layos Vivi Villanova Yann Mazéas Yina Jiménez Suriel Yolanda Romero Yvette Mutumba Zoe B. Martínez instituições 1 Mira Madrid A Gentil Carioca Acervo Centro Cultural São Paulo Agência Nacional do Cinema – Ancine Agência Solano Trindade Alexandra Mollof Fine Art Arario Gallery Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia Arsenal – Institut für Film und Videokunst Arte1 ARTINGENIUM Aruac Filmes Banco de España Banco Itaú S.A Band Benson Latin American Collection, LLILAS Benson Latin American Studies and Collections, The University of Texas at Austin Brooklyn Museum Catriona Jeffries CBN Ceija Stojka International Fund Central Galeria Centre Pompidou – Musée national d’art moderne Centro de Documentação Cultural “Alexandre Eulalio" Centro de Documentación Arkheia, MUAC (DiGAV, UNAM) Centro de Educação Tecnológica Centro Paula Souza, Governo do Estado de São Paulo Cineteca di Bologna CNN Colección Art Situacions Colección Carla Barbero Colección Mariano Yera Areyhold Colección Patricio Supervielle Collection Antoine de Galbert, Paris Collection Prignitz, Berlin

Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – Condephaat Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp Consulado General y Centro de Promoción de la República Argentina en San Pablo Consulado Geral da Bolívia em São Paulo Consulado Geral da França em São Paulo Consulado Geral da República Dominicana em São Paulo Consulado Geral da República Federal da Alemanha em São Paulo Consulado Geral do Reino dos Países Baixos em São Paulo Contemporary & Creative Growth Art Center Cultura E. Righi Collection Edições Globo Condé Nast Editora Abril Embaixada da Bolívia no Brasil Embaixada do Brasil em La Paz Ensatt Escola Superior de Propaganda e Marketing Estadão Etxepare Basque Institute Fábricas de Cultura Folha de São Paulo Fonds Kervahut / Collection Laurent Fiévet Fundação Nacional de Artes – Funarte Fundação Roberto Marinho Fundación Cultural Banco Central de Bolivia Fundación Kutxa Fundación Mapfre Galeria Simões Assis Galerie Christophe Gaillard Galerie Imane Farès Globo Governo do Estado Plurinacional da Bolivia Hutukara Associação Yanomami Imec Infoglobo Instituto Arte na Escola Instituto Brasileiro de Museus – Ibram Instituto do Patrimonio Histórico e Artístico Nacional – Iphan Instituto Guimarães Rosa Instituto Inhotim Instituto Prebisteriano Mackenzie Jan Mot JCDecaux Joven Pan Konrad Fischer Galerie Kunstinstituut Melly KW Contemporary Art Light Cone (Paris) LUMA Arles Malba – Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires Marcelle Alix, Paris Marcus Meier Collection Mario Cader Collection Matthew Marks Gallery Meio e Mensagem

Mendes Wood DM Michel Rein Brussels Ministério da Cultura Ministério da Educação Ministério da Igualdade Racial Ministério das Relações Exteriores Ministerio de Culturas, Descolonización y Despatriarcalización de Bolivia Ministerio de las Culturas, las Artes y el Patrimonio – Gobierno de Chile Ministerio de Relaciones Exteriores de Bolivia Ministério do Meio Ambiente Ministério do Turismo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania Ministério dos Povos Indígenas Mitre Galeria MO.CO. Esba Museo de Teruel Museo del Estanquillo Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía Museo Nacional de la Estampa Museu Afro Brasil Museu Amazônico – Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – Coleção PCRJ Museu de Arte do Rio de Janeiro – MAR Museu de Arte Osório Cesar National Center for Art Research, Japão New Local Space – NLS P·P·O·W Peter Freeman, Inc. Pinacoteca do Estado de São Paulo Pinault Colletion Practicing Refusal Collective R/E Collection Record Rede TV Samdani Art Foundation Santu Mofokeng Foundation Scott Mueller Collection Secretaria de Economia Criativa e Fomento Cultural do Governo Federal Secretaria de Formação, Livro e Leitura do Governo Federal Secretaria Especial de Cultura do Governo Federal Secretaria Estadual de Educação de São Paulo Secretaria Municipal de Educação de São Paulo Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes Sharjah Art Foundation Sprüth Magers Gallery Terremoto The Charles White Archives The Elizabeth Catlett Mora Family Living Trust The Gloria E. Anzaldúa Literary Trust The Museum of Fine Arts, Houston Tumurun Museum Collection Van Abbemuseum Villa Arson


