Copyright © 2023 by Jan Santos Todos os direitos reservados.
Ficha Técnica Todos os personagens e acontecimentos neste livro, com exceção dos claramente em domínio público, são fictícios, e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou não, é mera coincidência. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma - meio eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravação ou sistema de armazenagem e recuperação de informação - sem a permissão expressa, por escrito, do autor e do editor. Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. (DECRETO Nº 6.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008). ESTA OBRA FOI CONTEMPLADA PELO CONCURSO-PRÊMIO THIAGO DE MELLO MANAUS 2022 - ARTISTAS E PROFISSIONAIS DA CULTURA, EDITAL N 007/2022, PROMOVIDO PELA PREFEITURA DE MANAUS POR MEIO DA FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA, TURISMO E EVENTOS - MANAUSCULT.
PROJETO GRÁFICO E ILUSTRAÇÕES Yan Bentes REVISÃO: Eduardo Alves DESCRIÇÃO DE IMAGENS: David Carvalho
APOIO CULTURAL:
Folha de Rosto
Este livro conta com o recurso de descrição de imagens. Antes de cada ilustração, haverá um pequeno texto que transformará a imagem em palavras. Acreditamos que a leitura é para todos, e por isso o objetivo de criar uma alternativa para que leitores videntes pudessem ter recursos ao descrever a imagem para um leitor com deficiência visual, dislexia, deficiência intelectual ou com déficit de atenção. Isso oportuniza estreitar a relação da imagem com o texto, tornando-a mais intimista e enfatizando alguns aspectos da história que será apresentada. David Carvalho Bibliotecário
“Saruman acredita que apenas um grande poder pode manter o mal sob controle, mas não é o que descobri. Descobri que são as pequenas coisas, as tarefas diárias de pessoas comuns que mantêm o mal afastado, simples ações de bondade e amor”. J.R.R. Tolkien
Prefácio
Comecei a escrever este prefácio vários dias antes do prazo final, e o apaguei várias e repetidas vezes, porque não tinha certeza se as palavras que conseguiria extrair de mim mesma fariam jus às palavras de Jan Santos, nas quais você, leitor, terá o prazer de mergulhar nas páginas vindouras. Acabei optando pela conversa mais íntima, da mesma forma que converso com amigos próximos quando quero lhes apresentar algum livro pelo qual esteja perdidamente apaixonada – o que é, claramente, o caso. Então, vamos lá, imagine-se sozinho, sem nem um semelhante com o qual possa conversar, compartilhar seus medos, sonhos ou desejos mais profundos. Agora, imagine-se sozinho, num lugar onde a natureza parece estar, em sua totalidade, morta. Acrescente a esse cenário a ausência de sonhos e esperanças, a ausência de seres mágicos e guias sobrenaturais que possam evocar a fé em dias melhores. Finalmente, visualize a catástrofe, a verdadeira hecatombe caminhando sobre a Terra, em passos confiantes e dominantes, como se nada pudesse destituí-la de seu poder de destruição. Todos os caminhos estão fechados. Tudo está inerte, pesadamente suspenso e sufocante, feito a feia fumaça das queimadas nas manhãs que, antes, prometiam um dia ensolarado e feliz. Nada brota do solo, a vida não se faz ouvir ou sentir. O que quer que exista está corrompido, tocado pelo Mal. Rudá, o pequeno e destemido filhote do povo das árvo-
res, cresceu nessa Terra que, embora devastada, guarda um universo inteiro de mistérios e magia que se escondem nas sendas amazônicas, feito saberes escondidos que anseiam por serem revelados, por serem libertos. Todos os caminhos estão fechados e cabe a ele, a Rudá, abri-los. Num convite para uma jornada única, em que as árvores ancestrais suspiram segredos, os rios sussurram encantamentos, as criaturas místicas da floresta ganham vida e o passado e o presente se entrelaçam feito teçume de aventuras que desafiam a imaginação, somos habilmente conduzidos ao reino de esplendor das encantarias, onde a magia há muito foi tecida com a essência da floresta. Prepare-se, e não ouse dizer que não foi avisado, para o destino que o aguarda ao se unir a Rudá no cumprimento do seu chamado. A floresta dos sonhos pode ser benevolente e acolhedora, mas também pode se mostrar implacável e misteriosa. Aqueles que desejam conquistá-la devem se preparar para enfrentar desafios épicos e dilemas morais profundos. Agora, abra as páginas deste livro, junte-se a Rudá e prepare-se para uma jornada que o levará a lugares que você jamais imaginou. Leila Plácido Escritora e ilustradora amazonense
