ANAS

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ANAS



ANAS

A edição representa o exercício de reflexão sobre as realidades contemporâneas da personagem Ana, do conto ‘O Amor’ de Clarice Lispector. Tal exercício foi realizado como parte do projeto institucional ‘Dia do Autor’ do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo na data de 22 de agosto de 2018.


FICHA TÉCNICA Coordenação/organização: MIRLENE FÁTIMA SIMÕES LUIZ CARLOS DE MACEDO Projeto gráfico e ilustrações: PRISCILA BELLOTTI Autores: Turma: Relações Públicas (3º semestre) ANA LUIZA CARVALHO DIAS BEATRIZ WANDERLEY AZEVEDO BRUNA VULCANO CANGUEIRO GABRIEL DOS SANTOS TIN GABRIELA DA SILVA COSTA IVAN MARCOS RODRIGUES DE MACEDO JOSÉ PAULO TEIXEIRA JÚNIOR LAURA DE OLIVEIRA CRUZ LUANA SIEGL GAUDÊNCIO SILVA LUCAS RIBEIRO DE OLIVEIRA RENATA VIEIRA DARDÉ VITÓRIA BALEIRO FERNANDES SANTOS Turma: Comunicação Social (Núcleo Comum – 4º semestre) ALINE NAKAHARA MUNIESA ANA PAULA DA SILVA BEATRIZ BARROS DA SILVA BRENDA SILVA NOVAIS BRUNA MORAES FERNANDES CAIQUE MARTINS DA SILVA DIEGO DOS SANTOS DE OLIVEIRA FERNANDA DE MELO ANGELO FERNANDA VITÓRIA DA CONCEIÇÃO GABRIELA DANTAS FERREIRA GABRIELA DE OLIVEIRA NEVES SILVA GABRIELA GUTIERRES FRANCISCO GABRIELA ODIZIO LANDIM GIOVANNA DA SILVA VIEIRA GLAUCO CALIL ELIAS RODRIGUES IGOR FELICIO DA SILVA ISABELLA APARECIDA PELICANO CAMILLO JEFFERSON SANTOS SOUSA

KAREN PATRICIA GALVÃO TORRADO LARISSA ALCANTARA LEMOS DE FARIA MARIA BEATRIZ BOVOLON RODRIGUEZ MARIANA BARROS BOMFIM MARIANE MENDES REIS MAYARA KRAIDE MAXIMO PALOMA ALMEIDA SOARES PHILLIP BAMMER VANESSA SILVA VIEIRA Turma: Relações Públicas (6º semestre) ALINE SILVA RODRIGUES ANÁLLIA MARIA ARROYO BIANCA DE MORAES PAVAN TAKADA CAMILA GUSMÃO DE OLIVEIRA CAMILA PAGANO REBIZZI CAROLINA PIRES DENISE SILVA MARQUES FLAVIA TRIELLI RODRIGUES GABRIELA SOARES DE ARAUJO GIACOMO VULCANO HELENA GARUFI IARA MARIA BARBOSA DA SILVA ISABELLA TEIXEIRA DE ARAUJO JOÃO GABRIEL FERNANDES DIAS NHOQUE JULIANA AMARANTE VIEIRA JULIANA CORTE REAL LARA DE BARROS LARISSA FERNANDA PINTO LARISSA HASHIMOTO CAMPOS LEONARDO FUMAGALLI LETÍCIA PINTO GUILHERME LOUISE FRANCIULLI LUANA CARLA DA SILVA LUCAS CLEIN FERREIRA MARIA BEATRIZ MICELE ICIZUCA MARIANNA SUDÁRIO MATHEUS OLIVEIRA SANTOS NATHALIA LEPORE LOPES RAISA DE OLIVEIRA ALVES RAPHAELA CHRISTINA GARCIA CONTE REBECA MESQUITA MUNHOZ ANDRADE VICTORIA MAMELLI COSSOVAN


ÍNDICE Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07

TODAS AS ANAS Mulher: Força Motriz da Família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Mulher, independência e autonomia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 A Semente que não foi Plantada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Afinal, não era da utopia que vivia? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Laços de Família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27 Efêmera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Ceo & Mãe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

NARRATIVAS URBANAS Mulher do lar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37 Mulheres e as Relações de Parentesco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 Quantas Anas existem hoje? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 Laços de família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Epifania de consciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Sexo frágil? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55 “Muita coragem é o que eu preciso” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Mulher, cultura e arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

FRAGMENTOS Época de mudanças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 Mulher e a Construção Familiar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 Futuro forjado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 Trabalho, trabalho, trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Vida mecânica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 Foto do dia da atividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77



APRESENTAÇÃO A presente publicação partiu do projeto intitulado Dia do Autor, organizado pela Pró-Reitoria Acadêmica do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Tal iniciativa ocorreu em agosto de 2018 e o objetivo foi ler o conto “O Amor” de Clarice Lispector, e, a partir de suas interpretações, associar a leitura do referido conto com o cotidiano e com o conteúdo didático estudado. O desafio foi grande, Clarice Lispector é uma autora que suscita descobertas, estranhamentos e escolhas. A proposta pensada foi então contextualizar Ana, personagem principal do conto, tanto em seu tempo histórico, seus deveres enquanto mulher e suas atribuições sociais em período de intensas transformações no que se refere à sociedade brasileira, quanto também ao que poderia ser o questionamento de uma sociedade em que a realização da mulher dependia da realização do homem. Partiu-se assim em contextualizar quem é ‘Ana’ em tempos atuais. Contemporaneamente quais são os papéis sociais das diversas ‘Anas’ em sociedade? Nesse exercício de reflexão, várias foram as buscas: matérias de jornais e revistas, textos acadêmicos e publicações científicas, poesias e músicas, dados internacionais acerca da condição da mulher. Os resultados seguem nas próximas páginas, que partiram, além do exposto acima, também da condição ensinada por Clarice Lispector, em que: “escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador.” Boa leitura! Mirlene Fátima Simões Luiz Carlos de Macedo Docentes Centro Universitário Belas Artes de São Paulo



