aParte XXI - v. 3

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aParte XXI

no 3 | 2o sem. 2010

riormente utilizado como sacolão de alimentos, que virou o Sacolão das Artes, gerenciado pela companhia, que ali sedia suas atividades. A postura política assumida pela Brava Companhia ilumina-se em Este Lado para Cima: Isto Não é um Espetáculo (2010), texto coletivo, direção de Fábio Resende e Ademir de Almeida. Além do claro enunciado político da trama, a obra evidencia que o grupo avançou na proposta de intervenção urbana. O trecho de uma rua é preparado para a ação principal, mas, bem antes do início, ruas e praças adjacentes percebem o ruído estranho. Homens com roupas semelhantes a uniformes militares ou de operários transitam com passos resolutos. Uma mulher, de mesmo figurino, vai pelas esquinas com megafone, convocando a todos para a apresentação, em tom de quem convoca para assembleia de sindicato. Em outro ponto, dois homens, com roupa igual, pregam cartaz lambe-lambe em um muro. O cartaz diz: “Trabalhadores, é hora de perder a paciência”. Um homem morre no ponto em que se dará a representação e é identificado como Ninguém. Ninguém mora na cidade. E todos os “ninguéns” da cidade trabalham diuturnamente para manter lá em cima a bolha invisível. Nenhum “ninguém” a vê, mas todos a temem, porque qualquer transtorno que nela ocorra repercute cá em baixo. Na bolha residem os que apenas usufruem e articulam modos de manter os “ninguéns” trabalhando à exaustão, com pequenos salários, alto custo de vida, precários sistemas de saúde e educação... Nasce a consciência de que a manutenção da bolha é pior para todos os “ninguéns” do que sua queda. Depois de um discurso aconselhando aos trabalhadores a perderem a “porra da paciência”, os “ninguéns” acendem os pavios de seus coquetéis molotov e marcham pelas ruas. As labaredas não significam um chamado à luta armada, mas à nova consciência, a uma nova postura do indivíduo em face ao sistema que o massacra. A bolha, onde atuam os grandes interesses financeiros que não têm cor nem ética, sufoca a sociedade, contamina as relações humanas, gera a violência. A esses “grupos exemplares” poderiam ser juntados muitos outros que, por sua atividade, alteraram o panorama e a geografia do teatro paulistano na primeira década do século XXI. Fazedores de teatro que não se perdem em elucubrações esteticistas, mas, ao se aprofundarem na realidade social, ao buscarem seus temas na “vida real”, criam novas formas estéticas. Encaram os desafios dos novos tempos e devolvem o teatro à sua essência ritualística.

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