Apresentação
Eu acredito em magia. É preciso, pois quando abro minha janela em setembro e vejo os céus de Manaus tomados por fumaça, ou penso nos dias difíceis que enfrentamos no Amazonas na luta contra a COVID, é de onde vem minha esperança por dias melhores. Não é aquela magia que vai resolver essas coisas num estalar de dedos, nessa não acredito. Falo da magia do dia a dia, daquela que nasce quando aceitamos a responsabilidade de que devemos cuidar da terra em que nascemos, e, para isso, nos tornamos um com ela. É a magia que nasce quando sentimos no pulmão a impureza do ar, ou quando sabemos o que significa a perda daqueles botos que sofrem com a estiagem. É a magia que surge quando cuidamos do nosso quintal com amor, plantando e podando, e deixando sombra para nossos animais. Ou quando organizamos nossa rotina com base no tempo das frutas e da subida dos rios, que para os povos da Amazônia, possuem poder divino. Falo isso porque as grandes forças do mundo humano não se preocupam com a magia, não ligam para ela, não se importam se teremos água limpa e ar saudável daqui a uma década. Mas eu acredito que nossas pequenas ações podem manter vivas certas tradições e cuidados que se encontram ameaçados hoje.
Porque quando essas forças humanas finalmente falharem, e elas vão falhar, vão recorrer a esses conhecimentos quase perdidos, que só poucos se dispuseram a guardar. Nesse momento, ninguém vai duvidar da magia, e nem das possibilidades que se abrem quando, juntos, entendemos como mágicos os mistérios da natureza. É sobre isso que se trata “Rudá”, ou pelo menos o que eu imaginei quando o escrevi lá em 2020, quando estávamos trancados em casa e incertos de que sairíamos de novo. É um livro sobre saudade de estar junto, sobre estar sozinho quando tudo parece escuro, sobre buscar conexão. Hoje, anos depois, quando finalmente consegui lançá-lo, ele ainda tem um significado poderoso para mim. Em 2023, Manaus é tomada pela fumaça das queimadas, obra de pessoas que comem e respiram dinheiro, e nossas autoridades, como sempre, se fazem de desentendidas, enquanto a população sofre, sem o que comer e nem como respirar. Como disse Krenak, precisamos de ideias para adiar o fim do mundo, ideias ancestrais para um mundo novo. Da minha parte, eu acredito em magia. Vamos acreditar em magia juntos?
Agradeço a minha família acima de tudo, a com que nasci e a que construí. Neste livro, mais do que em todos, senti o poder que emana da união entre pessoas que se amam. Foi assim que sobrevivi ao COVID, foi assim que sobrevivi às queimadas de 2023, é assim que sobreviverei ao fim do mundo. Obrigado.
Este livro é dedicado a minha sobrinha Júlia, que mesmo à distância terá certeza de que é amada.
PEÇA LICENÇA ANTES DE ENTRAR NA MATA
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
21
22
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
Imagem em preto e branco. Ambientada em uma floresta, esta imagem possui pequenos morcegos pendurados de cabeça para baixo na parte superior. Eles têm olhos reluzentes, cercados por uma cortina de folhas em pequenos ramos. Ao fundo desta cortina surgem pares de olhos reluzentes, como se outros morcegos observassem a cena ao longe. No centro da imagem, estão dois troncos, um em cada lado da imagem, com pontas em formato de forquilha, cercados por vegetação que se assemelham a folhas de palmeiras, algumas das quais têm formato de asas abertas. No coração dessas folhagens, há uma grande cabeça de morcego com orelhas pontudas, olhos esbranquiçados, narinas em formato vertical e dentes pontudos. Em seu rosto, os pêlos dão lugar a pequenas folhas. Este morcego parece estar soprando sobre uma pequena criaturinha peluda, que segura um bastão em sua mão direita. Da cabeça da criaturinha surge uma pequena folha como se fosse uma pequena muda de planta que acabara de brotar. A imagem se completa com duas asas de morcego que se encontram, compostas de pequenas folhas em sua parte interna, dando a impressão de que estão abraçando o pequeno ser.
