Monolito Coletivo Literário - Desafio 1

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Sobre o Projeto

Bem-vindo à casa do Desafio Monólito! Este blog surgiu de um encontro virtual inesperado entre três escritores em busca de novos desafios de aprendizado e de escrita. Vai funcionar assim: todo mês, nossos editores irão propor um tipo de história e inserir um objeto, lugar ou elemento inusitado que deve fazer parte de um conto. Todos os interessados poderão participar e os melhores serão publicados no site e enviados em nosso boletim mensal. Se interessou? Mande seus textos com até 2 mil palavras para o e-mail monolitocoletivo@gmail.com. O prazo é dia 15 de todo mês, certo? Endereço do blog - https://coletivomonolito.wordpress.com 1


Desafio 1

Um escritor e o espremedor de batatas Para esse desafio a proposta era escrever uma história sobre um escritor e sua luta em busca de leitores, ou conflitos no processo da escrita. No entanto, nesse cenário deveria ser incluído um espremedor de batas.

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Escrita em sangue De José Mauricio Eu estou trajado com roupas antiquadas, num quarto precariamente mobiliado. A julgar pelo todo, me parece que estou em algum ponto do século XIX. Meu nome? Agamenon. Como me sinto? Desesperado! Meu pai está moribundo. Minha família tem ele como principal sustento. O que estou fazendo? Estou ajoelhado ao chão, mãos erguidas até a altura do queixo. Na minha frente, no chão, está desenhado um círculo com um pentagrama dentro, com uma vela acesa em cada ponta. Uma galinha morta está posicionada no centro da imagem, além de um pote com o sangue do animal, que foi usado para desenhar a figura. Estou sibilando um cântico rápida e intensamente, enquanto, na minha mente, grito por ajuda. Apesar do quarto todo fechado, as chamas das velas são perturbadas por uma brisa forte. Meu coração se acelera, pois sei que isso é um sinal, sei que devo intensificar minha oração. O vento não cessa, pelo contrário, aumenta, assim como a iluminação no quarto. As chamas estão mais fortes. Um redemoinho está se formando no centro do pentagrama, sugando a fumaça sobrenaturalmente abundante do fogo das velas. O acúmulo da fumaça está tomando forma. Uma criatura horrenda se materializa. De pele vermelha, rosto ossudo, vestido num sobretudo comprido que lhe cobre quase todo corpo, deixando apenas à mostra as patas de casco fendido. No alto da 3


testa ergue-se um par de chifres pontiagudos contorcidos em forma de espiral. Os olhos são de réptil e as pálpebras piscam de baixo para cima. Ele está calado, com um sorriso sinistro, encarando-me, como que se deliciando com meu nítido pavor. Ele chama-me pelo nome com uma voz humana, porém rouca, profunda. Parece que o som paira no ar, até que lentamente, extingue-se por completo. Ele sabe do meu pai, sabe por que o evoquei. Diz que pode me ajudar, mas preciso merecer. Me pergunta se estou disposto a provar meu mérito. Pergunto qual é o custo. Ele diz que a morte é como um animal faminto e meu pai seu alimento. Para que a morte o deixe, é necessário oferece-la algo digno de troca – algo não, alguém. Pergunto o que devo fazer. O demônio tira do bolso um punhal. Diz que será meu instrumento. Basta que eu o carregue. No momento certo, ele me dirá quem estará apto a saciar a morte no lugar do meu pai e me dará o vigor necessário para que me torne algoz, ofertante de sangue pela misericórdia de sangue. Penso em meu pai, em sua hombridade, em sua integridade. Digo que não farei. Seria por demais abominável manchar a retidão de sua vida com tão nefasto ato. O demônio fita-me com seus olhos reptilianos como que olhando direto em minha alma. Então percebo. Então fica claro toda a verdade. Sou um dissimulado ludibriando a mim mesmo com impressões erradas de minhas intensões. Assim, seguro o punhal. Sinto de imediato a sensação de invencibilidade. Então aceito. A criatura afasta-se com ar de satisfação e anuncia que voltará. O vento sopra, as chamas brilham e o demônio começa a perder a forma, mas não antes de perceber que alguém assistia. Não Agamenon, mas eu, Lázaro, que ali estive todo o tempo. E sorri para mim.

