Três três #5 - O Erro

Page 81

-place do dia) durante o início do serviço. Há sempre pratos para polir, trufas para acabar, pâte de fruits ou marshmallows para cortar, um ou outro bolo de cortesia para glacear. O tempo corre a uma velocidade demasiado veloz. Rapidamente, os pedidos começam a entrar e a partida começa a ficar inundada de serviço. Pré-sobremesas, sobremesas, petit-fours, há que dar serviço porque o espaço é exíguo e num instante se instalará o caos. Mesmo no meio de toda essa pressão há pormenores que não se podem descurar: caixas bem fechadas, tampas todas na mesma posição, etiquetas sempre viradas para o mesmo lado, bancada sempre limpa, chão sempre a brilhar. E os tickets dos pedidos que continuam a entrar. A cozinha é uma verdadeira orquestra, conduzida pelo chef. À sua ordem, todos devem responder. À sua voz, todos se devem fazer ouvir com um “Sim, chef!”, que deve significar que se ouviu e se interiorizou o que foi dito. Não bastasse a pressão do serviço, ainda é preciso uma memória bem ginasticada para que nada falhe. Aos pedidos da carta ainda se juntam uma série de restrições - é incrível a quantidade de intolerantes ao glúten e à lactose que, pelos vistos, frequenta este tipo de estabelecimentos - que fazem com que a atenção tenha de ser redobrada e muitas das vezes os componentes de cada prato tenham de ser alterados e substituídos.

Quando damos conta passaram quatro ou cinco horas desde que o serviço começou e daqui a nada

De estômago cheio e cigarros fumados (ainda estou para conseguir entender esta coisa de ter cozinheiros de topo a inundarem o seu palato e vias respiratórias com fumo de terceira) está na hora de regressar ao serviço. Sem parar um minuto – porque há sempre algo para fazer – todos retomam o seu lugar neste “fosso de orquestra” e o maestro dá início à récita nocturna. A partitura já é conhecida e já foi amplamente tocada por todos. Mas não por mim. Desde logo me apercebo que não darmos uma nota não é solução para evitar que se dê uma nota mal dada: por aqui tudo tem de sair perfeito e no tempo correcto. Sem margem para erro. Por aqui servem-se refeições de luxo, experiências de degustação complexas e meticulosamente pensadas, que encontram na sua execução um rigor idêntico ao da sua conceptualização. Não há lugar a relatividades, tudo se faz de forma absoluta e indiscutível. Só há uma forma de fazer as coisas: a correcta. Todas as outras são erradas e como tal nem devem ser sequer colocadas em cima da mesa para ponderação. Por aqui vende-se ao cliente que está na sala uma experiência de excepção: os melhores produtos, trabalhados com as melhores técnicas, são parte duma história que se conta sobre a mesa. “Alta Costura” gastronómica, pensada e personalizada. Nenhum pormenor pode ficar entregue ao livre arbítrio de cada momento e de cada cozinheiro. Dois cubos de pâte de fruits que vão para a mesma mesa no serviço de petit-fours devem ter “calibres” idênticos: “se tiverem tamanhos diferentes, o cliente vai achar que é desleixo”. O mesmo princípio se aplica a tudo o resto.

O ERRO

E quando tudo parece estar a correr bem, há uma mesa que, repentinamente, pára. “Essas duas azeitonas estão na casa de banho” ou “Esses dois lagostins foram fumar” são frases que os funcionários da sala fazem ouvir recorrentemente na cozinha.

tudo se voltará a repetir. Pelo meio é suposto descansarmos uma hora, que por vezes se reduz a apenas metade disso.

81


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.