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
23
24
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
25
aquela manhã, Rudá soube que seus dias vivendo na copa das árvores acabaram. O sol nascia, e com ele uma coragem estranha no peito. Coragem de quem está sozinho no mundo. Coragem que só vem com o sol após muitas noites de medo. Pois seu pai, após muito agonizar com a ferida de jararaca nas veias, fora entregue à terra, e agora o pequenino só tinha um caminho a seguir: A Estrada Escura, que, segundo o pai, levava à mãe que nunca conhecera. Nas costas, o bastão longo que o pai usava para espantar os predadores. A cauda-cinto bem justa no quadril, na qual pendia um ouriço de castanha oco preenchido com água. O uirapuru cantou sua música de fogo, dando bom dia para a estrela de fogo no Leste, e para lá Rudá seguiu, pela Estrada Escura, rachada, uma lembrança quebrada de quando o mundo era diferente. “Tem coisas perigosas por ali”, o pai dizia. “Mas perigoso a gente também é. Todo mundo é, do seu jeito”. Sim, todos são perigosos, e nada é mais perigoso que o Mal que devorou tudo, tantos anos atrás. Inclusive aqueles como Rudá, os únicos bichos do mato
26
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
que conseguiam segurar o bastão e a lança nas mãos. Mas arma nenhuma é páreo para o Mal, e por isso ele deveria partir em busca da mãe, pois sozinho não teria chance. Ia com coragem no peito, mas era o medo que o movia. Pois quem é sozinho no mundo também tem medo, e ainda bem que a canção do uirapuru acendia seus olhos, apurava seus ouvidos, o que deixou mais fácil descer da árvore e tocar a terra quente, mais ardida ainda sobre as pedras do trajeto proibido, a passagem áspera. Mas o que fazer agora? Seu pai dizia muita coisa, e uma delas Rudá nunca entendeu: “O caminho tá fechado, meu filho. Não tem mais ninguém do povo da árvore deste lado da Estrada, só na outra ponta”. E o que eu faço agora, pai? Seu pai já não falava, a não ser em seu coração. Ele farejou o ar com cuidado, tentando captar algum perigo anunciado pelo vento. Nada. Nenhum estalo de folha seca no chão, nenhum silêncio preenchido pela fome de algum bicho brabo. Só o silêncio mesmo, e a luz da manhã escorrendo pela copa das árvores em agulhas douradas. Sob as patas macias, a Estrada. Do que ela era feita? Certamente não de terra, ou ao menos não daquela que faz as árvores crescerem e dá repouso aos mortos. Ela era dura, rachada, seca, escura.
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
27
Nunca olhou para a Estrada com simpatia, pois em sua extensão nada brotava, apenas das fendas que o calor abria. Era de uma cor gasta, não dava pra dizer se fora preta, azul ou marrom, mas em nada combinava com a mata. Talvez nem devesse existir, mas existia, a única coisa que ligava Rudá à mãe, estivesse ela onde estivesse. Mas o caminho estava fechado, e cabia a ele abri-lo se quisesse vê-la de novo. “Ela precisa de ti”. Precisa mesmo, pai? “Ela precisa de ti pra manter o Mal longe”. Espero mesmo que ela precise. Rudá seguiu, os ouvidos apurados, o focinho atento, as patinhas sofrendo com a rigidez da superfície quebradiça. O pai contou histórias sobre a Estrada. Disse que o povo das árvores veio do outro lado dela, de uma ilha abençoada onde os deuses nasciam. Disse que sempre lutaram contra o Mal, mas que este se fortalecera a ponto de espalhar doença e morte por onde passasse. O Mal era a fera de cujas presas nenhum deles escapava. Sua violência fizera as sementes adormecerem dentro de si mesmas, e nada novo brotava mais da terra. Suas garras romperam a ligação sagrada que o fogo tinha com o ar, e os deuses já não podiam mais falar com as pessoas. Seu rugido era tão potente que as águas interromperam seu fluxo e estagnaram, e há quem diga que foi ele que destruiu a própria
28
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