(…) Dr. Otávio despertou Lázaro do transe com urgência. Seu paciente estava relatando um desconcertante episódio de regressão e, por fim, gritava exasperadamente. Acordou com o olhar afetado, um estado febril. O doutor tentava acalmar seu paciente. Aos poucos, Lázaro foi centrando-se, retomando o controle. Dr. Otávio parecia perplexo, apesar de tentar esconder qualquer reação. Receitou um remédio para Lázaro acalmar-se e pediu que retornasse. Lázaro deixou o consultório com a certeza de nunca mais querer aquilo novamente. O que será que houve? – perguntava-se. Foi ao médico para mergulhar a fundo em seu comportamento extremamente misantropo. Lázaro era extremamente inteligente. Estudava tudo que podia sobre a alma humana. Filosofia, sociologia, 4


escritores que pareciam ler as pessoas. Observava a todos, do indivíduo ao grupo; dos relacionamentos ao vivo aos virtuais. E então escrevia. Arquitetava mundos, situações. Seus personagens gritavam em sua mente. Dar escape a sua imaginação era o que o mantinha vivo e são. Mas pelo seu jeito de ser, não mantinha qualquer ligação com outros. Por isso, ninguém pagava pelas suas ideias; ninguém se interessava pelas suas palavras. E por mais que acreditasse em seu modo de ser, sabia que o ser humano não foi feito para viver só. E então procurou ajuda. Encontrou o Dr. Otávio Vásquez que lhe prometeu respostas imediatas. Ao que parece, não foi naquela noite ou em qualquer outra que teria solução para suas questões. Chegou em casa ainda atormentado. Via os olhos do demônio toda vez que fechava os seus. Tinha receio da escuridão e do silêncio. Quando já era tarde e resolveu deitar-se, sentia o sono pesando, mas não se imaginava dormindo. Deitou com a luz do quarto apagada, mas manteve a do corredor acesa. Não conseguia adormecer. Não conseguia evitar as cenas de sua regressão. E de repente, o pânico o acometeu. Podia sentir algo próximo. Um vento morno soprou forte e cessou. Lázaro não estava mais sozinho. Lentamente olhou para direção da porta e lá viu, parado, com o mesmo sorriso, dentes pontiagudos à mostra, assim como seus longos chifres. Não havia forças para mexer-se. O demônio começou a falar. Relatou que o tinha visto enquanto Lázaro visitava seu outro avatar. E durante esse vislumbre, o demônio percebeu que Lázaro também precisava de ajuda. E que o contato com sua alma abriu um canal de forma que ele o pudesse visitá-lo sem ser convidado. Então, o demônio perguntou do que Lázaro precisava, mas este mantinha-se petrificado. O demônio começou a andar, os sons dos cascos como na regressão, diminuindo cada vez mais a distância, até estar ao seu lado. Abaixou-se até estarem cara a cara e, como com Agamenon, inspirou fundo, regozijando com o odor de terror. Prosseguiu afirmando para Lázaro não ter medo. E, uma vez mais, arguiu o que Lázaro desejava, agora com os olhos reptilianos fixos nos de Lázaro. E então, Lázaro contemplou toda sua mesquinhez, todo seu egoísmo. Viu que não desejava relacionar-se com ninguém. Queria que o lessem, que reconhecessem seu gênio. 5


O demônio estendeu o braço. Oferecia a Lázaro um objeto. Era uma caneta de ouro, com a ponta bem fina. Disse que com ela, Lázaro teria o que almejava. Bastava carregá-la consigo e ela apontaria o caminho. E assim Lázaro aceitou. Quando a segurou, Lázaro sentiu que nada o impediria. Nenhum obstáculo, nenhuma moral. Desta forma, o demônio afastou-se prometendo retornar. E o vento soprou. E o ser diabólico desvaneceu.

