VOLTA AO MUNDO
OPINIÃO E POLÍTICA
A União em tempos de crise, Mudanças no terrorismo, Viver nas fronteiras, Tempos de (des)igualdade
ASSOCIATIVISMO
Tráfico de Seres Humanos, Internacionalização
Estudantil, Saúde Mental na FEUC
CONVERSA COM PROFESSOR JOÃO RODRIGUES
Relembrar o passado para projetar 2023
VOLTA AO MUNDO Ç O À
O S D E S A F I O S D E 2 0 2 3 NERIFEAAC NET/ @VOLTAAOMUNDO RI COM RI VOL.1
NESTA EDIÇÃO
Editorial Pessimismo climático geracional? 3
Política A União em tempos de crise Mudanças no terrorismo O que levou a um ataque em massa à capital do Brasil? Previsões BCE: fim da crise para 2025? "Viver nas fronteiras" 4 5 6 7 8 Opinião 14 Cultura Sugestões Musicais 18 Criativo Associativismo 19 20 20 21 22 23 Qual o lugar da religião na sociedade? Dinheiro, capital e poder Tempos de (des)igualdade? As mulheres guerreiras do século XXI 9 10 12 À conversa com... Professor João Rodrigues 15 O que sairá no horóscopo de 2023? Amanhã já morreu hoje A Guerra Internacionalização estudantil A liberdade não é mercadoria "Vai ficar tudo bem!"
PESSIMISMO CLIMÁTICO GERACIONAL?
"Desafios para 2023” foi o tema que se decidiu adotar na primeira Edição em papel do Volta ao Mundo com RI Este assunto complexo pode ser traduzido numa simples premissa: a necessidade de ação Cabe-nos a nós, enquanto jovens interessados em questões como política, economia, cultura e sociedade, liderar o caminho
Com a atualidade dominada por crises, o futuro pode parecer incerto Estamos rodeados por conflitos, atentados aos direitos humanos, e tantas outras crises sociais Talvez seja uma afirmação com a qual nem todos concordam, mas é possível sermos a geração mais pessimista da História recente Mas qual a razão deste pessimismo?
Efetivamente, não fomos testemunhas de nenhuma guerra mundial, e pode-se considerar que, a nível de conquistas sociais, vivemos num tempo privilegiado, pelo menos no Ocidente Norte - algo que importa sempre mencionar Mas não deixa de existir um certo sentimento apocalíptico em nós, no sentido mais filosófico desta palavra Porquê?
Acreditamos que este sentimento provém de uma única questão: o aquecimento global Isto não significa que todos nos preocupemos com este problema da mesma forma Muito pelo contrário, existem ainda muitas pessoas que não reconhecem a gravidade da crise climática Contudo, ao analisar os desafios enfrentados pela sociedade global, chega-se sempre à conclusão de que estes estão relacionados com o colapso ambiental Devido à grande integração económica e comercial do mundo atual, a Guerra da Ucrânia afeta todo o globo, trazendo novamente a dependência de combustíveis fósseis para o debate, não apenas no quesito militar, mas principalmente no energético A União Europeia regressa à queima de carvão e importação de gás estrangeiro enquanto a conta climática só aumenta Faz-nos questionar: como é que ainda estamos tão dependentes em resquícios milenares ancestrais? Por este caminho as próximas guerras serão por outro recurso essencial: a água
Em 2022, fecha-se o ano com 8 mil milhões de pessoas Encontramos um planeta desgastado, com pouco espaço e recursos para este crescimento acelerado Existimos num contexto pós-pandémico, até há pouco tempo não se acreditava que um vírus seria capaz de parar o planeta Mas parou Duas semanas que se transformaram em dois anos de pandemia, a qual ainda não superámos Faz nos pensar na fragilidade humana
Afinal, somos seres de carne e osso que sofrem com in-
vernos mais frios, verões mais quentes, com chuvas torrenciais e secas extremas Quando tais fenómenos não continuarem a ser específicos, mas gerais - ou pelo menos amplos - como iremos viver, ou melhor dizendo, sobreviver?
Para finalizar esta posição pessimista, talvez a competição entre potências nucleares melhor sintetize o nosso (possível) futuro O cenário global é cada vez mais perigoso Para a questão de Taiwan parece não haver uma solução e, cada vez mais, o embate entre EUA e China assombra a nossa realidade Se, como diz Mearsheimer, o conflito nuclear entre potências é, de certo modo, inevitável, qual o incentivo para se enfrentar os problemas climáticos? De qualquer forma, o planeta sofrerá as consequências A diferença é se o mesmo será rápido, extinguindo espécies e ecossistemas, ou lento - como estamos a presenciar Temer por tal fim trágico para a nossa história é o mais justo dos sentimentos Por isso mesmo, a ação das gerações deve ser agora, pois senão não haverá um depois
Hoje em dia, consegue-se acompanhar ao segundo a maioria dos acontecimentos do globo, nomeadamente guerras Há algumas décadas, isto seria impensável Apesar do seu impacto negativos nas pessoas, como a criação de ansiedade generalizada, já que este recurso existe, devemos utilizá-lo da melhor forma É imperativo que sejamos jovens informados, com uma literacia digital desenvolvida O nosso consumo de notícias deve ser ponderado, de modo a que se consiga distinguir aquilo que é realmente importante daquilo que começa a cair no sensacionalismo Para primar pela ação é necessária uma comunicação social de qualidade, para chegar à mudança
Esta “ação geracional” de que falamos é materializada neste jornal. O Volta ao Mundo com RI surgiu com o objetivo de dar voz a quem não se contenta com uma sociedade injusta, a quem deseja agir, e a quem não fica alheio ao mundo que o rodeia. Somos jovens preocupados com o futuro que pretendem, através deste jornal, abrir um espaço livre de ideias e de pensamento. É na diversidade, tolerância e espírito crítico que apresentamos a Primeira Edição em Papel do Volta ao Mundo com RI.
EDITORIAL
Equipa do Volta ao Mundo com RI
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Fonte: Alicina Tatone em GQ
A UNIÃO EM TEMPOS DE CRISE POLÍTICA
Em 2017, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou que “[a] União Europeia vive uma crise existencial” Ora, parece que, volvidos 6 anos, a frase continua tão atual que podia ter sido dita hoje mesmo por Ursula von der Leyen Mas será que esta crise existencial é algo previsto e causado por fatores externos ou será a mesma meramente fruto das ações da própria UE?
A invasão da Ucrânia pela Rússia veio alterar para sempre o cenário europeu Vivemos tempos conturbados e incertos, onde a segurança e o bem-estar dos cidadãos devem ser pedras basilares para o futuro A definição de futuro transporta-nos sempre para uma ideia de incerteza No entanto, no que concerne à União Europeia, esta incerteza é ainda mais exacerbada do que há décadas; e porquê? Bem, a falta de uma liderança forte é o começo
Ao longo do tempo, o caminho da UE tem sofrido ascensões e recaídas constantes, algo perfeitamente compreensível quando na sua génese está a ideia de convergir ambições nacionais numa só ambição coletiva
Tendo isto em conta, será que, perante tantas crises – humanitária, económica, securitária e energética
a UE se transformou ela mesma numa crise gigante da qual não consegue sair? A desconfiança no projeto da unidade europeia também não joga a favor deste problema As imensas clivagens e diferenças na cultura dos povos geraram um euroceticismo que já faz parte da corrente dominante Esta manta de retalhos deve ser cosida com propostas concretas e preenchida com medidas que satisfaçam todos, incluindo as minorias
As próximas eleições para o Parlamento Europeu terão lugar já no próximo ano, em 2024 Estes são tempos de reflexão para os cidadãos
europeus, colocando-se as seguintes questões: quais são os valores do projeto europeu e qual o caminho a seguir? Os cidadãos europeus sentem-se deixados para trás e afastados dos processos de decisão da UE Para que exista uma mudança e os cidadãos sejam efetivamente representados, há que aproximá-los da vida comunitária e, uma das formas de o fazer é através das eleições, através das quais estes podem contribuir para a afirmação da identidade europeia Quando consultamos a participação eleitoral em eleições europeias, verificamos uma elevada taxa de abstenção, que pode ser explicada pela falta de conhecimento relativamente ao funcionamento da União e à perceção de existência de uma longa distância entre os gabinetes em Bruxelas e a vida do cidadão comum
Tendo em conta os últimos dois fatores referidos, existem três características sobre a UE que considero importante destacar Em primeiro lugar, esta alta instância sempre habituou os seus cidadãos a um certo dogmatismo, sob o qual se toma como dado adquirido algumas ações e mecanismos, que a UE teima em não alterar, fazendo com que esta não esteja no seu potencial máximo, quer internamente quer internacionalmente
Em segundo lugar, o facto de existir um certo sentimento de que os cidadãos estão alheados do que se passa pode dever-se, também, à vã retórica utilizada, uma vez que se verificam sempre o mesmo tipo de discursos, mas que raramente se concretizam na sua aplicação prática Em terceiro lugar, estreitamente conectada aos discursos, por vezes denota-se uma certa ação performativa por parte da UE, onde a arte da retórica parece ser aplicada de forma a alcançar um maior público e tornar momentos políticos importantes em atos simbólicos
A invasão da Ucrânia relembrou-nos que, apesar das grandes diferenças entre a pluralidade de Estados-Membros, estes encontram-se estreitamente ligados a um projeto que se pauta pela paz, a democracia e a solidariedade entre os povos Tendo em conta a atual situação, parece-me que o futuro da UE dependerá inevitavelmente do futuro da Ucrânia na UE A violação de Direitos Humanos e do Direito Internacional Humanitário que caracterizam a guerra na Ucrânia mancham o cenário da UE Os massacres contra a população civil mostram-nos o quão importante é repensar a Europa, especialmente no que toca à nossa dependência energética perante a Rússia, a entrada de novos Estados-Membros e, talvez, um novo modelo estratégico de defesa e segurança Ora, a história europeia tem-nos mostrado que o futuro foi sempre construído a partir das lições do passado. As crises são sinal de uma metamorfose que é extremamente necessária ao desenvolvimento Acredito que o futuro da UE não passa pela sua dissolução, mas sim pela sua reinvenção A cada desafio, há que responder com uma posição concreta O futuro deverá ser construído, admitindo os seus altos e baixos comuns, com avanços e recuos
A UE tem sido posta à prova através de múltiplos desafios, como o conflito na Ucrânia, a crise de migrantes, a pandemia de Covid-19, a crise energética, o Brexit, entre outros O futuro é surpreendentemente inesperado, mas a UE deve focar-se em gerir estas crises da melhor forma, uma vez que é uma das principais potências de poder a nível mundial A sua resposta à agressão russa alterou o legado das suas políticas A guerra na Ucrânia transformou realmente o papel da UE, aguardemos para ver o que lhe reserva o futuro
Mariana Matias dos Santos
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Fonte: Tjeerd Royaards
POLÍTICA
MUDANÇAS NO TERRORISMO
Achegada de um novo ano pede que olhemos para os desafios que este nos impõe Com o contraterrorismo não é diferente Na verdade, a sua dimensão social, o desafio que me proponho a expor neste artigo, não é novidade, mas é, por vezes, esquecida e não
é suficientemente valorizada, especialmente numa abordagem preventiva