Todas as ANAS


Aline Rodrigues Camila Rebizzi Maria Beatriz Micele Matheus Oliveira Raphaela Conte AN6RP

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MULHER: FORÇA MOTRIZ DA FAMÍLIA

Quantas Anas, Marias, Sebastianas... Severinas? Quantas... Lava, passa, dobra e guarda. Compra, cozinha, alimenta, lava... Acorda filhos e maridos, serve o café. Tem que dormir cedo, para as 5h00 da matina estar de pé. Quantas Anas, Josefinas, Cleusas, Rosanas? Arruma os meninos pra escola, arruma a janta pro esposo, arruma o armário do mais velho, arruma a resistência do chuveiro que queimou, pra aquecer os corpos daqueles que não dão valor. Força motriz da família! Se desdobra em vários papéis para dar conta dos afazeres e manter tudo nos trinques. Recorda do seu passado, das festas com as amigas, amores e drinks... Passado coberto de névoa por um matrimônio socialmente imposto, ou que não era lá muito do seu gosto. Ele reclama que ela não se cuida mais, que anda desarrumada. Diz que “mulher que não dá assistência em casa está pedindo para ser chifrada”. “Calma... é que homem é assim mesmo” é o que ela ouve quando espera ser consolada. Quantas Anas, Lúcias, Valérias e Suzanas?


Coração gigante subjugado... se anulando em nome de um amor incondicional em busca da “perfeição” matriarcal. A Ana de Clarice se reconheceu no outro. Um homem cego - impedido de ver as coisas do Mundo - que estava parado no ponto e fazia um movimento repetitivo. Um cego mascando chiclete era tudo o que Ana precisava para despertar. A ponto dela ter uma epifania: “Uma esposa impedida de ver as coisas como realmente são e desempenhando tarefas repetitivas? Sou como esse pobre cego mascando chiclete no ponto?” A quebra dos ovos... A pequena casca quebrada que traz à tona tudo o que estava oculto transfigurado em mera fachada de aparência. Parafraseando Hermann Hesse: “A ave saiu do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo.” Aquele acontecimento lhe tirou a paz, talvez por ela ter mais coisas em comum com o cego do que ela poderia imaginar. Afinal, sem poder enxergar, poderia ele – o cego que mascava chicletes – escolher com perspicácia o melhor caminho para se trilhar? Ali no bonde, segurando a bolsinha de tricô feita por ela mesma, levando os ovos para a casa; ela se viu. Se viu num cego mascando chiclete. A fragilidade diante da vida e os ovos quebrados; inquietações da alma exalando um forte odor. A insignificância de movimentos que se repetem e que passam desapercebidos. O não enxergar por escolha de Deus? Ou a cegueira social? Eis que a Ana caiu em si e tomou consciência da vista grossa que ela fazia para as próprias questões. Afinal, quem era protagonista de sua história? Como refletir sobre a vida, quando ela segue a cartilha da convenção social? Questionar esse modelo de


vida e família não é pecado? Será que as minhas escolhas foram realmente minhas? O que é ter autonomia? Quantas Anas, Helenas, Elisangelas, Angelas? Quantas... Docilmente submissas a relacionamentos abusivos e rotinas exaustivas. Ninguém viu, ninguém ouviu, não teve pista. Chegou para denunciar, foi questionada e negligenciada pela polícia. Chefes de família construindo suas próprias narrativas. Já não aceitam mais apenas papéis de coadjuvantes, assumem as rédeas e tornam-se protagonistas das próprias vidas. Quantas Marielles, Tatianes, Cláudias, Anas? Inúmeras... O mito do sexo frágil. Subestimam o poder que elas têm, por saberem que são capazes de provocar grandes vendavais e revoluções. Existem mulheres fortes e aquelas que ainda não descobriram sua força, mas que honram seus papéis e deixam heranças para outras gerações. Mulher, construção dos mais fortes e rígidos elementos da vida. Moldada por uma sociedade que lhe impõe a beleza e a doçura, mas que lhe demanda a força, a garra e a bravura. E ainda que limitem e tentem de todo jeito lhes podar, elas continuarão a brotar como plantas do Jardim Botânico. Rompendo finas cascas de ovos, rochas, barreiras e paradigmas.

