19 Ed. Revista Atualidade

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Direitos de vizinhança e direitos da personalidade na sociedade contemporânea Rodrigo Amaral Paula de Méo Advogado em São Paulo e escritor rodrigodemeo@gmail.com

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á é quase meia-noite e, mais uma vez, meu amigo começa a ouvir os barulhos insuportáveis que vêm do andar de cima. Jamais os vizinhos se encontraram pessoalmente, mas parecem ter uma característica em comum: são músicos de formação. É o que se infere pelo insistente arrastar de móveis e sons de guitarra que o primeiro têm suportado quando começa a atuação noturna do outro. O contrário, no entanto, não pode ser dito: meu amigo possui a mesma necessidade de ensaiar, mas tem consciência de que fazê-lo no horário de repouso e sossego dos demais moradores do prédio lhes pode ser altamente prejudicial. Além do mais, meu amigo tem sofrido na carne (de fato, nos tímpanos) a comprovação de sua tese. Desde que o vizinho do andar de cima começou a promover esse tipo de comportamento, ele não tem conseguido dormir; consequentemente, tornou-se uma pessoa irritável e mais suscetível a desenvolver

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problemas de saúde. E como se tudo isso já não bastasse, por pouco não foi demitido do trabalho que mantém durante o dia, sob a alegação de que sua produtividade havia despencado e a qualidade dos serviços prestados se apresentava aquém do mínimo esperado. Meu amigo, que sempre foi excelente profissional e uma pessoa equilibrada (e notem os senhores, que não escrevo isso apenas por ele ser meu amigo) está, de fato, desesperado; e enquanto busca uma ajuda jurídica emergencial, sou capaz de escutar nitidamente os solos de seu vizinho-algoz, quase como se estivéssemos todos em Woodstock - ainda que, na verdade, eu esteja apenas do outro lado da linha telefônica. O ocorrido em questão está muito longe de ser inédito. Afinal, qual de nós jamais experimentou algum tipo de problema relacionado à vizinhança, ou, mais especificamente, ao exercício da propriedade de outro condômino em detrimento dos direitos dos demais?

Nem foi, portanto, necessário recorrer a longas pesquisas doutrinárias e jurisprudências para que surgissem histórias semelhantes em meu imaginário; a própria memória se incumbiu de trazer à tona casos como aquele onde o imóvel de uma tia já velhinha fora completamente inundado em função de obras manejadas irresponsavelmente pelos moradores da casa ao lado; ou ainda, quando, poucos anos atrás, uma cliente me procurou para se queixar que o rapaz que morava no prédio de frente havia instalado uma luneta na janela de seu quarto para observá-la dormindo ou trocando de roupa. Embora bastante distintas, as histórias resumidamente compartilhadas reúnem ao menos dois vínculos coincidentes: o fato de reunirem personagens que se encontram fisicamente muito próximas em função do exercício de sua moradia – daí o consequente título de “direitos da vizinhança” -, e a inegável agressão a direitos da


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