(…) Dias após o sinistro episódio, Lázaro já quase se esquecia do ocorrido, mas ainda carregava a caneta. Estudava na biblioteca municipal quando viu uma moça. Era nova, morena com cabelos lisos nos ombros, carregando uma pilha de livros. Um ímpeto indescritível nasceu no coração de Lázaro. Como nunca antes na vida, queria contato com um ser humano. Em instantes estava ao lado da jovem mulher, oferecendo-lhe ajuda, que foi prontamente aceita. Numa rápida passada de olho após colocar os livros na mesa, Lázaro reparou os assuntos. Adiantou-se em citar uma frase de um dos autores. A garota animou-se. Era o início de uma conversa que duraria toda a tarde. A moça apresentou-se. Seu nome era Fernanda. Cursava filosofia e, como Lázaro, adorava estudar na biblioteca – uma característica a ser valorizada no mundo de hoje. Lázaro auxiliou Fernanda, discorrendo sobre os diversos objetos de estudo da menina, que se mostrava impressionada pelo homem mais velho, porém tão culto. Só deixaram a biblioteca por já estar fechando. Deste dia em diante, passaram a se ver com frequência. Seus encontros eram repletos de diversos temas. Para Lázaro, eram completos. A suavidade da voz de Fernanda, suas feições, contrastando com o esplendor de sua inteligência, era aquilo que ele procurava, a resposta aos seus problemas. Não precisava mais saber sobre a origem do que era. Fernanda despertava o potencial do que ele poderia ser. Fernanda também estava extasiada com aquele misterioso homem. Seu acanho e aparente comportamento arredio, era apenas um charme ao unir-se com o tanto de conhecimento e profundidade. Quando Lázaro lhe mostrou seus textos, Fernanda teve certeza. Ela mesmo tomou a iniciativa. Ela mesmo roubou-lhe o primeiro beijo. 6


Seus dias juntos passaram a ser rotina. Lázaro agora tinha mais prazer em cozinhar, seu segundo hobby. Fernanda adorava a receita de purê de batatas que Lázaro preparava usando creme de leite. Feijão – outra guarnição que Lázaro sabia preparar como ninguém – arroz e bife acebolado acompanhavam. Uma das coisas que Lázaro amava em Fernanda era o prazer na simplicidade. Fernanda era vida – algo que Lázaro nunca tinha experimentado. Era noite de um sábado. Fernanda e Lázaro combinaram de assistir a um filme juntos. A pipoca de micro-ondas já estava numa bacia no colo de Fernanda que esperava Lázaro sair do banheiro. Este lavava as mãos quando uma sensação avassaladora lhe abateu, bastante similar àquela que sentiu a primeira vez que viu Fernanda. Um desejo insustentável lhe impelia a agir. Caminhou até o quarto, pegou a caneta e foi ao encontro da namorada. Parou na porta da sala a observar. Ela olhou-lhe com um sorriso recheado de pipoca, pedindo-o para vir logo. Lázaro continuava parado, com olhar macabro. A intuição de Fernanda começou a disparar – algo estava errado. Ela chamou pelo namorado. Ele começou a mover-se em sua direção calmamente, encarando-a. Lázaro, você tá me assustando – disse. Foi então que Lázaro lançou-se para ela, segurando-a pelo pescoço, mão erguida com a caneta pronta para estocar Fernanda. A moça conseguiu segurar o braço de Lázaro e impedi-lo de descer com o instrumento direto em seu tórax, mas Lázaro a sufocava e era mais forte. Porém, com uma joelhada no meio das pernas de Lázaro, Fernanda desvencilhou-se e correu para cozinha. Lá pegou uma faca. Lázaro chegou logo em seguida. Fernanda chorava e perguntava por quê. Lázaro apenas se aproximava. Fernanda estava pronta para se defender. Mas uma lufada de vento soprou forte e começou a tomar forma atrás de Lázaro. A figura que então apareceu gelou todo o sangue de Fernanda. Lázaro aproveitou a distração e estapeou-a. Fernanda foi ao chão. Lázaro foi até ela, sentando em cima de seu peito. Fernanda se debatia freneticamente. A criatura horrenda começou a falar. Disse que era somente com o sangue de Fernanda que Lázaro mostraria seu valor. Que somente o sangue dela era o necessário para ele escrever a grande obra que o deixaria eterno. Lázaro estava cego. Já conseguia sentir a glória do sucesso. A criatura aproximou-se perto do ouvido de Lázaro e ordenou: faça! 7


