Um Antropologo em Marte

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partiram. Nesses episódios, Virgil foi tratado por sua família como um cego, tendo sua identidade visual negada ou solapada, e reagiu, de acordo, comportando-se como tal ou mesmo ficando cego — urna retração ou regressão extensiva de parte do seu ego a uma negação esmagadora e aniquilante da identidade. Tal regressão poderia ser vista como motivada, ainda que inconscientemente — uma inibição de base ―funcional‖. Assim, parecia haver duas formas distintas de ―comportamento cego‖ ou ―atuação cega‖ — a primeira, uma paralisação do processamento e da identidade visual, de base orgânica (um processo ―de baixo para cima‖ ou distúrbio neuropsicológico, no vernáculo neurológico); a outra, uma paralisação ou inibição da identidade visual, de base funcional (um distúrbio ―de cima para baixo‖ ou psiconeurótico), embora não menos real para ele. Dada a extrema debilidade orgânica de sua visão — a instabilidade de seus sistemas visuais e da identidade visual neste momento —, era muito difícil, por vezes, saber o que se passava, distinguir entre o ―fisiológico‖ e o ―psicológico‖. Sua visão era tão marginal, tão próxima dos limites, que tanto uma sobrecarga neural como um conflito de identidade podiam empurrá-la para além deles. (Nota 12: Quando existe uma fraqueza orgânica específica, o estresse emocional pode facilmente assumir uma forma física; assim, asmáticos têm crises de asma sob estresse, parkinsonianos ficam mais parkinsonianos, e uma pessoa como Virgil, com uma visão limítrofe, pode ser empurrado para além desses limites e ficar (temporariamente) cego. Era, por conseguinte, extremamente difícil por vezes distinguir nele o que era uma vulnerabilidade fisiológica e o que era um ―comportamento motivado‖). Marius von Senden, repassando em seu livro clássico Space and sight (1932) todos os casos publicados num período de trezentos anos, concluiu que todo adulto que acaba de recobrar a visão passa, mais cedo ou mais tarde, por uma ―crise de motivação" — e que nem todo paciente consegue superá-la. Fala de um paciente que se sentia tão ameaçado pela visão (o que significava ter de deixar o instituto de cegos e sua noiva lá) que ameaçou arrancar os próprios olhos; cita caso após caso de pacientes que ―se comportam como cegos‖ ou ―se recusam a ver‖ após uma operação, e outros que, temendo o que a visão pode acarretar, recusam a operação (um desses relatos, intitulado ―L‘aveugle qui refuse de voir‖, foi publicado já em 1771). Tanto


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