_______________ Referência de imagem: “O ovo cósmico” de Salvador Dalí


Camila Gusmão Flávia Trielli João Gabriel Nhoque Larissa Fernanda Leticia Guilherme AM6RP

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MULHER, INDEPENDÊNCIA E AUTONOMIA

Prego que se destaca é martelado Dizia minha vó pra vizinha, A voz baixa p’ro marido não ouvir As instruções são fáceis, ser mulher por aqui Que apenas fale O quanto um ser sem falo é permitido Que não saia com a roupa menor Que não peça pelo estupro e depois por dó Mas que papo é esse de autonomia? Abaixa a voz, senta direito Para de opinar Isso não é coisa de mulher que se dê o respeito Prego que se destaca é martelado Mulher que se atreve a tentar Morre na mão do patriarcado Sangra na rua, traída pela pátria puta Se pega fugindo sem motivo, Procurando outra mulher como abrigo Sem saber se o homem que vem a seu encontro Vem como passageiro ou carcereiro Se hoje é seu dia de azar Se amanhã ainda tem nome ou apenas número Mais uma na estatística Menos uma na aula, na casa, na luta


Como é severo isso tudo Esse mundo pequeno O tiro, o veneno A dor de mais uma que já foi Morreu ontem e morre hoje de novo E todos os outros dias Julgada e pisoteada Espancada depois de morta Quem era e porque tava lá? Ou é santa ou é bandida Ou tava em casa com os filhos Ou se destacou Martelada merecida Já se vai mais uma.


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Anallia Arroyo Denise Marques Luana Silva Lucas Ferreira Raisa Alves AN6RP

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A SEMENTE QUE NÃO FOI PLANTADA

Ana plantou semente que tinhas nas mãos, somente esta não As árvores cresciam e riam, sem agradecer Riam de Ana quando nada mais poderia fazer. O jardim estava em ordem, sem ervas daninhas, Plantas úmidas, terra fofa e todas nutridas. Raízes saudáveis, jardim em paz, Tudo tão tranquilo que resolveu sair. Sair, para espairecer e tomar novos ares. Espiar novas plantas vizinhas. Caminho desigual com obstáculos tortos, onde está Ana? Ana notou um jardim parecido com o seu, Com árvores, plantas e orquídeas de mesma espécie, Algo chamou a atenção, o que era? A grama não estava tão verde, as plantas não estavam nutridas, A terra não estava fofa. Tudo caiu por terra, aquilo não era um jardim. Era uma floresta, uma floresta que o clima cuidava, Porém, o ser humano descuidava, irresponsabilidade? Ana chocou-se com algo comum, mas importante. Repensou a bolha em que vivia, que cultivava e cuidava, Seu Jardim.


Seriam todos jardins iguais e belos ao de Ana? Seriam todos os jardins não cuidados igual à Floresta? Tantos jardins sem insetos, com terra sem nutrientes, Secos como as folhas no inverno, secos como o Sertão. Tantas plantas com sede, e Ana podia fazer mais? Seu jardim, sua função de jardineira, A perfeição da bolha em que vivia, e agora? A bolha estourou e o tempo da jardineira se foi, Nada mais seria igual a partir da floresta. Se Ana fosse uma mãe, e o jardim fosse seu filhos... Tudo estaria em pé por conta de uma mãe dedicada. Única guardiã da família, e do jardim? Jardineira única? Mãe e pai? Responsabilidades iguais? Jardim compartilhado? Aquela semente, a qual não foi plantada, qual era? Era a semente da igualdade que não estava presente. Se tivesse plantado a semente da igualdade, colheria flores? Ou espantaria o sêmen? O sêmen da vida. A vida podia ser feita pelas mãos dos homens, e o jardim? Deveria ser um apenas um jardineirO ou uma jardineirA? Como Ana via seu jardim? Continuava lindo, tranquilo e saudável? O jardim era o mesmo, a perspectiva era outra. Amava-o com nojo do mundo em que vivia, Repleto de desigualdades, sem a semente plantada, o que Ana colheria?


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Ana Luiza Carvalho Bruna Vulcano Luana Siegl Renata DardĂŠ AM3RP

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AFINAL, NÃO ERA DA UTOPIA QUE VIVIA?

A tela de computador ligada era a cena mais comum no dia a dia de Ana. Era como se fosse a visão mais natural para ela, como a escuridão aos olhos de um cego ou o silêncio para um surdo. Já lhe era natural atender o telefone, responder e-mails e, principalmente, cuidar da agenda do chefe, das audiências em que precisava aparecer, os clientes que atenderia e até mesmo seu horário de almoço. Era perfeito para uma mulher formada em direito, cursando agora a pós-graduação, certo? Estar rodeada de advogados, cuidar de cada uma das audiências em que eles se apresentariam. Sabia de trás para frente seus discursos e, por vezes, até seus processos, que sempre lia com brilho no olhar, mesmo que jamais fosse a que os defenderia. Perfeito, não? Por isso, aquele dia não lhe parecia nada diferente dos outros, de uma utopia que parecia ter sido moldada perfeitamente ao redor de seu ser. Checava os e-mails, a agenda, e encaixava os clientes de um a um no horário do chefe que lhe parecia apertado, porém infinito. Estava concentrada demais na tarefa que por pouco não ouviu a voz familiar lhe chamando em sua sala. O medo da bronca já lhe era comum. Quantas vezes não havia sido chamada para aquilo? A confusão de horários sempre era culpa dela, e quando os chefes não entendiam o que estava na agenda, consequentemente era seu emprego que corria risco. Com a cabeça baixa, Ana caminhou para dentro do cômodo enorme, iluminado e decorado, diferente de sua mesa em frente; que era apenas branca, simples e perfeita para si. Sentou apenas quando fora convidada. Já esperando a bronca, surpreendeuse com os elogios que lhe eram direcionados, sobre o quão esforçada era