Lázaro ergueu o braço pronto para disferir o golpe, enquanto Fernanda lutava enlouquecidamente, derrubando tudo que estava na pia. A medida que os utensílios foram caindo, talheres, pratos, o espremedor de batatas utilizado para fazer o prato preferido de Fernanda, lembranças, todo aquele barulho e agitação, fazia Lázaro cada vez mais acordar de seu torpor. Ao seu lado, o demônio insistiu: FAÇA! E Lázaro fez. Num rápido movimento fincou a caneta em seu pescoço. O monstro levantou cambaleante, tentando remover o objeto. Seu rosto foi secando, assim como resto do corpo. Seus olhos foram sugados para dentro e, por fim, apenas uma carcaça ressecada permaneceu, dissipando-se aos poucos em seguida, até apenas restar a caneta jogada no chão.

(…) Era noite de gala, uma premiação importante para a literatura. Lázaro dirigia-se ao palco, após ser anunciado como grande vencedor do Prêmio Escriba por seu livro Contos do Demônio dos Desejos. Recebeu as congratulações e em um curto discurso agradeceu ao grande amor de sua vida, sua esposa, Fernanda. Ao descer do palco, pode observar orgulhosamente seu prêmio, um troféu um tanto esquisito, que lembrava um espremedor de batatas. Apenas sorriu com a ironia e foi terminar a noite celebrando a noite com Fernanda, agora grávida do primeiro filho.

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Sorvetes de flocos com raspas de chocolate De Caio Salgado Na madrugada, uma luz azulada ilumina a sala de Nathan. Seu ronco desordenado e recorrente apneia angustiariam qualquer uma que dormisse a seu lado. Infelizmente (ou felizmente, para elas) nenhuma o faz há alguns anos. A organização do seu habitat assegura que o status quo será mantido por mais algum tempo. Pouparei você dos detalhes inconvenientes, como o óleo de fritura que, há mais de dois anos, acumula fungos no forno. Enfim, o apartamento onde Nathan reside é desagradável o suficiente para fazer vomitarem a Barata de Kafka e a Mosca de Cronenberg. Entre uma leve parada em seu ciclo respiratório e o retorno ao fluxo normal de roncadas, a tampa de uma panela é movida e cai da pia. A luz azulada se transforma em um par de seios sendo manuseados por um homem vestido de bombeiro. Ainda sonolento, Nathan observa a tampa no chão e, sob ela, algo se 9


move. Ele se levanta e sente o chão frio e úmido. Com a mão esquerda, tira a tampa do chão. Com a direita, tateia a pia em busca de qualquer objeto capaz de estraçalhar aquele ser vivo. Em um movimento brusco, o espremedor de batatas acerta e esmaga uma barata. Quer dizer, era uma barata até o momento em que se constituía como unidade. Agora, é apenas uma mistura de pedacinhos marrons e uma pasta branca, quase como um sorvete de flocos com raspas de chocolate. Nathan coloca a tampa e o espremedor sobre a pia, pega mais algumas folhas de papel toalha e retorna à frente da tevê para continuar o que faz todas as noites. E todos os dias também. No dia seguinte, a barata não existe mais. As últimas formigas descolavam, do espremedor, os vestígios remanescentes da carapaça do inseto. O reverberar de um som estridente desperta Nathan. Ele rola e engatinha até o telefone. Ao atender, apenas um chiado estranho, como se dedos abafassem o transmissor do aparelho. O homem solta dois ou três “alô!” preguiçosos antes de bater o telefone sobre o gancho. São onze da manhã. Isso seria um problema há alguns anos, quando o salário de Nathan não poderia arcar com o pacote de canais privê. Entretanto, com a dádiva do home office, nosso protagonista alcançou o sucesso pleno entre os jovens autores de trilogias distópicas. Tem os boletos pagos, pizza, cerveja e a possibilidade de ignorar seus fãs no Twitter. O controle zapeia entre os canais favoritos. As opções são muitas, de pornochanchadas a intervenções com animais. Nathan assistiria à segunda opção às gargalhadas não fosse o pequeno inseto em cena. Um bichinho marrom, cuja anatomia ele conhece bem. Seis patas se movem, uma a uma, pelo pênis extremamente grande de um homem. Usando a glande como plataforma, a barata alça voo em direção à tela, quase como se tentasse sair da tevê de sessenta polegadas. Um creme branco cobre a cena, à exceção do pequeno animal, que se aproxima. 10