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aida harika yanomami, edmar tokorino yanomami e roseane yariana yanomami [esq.] Foto: Roseane Yariana Yanomami [todas as imagens] Cortesia: Aruac Filmes amador e jr. segurança patrimonial ltda. [dir.] Foto: Mônica Coster amos gitaï Coleção: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri Doação: Amos Gitaï, 2015 Foto: Archivo Fotográfico Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía anna boghiguian Coleção: E. Righi anne-marie schneider [esq.] Foto: Vincent Everarts [todas as imagens] Cortesia da artista e Michel Rein, Paris/Bruxelas archivo de la memoria trans (amt) Coleção: Archivo de la Memoria Trans arthur bispo do rosário Foto: Hugo Denizart Cortesia: PCRJ/SMS/IMAS-JM/ Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea aurora cursino dos santos Coleção: Museu de Arte Osório Cesar, Franco da Rocha Foto: Everton Ballardin / Fundação Bienal de São Paulo

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ayrson heráclito e tiganá santana Foto: Leo Monteiro / Fundação Bienal de São Paulo bouchra ouizguen © Compagnie O; Production Association Rokya / Association Originale; Co-production MuCEM / Festival de Marseille carmézia emiliano Foto: Abreu Mubarac Cortesia: Central Galeria, São Paulo castiel vitorino brasileiro Foto de Sem título (Marrakech): Rodrigo Jesus ceija stojka [esq. – dir.] Pinault Collection, Paris. Foto: Rebecca Fanuele Foto: Rebecca Fanuele. Cortesia: Galerie Christophe Gaillard, Paris Coleção: Marcus Meier Foto: Rebecca Fanuele. Cortesia: Galerie Christophe Gaillard, Paris Coleção: Antoine de Galbert, Paris. Foto: Diego Cestellano Cano citra sasmita Foto: Yeo Workshop

colectivo ayllu [dir.] Edição de 10 cópias produzidas em colaboração com Australian Print Workshop, Melbourne Coleção: Museo Reina Sofía e CA2M, Madri cozinha ocupação 9 de julho – mstc Foto: Edouard Fraipont daniel lie Comissionada por Berlin Atonal Foto: Savannah van der Niet Gerente de projetos de Studio Dan Lie: Ruli Moretti daniel lind-ramos Foto: Field Studios Photography Cortesia do artista e The Ranch, Montauk dayanita singh © Dayanita Singh Cortesia da artista e Frith Street Gallery, Londres deborah anzinger Foto: Constance Mensh denilson baniwa Foto: Jamille Pinheiro denise ferreira da silva Foto: Alex Woodward diego araúja e laís machado Comissionado e coproduzido por Sesc São Paulo e SAVVY Contemporary


duane linklater Cortesia do artista e Art Gallery of Hamilton edgar calel Foto: Julio Calel Cortesia do artista e Proyectos Ultravioleta elda cerrato Coleção: Archivo Elda Cerrato (ECET) Foto: Luciano Zubillaga elena asins Coleção: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri Doação da artista, 2012 Foto: Archivo Fotográfico Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía ellen gallagher e edgar cleijne Coleção dos artistas Coreografia/performance: Harry Alexander, Julie Cunningham, Werner Hirsch, Nach, Joy Alpuerto Ritter e Aaliyah Tanisha Cortesia: Ellen de Bruijne Projects, Amsterdã, e Marcelle Alix, Paris emanoel araujo Cortesia: Simões de Assis, São Paulo / Curitiba eustáquio neves [esq.] Coleção: Museu Afro Brasil, São Paulo, e acervo do artista [dir.] Coleção: Ivory Press, Londres, e acervo do artista francisco toledo Coleção: “Visualidades y Movilización Social”, Centro de Documentación Arkheia, Museo Universitario Arte Contemporáneo, MUAC (DiGAVUNAM), Cidade do México Doação: Amigos del Instituto de Artes Gráficas Oaxaca, IAGO [vista da instalação] Foto: Oliver Santana gabriel gentil tukano Coleção: Museu Amazônico - UFAM, Manaus