e como merecia muito mais. Muito mais? Ela não imaginava aquilo. Já havia aberto os lábios para direcionar uma resposta educada sobre a suposta promoção, mas precisou calar-se no instante em que seus olhos castanhos se encontraram com o rosto do patrão. Os lábios eram abertos em um sorriso malicioso, quase sedento, enquanto os olhos desciam pelos cabelos até o decote discreto de Ana, como se a devorasse com a mesma fome que um leão devora sua presa. No momento de tensão, a mão fora contra o pote cheio de canetas do homem, e por acidente, todas caíram no chão, junto ao vidro quebrado. Quase como em desespero, em uma epifania súbita e desesperadora, a mulher se levantou, mal respondendo, saindo em passos rápidos pelo saguão, e em seguida, pela empresa. Pouco lhe importava a demissão. Agora, passava em frente do carro do estagiário que cumpria a mesma função que ela; terceiro semestre, salário maior e um carro, ao contrário dela, que precisava pegar um ônibus. O mesmo garoto que era levado em audiências, que era chamado para reuniões, enquanto lá ficava Ana, num saguão frio e vazio, encarando a tela do computador por oito horas para ganhar trinta por cento a menos do que o tal rapaz. Quase fora atropelada pelo ônibus que ela mesma pegava, em uma necessidade súbita de atravessar a rua. Como se os passos que fazia fossem o oxigênio que precisava para ficar respirando, enquanto via as pessoas a encarando na rua como uma maluca. Podia ver o porteiro do prédio a olhando com desdém, como se houvesse acompanhado tudo de perto, como se houvesse pago um ingresso para ver aquele teatro da primeira fileira. O quão justo era? O salário era baixo, e ela, formada e com diploma, era deixada de lado por homens calvos que riam e se consideravam melhores e bem sucedidos. Homens que tinham famílias com filhos gordos e um jantar feito pela empregada, um carro conversível e que grunhiam como porcos quando uma piada sobre uma mulher era feita. Afinal, o que era uma mulher? Ana era uma mulher. Uma mulher deixada de lado por todos aqueles parâmetros infelizes que eles insistiam em colocar para advogar naquela maldita empresa. Como se fosse necessário ter algo entre as pernas para ser um bom profissional, algo que Ana jamais teria, e nem queria ter. Algo que não deveria ser necessário para isso.


Os joelhos já doíam quando alcançou o prédio medíocre onde morava. Já anos não havia andado até ali, o ônibus sempre fora seu melhor amigo, mesmo com as mãos e os apertos. E ela nunca dera a mínima, afinal, era apenas uma secretária. A entrada no apartamento de apenas um quarto fora acompanhada por uma lufada de ar. O cheiro de mofo criado pelo vazamento de água na parede invadiu suas narinas, um cheiro que vinha ignorando pela falta de dinheiro. Mas era justo, não era? Era suficiente, ser apenas uma secretária. Não era? Era como se o mundo consumisse a si próprio e derrubasse todas as paredes que haviam sido construídas anos atrás. Uma bola demolidora batia em cada uma delas, fazia um barulho ensurdecedor antes do gesso desmoronar em poeira branca. As paredes eram compostas pelo corpo de Ana, que parecia adormecer a cada batida. A sensação dolorida passara de supetão com o barulho do celular tocando. Não sabia há quanto tempo ele tocava, mas demorou mais alguns segundos para piscar, respirar e atendê-lo. Era uma mulher desconhecida, que se apresentara pelo nome de uma empresa que não conhecia. Ofereceu-lhe uma entrevista, pois seu perfil no Linkedin havia sido selecionado. Precisavam de uma advogada nova, a sócia havia saído por motivos pessoais. Parecia utópico demais, mas mesmo assim, Ana aceitou. Afinal, não era da utopia que vivia?


Beatriz Azevedo Gabriel Tin Jose Paulo Vitoria Baleiro AM3RP

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LAÇOS DE FAMÍLIA

O ano era 2015. Ana acabara de se mudar para São Paulo, contra a vontade dos pais, batalhou com todas as suas forças para juntar o seu dinheiro e realizar o sonho de fazer uma boa faculdade, apesar do que sua família pensava, seu futuro seria promissor. O início de sua vida acadêmica não foi nada fácil, Ana estava sozinha em uma cidade que desconhecia, morando sozinha, sem seus amigos, sem seus pais, sem ninguém, mas felizmente isso não durou por muito tempo já que sua turma de Relações Públicas era bem pequena, todos se conheceram e criaram uma amizade bem rápida, principalmente com Miguel, que chamara a atenção de Ana desde o primeiro dia de aula. Miguel era bem mais alto que Ana, tinha olhos verdes, cabelo castanho e um sorriso muito encantador, que com o passar do tempo ficara cada vez mais difícil resistir às tentações de Miguel. A vida de Ana se tornara muito mais suportável com a presença dele, eles faziam tudo juntos, desde trabalhos da faculdade a ir ao mercado, cada dia mais próximos, até que Miguel finalmente tomou uma iniciativa e chamou Ana pra sair, que não pensou duas vezes e logo aceitou. Foram dois anos de um relacionamento muito tranquilo, a conexão entre eles era algo invejado por todos, Miguel como um verdadeiro cavalheiro sempre fazia o possível e o impossível para vê-la feliz, assim como ele, sua família se apegou a Ana rapidamente, sempre fazendo ela se sentir em casa, até que um certo dia Ana descobriu que estava grávida, e a ideia de não poder mais se dedicar completamente ao último ano da faculdade, e sentir que o seu novo emprego na Ainsoft poderia estar em jogo fez nascer o desespero em si, com essa notícia, toda a sua vida mudaria para sempre, todos os seus planos foram jogados ao ar e ela se perguntava se tudo teria valido a pena. Apesar da vontade de passar o resto de sua