Nathan, em um reflexo, fecha os olhos. Está no banheiro quando os abre. Ele tira a remela com os dedos. Sua mente alterna entre visões das próximas sessões de autógrafos à qual não comparecerá, o caldo branco e a barata que voava em sua direção. A água corrente molha a escova que, em uma ou duas escovadas, remove resíduos de cebola e calabresa dos dentes. O cuspe amarelado escorre pela pia. Catarro e saliva se fundem e descem pelo encanamento. Para despertar, dá dois tapinhas no próprio rosto. Pelo reflexo do espelho, consegue ver uma toalha pendurada na porta, dois azulejos trincados e um par de anteninhas se movendo por detrás da toalha. Nathan fecha os olhos e esfrega as pálpebras com força. Ele sai. Prefere não conferir se há qualquer animal sinantrópico em seu banheiro. Cambaleando, chuta a mesa de centro e derruba alguns exemplares autografados da última aventura do Guerreiro Púrpura (spoiler: o guerreiro morre no final). Um passo e… CREC! Mais um passo… CROC! O chão está coberto por uma colônia de carapaças, patas e antenas que se movem e sobem pelas pernas de Nathan. Apenas uma alternativa lhe resta. Em passadas largas, ele corre para a pia, pega o espremedor de batatas e ataca! O objeto transforma-se em um martelo e explode os insetos. O líquido branco se espalha pelo apartamento como sangue. As cascas dos animais entopem as frestas das portas e o ralo do banheiro. Os restos mortais se acumulam enquanto Nathan esmaga… e esmaga… O líquido sobe. A batalha continua. Os seres cobrem paredes, móveis, a tevê de sessenta polegadas… Uma última barata voa ao redor de sua cabeça. Nathan, na ponta dos pés, se equilibra para não ser coberto pelo mesmo líquido que ajudara a formar. Em um golpe final, o espremedor atinge o ser voador. Nathan está exausto. O inseto cai no mar branco, que cobre nosso guerreiro. No dia seguinte, Nathan não existe mais. As últimas formigas descolavam, da parede, os vestígios remanescentes do escritor.

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Ao Vencedor as Batatas De Ygor Moretti Fiorante I Durante a segunda guerra mundial a batata era um dos poucos alimentos que refugiados ou prisioneiros dos campos de concentração conseguiam comer, as vezes encontrando restos e noutras comprando no mercado negro. Resistente ao frio e até mesmo a situações mínimas de saneamento, esse alimento salvou, ou adiou a morte de muitos. Noutras partes da guerra, quando tropas ficavam sem alimentos, soldados retiravam as batatas do solo e as comiam cruas. Ainda em tempo e contexto de guerra, o caríssimo filósofo Quincas Borba anunciou em seu manifesto o Humanitismo: – Ao vencedor as batatas!

II Na Grécia durante os anos 20 do século passado entre várias vanguardas e correntes literárias, as batatas também obtiveram certo protagonismo diante de conflitos que resultaram numa morte. O escritor e teórico Meliteu, depois de um 13