george herriman [todas as imagens] Coleção: Garry Trudeau, Nova York [esq. tradução] Ahhh… tudo tranquilo…/ Plup / Ahhh… / Tudo bem / Slup / Ehhhh… / Tudo estupendo / Dlup / ? / Glup / Zlup / Tudo muito bem / Sim, tudo está como deveria estar, “calmo” !!! [dir. tradução] Ai meu deus, meu deus! Onde está Ignatz? / Tenho aqui este lindo ladrilho e aquele gato em nenhuma parte - é exasperante! / Oh senhor Belzebu, Belzibeel, pode me dizer por onde anda o rato Inácio? / Mas ele está em Kaibito, com o ladrilho mais doce que você já viu - e ele está esperando por você. / Sim senhor, Krazy está em Coconino e,de acordo com seus olhos, parece que está o esperando. / Oh! obrigado senhor Grou, eu teria ficado aqui para sempre se você não tivesse aparecido / Coconino!!! Coconino!!! / Kaibito! Kaibito!!! / Bem, não senhor, Krazy não está aqui, ele acabou de sair para Kaibito. Você o encontrará lá, tenho certeza. / É uma pena, ele acaba de sair, foi para Coconino - sim, é lá que você pode encontrá-lo / Coconino!! Coconino!!! / Kaibito!! Kaibito!!! / Não vou perdê-lo outra vez, te garanto! - eu ficarei aqui mesmo neste lugar até que ele apareça… meu anjinho do amor / Eu ficarei aqui à vontade e vou esperar aqui mesmo até que ele venha - não vou mais perdê-lo, vocês podem apostar

igshaan adams [esq] Foto: Annik Wetter Cortesia do artista e Kunsthalle Zürich, Suíça © Igshaan Adams [dir. acima] Coleção particular Foto: Kyle Morland Cortesia do artista e blank projects, Cidade do Cabo © Igshaan Adams [dir. abaixo] Cortesia do artista e The Art Institute of Chicago © Igshaan Adams

gloria anzaldúa Coleção: The Nettie Lee Benson Latin American Collection Cortesia: The Gloria E. Anzaldúa Literary Trust & Benson Latin American Collection, LLILAS Benson Latin American Studies and Collections, The University of Texas at Austin

kapwani kiwanga Cortesia da artista, Gucci e Goodman Gallery, Cidade do Cabo, Joanesburgo, Londres / Galerie Poggi, Paris / Galerie Tanja Wagner, Berlim

guadalupe maravilla Foto: Maxwell Runko Cortesia: Guadalupe Maravilla e P·P·O·W, Nova York

jesús ruiz durand Coleção: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri Comodato de longa duração da Fundación Museo Reina Sofía, 2017 Foto: Archivo Fotográfico Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía jorge ribalta Produzido com o apoio da Fundación MAPFRE, Madri josé guadalupe posada Coleção: Museo Nacional de la Estampa, Cidade do México juan van der hamen y león Coleção: Kutxa Fundazioa, San Sebastián Foto: Juantxo Egaña judith scott Coleção e foto: Creative Growth Art Center, Oakland

katherine dunham Coleção: Library of Congress, Washington, D.C. Cortesia: Marie-Christine Dunham Pratt


kidlat tahimik [esq.] Imagem: Kabunyan de Guia [dir.] Imagem: Kabunyan de Guia e Nona Garcia luana vitra Foto: Victor Galvão luiz de abreu Foto: Gil Grossi / Instituto Itaú Cultural, São Paulo malinche Coleção: The Nettie Lee Benson Latin American Collection, LLILAS Benson Latin American Studies and Collections, The University of Texas at Austin Cópia de exibição marilyn boror bor Foto: José Oquendo Cortesia da artista e José Oquendo marlon riggs Foto: Signifyin’ Works maya deren © Todos os direitos reservados aos artistas Cortesia: Light Cone melchor maría mercado Coleção: Archivo y Biblioteca Nacionales de Bolivia morzaniel ɨramari Cortesia: Aruac Filmes