vida com Miguel, aconteceu, não foi planejado, nem pela falta de cuidado, realmente era para acontecer, Ana estava em sua casa sozinha planejando como contaria essa notícia a seu namorado, o desespero só aumentava, mas ela confiou no amor dos dois e se manteve positiva, daria tudo certo, então ela ligou para ele e pediu que ele a encontrasse em sua casa. A reação de Miguel foi o contrário do que Ana esperava, ela entendia que eles eram muito novos, afinal ser mãe aos 20 não é nada fácil e ele é apenas um ano mais velho que ela, mas para ela, eles dariam um jeito das coisas darem certo, eles se amavam e ele era tudo que ela tinha. Já ele não pensava tanto assim, o moço só se importava no quanto isso afetaria sua carreira e sua estabilidade financeira, estava preocupado demais para se quer pensar em como os dois resolveriam essa situação juntos, ele deixou bem claro que não assumiria o filho e nem continuaria mais com ela e antes mesmo que Ana pudesse falar qualquer coisa, ele juntou tudo que havia deixado na casa de Ana e saiu, deixando-a sozinha em prantos, apenas na companhia de seu filho, agora, sem um pai. Os meses seguintes foram uma mistura de sentimentos, Ana não sabia se ficava triste por Miguel ter jogado tudo fora ou se ficava desesperada por estar sozinha e agora ter que cuidar de uma criança, mas tentava se manter firme pela nova vida que estava por vir. Ela começou a fazer os exames e descobriu que na verdade estava grávida de gêmeos, quando Ana finalmente tentava se reerguer, levava uma rasteira novamente: se cuidar de um filho já seria algo impossível, imagine dois. Ela não conseguia imaginar como faria para dar uma vida boa a seus filhos e sabia que só o seu salário da Ainsoft não seria suficiente. Ana apertou cada vez mais as suas economias para criar os filhos com o melhor que estava ao seu alcance, tentava ao máximo se dedicar ao seu trabalho e o seu esforço foi reconhecido e recompensado com uma promoção. Finalmente havia acontecido alguma coisa boa na vida de Ana, o sofrimento todo no final teria valido a pena, ela teria conquistado o tão sonhado cargo de gerente de marketing e iria trabalhar com o CEO da empresa. No dia de sua promoção fizeram uma pequena recepção para que ela se familiarizasse com os novos colegas de trabalho, já que ela estava em uma área muito acima do que havia começado. E foi quando ele passou pela porta, o CEO, bem diferente do que Ana havia imaginado, era um homem alto, forte, com o rosto bem marcado, e apesar de parecer jovem já possuía


muita experiência profissional, ele se apresentou como Sr. Smith, deu as boas-vindas a Ana e voltou ao trabalho. O ano é 2018, Ana e Diego Smith haviam se aproximado e cada vez mais ela conhecia algo dele, ela realmente estava encantada, mas mantinha ao máximo tudo na amizade, Diego era divorciado já que casou muito cedo, ele sempre sonhou em construir uma família, mas sua ex-mulher após 5 anos de casamento falou que não queria ter filho, Diego não viu outra solução a não ser separar-se, afinal só amor não era suficiente naquela relação. Mais um tempo havia passado e estava chegando o dia do nascimento dos bebês, Ana estava muito preocupada pois ela não tinha ninguém para ajudá-la, mas sabia que conseguiria passar por qualquer coisa sozinha, até que, num dia comum no escritório, a sua bolsa estourou e Diego correu com Ana para o hospital e não a deixou em nenhum momento. Um dia após o nascimento, Diego tomou coragem e se declarou, ele disse que Ana não deveria passar por isso tudo sozinha já que ele gostava muito dela e que ela podia contar com ele pra tudo, incluindo assumir as crianças, ela ficou muito surpresa mas agradecida e feliz pela atitude de Diego. O tempo foi passando e as crianças cresciam saudáveis simultaneamente ao amor do casal, que ficava cada vez mais unido, crescendo juntos em sua vida pessoal e profissional, mostrando para Ana que às vezes a vida pode virar de cabeça pra baixo, mas no final tudo dá certo.