Estrada, como se não fosse pouco mais que a casca de um ovo. Desde então, o caminho estava fechado. Desde então, este filhote estava longe de sua mãe, junto com um punhado dos seus, dos quais é o último vivo. Nas noites mal dormidas, ele podia escutar o Mal à espreita, se esgueirando diretamente de seus pesadelos para as árvores lá embaixo. Pobre das cutias que não o percebiam, pobre das antas que não ouviam seus pés raspando no chão da mata. Mesmo de dia, Rudá sentia o que sobrou da energia maligna rondando sob o teto de árvores, pois ele também podia ver os espíritos, e mesmo no mundo dos ancestrais, havia as patas do Mal. – Eu sou filho da terra e das estrelas, e não tem parte minha que não pertença ao universo. É o que diz pra si mesmo quando suas trilhas não estão tão claras. Um dos muitos presentes que seu pai lhe deixara. Já viu aquelas árvores por mil vezes, mas na milésima primeira, ainda pareciam oferecer novidades. Uma nova folha, uma nova marca de animal a cada sopro de brisa. Ele se permitiu olhar para trás uma vez mais, já que, de um jeito ou de outro, seria a última. A solidão da mata lhe pareceu mais pesada que de costume, como se o rio inteiro pairasse pelo ar. Só o uirapuru cantava, e sua música marcou a presença da encantaria na atmosfera. Rudá sabe fazer muito mais do que apenas ver espírito, e
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
29
conhece as trilhas que essa canção sagrada abre. Canta, Rudá. E assim ele fez, como o uirapuru. Não uma música que se expressa em verso, presa pelas palavras. Não era esse tipo de música. Era a língua das folhas, da mata fechada, das raízes que crescem. Era a fala das cores da floresta, e o ar se encheu com essas cores. A língua dos que plantaram a floresta. Ele aprendera a falar com essa língua, e com ela então cantava, cada pelo de seu corpo eriçado com o poder que vibrava pelo ar, junto com a voz melodiosa do uirapuru. Então, os pássaros cantaram com ele. Rudá já não se apoiava mais nas quatro patas, apenas nas traseiras. As dianteiras seguravam o bastão do pai, que vibrou com a melodia. Só quem ouviu a poesia da floresta reconheceria a rima que a jovem criatura fez com o marulhar do rio na pedra e o som da trovoada em noites de chuva, entre o pio da suindara e o ronronar profundo da onça. E ele soube que chamou quem queria. – Por que faz esse chamado nas primeiras horas do dia, filhote das árvores? Não sabe que sou da noite? Em um canto sombrio sob as folhas de uma mangueira, onde nenhuma das agulhas de sol penetrava, um pequeno par de olhos o encarava, de ponta cabeça.
30
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
– Olá, Andirá, cujos irmãos são tu e tu é todos os teus irmãos. Te chamo na despedida das trevas, nas primeiras horas da manhã, e pergunto: tem notícia de meu pai, no mundo dos ancestrais? – Acha sábio começar uma jornada com as últimas palavras de alguém, filhote? – Acho sábio começar com as primeiras palavras de alguém que inicia uma vida nova na terra dos ancestrais. – Hm, há verdade nisso. Tu foi bem ensinado. Tão bem ensinado que acredito que saiba bem o caminho que deve tomar, não precisa de instruções. – Não é por instruções que eu te chamei, porteiro das visagem. – E por que me chamou, então? – Eu não quero ir sozinho. Se ele não estivesse cabisbaixo ao dizer isso, teria visto a simpatia nos olhos foscos da criatura oculta. – Pois eu estarei contigo, filhote das árvores. Chama por mim e me ouvirá pela boca de meus filhos-irmãos, como faço agora. Tu não caminhará sozinho. O bastão ele abaixou, as mãos descansando no cabo, já preparado para seguir seu caminho. – Agradeço a companhia, Andirá. E as suas palavras. – Filhote? – disse Andirá uma vez mais.
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
– Sim? – Não foram palavras minhas. Foram as de seu pai.
31
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas
33
34
RUDÁ - Filho da terra e das estrelas