Na identificação e caracterização de atos terroristas, muitas vezes, as óticas e prismas mais abordados são as motivações religiosas e políticas Isto acontece, possivelmente, por serem as camadas mais "interessantes" do ponto de vista jornalístico e de storytelling e acabam por originar as narrativas que chegam à sociedade civil Enquanto nas práticas de contraterrorismo estes têm maior destaque por serem fatores mais simples de identificar pela sua dimensão coletiva, ou seja, é mais simples identificar um movimento político que agrega (pequenas ou grandes) massas que reconhecer fatores causais com sintomas individuais Assim, a dimensão social muitas vezes escapa-nos Apesar de poder encontrar a sua causa no coletivo (ou na falta dele), como ser-se excluído da sociedade e/ou grupo, e ter repercussões que também se manifestam nesta dimensão, como, por exemplo, a adesão a um grupo terrorista, estas experiências convergem num sentimento muito pessoal que é a necessidade de pertença e de interação social Esta carência é capaz de explicar tanto a participação em grupos terroristas, como atos do tipo lone wolf Ainda que este último não encaixe em muitas definições académicas e constitucionais de terrorismo, muito pela falta de propósito politico e/ou de reincidência sistémica, a falta de integração social também ajuda a explicar este fenómeno, com ou sem o rótulo de terrorismo Talvez o resultado divirja: se uns procuram um grupo que os acolha, outros talvez procurem vingança do coletivo que os deixou à margem, ou a aceitação de uma comunidade online, mas o ponto de partida permanece o mesmo: todos estes atores carecem de aceitação e integração social
Com isto, não se pretende, de todo, que as outras layers do fenómeno sejam esquecidas ou desvalorizadas, o propósito é, apenas, sublinhar este ator que parece ser mais transversal a todo o tipo de ato terrorista (até os que podem ser excluídos da definição), independentemente dos seus meios, credos e posições políticas defendidas É até neste âmbito que se prende o sucesso e persistência das organizações deste tipo, que mesmo quando vêem os seus objetivos políticos atingidos, por vezes permanecem no ativo pelos laços interpessoais criados É ainda de ressaltar que, numa fase inicial de recrutamento, os laços afetivos também têm o seu papel, visto que é comum que o círculo mais próximo do radicalizado se junte a ele no caso do ingresso numa organização (Abrahms, 2008) Assim, numa época em que todos parecemos estar mais
conectados, é importante atendermos aos que ficam fora deste processo
A exclusão e marginalização social, como já foi dito, não é algo novo, porém, com o crescimento das redes sociais e da sua importância no dia-a-dia e o crescimento dos mais jovens, esta dinâmica ganha outros contornos Já tudo se disse sobre redes sociais, internet e os seus efeitos nas relações interpessoais, mas o que é certo é que são ferramentas extremamente úteis para unir mas também para desunir Se por um lado pode ser um sítio onde encontramos uma comunidade que nos acolha, mesmo que essa associação não seja a mais benéfica, como é o caso de uma organização terrorista ou de valores questionáveis; por outro, é também mais um instrumento que pode ser usado para exacerbar o sentimento de solidão e até servir para humilhar o outro Os mecanismos podem ser utilizados para diversos fins, é um facto, mas é também factual que as técnicas de contraterrorismo devem moldar-se à nova realidade Seria importante, numa atitude preventiva, assegurar que, sobretudo os mais novos, se sentissem integrados nas suas comunidades e, quando tal não acontece, facilitar espaços seguros para que socializem de modo a reverter a situação Pode parecer uma proposta pequena e até vazia mas, em muitos casos, seria o bastante e, se conjugado com a capacidade de sinalizar jovens excluídos, seria já um excelente avanço, não só a nível securitário, mas também a nível comunitário Numa perspetiva reativa, também é possível usar o elemento social Anteriormente já foram usados, e com sucesso, agentes infiltrados para corromper as relações afetuosas e de confiança no seio destas organizações, pois é um dos grandes pilares que as mantém ativas e que garante o seu bom funcionamento (Abrahms, 2008)
Constatando o que foi escrito antes, estamos em condições de dizer que a dimensão social é extremamente relevante na prevenção e resposta à ameaça terrorista.
Ainda que a dimensão política, religiosa e até económica sejam colossais e incontornáveis, a verdade é que esta dinâmica está presente de forma mais transversal no terrorismo e todas as suas formas Assim é possível que o combate ao terrorismo seja facilitado com uma maior preocupação e consciência deste fator, contribuindo ainda para que alguns tipos de terrorismo menos badalados e em emergência, como o de extrema direita e do tipo incel, recebessem a devida atenção
Joana Inês da Costa Santos
Abrahms M (2008) What Terrorists Really Want: Terrorist Motives and Counterterrorism Strategy International Security 32(4) 78–105 https://doiorg/101162/isec200832478
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POLÍTICA
O QUE LEVOU A UM ATAQUE EM MASSA À CAPITAL DO BRASIL?
Um breve resumo acerca dos últimos dias, que foram intensamente decisivos para a democracia brasileira.
Um ataque violento a Brasília, capital do Brasil, dia 8 de janeiro de 2023, chamou a atenção do mundo Uma prova importante à resistência do país Mas, sobretudo, a inércia dos policiais veio à tona quando apoiantes do expresidente Jair Bolsonaro invadiram o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto Agora, o atual Secretário de Segurança Pública da capital, e ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, foi preso O propósito do ataque não é claro Alguns acusam forças de segurança de atrasar a contenção dos radicais
O ministro da justiça Flávio Dino afirmou haver menos do que deveria ter no efetivo policial Além disso, vários vídeos mostram policiais a escoltar bolsonaristas até os prédios federais No final do dia, chegaram novos policiais que tomaram controle Foi decretado Intervenção Federal pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva: mais de 1 200 radicais presos, acampamentos desmobilizados, oficiais de segurança indiciados por negligência e cumplicidade As forças jurídicas demonstraram agilidade nunca antes vista
O empenho de um dos ministros do STF, Alexandre de Moraes, chama a atenção nacional Nos últimos meses foi apontado como adversário dos apoiadores de Bolsonaro, sendo chamado "canalha" pelo ex-presidente Moraes comandou recentemente um inquérito para investigar se o ex-presidente participou no ataque Comandou também as eleições de 2022, nas quais Bolsonaro perdeu, multou o ex-presidente por questionar o seu resultado, prendeu aliados de Bolsonaro e bloqueou recursos de radicais Moraes se tornou o inimigo principal dos bolsonaristas Vestindo verde e amarelo, com camisetas da seleção e bandeira nas costas, bolsonaristas dizem-se patriotas e defendem uma intervenção militar (na prática, um golpe de Estado) para derrubar o governo Desde as eleições, radicais ocuparam o entorno de quartéis do exército em diferentes estados, realizaram protestos em rodovias federais e, depois da diplomação de Lula, promoveram atos violentos no centro de Brasília Insatisfeitos com o resultado da eleição, eles acreditam que podem destituir o presidente eleito O ataque à democracia brasileira gerou comparações imediatas com o ataque ao Capitólio dos EUA (6 de janeiro de 2021) Assim como no Brasil, radicais foram atacando policiais, quebrando janelas, saqueando o senado e invadindo gabinetes de parlamentares
O resultado das eleições no Brasil apontou para quase metade da população dividida entre Bolsonaro, do Partido Liberal, e Lula, do Partido dos Trabalhadores No segundo turno, Lula obteve 50,9% dos votos e Bolsonaro encerrou a disputa com 49,1% Tornando-se uma das eleições mais acirradas da história da democracia brasileira
Lula não tem escolhas fáceis O recém-eleito presidente do Brasil está preso entre os manifestantes de um lado e as incertezas do mercado financeiro do outro Contudo, o ataque gerou uma ampla rejeição da população e a condenação de legisladores e políticos brasileiros Líderes dos três poderes emitiram uma rara declaração conjunta condenando a violência Mas onde estava a polícia no dia 8 de janeiro? A História mostra que a polícia brasileira, em certos momentos, vê a inércia como estratégia política
Uma possível razão para isto seria o apoio a Bolsonaro, que é amplamente preferido entre os militares Durante boa parte de sua carreira política, Bolsonaro tratou os militares como fundamentais para a construção de uma nação fortalecida Durante o impeachment de Dilma Rousseff, enquanto outros legisladores dedicavam o voto à família e futuras gerações, Bolsonaro dedicou ao militar que teria torturado Dilma durante a ditadura O discurso de ódio sempre esteve vinculado à imagem de Bolsonaro, era só questão de tempo até a animosidade chegar a Brasília
O 'gabinete de ódio' é como brasileiros classificam as falas e atividades tóxicas proferidas pelo ex-presidente e seus aliados É uma rede de divulgação de notícias falsas e conteúdo que ataca a imagem de adversários da extrema direita no Brasil, cujo o líder simbólico é Bolsonaro Não chega a ser um espaço físico, mas era mantido com dinheiro público, segundo revelações do jornal Folha de São Paulo, e tem servido como combustível para exaltar radicais Analistas políticos consideram o atentado a Brasília como um evento premeditado há muito tempo
A imprensa brasileira assumiu uma batalha contra a disseminação de "fake news", contra a ignorância, mãe suprema de todos os males.
Apoiadores fiéis acreditam cegamente em notícias que favorecem as suas ideologias políticas, não se preocupam em verificar a veracidade, o sentido ou a fonte, tanto faz, a informação maliciosa é repassada com êxito, e explode na internet como uma dinamite Durante as manifestações, radicais iludiam-se com manchetes falsas A articulação não logrou êxito, há menos um mês do maior ataque à democracia brasileira, percebe-se que o bolsonarismo perde força no cenário político A tomada da capital do Brasil não conseguiu derrubar o governo eleito pelo povo Sobretudo, a experiência cria um alerta aos demais países, de como o extremismo e a desinformação estão a ameaçar grandes nações
Kauã A Ramos 6
PREVISÕES BCE: FIM DA CRISE PARA 2025?
Em janeiro de 2022, os serviços secretos norteamericanos revelaram a sua crença em como a Rússia teria planos para invadir a Ucrânia Apesar da reputação da fonte, a “marcação” de uma data do início da guerra gerou uma situação quase jocosa“ a guerra começa na quartafeira” (como se a guerra fosse algo cujo início pudesse ser marcado como quem marca uma consulta) Da mesma forma poderá o Banco Central Europeu ter “marcado”, nas suas mais recentes previsões, o restabelecimento dos níveis de inflação pré-guerra para 2025
Antes da pandemia, em 2020, através da política de preços da União Europeia, a inflação na Zona Euro era extremamente controlada e relativamente baixa: os preços eram previsíveis e estáveis A particularidade de 2020, no entanto, catapultou a inflação para cima dos 2% em 2021, um valor ainda bastante controlado Aparentemente não era suficiente e, no último trimestre de 2022, observa-se uma taxa de inflação à volta dos 10%, o seu suposto pico nesta crise com começo na eclosão da guerra na Ucrânia
O BCE compromete-se apenas com projeções dos principais indicadores económicos até 2025, exibindo uma variação do nível de preços nesse ano semelhante ao de 2021, sem ainda nenhuma perspetiva de alcançar os níveis pré-pandemia
O caminho para o futuro não é, de todo, linear e previsível. 2023 e 2024 serão marcados por uma estabilidade frágil e um crescimento débil.