duelo com seu rival das ideias Pisandro Amintas, que antes fora seu discípulo. Meliteu defendia que a construção literária é como a massa de uma batata espremida, o que passa do tubérculo para fora do espremedor é a história que deve ser contata, limpa de sujeiras ou partes menores sem importância que ficam presas no objeto. Em contra-partida, Pisandro, passou a pregar que não! A matéria prima da literatura e em especial dos romances, consiste justamente no que sobra da batata presa ao espremedor, aquilo é a obra prima, é a essência, sem o excesso e sem o banal que foi posto para fora. Depois de inúmeras discussões cada vez mais calorosas, certa vez Pisandro mesmo certo de suas convicções sentiu-se vencido e humilhado diante da plateia de estudantes e aspirantes a escritores. Esperou Meliteu deixar o espaço acadêmico da Hellenic Open University, o seguiu em seu trajeto de volta pra casa que fazia a pé todos os dias, e depois de 4 km já na avenida Akti Dimeon onde Meliteu tinha um belíssimo apartamento, um golpe certeiro o pôs desacordado, em seguida o afogou a beira do mar jônico. III Durante aquela sexta feira onde mais uma noite de hot-dog iria acontecer, o escritor João Catapulta olhava para os ingredientes dispostos na mesa, salsicha fervida, molho de tomate, maionese, ketchup picante e mostarda. Batata palha e batata cozida quase no ponto de virar purê. Até esse momento de sua vida tinham sido escritos 3 livros de contos publicados de forma independente, tiragem cômica de 50, 30 e 20 exemplares que em sua maioria foram dados a parentes e amigos que por sua vez os repassaram a sebos ou prateleiras antigas cheia de papéis ou outros livros que como aqueles que João escreveu, jamais seriam lidos. Não exatamente em segredo mas sem nenhum comentário ou pedido de leitura ele terminara o seu terceiro romance naquela noite. Durante os anos em que esteve em silêncio juntos desses projetos, estava convencido de seu papel como escritor que como tal não necessita ser lido, afinal de contas, escritores escrevem e ponto final. Antes do terceiro cachorro quente daquela noite irrompeu o silêncio e reforçou sua aparente paz e certeza com um mantra: Escreva… Escreva apenas e não se preocupe…

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IV Mas tal convicção era frágil e mentirosa, terminou por pensar que, se os seus textos não despertavam atenção de exatamente ninguém, algum fato novo ao redor deles o faria. Talvez um crime ou um ato terrorista fosse o prenúncio do sucesso comercial que as editoras aproveitariam muito bem. PRÉ-VENDA DO LIVRO “CONFISSÕES DE UM ESCRITOR TERRORISTA” anunciaria o banner nas redes sociais e vitrines das grandes livrarias. Não que fosse um santo, pois em certos momentos tinha vontade de construir bombas (quem não tem), mas não seria por esse ato que João queria ser lembrado ou mesmo lido. Talvez algo mais poético como um sacrifício, mas o que? Pensava… enquanto sem perceber partia para o quarto cachorro quinto, decretando ali num novo recorde pessoal… Se seus textos não eram dignos de leitura, talvez a dificuldade, os obstáculos físicos para escrever qualquer texto por pior que fosse, dignificassem sua literatura. E a essa altura tanto fazia, pena, misericórdia, ou até mesmo uma leitura por piedade… O importante era ser lido… V Quase num salto da cadeira pegou o espremedor de batatas largado na pia entre outras louças sujas, apoiou dois dedos formando uma ponte sobre o vão onde normalmente se colocam as batatas. Pressionou com toda força a parte de cima do objeto contra os dedos. Apesar da dor não teve nenhum sucesso, tirou um dedo e aplicou a mesma força que antes, CLACK! Partiu ao meio o dedo indicador, na sequência ergueu o dedo médio que mais fino foi rapidamente quebrado enquanto era pressionado pelo espremedor de batatas. O anular foi mais fácil ainda, espremeu o dedo no aparelho até o fim, sentiu uma pequena fratura na ponta do dedo, ergueu a haste do espremedor e mais dois golpes, no segundo movimento conseguiu quebrar o osso do metacarpo e parte do osso hamato. Foi o que descobriu mais tarde no hospital.