Brenda Novais Glauco Calil Mayara Mรกximo AN4CS

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EFÊMERA

Após presenciar um acidente de carro de uma família, os padrões utópicos do século passado assombram uma jovem que passa a se questionar sobre sua jornada de vida. Ana, de 23 anos, deixa todos os dias seu filho em uma creche na Zona Leste de São Paulo para ir trabalhar. Segundo ela, em sua rotina exaustiva em transportes públicos, na manhã de sexta-feira, o ônibus que a transportava freou bruscamente. Pela janela foi possível observar um carro capotado com um casal e duas crianças no banco traseiro. Ela teve certeza de que aquela família nunca mais seria a mesma. Mas o que a preocupou, foi ver que ninguém em sua volta se mobilizou, era como se aquela família fosse invisível e ninguém se importasse com o que havia ocorrido. O momento levou Ana a refletir sobre seu filho, será que ela levava aquela rotina por amor, ou por não amar a vida que poderia ter caso pudesse escolher dedicar mais tempo ao seu filho. Aquilo perseguiu a mente de Ana, que escreveu em seu celular: “Que em meio a todas as notícias do dia, sejam elas boas ou ruins, possamos observar o próximo como olhamos para nossos filhos, amigos e família. Que o amor que sentimos por quem queremos bem e que muitas vezes nos leva a escolher a vida que vivemos, reflita em nosso dia a dia e nos leve a tomar melhores decisões, ajudando e enxergando o próximo. Que nos penalizemos por aqueles que estendem as mãos e que voltemos para nossos lares ao encontro daqueles no fazem amar, com um sorriso no rosto e certos de que nossas atitudes fizeram as dores de alguém menos doloridas e de que fazemos nossa existência valer a pena.”


Mariane Mendes Fernanda Vitรณria Larissa Alcantara Gabriela Neves AN4CS

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CEO & MÃE

Para a Diretora Executiva Ana Duarte, as mulheres conseguem muito bem conciliar a vida profissional com a pessoal: “Ficar em casa cuidando dos meus filhos e marido é ótimo, mas sinto que depois que me engajei no projeto, minha vida tem um propósito real. Consigo parar e refletir de que forma posso contribuir com o mundo”. Após ser questionada se a vida profissional não atrapalhava os cuidados com a família, pois a vida como empresária mudou totalmente sua rotina, Ana responde em tom sarcástico: “Ora, eu tenho um marido que deve cumprir sua função como pai, bem como eu cumpro a minha como mãe”, e ainda completa: “Se os homens conseguem fazer ambas as coisas (trabalhar e cuidar da família) por que as mulheres teriam alguma dificuldade?!” Ela conta que sua empresa surgiu após observar um senhor com deficiência visual dentro do metrô, e que após a experiência ela passou a dar muito mais valor para as coisas que tinha: “Percebi que o mundo é impiedoso e empático com as pessoas que possuem alguma deficiência e as empresas não são nada inclusivas, e a partir do meu projeto busco integrar e tornar possível coisas que antes não eram”. Ela ainda completa dizendo: “Eu vivia dentro de uma casca de ovo, na minha zona de conforto. A partir do momento que me dei conta do quanto era capaz e o quanto podia contribuir para o mundo, tomei uma atitude”. Ela também encoraja as outras mulheres a buscarem conhecimento e independência, porque só assim, Ana acredita que todos terão direitos iguais.



narrativas urbanas


Gabriela AraĂşjo AN6RP

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MULHER DO LAR

Por definição a palavra trabalho significa “conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim”. Logo, mesmo as mulheres que não tem profissão fora de sua casa ou que optam ser do lar, como a própria Ana, exercem um trabalho, trabalho esse que exige tempo, esforço físico e intelectual. Mulheres trabalham desde muito cedo em suas casas, dada a cultura patriarcal e principalmente matriarcal, onde a mulher é a mãe, a pessoa que zela e cuida da casa e da família. Precisa ser prendada, saber lavar, passar roupas, cozinhar, cuidar e educar muito bem as crianças. Além disso, precisa passar boa aparência perante aos homens e também a sociedade no geral. A remuneração fica por conta de satisfação pessoal. Se por um lado esse trabalho é exaustivo e resultado de uma cultura machista, por outro pode ser considerado um trabalho gratificante e um sonho realizado. A principal questão desse trabalho - como em qualquer outro - são as perspectivas de escolha. O fator “escolha” interfere muito na vida dessas mulheres, algumas se veem obrigadas a ficarem em seu lar por terem maridos e família machistas, por engravidarem durante a adolescência e perderem a oportunidade de estudar entre outros motivos, o que pode gerar diversos distúrbios como depressão, perda de peso e até mesmo suicídio. Muitas mulheres por não terem oportunidade de escolher seu destino se veem obrigadas a assumirem o papel de “dona-de-casa” e assim, acumulam diversas frustações em suas vidas. Felizmente, mesmo existindo, esses casos tem diminuído, pois as mulheres estão cada vez mais independentes e se livrando de afazeres dos quais não escolheram.


No Conto de Clarice Lispector, Ana tem sua escolha por conformidade, a realidade não foge disso, algumas mulheres buscam uma vida tranquila, onde seu principal trabalho é com sua casa, com seus filhos e com seu marido, claro, existem variáveis, a mulher, talvez, queira cuidar apenas de sua casa sem filhos, busque cuidar exclusivamente de filhos, ou sua intenção seja prover do melhor para dar conforto ao seu cônjuge seja ela ou ele, e assim são extremamente felizes no que fazem. Atualmente existem mulheres que fizeram seu trabalho no lar se tornar rentável, mostrando seu dia a dia, dando dicas de limpeza, decoração e cuidados com casa, sugestões de móveis e eletrodomésticos através de redes sociais e, assim, ganharam muita visibilidade e tem ganhando muito público, pois gostam de cuidar e compartilhar sua rotina. Talvez, seja essa a grande epifania das mulheres do lar do século XXI, elas poderem ter suas escolhas.