Segundo as previsões de dezembro, o BCE reporta um crescimento de 0 5% para este ano (apesar de uma recessão de 0 1% no primeiro trimestre) e de 1 9% para o próximo, com taxas de inflação respetivas de 6 3% e 3 4%
Fazer previsões tão abrangentes como para daqui a 3 anos não é algo simples, dificultado pela imprevisibilidade e instabilidade do ambiente internacional de tensão É do senso comum que a ameaça de uma guerra nuclear é, no mínimo, um fator condicionante da reação dos mercados
Além disso, o BCE viu-se obrigado a fazer algumas presunções ousadas, como a de que o fluxo de gás natural da Rússia para a Europa se manterá nos 14% relativamente ao fluxo médio 2017-2021 e, portanto, inalterado durante os próximos 3 anos Refere também que é pouco provável que o mercado de combustíveis fósseis esteja adaptado à nova conjuntura económica no próximo inverno, podendo haver falhas de previsão do lado da oferta ou da procura
As previsões admitem um aumento dos fluxos de gás proveniente de outros exportadores (que já aumentaram 20% desde o início da guerra) baseando-se nos projetos já previstos para este ano, mas não admitem a possibilidade de execução de novas políticas de racionamento no caso de escassez Ou seja, o próximo inverno, entre 2023 e
2024, será absolutamente decisivo para o novo equilíbrio dos mercados energéticos e, por inerência, de todos os outros mercados nos próximos dois anos
Para abarcar tais variáveis, o BCE emitiu um “cenário de contingência”, projetando evoluções no “pior contexto possível” Este caracteriza-se pelo escalar do conflito na Ucrânia, culminando no corte total das importações europeias de gás da Rússia sem que haja substituições de fornecimento no resto do mundo Isto poderá dar caminho a políticas de racionamento, também previstas no cenário Na conjuntura de contingência (“cenário pessimista”) pode-se esperar uma evolução negativa do PIB (-0 6%) em 2023 e um aumento de apenas 0 2% em 2024, assim como uma taxa de inflação de 7 4% em 2023 e de 3 6% em 2024 A escassez de combustíveis fósseis causará variações indiretas, já tidas em conta nas previsões, nas taxas de juro, na confiança na economia, na oferta/procura externas e internas, e nos custos de produção O ano que nos espera não será fácil Será improvável que a estrutura socioeconómica mundial se desenvolva linearmente como as melhores previsões do BCE projetam Mesmo na projeção positiva fala-se no maior aumento de custos laborais e do menor aumento da produtividade laboral em toda a primeira metade da década (2021 até 2025) Este não será o último inverno em que passaremos frio, e o próximo poderá trazer o ressurgimento da quebra do mercado energético Nesse caso, as contabilidades nacionais poderão ter problemas ainda maiores com a receita fiscal, o aumento singelo ou a diminuição do PIB e com os défices orçamentais e dívidas externas
A inflação veio para ficar este ano, mas a variação dos preços não será, de uma forma ou de outra, tão drástica como no ano que findou (mas lembremo-nos de comprar mais cobertores no próximo inverno).
Talvez os acontecimentos políticos, económicos e sociais, dentro ou fora da UE, de imprevisibilidade proporcional à distância temporal que se tenta prever, tenham outros planos para 2025 O BCE pode ser forçado a “ remarcar ” o fim da crise económica É também possível, não obstante, um futuro favorável, e que a remarcação seja uma antecipação em detrimento de um adiamento Um dado que pode suscitar positividade ao leitor será o de que as previsões para o último trimestre de 2022, em relação à inflação, falharam por cima, ou seja, o aumento dos preços foi muito menor do que o esperado De qualquer forma, a expectativa geral é a de um 2023 decisivo para toda a UE Esperemos que assuma os desejados contornos de um ponto de viragem na situação socioeconómica internacional
Eduardo Figueira
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POLÍTICA
"VIVER NAS FRONTEIRAS"
Dados da ACNUR (Agência das Nações Unidas para os Refugiados) demonstram que, no início de 2022, o número de pessoas forçadas a fugir devido a guerras, violência e perseguição em todo o mundo ultrapassou pela primeira vez a marca dos 100 milhões A esperança de que o número fosse um máximo e que a tendência se revertesse foi esmagada quando, em meados do mesmo ano, já 103 milhões de pessoas fugiam dos seus países de origem à procura de proteção e melhores condições de vida
Estes números são o reflexo da vulnerabilidade de todos aqueles que vivem nas fronteiras, sejam estas territoriais, étnicas, religiosas ou políticas Os conflitos multiplicam-se devido à diferença, à insatisfação ou mesmo por conta de fronteiras mal definidas e, portanto, também o número de pessoas que fogem destes locais se multiplica
Até agora, a comunidade internacional tem sido incapaz de solucionar os conflitos armados e outras causas de deslocação que têm forçado tantos milhões a abandonar as suas casas Esta contínua inação, combinada com os efeitos crescentes da emergência climática, o aumento dos custos de vida e a iminente recessão económica global, significa que a tendência vivida em 2022 não foi uma tendência mas sim um padrão que se vai replicar e acentuar em 2023
A invasão da Ucrânia pelas forças militares russas resultou numa mobilização de recursos e da comunidade internacional como poucas vezes se viu nas últimas décadas Ainda assim, pacotes de sanções e toneladas de armamento não foram capazes de proteger os cerca de 7,9 milhões de ucranianos que tiveram que fugir de casa, nem as centenas que perderam a vida Aquilo que começou e se intensificou na fronteira estendeu-se a toda uma nação, tornando a Ucrânia no palco de uma crise humanitária preocupante que corre as bocas do mundo
No entanto, a situação na Europa, quando comparada com outros conflitos armados que existem no mundo atual, é uma pequena lágrima no rio do sofrimento humano e das mortes causadas por tantas outras guerras silenciadas que anseiam ajuda internacional
de terras está na essência deste conflito esquecido, que resultou em mais de 233 mil mortes, incluindo 10 mil crianças, 4 milhões de refugiados e 71% da população em necessidade de assistência humanitária (dados de 2020)
A Organização das Nações Unidas (ONU) classifica a situação no Iémen como a mais grave crise humanitária do mundo
Também afastado dos holofotes diplomáticos internacionais está a guerra que começou em novembro de 2020 na Etiópia entre um partido político da região de Trigé e o governo central O conflito não dá sinais de acabar e estima-se que mais de 9 milhões de etíopes precisam ou virão a precisar, num futuro próximo, de algum tipo de ajuda humanitária
Na região do Cáucaso as tensões parecem, do mesmo modo, estar a abrir caminho para um novo confronto entre o Azerbaijão e a Arménia Desde o dia 12 de dezembro de 2022 que o designado Corredor de Lachin, a ligação terrestre entre a República de Artsaque (oficialmente parte do Azerbaijão mas habitada essencialmente por arménios) e a Arménia, foi bloqueado por protestantes do Azerbaijão que contestam a exploração de recursos naturais da região e que, ao mesmo tempo, impedem que bens essenciais cheguem a cerca de 120 000 habitantes
No Haiti, a crise humanitária tem vindo a atingir novos e alarmantes níveis A crise política a par da degradação das condições sanitárias desde o terramoto de 2010 têm feito o país do Caribe refém da miséria O assassinato do presidente Jovenel Moïse em julho de 2021 por mercenários colombianos resultou numa instabilidade política sem precedentes; o terramoto mortífero que se seguiu passado um mês levou a um surto de cólera que já infetou 1742 pessoas e matou 490 desde outubro Apesar do esforço da ONU, quase metade da população 4,7 milhões de haitianos está a enfrentar fome aguda e pobres condições sanitárias
Estes são meros exemplos do que está a ser “esquecido” Populações sofrem nas fronteiras de tantos países mundo afora A crise no Sahel, no Darfur, em Mianmar, e na Síria, na Palestina são, como tantos outros, exemplos aos quais também não é dada uma voz e que, portanto, pouco ou nada se sabe, pouco ou nada se ajuda
All animals are equal but some are more equal than others (Orwell, 1945)
Enquanto no caso da Ucrânia, num espaço de dias, já haviam sido emitidos pareceres, enviado dinheiro e armamento e impostas sanções ao país invasor, tal não é o caso nas guerras que existem noutros continentes É o caso do conflito no Iémen, que teve início em 2014 A disputa de território, de extensão de fronteiras e posse
Os desafios deste ano são a continuidade das emergências humanitárias do ano passado, porém, não devemos nem podemos estar vinculados ao ontem.
A partilha de responsabilidade, proteção, garantia de bem-estar, de dar voz e ajudar as populações do mundo deve ser a nova abordagem a tomar para enfrentar novos e recorrentes desafios
Ana Oliveira
POLÍTICA
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QUAL O LUGAR DA RELIGIÃO NA SOCIEDADE?
A necessidade de dar significado à vida sempre existiu, e muito provavelmente nunca deixará de existir, com benefícios para todos nós, para a nossa essência humana Para quê trabalhar ou ser boa pessoa, se a vida não tem sentido? O metafísico e o inexplicável não são apenas úteis para manter o mundo a funcionar, mas também uma parte integral do que nos torna humanos Pensar no futuro da sociedade inclui pensar na religião e espiritualidade. Para muitos, a religião já causou tanta dor e destruição, que não faz sentido que continue a existir Para outros, foi a religião que serviu de suporte contra esta mesma dor Existe aqui nuance, e seria ignorante da minha parte concluir que a questão religiosa é algo preto e branco, ou se é a favor ou contra Uma meditação sobre religião implica, antes de mais, compreender as razões pelas quais alguns a defendem e outros a desprezam
De modo a formar um argumento coerente, temos de reconhecer a nossa posição no mundo Eu, por exemplo, enquanto estudante universitária que não paga os próprios estudos, encontro-me numa posição facilitada que me permite focar nas questões mais filosóficas da vida É, sem dúvida, muito mais fácil formar uma opinião sustentada sobre religião quando não tenho de me preocupar com o meu sustento Estabilidade e educação são dois exemplos de vantagens que nunca, em qualquer circunstância, devemos tomar como garantidas
Reconheço o meu privilégio, e é nesta nota que irei falar da primeira, e talvez principal razão pela qual a religião pode ser algo positivo: a necessidade de ter algo a se “prender” em tempos de desespero É de notar a relação entre a situação financeira de um país e a sua ligação à religião Para quem vive uma vida precária, extremamente incerta e imprevisível, a religião aparece como a “certeza” que necessitam Ter uma entidade sempre a “olhar por elas”, e ser recompensado no final da vida pelo seu esforço e perseverança é, para muitos, essencial para viver É por isso que antes de criticar fortemente as crenças de alguém, é necessário conhecer o contexto
Sem contexto, não existe um verdadeiro raciocínio, sendo fundamental ver também o outro lado da moedase a religião pode ser vista como uma fuga para os mais desfavorecidos, é também uma forma de líderes religiosos se aproveitarem de pessoas mais vulneráveis O dinheiro é sempre uma questão central ao falar de religião, penso que ambos os lados do debate concordariam Para demonstrar isto, irei falar da religião com a qual tenho mais contacto, o Cristianismo, particularmente o católico Todo o sistema da Igreja Católica está desenvolvido para uma maximização de lucro A promessa de celibato dos padres, por exemplo, não passa de uma estratégia para manter os fundos e heranças destes párocos na igreja, evitando desvios para potenciais descendentes Também o “desapego material”, que começou talvez como uma simples metáfora, foi manipulado pela instituição católica A ideia de que “ o pobre que doar tudo” será recompensado na vida eterna é, sem dúvida, uma ideia irrealizada que deixa o bem-estar das pessoas em segundo plano Por muito que pareça louvável, sejamos francos, não se vive sem bens materiais
A dedicação religiosa pode ser inspiradora, mas não enche uma mesa, não paga as contas e, sobretudo, não é suficiente para sustentar uma vida estável e, por conseguinte, feliz.