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mounira al solh Cortesia da artista e Sfeir-Semler Gallery Beirute / Hamburgo nadal walcot Coleção particular

raquel lima Criação: Raquel Lima Realização: Lubanzadyo Mpemba e Raquel Lima ricardo aleixo Foto: Rodrigo Lopes de Barros

nadir bouhmouch e soumeya ait ahmed [esq.] Foto: Soumeya Ait Ahmed & Nadir Bouhmouch [dir.] Foto: Basma Rkioui

rommulo vieira conceição Comissionada pelo Instituto Inhotim, Brumadinho Foto: Rafael Muniz

niño de elche Foto: Juan Carlos Quindós

rosana paulino Foto: Ricardo Paulino

patricia gómez e maria jesús gonzález [paredes] Foto: Patricia Gómez & Maria Jesús González [stills] Foto: Fran Condor

rubem valentim Cortesia: Instituto Rubem Valentim, São Paulo

pauline boudry / renate lorenz [todas as imagens] Cortesia: Ellen de Bruijne Projects, Amsterdã e Marcelle Alix, Paris [coreografia/performance]: Harry Alexander, Julie Cunningham, Werner Hirsch, Nach, Joy Alpuerto Ritter, Aaliyah Tanisha (Les Gayrillères); Julie Cunningham, Werner Hirsch, Latifa Laâbissi, Marbles Jumbo Radio, Nach (Moving Backwards); Julie Cunningham, Werner Hirsch, Joy Alpuerto Ritter, Aaliyah Thanisha (No) Time) quilombo cafundó Cortesia: CEDAE - Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, Universidade Estadual de Campinas

rubiane maia [esq.] Foto: Fenia Kotsopoulou sammy baloji Foto: Martin Argyroglo santu mofokeng Coleção: Santu Mofokeng Foundation © Santu Mofokeng Foundation Cortesia: Lunetta Bartz, MAKER, Joanesburgo sarah maldoror [esq.] © Suzanne Lipinska [dir.] © Bildtjänst H. Nicolaisen [todas as imagens] Cortesia: Annouchka de Andrade & Henda Ducados


sauna lésbica por malu avelar com ana paula mathias, anna turra, bárbara esmenia e marta supernova Foto: Marina Lima senga nengudi Foto: Adam Avila © Senga Nengudi, 2023 Cortesia: Sprüth Magers e Thomas Erben Gallery, Nova York sidney amaral Coleção: Banco Itaú, São Paulo Foto: João Liberato sonia gomes [dir.] Foto: Bruno Leão [todas imagens] Cortesia da artista e Mendes Wood DM, São Paulo, Nova York, Bruxelas stanley brouwn De acordo com o desejo do artista, o catálogo não reproduz nenhum dado biográfico, nem imagens, nem textos sobre ele. Esta participação tem o apoio do Consulado Geral do Reino dos Países Baixos em São Paulo. stella do patrocínio Acervo pessoal de seu sobrinho, cedido à pesquisadora Anna Carolina Vicentini Zacharias taller 4 rojo Coleção: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri Doação: Fundación Proyecto Bachué (José Darío Gutiérrez e María Victoria Turbay), 2021 Foto: Archivo Fotográfico Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía