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Bianca Takada Giacommo Vulcano Iara Barbosa Isabella Teixeira Nathalia Lepore AN6RP

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MULHERES E AS RELAÇÕES DE PARENTESCO

Ao longo dos anos as relações de parentesco foram adquirindo mudanças, como a diminuição da durabilidade do casamento e por consequência, das famílias numerosas, além do elevado aumento do número de divórcios, são alguns exemplos. Diante desse contexto, porém, a identidade feminina não foi alterada. A mulher continuou sendo vista como “moça de família”, tendo que seguir regras comportamentais rígidas para atingirem seus sonhos idealizados, uma vez que quanto mais elas se assemelharem com o ideal de feminilidade, estabelecido socialmente, maiores serão as chances de construir uma família perfeita e darem continuidade a essas regras. No conto “Amor” de Clarice Lispector, é possível perceber essa imposição de comportamento pelas atitudes e pensamentos da personagem Ana. Criar os filhos, limpar a casa, seguir a hierarquia do marido e manter a aparência perfeita diante do resto da família, já são comportamentos seguidos à risca por ela, mesmo que não se lembre de tê-los tomado como verdade. Nessa situação, a família e as relações de parentesco se apresentam como uma hierarquia, na qual o peso da opinião dos membros é considerado, definindo decisões e impondo comportamentos. O termo “família como armadilha” demonstra exatamente que a centralidade da família nos projetos de desenvolvimento e equidade de gênero torna invisíveis as relações de por entre seus membros e limita a eficácia emancipatória pretendida. Porém, mulheres antes “cegas” pelas suas relações de parentesco, assim como a Ana, se depararam com uma realidade além da que estavam


acostumadas e passaram a refletir sobre a vida que levavam. Essa descoberta da nova realidade foi um rompimento de conceitos, representados pelo rompimento da casca do ovo carregado pela cesta de Ana. A simbologia do ovo libertou diversas mulheres da sua zona de conforto e comodismo, fazendo com que hoje sejam mais independentes, seguras, empoderadas e que fujam da hierarquia das relações de parentesco, mostrando que são capazes de desenvolverem suas vidas além do que as foi idealizado, traçando seus próprios caminhos e incentivando a cada dia mais mulheres a se tornarem cada vez mais suas e menos dos demais.


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Ana Paula da Silva Giovanna Vieira Jefferson Sousa Paloma Almeida AN4PP

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QUANTAS ANAS EXISTEM HOJE?

Clarice Lispector, um dos nomes mais citados da literatura brasileira. Sim, ela era mulher. E você vai se perguntar: como ela e seus textos ficaram famosos? Clarice se posicionava como uma mulher, não omitia seus atos e sim os identificava nas suas histórias. Ana era como Clarice, batalhadora, era mãe, tinha cuidados especiais com a família e a casa, Ana era mulher. Uma mulher com uma vida subordinada a uma rotina, totalmente repetitiva. Quantas Anas existem no Brasil? Quantas Anas existem hoje? Anas que não reparam nos detalhes das suas rotinas e apenas existem, nem se quer se dão o cuidado de viver. Ana passou a questionar suas condições de vida, ou seja, seus valores em uma cena básica em um bonde: um cego mascando chiclete. Aquilo lhe transmitiu tantas mensagens e reflexões, mas, ao mesmo tempo, infinitas pessoas passavam por ele sem ter as mesmas visões ou até mesmo sem o observar. E como poderíamos transmitir essa cena para os dias atuais? Em um dia de nossa rotina, cruzamos com tantas pessoas que não vemos nem quem são. Fazemos os mesmos trajetos sem reparar nas coisas que se apresentam ao nosso redor. Vivemos como robôs, praticantes das mesmas ações que se inserem em nossa bolha segura. A cegueira da personagem a limita e quando descoberta, a culpa. Como é possível viver de maneira limitada nos dias atuais? Sabendo que a maioria vive dessa maneira, qual seria o tamanho da culpa da nossa sociedade? Ultimamente, podemos ver diversos casos de abusos sexuais em locais públicos. Locais que diariamente passam milhares de pessoas. “Cegas”, focadas em si mesmas, nas suas rotinas, sem se importar com o próximo. Como é possível presenciar uma cena de violência e não se posicionar? O medo de fugir da rotina, o medo do contato com o outro, o medo de se