Ao falar da Igreja Católica, seria imprudente da minha parte não falar da questão que mais se ouve falar nos tempos atuais, e que de atual não tem nada Os abusos sexuais na Igreja nunca desapareceram verdadeiramente Estes atos desprezíveis juntam-se a tantas outras posições católicas que afastam a população, e sobretudo os jovens, da religião A evidente misogenia, visão anti-feminista e descriminação da comunidade LGBTQI+ são algumas das razões pelas quais se torna difícil defender o pensamento religioso Posições que não são, contudo, exclusivas ao Catolicismo
OPINIÃO
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Fonte: "Christ and the Twelve Apostles", de Ana Martins
Questiono-me: qual o futuro da religião? Acredito que nunca deixará de existir, mas terá uma “evolução bipartida”. Por um lado, irão surgir aqueles que pretendem modernizar a religião, já visível, por exemplo, na adoção mainstream da prática de manifestação Esta surgiu no meio religioso tradicional, e foi adotada na “ nova onda” de espiritualidade destes últimos anos Ao invés de praticar a religião inteira, muitas pessoas optam por apenas seguir aquilo que faz sentido para a sua visão do mundo Esta, para mim, é a evolução mais positiva e desejável
Em contrapartida, temos também variações negativas, os extremistas, que irão defender posições fanáticas com base na sua interpretação pessoal da religião Esta vertente é muito bem representada pelo Movimento de Identidade Cristã nos EUA, cuja visão anti-semita, racista, misógena e fundamentalista se baseia numa interpretação macabra do Cristianismo Para exemplificar, este movimento acredita que Eva, a figura bíblica, criou duas linhas genéticas: os descendentes de Adão (raça “ pura ” ariana) e da Serpente (povos judeus e outras minorias étnicas) De uma só vez, engloba-se a culpabilização da Mulher, a discriminação racial e a ideologia nazi
O futuro da religião já começou Ser jovem religioso hoje e há 50 anos são dois conceitos diferentes Diz-se que somos a geração mais informada de sempre, conscientes das falhas da religião, que talvez não fossem tão visíveis em séculos anteriores Nessa lógica, invoco a questão do lugar da religião na política Em Portugal, particularmente, este é um debate que tem vindo a surgir cada vez mais Para mim, não há grande dúvida - sou da opinião de que a laicidade é das componentes mais importantes, senão a mais importante, da democracia Evidentemente, isto não se traduz no desaparecimento da religião, isso seria intolerante da minha parte Desde que não saia do domínio individual, resumindo a minha visão numa expressão mais familiar, acreditem no que quiserem Contudo, e correndo o risco de cair em clichês, as nossas ações no presente irão determinar o tipo de crenças religiosas que existirão no futuro Dito isto, talvez esteja na altura de deixar para trás a utilização de argumentos religiosos no diálogo político (e constitucional)
DINHEIRO, CAPITAL E PODER
Este artigo não é sobre dinheiro Mesmo estando no título, o dinheiro (ou seu outro nome, a moeda) é o objeto e mecanismo de trocas desde tempos antigos A moeda existe desde antes do tempo dos Romanos e provavelmente existirá em futuras sociedades do planeta Terra O dinheiro aqui serve principalmente como a figuração, a manifestação física do Capital, a grande entidade de nossos tempos
Tal “Novo Deus” da nossa realidade rege os mercados financeiros, as trocas comerciais, os empréstimos dos bancos, a relação entre Estados e a nossa própria interação como sociedade.
Tal regência não foi efetuada da noite para o dia, mas sim construída a partir de processos históricos importantes em nosso mundo Os processos que formalizaram tal regência em seus parâmetros atuais são a então Conferência de Bretton Woods em 1944 e o Consenso de Washington de 1989 Tais processos consolidam o Capital como peça central no modelo de interação internacional, seja por instituições, indivíduos ou Estados Não obstante, dentro de tal sistema instituído, é possível observar níveis de hierarquia entre os participantes do mesmo Ao focalizar o sistema em volta dos bens financeiros e capitais, aqueles que possuem o ativos e recursos possuem vantagens estratégicas sobre os que carecem de tais mecanismos
OPINIÃO
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Catarina Sousa
Fonte: "Money Fields", de Chris Miles
Estamos, assim, falando de Poder dentro de uma ordem estabelecida Muito do que me inspirou para tal artigo foi o filme "Triângulo da Tristeza”, filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes 2022 Sendo uma comédia sarcástica, o filme de Ruben Östlund é dividido em três partes nas quais nos são apresentadas três situações: (1) quando todos têm quantidades parecidas dinheiro, (2) quando uns possuem muito mais dinheiro do que os outros e (3) quando ninguém tem dinheiro As diversas situações apresentadas às personagens podem ser interpretadas como a própria interação de Estados posicionados dentro do status quo no qual fazem parte Durante a primeira situação, a principal mensagem é a de igualdade dos direitos e deveres Mesmo que haja alguma diferença, ela é mínima ao ponto de estabelecer um mesmo nível de poder entre as personagens, determinando assim uma falta de hierarquia na relação de ambos A segunda situação, entretanto, trabalha a partir da hierarquia de poder dentro de um iate de férias para milionários Para os ricos, o bom e o melhor disponível (afinal, eles pagaram por tal serviço luxuoso), para os pobres, o trabalho manual e de limpeza do navio Os papéis de ambas as partes são muito bem definidos e todos aceitam fazer parte deste sistema visto que a realidade é assim
Talvez a perspectiva mais visível seja a da nossa realidade global no contexto da interação Norte-Sul Uma grande parte do capital global está sob controle de poucos Estados ao norte, estes enriquecendo muito mais
facilmente devido às suas vantagens históricas (vide imperialismo) e se divertindo a partir de uma sociedade de consumo crescente que compra para se satisfazer e não porque é necessário
O resto - ou como conhecemos, o Sul global - participa do regime estabelecido, trabalhando para gerar riqueza a partir da venda de recursos e serviços ao Norte, ajustandose ao seu endividamento com o Banco Mundial, FMI e outras instituições reguladoras da economia global, mas sem sucesso na industrialização ou no desenvolvimento segundo os parâmetros estabelecidos por Washington Assim, pode ser percebida a hierarquia internacional criada pela centralidade do capital no sistema internacional Os que possuem mais poder, ou seja, a capacidade de influenciar ativamente o regime internacional e o regime de outros Estados, são aqueles que possuem mais capital financeiro ao seu dispor, sejam por ativos, por investimentos estrangeiros, por confiança do mercado ou empresas privadas de alcance internacional
Mas e se ninguém tivesse dinheiro? Já presenciamos diversas crises internacionais mas nenhuma delas a ponto de desconstruir o regime de mercado estabelecido Entretanto, diversos analistas económicos e políticos sugerem a vinda de mais crises de cunho financeiro nos anos pela frente Mas, se o mercado internacional fosse desconstruído, qual seria a nova moeda de poder? A terceira situação do filme (e aqui há de seguir alguns spoilers) naufragou o navio e colocou as personagens numa ilha Os ricos agora não são mais os influentes poderosos pois dependem exclusivamente da faxineira do navio, a única sobrevivente capaz de pescar, acender o fogo e cozinhar O regime de poder deixa de ser o capital e transforma-se nas habilidades, ou melhor, na adaptabilidade de sobrevivência A situação hipotética da ilha nos questiona para onde o poder segue quando a ordem previamente existente é dissolvida A resposta é que não sabemos
Para onde o fluxo de poder segue após uma mudança de regime pode ser apenas respondido por historiadores futuros Mas vale pensar (e esta é a intenção deste artigo) que o modelo vigente focado no capital cria incongruências nas relações internacionais e ratifica os papéis presentes na sociedade internacional. Alguns possuem mais poder do que os outros a partir do dinheiro que tem no bolso, ou melhor, no seu Banco Central E antes de lutar para mudar - ou desconstruir - o status quo, é importante pensarmos para o que queremos mudar Em 1944 e 1989 já se pensou sobre o que o foco de poder iria gravitar Se não se definir tal mudança previamente, pouco se sabe para onde o fluxo de poder seguirá Isto, além de perigoso para as gerações futuras, pode fortalecer aqueles que já exercem o seu poder no nosso planeta
OPINIÃO
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Leonardo Gomes Bortolini
Fonte: The movie database
OPINIÃO
TEMPOS DE (DES)IGUALDADE?
Uma reflexão sobre direitos LGBTQ+
É inegável a evolução dos últimos anos em relação à comunidade LGBTQ+ e ao seu lugar na sociedade Certas questões, contudo continuam prementes: estará a causa dos direitos LGBTQ+ realmente a avançar? Alcançou-se a igualdade? E, atendendo a isso, não deveríamos procurar lutar por equidade? A visão que algumas pessoas têm da História é a de que, com o tempo, o progresso é inevitável Outras veem-na como cíclica Eu sou da opinião de que, se pensarmos na História como separada de nós próprios, estaremos condenados a cair na estagnação provocada pela indiferença que, consequentemente, distanciar-nos-á do nosso desejo de progresso e equidade
Emprego equidade e não igualdade por uma simples razão Apesar das grandes conquistas de direitos civis e políticos, como o casamento e adoção por pessoas do mesmo género ou o reconhecimento legal de pessoas transgénero e não-binárias, a concretização de outro tipo de direitos, sobretudo económicos, parece ser esquecida Mesmo com uma inclusão gradual de direitos LGBTQ+ nas agendas políticas de cada vez mais países, a sua discussão tem-se tornado crescentemente polarizada, inclusive em países supostamente vanguardistas da sua defesa, como o Reino Unido e os EUA Esta polarização aparece como resultado de sucessivas “controvérsias” em várias frentes Do policiamento de corpos transgénero em competições desportivas femininas sob falsas bandeiras de “justiça no desporto feminino”, que nada fazem além de perpetuar cissexismo e misoginia; ao tema da saúde reprodutiva, marcado por uma retórica que acusa o movimento transgénero de “ apagar as mulheres” da discussão sobre o aborto embora, tal como mulheres cisgénero, homens transgénero e pessoas não-binárias serem igualmente suscetíveis à gravidez; e também o reconhecimento legal das identidades de pessoas transgénero e não binárias Um dos mais recentes episódios ocorreu na Escócia, que aprovou uma lei de reconhecimento de género que introduziria três mudanças fulcrais para o reconhecimento legal das identidades transgénero: (1) a separação entre a esfera clínica e legal, ou seja, o acesso ao reconhecimento legal do género de uma pessoa transgénero deixaria de depender da apresentação de um diagnóstico formal de “disforia de género”; (2) uma redução na morosidade do processo de reconhecimento civil, que passaria de dois anos para seis meses; e (3) a idade legal de acesso à mudança civil baixaria de 18 para 16 anos Implementar esta lei significaria uma transição mais rápida e menos intrusiva para pessoas transgénero, harmonizando a lei escocesa com os princípios internacionais de Direitos Humanos Contudo, o que aparentava ser um progresso para a comunidade, foi bloqueado pelo governo britânico
Além da polarização crescente do debate em relação aos direitos, há também a reemergência da retórica antiLGBTQ+ Isto não é novidade, inclusivamente na alegada mais progressiva esfera europeia Países como a Polónia e a Hungria têm sido extremamente claros nas suas posições anti-LGBTQ+ (considere-se o caso das apelidadas “LGBT free zones”) Ademais, a materialização legal desta retórica aconteceu também no estado norte-americano da Flórida, com a adoção do projeto-lei “Don’t Say Gay”, equiparável à Secção 28 adotada pelo governo de Margaret Thatcher, proibindo expressamente qualquer menção sobre tópicos como a sexualidade e a identidade de género nas aulas
Mesmo em Portugal, um país modelo na proteção legal de pessoas LGBTQ+, o clima social continua hostil à comunidade Portugal é um país ainda conservador em vários aspetos, muito devido à influência da Igreja Católica na opinião pública e ao facto da democracia portuguesa ser ainda relativamente jovem Até dezembro de 2021, homens homossexuais e bissexuais eram discriminados na doação de sangue (provavelmente relacionado com a ideia arcaica do VIH como uma "doença homossexual")
Adicionalmente, as terapias de conversão continuam a ser legais até aos dias de hoje Por outro lado, debates sobre direitos de pessoas transgénero e não-binárias deslizam para discussões em torno da definição de mulher É comum igualar-se o rótulo de ‘mulher’ com a capacidade reprodutiva (possuir um útero e ter filhos)
Contudo, não beneficiariam as mulheres da erradicação de papéis de género que as reduzem aos rótulos de mãe ou esposa? Não terá sido isso o que os movimentos feministas advogaram, pelo direito de as mulheres serem vistas como iguais, e como seres humanos dotados de agência?