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VI Recusou-se a fazer fisioterapia, ou quando compareceu as sessões sabotava cada movimento. Já não sentia mais dores e contemplava sua obra prima, separou a radiografia pois aquela seria a imagem da capa de seu livro, sem nome, apenas a imagem do raio-x dos ossos da mão estilhaçados. Talvez usar acetato na impressão de uma luva para o livro, pensava graficamente em seu projeto literário. Destro com a mão e canhoto no pé, sabia-se um erro desde sempre, agora teria que consertar isso e todos os anos de isolamento de suas palavras numa ilha deserta, nada paradisíaca e no geral nem um pouco interessante. A mão esquerda que antes se resumia ao uso do dedo indicador, agora precisaria deslizar sobre o teclado enquanto na mão direita tinha apenas o dedão e o dedo mindinho com movimentos possíveis, com muito esforço conseguiam alcançar e pressionar alguma tecla.

VII Num ritmo árduo e intenso durante três meses, concluiu o primeiro capítulo. Trabalhava agora 14 a 16 horas diárias sobre o livro. No quinto mês a produção teve um crescimento impressionante, 9 capítulos estavam escritos, mais de cento e oitenta páginas, 70% do livro pronto. No sexto mês tudo estava normal, voltou a escrever com rapidez nas redes sociais, em tablets ou smartphones. O fim do livro estava próximo, e a distância para esse lugar diminuía cada vez mais rápido. Foi quando se deu conta: Estava escrevendo normalmente, mais rápido do que antes até. Sim, em partes pela disciplina mas principalmente por não existir naquele corpo, naquelas mãos, mais nenhum obstáculo. Os dedos continuavam tortos mas nunca mais teria mérito por transpor aquela dificuldade que nem existia mais, pouco importava quem ou como escrevia aquelas palavras, as atenções agora voltariam exclusivamente para cada frase, construção de diálogos e personagens, trama, foco narrativo, tempo e espaço… Sem maiores desculpas para o vazio que poderia morar por de trás de cada um desses elementos. Escrever para ele deixou de ser uma profissão de fé fazia tempo, agora 16


restava apenas teimosia ou talvez um ego gigantesco que o impelia aquele caminho de ser reconhecido como escritor de um jeito ou de outro.

VIII De volta as sextas feiras de cachorro quente, depois do sétimo lanche (recorde destruído novamente) CLACK CLOCKT CLECKCOUT… Começou pelo dedo indicador da mão esquerda, e foi em seguida com violência para o dedão que era tão ágil e prestativo naquele sistema de digitação que ele desenvolveu sem querer. Escrever era um sentimento montanhoso que vivia em seu peito, um maremoto, condição e movimento natural de suas mãos. Mas sabia, jamais uma dádiva, e sim uma maldição que a todo custo ele tentaria bloquear, e dessa batalha o que sobrasse produzido por suas mãos seria arte, LITERATURA… LITERATURA… LITERATURA… Gritava enquanto mais uma vez era levado ao pronto socorro.

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Os Autores

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Caio Salgado É de 1987. Nasceu em Belo Horizonte. Pai da Sofia. Fotógrafo no interior de São Paulo. Jornalista graças ao cinema. Publicou o conto A triste história de Ivo. “Li as crônicas do Rubem Braga e achei que podia fazer igual. Um dia escrevo um livro”.
 
 Links do autor: 
 www.cronicismos.wordpress.com
 www.chsalgadofoto.com.br

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José Maurício Ferreira Nasceu em Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, em 1977. Reside atualmente em São Paulo-SP. Graduado em Ciência da Computação, trabalha como prestador de serviços na área de tecnologia da informação. Participou das coletâneas literárias Concurso Literário Machado de Assis, da Editora Canal 6, e Vendetta, Fogo de Prometeu e Céus de Chumbo, essas últimas da Andross editora.
 
 Links do autor:
 www.facebook.com/deixeutecontar
 www.wattpad.com/user/josemauricioff

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Ygor Moretti Fiorante Nascido em 1980, São Paulo, é designer gráfico e editorial. Atua como diagramador e capista através da Capitular Design. É colaborador do site Cenas de Cinema. Publicou o livro de contos Do Som ao Impacto, pela editora Multifoco e o e-book de contos infantis O Menino Susto. 
 Links do autor
 www.editoramultifoco.com.br/loja/product/som-ao-impacto/
 www.capitulardesign.net
 www.behance.net/ygormoretti

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