taller de gráfica popular charles white Coleção: The Charles White Archives elizabeth catlett Coleção: The Elizabeth Catlett Mora Family Living Trust john woodrow wilson Coleção: Brooklyn Museum, Emily Winthrop Miles Fund, 1996.47.3 © John Wilson / AUTVIS, Brasil, 2023 leopoldo méndez Coleção: Carlos Monsiváis, Museo del Estanquillo, Cidade do México margaret taylor goss burroughs Coleção: Prignitz, Berlim. Foto: © Prignitz taller nn Coleção: Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri Comodato de longa duração da Fundación Museo Reina Sofía, 2017 Doação: Mirko Lauer Holoubek e Juan Carlos Verme, Lima, Peru Foto: Archivo Fotográfico Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía tejal shah Cortesia: artista, Barbara Gross Galerie, Munique, e Project 88, Bombaim torkwase dyson [esq.] Foto: Damian Griffiths [dir. cima e baixo] Foto: Rich Lee [todas as imagens] Cortesia: Pace Gallery, Londres trinh t. minh-ha Body Art e Land Art: Jean-Paul Bourdier © Moongift Films

ubirajara ferreira braga Coleção: Museu de Arte Osório Cesar, Franco da Rocha Foto: Everton Ballardin / Fundação Bienal de São Paulo ventura profana [esq.] Realização: Ventura Profana, podeserdesligado, Rainha F., Davi de Jesus do Nascimento, Davi Nascimento, Vedroso, Antoine Golay, Carlos Queirozi [dir.] Comissionada pelo Instituto Moreira Salles, São Paulo Coleção: Pinacoteca de São Paulo wifredo lam [esq.] Coleção: Museo de Arte Latino Americano de Buenos Aires; Fundación Costantini 43.10 [dir.] Coleção: Eduardo F. Costantini, Buenos Aires [todas as imagens] © Lam, Wifredo/ AUTVIS, Brasil, 2023 will rawls Foto: Liz Ligon Comissionada por High Line, Nova York yto barrada Direção de produção Yto Barrada Studio: Ragini Bhow


créditos da publicação

Coordenação editorial Cristina Fino Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo

Organizado por Diane Lima Grada Kilomba Hélio Menezes Manuel Borja-Villel

Assistência de edição Mariana Leme

Sylvia Monasterios · assistência de curadoria Tarcisio Almeida · assistência de curadoria

Projeto gráfico e diagramação Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo Tamara Lichtenstein · assistente Preparação e revisão Sandra Brazil Tatiana Allegro Tradução Alexandre Barbosa de Souza Ana Laura Borro Bruna Barros e Jess Oliveira Celia Euvaldo Gabriel Bogossian Mariana Nacif Mendes Naia Veneranda Produção gráfica Márcia Signorini Equipe de Comunicação da Fundação Bienal de São Paulo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Famílias tipográficas LL Circular e Bagatela Impressão Ipsis

35� Bienal de São Paulo : coreografias do impossível : catálogo – São Paulo : Bienal de São Paulo, 2023. Vários autores. ISBN 978-85-85298-85-2

© Copyright da publicação: Fundação Bienal de São Paulo. Todos os direitos reservados.

1. Arte - São Paulo (SP) - Exposições 2. Bienal de São Paulo (SP)

As imagens e os textos reproduzidos nesta publicação foram cedidos por artistas, fotógrafos, escritores ou representantes legais e são protegidos por leis e contratos de direitos autorais. Todo e qualquer uso é proibido e condicionado à expressa autorização da Bienal de São Paulo, dos artistas e dos fotógrafos. Todos os esforços foram feitos para localizar os detentores de direitos das obras reproduzidas. Corrigiremos prontamente quaisquer omissões, caso nos sejam comunicadas.

23-166963 CDD-709.8161 Índices para catálogo sistemático: 1. Bienais de arte : São Paulo : Cidade 709.8161 2. São Paulo : Cidade : Bienais de arte 709.8161 Eliane de Freitas Leite

Bibliotecária

CRB 8/8415

Este catálogo foi publicado em setembro de 2023, como parte do projeto da 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível.





Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Cultura, Economia e Indústria Criativas, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, Fundação Bienal de São Paulo e Itaú apresentam

978-85-85298-85-2


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