Aproveito para salientar que feminismo não é feminismo se não for interseccional Se este não incluir mulheres de todas as raças, etnias, estratos socioeconómicos, e tanto cisgénero como transgénero, então estaremos apenas a enfraquecer um movimento sociopolítico que poderia resultar num benefício mútuo para todos os indivíduos Discursos como o apresentado anteriormente, que descartam e atacam abertamente certos membros, apenas contribuem para o enfraquecimento do que poderia ser um movimento unido
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As conquistas políticas e simbólicas em termos de direitos LGBTQ+ e a normalização das identidades queer no quotidiano têm contribuído para uma igualdade relativa da comunidade dentro da sociedade Contudo, assim que esta suposta "igualdade" é alcançada, a equidade parece ser esquecida Considerando a crescente afirmação do liberalismo internacional, o alcance da igualdade acaba por ter pouco significado se não for acompanhado com uma mudança do estatuto socioeconómico do indivíduo, para refletir essa condição igualitária
As mulheres transgénero, nomeadamente as mulheres negras transgénero, continuam a ser o grupo mais afetado pela violência e pela pobreza É certo que quando falamos de igualdade de direitos dentro da comunidade LGBTQ+ normalmente pensamos no casamento ou adoção, no fim da terapia de conversão ou na proteção contra crimes de ódio No entanto, porque não se abordam as questões socioeconómicas como a pobreza geracional ou a desigualdade salarial? Onde se discute o acesso digno ao emprego livre de discriminação ou à habitação? Estes são problemas universais, mas as comunidades marginalizadas, como a comunidade LGBTQ+, são desproporcionalmente afetadas, uma situação que se agrava com a intersecção de outras categorias como a raça, a etnia, a nacionalidade e o estatuto de migração Com isto, não estou a afirmar que a luta pelos direitos políticos não seja um pilar importante, porque é Contudo, atendendo à relação interdependente entre direitos socioeconómicos e direitos políticos e civis, deveríamos também mobilizar a nossa luta para as necessidades materiais da comunidade, tais como o acesso à saúde, à educação e à habitação
OPINIÃO
É de notar o simples facto de que celebrações como as Marchas do Orgulho (Pride) terem sido cooptadas pelas lógicas económicas neoliberais através da comercialização das identidades queer, integradas no sistema sob a alçada de slogans equiparáveis às do feminismo liberal (“minorias também podem ser bem-sucedidas se trabalharem o suficiente”) Os mesmos movimentos sociopolíticos que lutaram por emancipação, ao invés de integração, podem sucumbir a estas dinâmicas e perder de vista aquilo que é necessário para garantir mudanças reais no status quo
Quando Sylvia Rivera e Marsha P Johnson, duas mulheres transgénero de cor que estavam presentes em Stonewall, fundaram a organização ativista Street Transvestite Action Revolutionaries (STAR) em 1970, estabeleceram um precedente para algo essencial em comunidades marginalizadas: sistemas de apoio Apesar da simplicidade do espaço, a existência desta residência assegurou o acolhimento de vários jovens trans, oferecendo não só um teto sobre as suas cabeças, mas também comida e um espaço onde não tivessem de temer ser vítimas de violência devido à sua identidade Sem acesso a necessidades básicas, e sem um sistema de apoio como este, a possibilidade de uma vida melhor para pessoas numa situação tão vulnerável teria sido significativamente inferior
Falar de igualdade sem falar de equidade perde todo o seu sentido dentro do contexto dos direitos LGBTQ+. Se não procurarmos a mudança em todos os seus sentidos – desde o económico, ao social, ao político e cultural –então a possibilidade de verdadeiro progresso ficará sempre fora do nosso alcance.
Maria Inês Tomé
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Fonte: Ilustração NYT, de Marcos Chin
MULHERES GUERREIRAS DO SÉCULO XXI
Aluta pelos direitos das mulheres tem sido um processo contínuo, com sucessivos progressos ao longo da história
O desenvolvimento de sistemas opressivos, entre os quais, o patriarcado, o capitalismo ou o racismo, têm vindo a submeter as mulheres a diversos tipos de discriminação Deste modo, as necessidades são mutáveis e adaptam-se aos tempos vividos
Existe uma grande pluralidade de lutas dentro do movimento feminista, dado as mulheres, enquanto indivíduos, serem expostas a diferentes tipos de preconceitos e opressões A identidade é composta por múltiplos fatores, que devem ser tidos em conta para a formação das correntes feministas e dos seus respetivos objetivos
Assim, é fundamental reconhecer o feminismo como uma força política indispensável no mundo atual. Este movimento preconiza diversos avanços nas sociedades contemporâneas, numa tentativa de assegurar direitos humanos no seio das diferentes populações regionais
A interseccionalidade da luta é indispensável para a sua prosperidade Apesar de a globalização tentar impor uma homogeneização massiva na arena internacional, existem disparidades culturais, históricas, políticas, económicas, etc , que devem ser abrangidas pelo movimento feminista nas suas lutas pela igualdade
Por todo o mundo, tem-se vindo a assistir a violações dos direitos fundamentais das mulheres, restringindo a sua liberdade – seja esta política, sexual, religiosa, etc
Não obstante a emancipação das mulheres, que atestou uma maior independência e autonomia das mesmas, continua a ser imprescindível proteger os direitos já alcançados (que não estão assegurados!) e advogar para garantir tantos outros
Mulheres como Malala Yousafzai, ativista paquistanesa pelo direito das mulheres à educação, ou Leymah Gbowee, ativista liberiana pela paz e direitos das mulheres, são exemplos de como os direitos não são garantidos – as mudanças constantes de paradigma podem trazer instabilidade (como é o caso dos consecutivos avanços e recuos do direito ao aborto seguro e legalizado)
Recentemente, a nível global, tem vindo a surgir uma onda de protestos solidários para com as mulheres iranianas, no seguimento da morte de Mahsa Amini O feminismo islâmico tem vindo a ganhar maior expressão no seio destas sociedades, advogando por inúmeros direitos femininos Assim, no Irão, o uso do véu islâmico tem sido contestado, tanto a nível nacional como internacional No Ocidente, o véu islâmico é visto como uma imposição, símbolo de misoginia O seu uso é questionado frequentemente e as mulheres que o defendem são, constantemente, consideradas vítimas do paradigma em que estão inseridas Ora, o feminismo luta pela justiça, pelo direito à escolha e pela igualdade de género É inegável que, mesmo nos países ocidentais, muitas decisões são fruto do imaginário social – quiçá apenas tomadas por um livrearbítrio ilusório
A atualidade é consequência de uma conjuntura complexa Independentemente de quais sejam as reivindicações das diferentes correntes feministas, as mulheres devem unir-se e enfrentar as dificuldades impostas pelo sistema
Chegou a altura de dar voz à cultura silenciada, de romper com o domínio patriarcal e de se distanciar dos padrões de identidade social – chegou a altura de as mulheres se revoltarem e reivindicarem o que por direito é seu!
OPINIÃO
Catarina Baptista
Feminismo como força emancipadora
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Fonte: Jaco Blund em African Legal Studies
PROFESSOR JOÃO RODRIGUES
O mundo atual enfrenta desafios complexos que merecem ser debatidos Com o desenrolar da Guerra da Ucrânia, o futuro das Democracias, a Crise Climática e a Economia ganharam novos contornos O Volta ao Mundo com RI sentou-se à conversa com João Rodrigues, Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Investigador do Centro de Estudos Sociais O entrevistado obteve o seu doutoramento na Universidade de Manchester, e atualmente investiga sobre temas de economia política, nomeadamente a história do neoliberalismo e a financeirização do capitalismo em Portugal nas últimas décadas
Em fevereiro de 2022 despoletou o conflito russoucraniano, que tem sido alvo de diferentes opiniões, incluindo o termo a utilizar para o referir Por conseguinte, começou-se por falar da conceptualização do problema, ao qual o professor João Rodrigues concordou em denominá-lo de Guerra
“Está em curso uma guerra que é parte de uma radicalização da violência, vinda já de antes, de um conflito anterior” Quando questionado sobre as razões deste conflito, afirma que “ as causas profundas têm de ser encontradas na própria desagregação da União Soviética e das fronteiras que foram herdadas dos Estados que faziam parte da federação” Salienta também “ uma quebra do compromisso por parte dos EUA no momento de alteração do mapa político europeu, aquando da reunificação alemã, compromisso de que a nova Alemanha unificada integraria a NATO e que esta não se expandiria para Leste” No entanto, como se foi verificando ao longo dos anos, a NATO “acabou por se expandir para dentro das fronteiras da antiga URSS, criando uma crise de segurança ”
Ao abordar esta questão torna-se inevitável meditar sobre as futuras repercussões que esta guerra poderá ter na vida dos cidadãos, além daquelas que já se sentem A inflação, a crise energética e as crises político-identitárias são alguns dos exemplos mais marcantes
“A atual escalada belicista é muito perigosa e remete para cenários dantescos, que fazem aumentar a insegurança mundial, particularmente quando temos grandes potências com armas nucleares direta ou indiretamente envolvidas, Rússia e EUA”
Sabe-se que a Ucrânia é apoiada por grande parte do Mundo Ocidental, enquanto a Rússia encontra alguma compreensão no Sul Global Existe, contudo, uma potência oriental que mantém uma postura de ambiguidade sobre o alinhamento com a Rússia: a China
Sobre este fenómeno, João Rodrigues oferece uma explicação histórico-económica
“A China manteve-se afastada de conflitos internacionais desde o final dos anos 1970. Esta postura discreta nas Relações Internacionais foi ao encontro do desejo do país de desenvolver as forças produtivas e de ascensão económica. Esta estratégia permitiu inserir a China com vantagem crescente na divisão internacional do trabalho, até um certo ponto articulada com os EUA. Graças ao seu papel de grande fornecedor de bens industriais, e ao desenvolvimento económico que registou, a China começou a entrar em setores tecnologicamente mais intensivos, ganhando, também através de uma política industrial assertiva, capacidade de rivalizar com os EUA, não só no plano económico, mas também no militar. De Trump a Biden é cada vez mais claro que os EUA estão apostados numa estratégia de tensão com a China em reação a esta ascensão impetuosa” .
Fonte: “Birdcage”, de Marcia Diaz
“Voltando à Guerra, a atitude da China não é caso único e existem aqui várias nuances em posições de nãoalinhamento de muitos países do Sul Uma visão eurocêntrica não nos permite ver um mundo mais multipolar Da Índia ao Brasil de Lula, vemos na posição de vários países que o conflito europeu não merece mais atenção do que outras guerras que já ocorreram A mensagem é simples: ‘entendam-se e resolvam isso’”
À CONVERSA
Relembrar o passado para projetar 2023
COM...
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Fonte: Klawe Rzceczy em The Economist
PROFESSOR JOÃO RODRIGUES
Relembrar o passado para projetar 2023
Do outro lado do debate, a maior potência do Ocidente, os EUA, é muitas vezes denominada como o “ex-libris” da Democracia No contexto atual, onde a moralidade é frequentemente mencionada quando a Guerra da Ucrânia é debatida, torna-se crucial analisar um certo “declínio moral” dos EUA, relacionado com as várias polémicas do país, nomeadamente, casos de corrupção e violação de Direitos Humanos Sobre isto, João Rodrigues apresenta um exemplo expressivo
“Foi um presidente republicano muito controverso, Richard Nixon, que criou a Agência de Proteção Ambiental nos anos 70, mas hoje, os republicanos, quando o perigo das alterações climáticas é claro, são negacionistas Nessa mesma altura, a Exxon Mobil, uma das maiores empresas multinacionais do capitalismo fóssil, tinha modelos que apresentavam uma extraordinária capacidade preditiva e explicativa não só em relação ao padrão das alterações climáticas e do aquecimento global, mas também da responsabilidade que a queima de combustíveis fósseis tinha nestes processos Rex Tillerson (CEO da empresa entre 2006 e 2018) foi secretário de Estado de Trump”, explica
“A Exxon Mobil continua a financiar maciçamente um ecossistema de think tanks e de ‘investigação científica" negacionista em relação às alterações climáticas Esta questão do ambiente e do domínio da indústria petrolífera é um sintoma do declínio moral dos EUA”
De um ponto de vista geopolítico, muitos dos posicionamentos e ações que os EUA assumem podem aludir a este “declínio moral” do país
“
O próprio historial de ‘estatocídios’ executados pelos EUA no período a seguir à Guerra Fria, isto é, de intervenções militares em vários cenários, de guerras por si promovidas, muitas delas à margem do Direito Internacional, criaram um ambiente de desconfiança em relação à capacidade, motivações e feitos da liderança norte-americana” João Rodrigues sublinhou, como exemplos destas posições e intervenções, “ o alinhamento dos EUA com Israel no contexto do Médio Oriente; as intervenções no Iraque e a desestabilização que isso provocou na Síria; e a intervenção absolutamente irresponsável na Líbia” Trata-se de uma “destruição de ordens políticas sem cuidar da desordem que a seguir vai ser gerada”
Evidentemente, um fenómeno tão significativo como o “declínio moral” de democracia na maior potência do Mundo terá consequências no resto do globo Esta interdependência dos países relaciona-se com o processo de globalização que, para João Rodrigues, tem várias consequências negativas a nível político, económico e social
“Se não tivermos um sistema mais multipolar, que inclui um certo grau de desglobalização, onde os países e espaços regionais tenham mais autonomia, não teremos certamente uma redução das desigualdades nem da instabilidade financeira. É necessário um maior controlo político do sistema financeiro, uma vez que temos o sistema capitalista em crise, a gerar permanentemente novos ‘monstros’ políticos, que é aquilo que este sistema em crise faz”.
de Marcia Diaz
Acrescenta ainda que “ os ‘bolsonarismos’, os ‘trumpismos’ e as ‘venturices’ são tudo formas de ação política altamente bem financiadas que usam estrategicamente a descrença, o medo, a desesperança e, sobretudo, esta sensação de que não há alternativa”
No tema da “desesperança”, João Rodrigues afirma que é necessário “cultivar uma crítica forte ao sistema capitalista tal como ele existe historicamente, mas também fazer acompanhar essa crítica de uma apresentação de alternativas institucionais bem pensadas” Torna-se difícil encontrar esperança num mundo de desespero Por isso, o professor salientou dois líderes globais que fazem acompanhar o seu discurso crítico de uma mensagem de esperança: o Presidente Lula, de modo secular, e o Papa Francisco, de modo religioso
“Nos discursos do [Presidente] Lula está sempre presente uma crítica feroz aos seus inimigos, mas também uma projeção de um horizonte de esperança, neste caso para o Brasil Trata-se de uma política de símbolos, de narrativas e de mitos, todos muito importantes Aquela política que presidiu à tomada de posse dá uma nova imagem ao Brasil, afirma que este é composto também por todas aquelas pessoas que são invisibilizadas ou excluídas”
“E o Papa Francisco, cuja visão do catolicismo é uma visão inclusiva, bondosa e ecuménica, é uma figura de esperança na religião que, tal como a ideia de nação, é um elemento muito importante da experiência humana Não deixar estes temas entregues aos ‘venturas’ desta vida seria a minha mensagem política”
Relacionado com o tema da liderança, a conversa desenvolveu-se também para o âmbito da atual situação política da União Europeia Não só a nível supranacional, mas também no escopo nacional, surge um padrão comportamental, destacado pelo entrevistado
“A UE está atualmente numa situação muito complicada, uma vez que as próprias estruturas neoliberais de integração europeia alimentam uma certa ideia de impotência política, particularmente em Estados periféricos como o português Este padrão é preocupan-
À CONVERSA COM...
Fonte: “Birdcage”,
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PROFESSOR JOÃO RODRIGUES
preocupante. Até há uns anos pensava que Portugal estava relativamente protegido desta cultura de extrema-direita porque teve um regime fascista durante várias décadas. Mas o tempo vai passando, há uma desmemória e uma espécie de esvaziamento do debate político-ideológico. Muitos acreditam que Portugal vive em socialismo porque é governado por um partido com esse nome, o que não corresponde à realidade. É preciso ir para lá dos discursos e ver as ações tomadas, onde o neoliberalismo tem prevalecido, da austeridade à manutenção de baixos níveis de direitos laborais”.
De forma a englobar a UE, a questão ambiental e a Guerra na Ucrânia, João Rodrigues foi questionado sobre a crise energética atual, nomeadamente o aparente fenómeno de uma redução significativa da consciência ambiental global Uma das soluções para esta crise foi o retorno da produção e exploração de carvão, que demonstra a dependência gigantesca que o mundo ainda tem em relação aos combustíveis fósseis
“Existe uma relação íntima entre o capitalismo e os combustíveis fósseis, uma vez que toda a história capitalista se fez em torno destes recursos, que fazem, portanto, parte da matriz do próprio sistema, da energia à mobilidade Enfrentar interesses económicos tão entrincheirados exige um movimento ambientalista com uma consciência socialista muito forte, para que essas reformas do capitalismo, em modo Green New Deal, possam ser possíveis”
Explica ainda que, para si, " a principal contradição é esta forma neoliberal de capitalismo e o próprio sistema capitalista, porque não consegue encontrar soluções políticas para problemas por si gerados, nomeadamente desigualdades, instabilidade económica e a questão climática Temos um sistema altamente poluído, onde todas as metas anunciadas para o controlo de emissões de gases com efeito de estufa, desde que começaram as negociações internacionais nesta matéria, nos anos 90, foram sucessivamente ultrapassadas por grandes margens ”
Por fim, é necessária uma visão económico-financeira para formar uma perspetiva realista do futuro global Sobre isto, João Rodrigues focou a sua reflexão num dos temas mais debatidos no palco mediático atualmente: a inflação
“A pressão inflacionária resulta não só do choque geopolítico da Guerra, mas também da forma como esta foi utilizada como pretexto para vários movimentos especulativos que aumentaram a volatilidade de preços de bens como a energia, determinados essencialmente em mercados financeiros Os Estados foram, portanto, obrigados a intervir nestas áreas para instituir um princí-
pio básico de controlo político sobre os preços, ainda que insuficiente”.
Considerando a inflação “muito heterogénea”, afirma ser “muito difícil falar da inflação sem falar dos contextos específicos onde o processo inflacionário está a decorrer Torna-se complicado fazer grandes generalizações, mas no contexto da UE o processo inflacionário tem causas sobretudo do lado da oferta As grandes empresas aproveitam este choque geopolítico, uma vez que a matriz energética do continente depende de outros espaços para as suas fontes de energia fundamentais À exceção da energia renovável e nuclear, o gás e o petróleo são provenientes de espaços exteriores à UE”
“Este sistema tem de ser superado mais tarde ou mais cedo, mas sobre isso também não vejo ainda grandes forças sociais e políticas Temos um défice de esperança e um excesso de medo”
A título pessoal, resta-me alertar à necessidade de nos informarmos A consciência cívica constrói-se todos os dias, a ler, a escutar, a conversar 2023 é o futuro e o futuro são os cidadãos Lembremo-nos do passado para conseguirmos moldar e construir um presente mais acolhedor para todos Já dizia José Afonso: O povo é quem mais ordena
À CONVERSA
Relembrar o passado para projetar 2023
COM...
Catarina Ferreira
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Fonte: Ingram Pinn em Financial Times
SUGESTÕES MUSICAIS CULTURA
Demagogia, Lena d’Água: Lena d’Água critica de forma muito clara e singular as técnicas demagogas/demagógicas utilizadas pela grande parte dos políticos Aponta o dom da oratória da classe política, as falsas promessas feitas durante as campanhas eleitorais e a rapidez com que se esquecem de as fazer cumprir assim que chegam ao poder Enquanto existir política, esta música será intemporal pela verdade que carrega; tanto pela capacidade acrobática dos políticos em engendrar métodos atrativos que facilitem os resultados que ambicionam como pela facilidade com que as massas são seduzidas
Déclaration, Stromae: Desta vez, Stromae faz um tributo às mulheres pelas várias lutas que têm de enfrentar quotidianamente Refere a desigualdade salarial, os estereótipos de género, os efeitos da contraceção na mulher e doenças como a endometriose Em sinal de esperança, a canção aponta que, apesar de morosa, a mudança para um mundo menos misógino e mais livre e igualitário vai acontecer Infelizmente, muitas de nós não vão poder ver esse cenário com os seus próprios olhos nem, acima de tudo, beneficiar dele Ainda assim, mantenhamos o ânimo para as próximas gerações serem mais felizes, respeitadas e livres!
Liberdade, Sérgio Godinho: Esta canção enumera os ingredientes que compõem a liberdade 49 anos depois da Revolução de Abril, seremos livres? “A paz”? Olhemos para a Guerra na Ucrânia e tantos outros países em conflitos armados “O pão”? Olhemos para a inflação e para o custo da alimentação “A habitação”? Olhemos, em particular, para Lisboa e para a exorbitância dos preços das casas e de tantos casos sem-abrigo “A saúde”? Olhemos para os fechos de tantas urgências, para as filas de espera e para a falta de profissionais de saúde devido à não valorização do seu trabalho “A educação”? Olhemos para a situação das carreiras dos professores e para a crescente inacessibilidade ao Ensino Superior De facto, não nos podemos considerar livres quando ainda existe tanto a fazer em tantos campos sociais
Que Força É Essa, Sérgio Godinho: Apelando a uma maior consciência coletiva (de classe), Sérgio Godinho mostra espanto pela força que o trabalhador comum apresenta apesar do pouco reconhecimento monetário que recebe Além disso, refere-se a um cenário onde o trabalhador é submisso a uma autoridade que lhe é superior, sugerindo os sentimentos de revolta que este quadro levanta Escrita em 1972, esta canção mantém-se atual pelas várias lutas laborais que decorrem nos dias de hoje, como a situação das carreiras dos professores e as frequentes greves na TAP e na Saúde
E Não Sobrou Ninguém, Linda Martini: Nesta canção, Linda Martini refletem sobre o discurso de ódio motivado pela raça e pela origem geográfica, enfatizando o medo, antipatia e aversão com que são recebidos pelos “originais” Como o ser humano adora atribuir a culpa de todo o mal que acontece a alguém, atribui-o ao “outro”, ao “diferente” Com grande mestria, os discursos políticos populistas incitam este cenário de ódio e preconceito, criando barreiras divisórias na sociedade que são difíceis de esbater Nesta conjuntura é, de facto, importante ser literalmente humano e não olhar para o tom de pele como elemento distanciador mas como algo que nos devia unir em torno da diferença Que lindo seria o mundo se aceitasse que somos apenas diferentes iguais
…O Corpo É Que Paga, António Variações: Esta canção revela a relação simbiótica entre saúde física e saúde mental Devemos recordar que na década de 80 ainda não havia uma grande consciência sobre questões de foro psicológico No passar dos anos, essa perceção tem vindo a crescer apesar de forma lenta e gradual Ainda assim, Variações falava já sobre “frustrações”, “inibições”, “privações”, “confusão” e “nervosismo” Num mundo que tem de obedecer a rotinas, horários, pouco tempo e energia sobram para lazer, autocuidado e bem-estar geral, por exemplo
Apesar de Você, Chico Buarque: Esta é a última sugestão cultural para terminar com um tom esperançoso e otimista Sabemos que esta canção de Chico Buarque é um dos grandes hinos que canta a democracia e critica os regimes ditatoriais e repressivos Mantém-se atual pela presente e constante necessidade de resistir contra os autoritarismos e os extremismos A História é algo demasiado valioso e relevante para que nos esqueçamos dela Porque a História não se faz apenas do passado; faz-se particularmente do presente
Mariana Rodrigues Santos 18
O QUE SAIRÁ NO HORÓSCOPO PARA 2023?
O site (neutro-desconfiável) que me abriu o terceiro olho para o ano de 2023 parece-me uma referência notável para começar este artigo Sorte a minha de ser leão, as previsões apontam para um ano de prosperidade e independência financeira A ironia! Não só sou estudante a tempo inteiro, como o próprio alojamento onde vivo para estudar (sozinha) é-me pago pelos meus financiadores privados, os meus pais De cada vez que saio para jantar fora, a culpa quase me obriga a perguntar ao empregado de mesa se estão à procura de colaboradores Caro site de previsão astrológica, o que mais sou é dependente financeira
Tenho as mãos no ar, e um homem a fazer cosplay do Einstein pergunta-me se, mesmo assim, acredito na pseudociência da astrologia e do oculto “Bem, sim, Sr Einstein Mate-me, se quiser, com essa pistola Nerf de brincar ”
Os horóscopos existem porque têm público E esse público é constituído por mim, pelo cosplayer do Einstein que me ameaçou, pelos defensores de astrologia, e pelos seus atacantes Em pequena, procurava o canto de astrologia das revistas Bravo Hoje, vejo a coluna do horóscopo nas edições da Caras
Crescemos com o entusiasmo de ler sobre o nosso futuro, como se estivéssemos a falar com a mulher de turbante que lê cartas de Tarot É entusiasmante, misterioso e até desafiante Ficamos presos nas perguntas “Será isto verdade? Irá isto acontecer mesmo?”
Pessoalmente, não acho que isso interesse E prová-lo-ei da seguinte forma: de cada vez que atiro uma moeda para uma fonte e peço um desejo, quando trinco as velas de aniversário debaixo da mesa, qualquer previsão desejada do meu futuro, quer aconteça quer não, nunca me lembro de a ter manifestado
O que interessa não é verificar a certeza de uma previsão, é viver sobre a expectativa dela acontecer E é isso que intriga os leitores de horóscopos, as diversas possibilidades durante a continuidade da vida Ler o meu horóscopo para 2023 não me esclareceu sobre as minhas possibilidades financeiras, sobre o meu futuro amoroso, ou sobre possíveis oportunidades de emprego Esclareceu-me sobre a possibilidade Que a vida humana é multifacetada, que é medida por variados fatores sociais, que podem cair para o nosso lado, ou para outro, mas que existem e condicionam, incontrolavelmente, a experiência humana
Podemos considerar esta escritura uma defesa de horóscopos
Eu encaro-a mais como uma defesa da esperança humana, aquela certeza de que nada é certo, apenas de que somos parasitas de um planeta na infinidade do universo, e que mais vale ler previsões sobre a nossa vida, do que passar por outro Fenómeno de 2012
Termino com o horóscopo para 2023 que declaro ser o Horóscopo Oficial do Volta ao Mundo™: para 2023, esperem uma crise climática ainda mais agravada, um ambiente político mundial mais tenso, e mais artigos informativos deste jornal, que vos deixarão a par de tudo É esta a minha mensagem para todos os signos do Zodíaco
Selena Pereira
CRIATIVO
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Fonte: "Star Sign Graphics", de Free People
AMANHÃ JÁ MORREU HOJE
Tinha de apanhar o comboio para chegar ao Porto antes de anoitecer Estavam prometidos uma série de espetáculos em honra do senhor e não podia perder a oportunidade de estar presente, para me recusar a ir deliberadamente
Assim que meti os pés na carruagem, voltei a cabeça para o que me pareceu o conglomerado populacional mais denso de todos Como se tentassem amontoar o maior número de pessoas no menor espaço possível Creio que há uma certa bolha que nos separa, uma bolha que nos absorve e é só nossa Não sei se estava com vontade de ter estranhos na minha bolha – logo naquele dia, que nem lhe tinha lavado o teto
À minha frente estava um homem, de tantas pessoas, o mais humano, com barbas compridas e um barrete com borboto na cabeça Disse-me que era vidente, que adivinhava o futuro Sabes, a solidão não agarra quem vive do que há de vir, começou ele, e tu que estavas a pensar na tua bolha, nas bolhas per capita, esqueces-te de que a coexistência não é muito exigente e é bom que te prepares, porque tu vais encontrar alguém muito especial hoje mesmo Vai começar por te aliciar com elegância, com ilécebras, com um discurso de rosas e de pores-dosol, vais-te perder, naturalmente, assim que o assunto começar a rondar a tua existência – filhos, trabalho, apetites – e quando menos esperares, vai-te matar Indignei-me e respondi secamente, evocando as palavras de Carlos Lacerda, que trazia sempre na manga, Não gosto de mortos, mas muito menos de génios Estás reduzido à minha vontade de futuro, e, sem mim, tu não existes Tu e todas as pessoas que estão aqui nesta caixa de fósforos Estás a ignorar que se um de nós acende, tu és o primeiro a ir, porque não dás tréguas ao lume Reparei que a conversa não estava a agradar ao vidente pela maneira como perscrutava distraidamente o dedo indicador no ouvido, fazia uma cara de gozo, retirava-o embebido numa camada espessa e pegajosa de cerume cor de mel e o levava à boca com uma certa naturalidade
Então, não dizes nada?, ataquei Não, já sabia no que isto ia dar É uma pena ter o futuro na palma da mão e ter a mão sempre debaixo de olho, fica o presente muito mais entediante Indiscreto, perguntei, E se isso que tiveres na mão não for futuro, for a traição das tuas projeções, no modelo de Magritte, o futuro a ser o teu cachimbo Tanto quanto dizes, morrerei hoje, mas sinto-me mais nascido do que nunca, renasço agora e agora, consecutivamente, como podes falar do amanhã de quem nem o hoje logrou
Ele remexe no bolso esquerdo com alguma obstinação
Acho que procurava alguma coisa Levanta um duque de espadas e diz-me Tem cuidado, filho, se eu sou real é porque o presente não vos enche a barriga e as minhas previsões podem nem passar de mentiras, mas creem-nas mais reais do que o estarem aqui
Faltava uma paragem para chegar ao meu destino E se a matéria que prevês não for só um tempo verbal? Em boa verdade nunca vi o amanhã, não sei se tem a planta do pé seca ou se produz muco na garganta, sei que é tão certo quanto os meus verbos quiserem que seja Ouvia os foguetes ao longe, desci da carruagem e tudo estava iluminado, ensardinhado, embebedado Parecia tão falso que me atirei ao rio e os peixes grandes comeram-me a pele morta dos dedos enquanto fazia o sinal da cruz
Ramiro Herculano de Andrade
A GUERRA
O sangue escorre Pelas paredes da cidade
A cidade chora, Suplica por paz
As pessoas não ouvem
Vidros estilhaçados, Ruas desertas, Corpos no chão
Que sítio é este, Onde só há ódio no coração?
Ao invés de armas e tanques, Por que não se dá amor e uma mão?
Corações e mentes em conflito
Iludidos pelo sonho do poder, E o resto do mundo a ver
Entretanto
A cidade continua a gritar
CRIATIVO
Maria Ramos
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Fonte: Arnontphoto
INTERNACIONALIZAÇÃO ESTUDANTIL
Nos últimos anos, Portugal tem aberto as portas das universidades aos alunos internacionais, medida que se enquadra na estratégia de promoção à internacionalização do ensino superior no país No âmbito desse projeto, a Direção Geral do Ensino Superior (DGES), para regular tal internacionalização, publica o Decreto-Lei n 36/2014, ou o "Novo Estatuto do Estudante Internacional" Este institui o concurso especial que permite estudantes internacionais ingressarem universidades portuguesas Visa aumentar “ a captação de um maior n º de estudantes internacionais” e “potenciar novas receitas próprias” das universidades:
Os estudantes admitidos através deste novo regime não serão considerados no âmbito do financiamento público das instituições de ensino superior Em contrapartida, e de acordo com o previsto na lei do financiamento do ensino superior, as instituições públicas poderão fixar propinas diferenciadas, tendo em consideração o custo real da formação (Decreto-Lei n 36/2014)
Por efeito do excerto, estudantes internacionais pagam propinas mais altas que os estudantes nacionais, variando consoante a universidade A sua grande discrepância nos faz questionar a respeito do “custo real da formação”
estudantes internacionais, Questionamentos/mobilizações surgem por parte da comunidade estudantil, mesmo os estudantes nacionais O que justifica a universidade cobrar valores tão altos, muitas vezes o dobro das demais instituições? Como justificar 7000 € do “custo real da formação” de estudantes internacionais, independente da área e ciclo de formação? Destas questões, uma ressoa mais alto: estaria a UC perseguindo os seus quase milenares valores de humanismo e esclarecimento a estudantes internacionais, ou seriam estes meros assets para diversificar sua carteira de rendimentos?
Estudantes de Coimbra têm se mobilizado na tentativa de obter respostas e concretizar eventual redução das propinas internacionais Uma das atuais empreitadas dos estudantes da UC é o movimento Propinas de Fome, encabeçado por estudantes internacionais, com apoio dos demais estudantes e setores da Universidade da luta por propinas mais justas Atualmente, o movimento procura trazer transparência à discussão, reivindicando junto da reitoria e do conselho da UC a realização e divulgação de três estudos: (1) Estudo que explicite o custo real de um estudante na UC, permitindo saber qual o lucro que a instituição tem com estudantes nacionais e internacionais;
(2) Estudo orçamental sobre a viabilidade de uma eventual redução das propinas internacionais e caso ocorra, de quanto seria o montante a ser reduzido e o impacto orçamental;
A Universidade de Coimbra (UC), sendo a mais antiga instituição de ensino superior portuguesa, foi berço de grandes pensadores, juristas, escritores e movimentos que transformaram Portugal e a Lusofonia Fazendo jus ao conhecimento e vanguardismos com que foi sempre caracterizada, a UC ainda hoje, através do Relatório de Gestão e Contas Consolidado 2021, compromete-se a uma "formação humanística", à "contribuição para a aproximação entre os povos ” , e a atitudes sustentáveis e socialmente responsáveis, norteadas pela Agenda 2030
Na UC cobra-se 7000 € a estudantes internacionais de 1º ciclo desde 2014 Já os mestrandos tiveram um aumento significativo nas suas propinas a partir de 2018, passando a pagar 7000 € em cursos que até então eram 3000 € Estranhamente, estudantes internacionais do 2º ciclo são beneficiados com uma bolsa de 2000 €, o que faz com que a propina internacional de mestrado fique a 5000 € No entanto, por ser a UC a instituição de ensino superior portuguesa pública que cobra o maior valor aos seus
(3) Estudo para saber se houve afetação no número de estudantes internacionais do 2º ciclo com o aumento nas propinas Desta forma, o debate a respeito da propina internacional ganha concretude e valores reais Custa, para aqueles que escrevem e subscrevem este artigo, que uma instituição tão grandiosa como a UC manche os seus mais de 700 anos de vida sucumbindo a interesses vis, que de alguma forma justifiquem propinas internacionais estabelecidas em nome do lucro e em detrimento do conhecimento Tais montantes significam a precarização dos estudantes que, para os pagar, tenham que conciliar os seus estudos com trabalho, que se vêm forçados a escolherem outras universidades em Portugal ou que têm os seus potenciais académicos descartados simplesmente por não possuírem vultuosas quantias monetárias ou um sobrenome europeu que conceda estatuto de estudante nacional Por essas e muitas outras razões, o movimento Propinas de Fome possui como fim último a redução das propinas internacionais para que a internacionalização da Universidade de Coimbra seja um processo justo e humanista, não mera artimanha populista para enriquecer os velhos cofres desta instituição
ASSOCIATIVISMO
U Algarve U Aveiro U Minho U Beira Interior U Lisboa U Porto U Coimbra 3500 - 4500 € 3000
€ 2000
€ 3000
€ 3500
€
- 5000
- 6500 € 5000
- 7000
- 7000 € 7000
Propinas Internacionais Universidades portuguesas
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Luciano Gurgel Amorim, Gabriel Affonso, Dan Klajnberg, Pedro Falcone, Erica Moreira, Felipe Vaz, Eric Romero, João Vitor Troncoso
ASSOCIATIVISMO
A LIBERDADE NÃO É MERCADORIA
Projeto Académica Start UC do NERIFE/AAC (2022/2023)
O Tráfico de Seres Humanos é um fenómeno marcadamente global e transnacional, sendo, nos dias atuais, um negócio muito lucrativo e com uma enorme capacidade de atração para grupos criminosos organizados, que, por conseguinte, têm vindo progressivamente a sofisticar os seus métodos de atuação
A existência de novas artimanhas e processos por parte dos traficantes, o vazio legal existente em muitos países, bem como as dificuldades dos órgãos criminais em detetar, investigar e penalizar torna esta realidade bastante mais complexa a nível de análise e prevenção
Para além disso, em Portugal, quer por falta de ênfase da comunicação social ou pelo carácter residual que a sociedade atribui ao Tráfico de Seres Humanos, esta é, de facto, uma questão que fica marginalizada quer da arena política, quer do meio social No entanto, cada vez têm sido mais recorrentes estes episódios, em território nacional, nomeadamente de Tráfico de Seres Humanos para exploração laboral e sexual, o que enfatiza a necessidade de trazer esta realidade para o debate e reconhecê-la como fenómeno preocupante que deve imperativamente ser objeto de medidas profundas e eficazes de combate à mesma É neste sentido, com este objetivo e a partir do reconhecimento social e moral da questão que nasce a iniciativa do Núcleo de Estudantes de Relações Internacionais da Universidade de Coimbra sob o projeto de empreendedorismo e inovação social da Académica Start UC.
Assim sendo, o propósito do projeto é, numa primeira instância, desconstruir a ideia de que o Tráfico de Seres Humanos é um fenómeno explícito que jamais passaria despercebido na eventualidade de um dia nos cruzarmos com uma vítima De facto, esta ideia é fruto de uma falta de sensibilização social para o que é, de facto, o Tráfico de Seres Humanos, a forma subtil como se pode apresentar, os sinais que as possíveis vítimas podem expressar, bem como as teias de poder onde se pode entranhar
É, assim, a partir deste pressuposto que se passa ao objetivo seguinte desta iniciativa Como cidadãos, como jovens ativos numa sociedade extremamente globalizada, é imperativo que tenhamos um papel ativo na discussão e debate dos desafios que se levantam em muitas questões, nomeadamente no Tráfico de Seres Humanos A nível internacional, vários são os governos que têm procurado uma estratégia de combate ao fenómeno, nomeadamente através da produção de leis No entanto, é necessário considerar que a existência da legislatura não significa, necessariamente, que ela seja adequada e escrupulosamente aplicada
De facto, muitos são os pontos de reflexão interminável que devem ser alvo de escrutínio e de ativismo social no que diz respeito ao Tráfico de Seres Humanos: a legislação com foco primordial na penalização das situações de tráfico, ao invés do reforço dos direitos dos imigrantes e dos direitos laborais; a forma como as vítimas de tráfico são tratadas, não se tendo, muitas vezes, em consideração as condições sociais de estigma, por exemplo, que as poderão empurrar, uma vez mais, para os escombros e margens da sociedade É necessário, também, desconstruir e questionar o eurocentrismo que normalmente se encontra na base das legislaturas existentes, bem como outras realidades mais específicas de cada tipologia de Tráfico de Seres Humanos
Deste modo, a Académica Start UC torna-se um espaço onde é possível criar uma rede de iniciativas, de campanhas de sensibilização e de debates que pressuponham um olhar interventivo para a questão do Tráfico de Seres Humanos, para os seus desafios e, de facto, contribuir para o seu combate através da prevenção, mas também da estruturação e reflexão de formas alternativas de combate ao mesmo, através dos estudantes, com os estudantes e com a sociedade, em geral Para tal, tem-se contado com organizações da sociedade civil, com escolas de saúde e com os embaixadores de outros núcleos que têm dado um contributo essencial para uma análise multidimensional desta realidade, bem como dos contextos que a podem anteceder
Maria Inês Roque
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Fonte: OSCE
ASSOCIATIVISMO
"VAI FICAR TUDO BEM"
Quando pensamos que estamos saudáveis, raramente damos valor ao nosso estado de saúde real Casualmente, vivemos o dia-a-dia, conversamos, sorrimos e vamos aqui e acolá, sem pensar muito no privilégio que estamos a viver De facto, a saúde não é algo sobre o qual pensemos de forma introspetiva e apenas quando estamos enfermos refletimos de forma consciente sobre ela Contudo, quando adoecemos mentalmente, esta metamorfose pode ser cruel e dura, abalando a nossa forma de viver Volvidos mais de 2 anos de isolamento social como medida de combate à pandemia de Covid-19, as sequelas que ficaram são notáveis, afetando consideravelmente a saúde mental da comunidade estudantil Desta forma, para muitos alunes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), a depressão, a ansiedade e o burnout, entre outros, acompanham-nos durante o seu percurso escolar, dificultando o seu desempenho ou até mesmo resultando no abandono do ensino superior
A pandemia veio, assim, agravar uma realidade que já era preocupante Porém, agora, com a crescente inflação, os estudantes estão economicamente mais vulneráveis
Perante este cenário de urgência, os SASUC, bem como outros apoios fornecidos, não conseguem responder à procura, havendo demoradas filas de espera Dada esta situação, os vários núcleos de estudantes da FEUC -
NEE/AAC, NEG/AAC, NERIFE/AAC e NES/AACdecidiram juntar-se na defesa dos direitos e reivindicações da comunidade estudantil que representam, lançando assim um inquérito à comunidade académica para compreender a situação atual
Da nossa amostragem, 73% des estudantes da FEUC apresentam uma situação de saúde mental dentro dos quadros de ansiedade, depressão e/ou burnout Além de em 71% dos casos a situação persistir mesmo com o fim da pandemia, 80% das pessoas sente que a faculdade deteriora ainda mais a sua situação de saúde mental
Igualmente grave é o facto de 93% considerar que os serviços de apoio à saúde mental oferecidos pela Universidade de Coimbra (UC) são insuficientes, isto numa amostra em que 50% das pessoas não têm capacidades socioeconómicas para recorrer a psicólogos privados Por tudo isto, foi lançado o abaixo assinado por um serviço de apoio psicológico na FEUC, que registou quase 500 assinaturas por parte de estudantes dos 4 cursos da Faculdade
Face a estes números, realizou-se uma entrevista com a Rádio Universidade de Coimbra (RUC) e uma reunião com a Direção da FEUC Nesta última reunião, a Direção da Faculdade comprometeu-se a analisar a possibilidade de criar um serviço de apoio psicológico na FEUC, enquanto um serviço complementar, de boa-fé e boa-vontade relativamente aos serviços centrais da UC
No que toca ao futuro, os próximos passos pautam-se por assegurar que a voz da comunidade estudantil é ouvida Os vários núcleos de estudantes comprometem-se a acompanhar o processo e garantir a transparência do mesmo, e esperamos que ainda em 2023 seja criado o primeiro serviço de apoio psicológico na FEUC Resta continuar a lutar, dia após dia, para garantir que a saúde mental não seja vista como um privilégio e para que esta questão seja cada vez mais falada e vista com a devida importância Mas então não ia ficar tudo bem? E a saúde mental?
Pois parece que não, pelo menos não assim tão cedo
Daniel Santos, Mariana Matias dos Santos
“Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença.”OMS
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Fonte: “Birdcage”, de Marcia Diaz
FICHA TÉCNICA
Edição
Catarina Sousa | Leonardo Bortolini
Redação
VOL. 1
Ana Oliveira | Catarina Baptista | Catarina Ferreira | Daniel Santos |
Eduardo Figueira | Inês Roque | Joana Santos | Kauã A Ramos |
Luciano Amorim | Maria Inês Tomé | Mariana Matias dos Santos |
Mariana Rodrigues Santos | Selena Pereira
Revisão
Beatriz Galhardo | Catarina Mendonça | Francisca Andrade | Inês
Anastácio | Maria Ramos | Marta Gil
Imagem
Beatriz Oliveira | Bianca Zoppa | Iara Duarte
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Fonte: Mariana Matias dos Santos