impor, nos faz ser pessoas limitadas, egocêntricas. Quais os motivos dessas situações? Nossa cultura? Identidade imposta? Desde os primórdios, mulheres foram vistas como subordinadas, inferiores, frágeis e delicadas. Pouquíssimas eram as mulheres que tinham uma imagem forte, guerreira e superior. Essa reflexão faz um retrato da sociedade atual. A maioria foi ensinada a ser dona de casa e mãe, pouquíssimas foram ensinadas para serem chefes ou lutadoras. Hoje, o posicionamento vem sendo mudado, mas muito dele ainda está na essência do ser humano. Clarice tinha seu posicionamento muito próximo ao feminismo, ao questionamento de quais eram os valores que a mulher deveria carregar por ela mesma e não pelos outros. A arte também é algo que influencia muito na mudança desse posicionamento. Artistas que hoje relatam o tema com mais facilidade, antigamente não tinham contato algum por serem tabus na sociedade. Quais as mudanças que a sociedade ainda precisa passar para esse tema ser visto com naturalidade? Quantas Anas precisam ser substituídas por valores e questionamentos? Ana desde cedo obteve conhecimentos, hábitos, costumes, padrões e tudo aquilo que moldou e formou a sua cultura a partir de sua mãe, sua maior inspiração. Embora o cordão umbilical de Ana tenha sido cortado de sua mãe em seu nascimento, a absorção não se cessou, só os nutrientes que mudaram. Sua infância foi comum, ia para escola, brincava no parquinho do condomínio, ajudava a mãe com as tarefas domésticas lavando a louça, e varrendo a casa. Sua brincadeira preferida era brincar de boneca com suas amigas, nomes diferentes e vida iguais, todas as bonecas eram casadas, possuíam filhos, e amavam todas as tarefas domésticas. A cultura de Ana foi enraizada por padrões que ela viu de perto, durante toda a sua fase de criança, jovem e adulta. Uma mãe doce, um pai amoroso, e um irmão briguento, essa foi a primeira família de Ana, aquela que ela aprendeu grande parte das coisas que sabe e carrega consigo até hoje. O que dizer da segunda família de Ana, aquela que fora constituída após o casamento, com grandes referências do passado: filhos, marido, tarefas domésticas, rotina extensa, porém brilho nos olhos, muito brilho nos olhos. Contudo, em um determinado dia Ana descobriu a sua cegueira. Não culpemos Ana por sua cegueira, nunca lhe apresentaram outra cultura, outros hábitos e costumes. Infância repleta de valores, juventude repleta de execução, e uma fase adulta repleta de reflexões e indagações. Ana descobriu sua cegueira quando viu


que nunca tivera enxergado com seus próprios olhos, e sim tivera enxergado a sua vida inteira com olhos alheios, muitas vezes sem anseio. Quantas Anas há em casa? Anas que acordam cedo, preparam o café, se despedem dos maridos, acordam e penteiam os filhos e leva-os na escola, voltam e tomam café, tomam banho, limpam a casa, preparam o almoço, pegam os filhos na escola, servem o almoço, lavam a louça, arrumam a sala que fora bagunçada sem ao menos perceberem, colocam os filhos para estudarem, preparam o jantar, recebem o marido, jantam, colocam os filhos pra dormir, pegam a toalha para o marido, deitam-se inquietas pois há um copo sujo na pia, levantam-se e lavam, e deitam – se novamente e finalmente para descansar antes do dia raiar e sua rotina, seu ciclo iniciar, mas novamente sempre com um olhar sorridente, contente. Há Anas que tentam fugir da sua rotina, mas como fugir de um hábito que você tem desde criança? E sempre quis ter. Há Anas amantes de sua rotina, há Anas inconformadas com sua rotina, há infinitas Anas, cada qual com seus hábitos, costumes e cultura, e está tudo certo desde que todas elas tenham a oportunidade de escolha, que não sejam cegas, que possam enxergar com os seus próprios olhos, que possam viver tudo o que querem, porque todas elas podem, sejam Anas, Marias, ou Joanas. Todas precisam enxergar com os seus próprios olhos, se perderem para se encontrarem, serem livres para voarem. A identidade é uma construção sócio histórica, constantemente transformada na interação com o outro. Compreender a identidade feminina como uma variedade dinâmica de papéis sociais exige recuperar a história e os diversos contextos que mostram essa construção da mulher através do tempo.


Ivan Macedo Laura de Oliveira Lucas Ribeiro AN4PP

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LAÇOS DE FAMÍLIA

Nos últimos 20 anos, a família brasileira vem sofrendo inúmeras transformações. As mulheres casam mais tarde, sem a pressão da família ou igreja, o número de divórcios ampliou. Suas atribuições e os seus papéis no núcleo familiar também mudaram, não em sua totalidade, mas há uma conquista das mulheres, por mais que ainda existam modelos de famílias tradicionais. Em 1960, a escritora Clarice Lispector lança o livro “Laços de Família”. São 13 contos com temáticas voltadas ao processo de aprisionamento dos indivíduos através dos “laços de família”, de sua prisão doméstica, de seu cotidiano. A obra trouxe o debate sobre os papéis sociais e a singularidade de cada família. Um retrato fiel da sociedade brasileira. Desde então, ou melhor, na história da humanidade, mulheres e homens desempenharam diferentes papéis na sociedade. Essas funções e esses padrões de comportamento variam conforme diversos fatores, dentre eles classe social, posição na divisão social e sexo. Assim, enquanto o sexo da pessoa está ligado ao aspecto biológico, o gênero (ou seja, aspecto de feminilidade ou masculidade enquanto comportamentos e identidade), trata-se de uma construção cultural, em decorrência da vida social. Logo, as coisas de menininho ou de menininha, de homem e mulher, variam temporal e historicamente, de cultura para cultura, conforme convenções socias estabelecidas. As diferenças sexuais sempre foram valorizadas e perpetuadas no mundo inteiro. A figura feminina sempre foi relacionada a ideia de fragilidade que colocasse em uma situação de dependência da figura masculina, dando origem aos moldes de uma cultura patriarcalista e machista.


Em “O amor”, conto do livro “Laços de família” de Clarice Lispector, retratase um episódio, um dia, da vida de Ana. Mãe que cuida da casa, dos filhos e marido. Uma mulher que seguia uma rotina: retirava o pó dos móveis, fazia crochê para os filhos e também. Entre as inúmeras tarefas que a vida da dona do lar acarreta, sua mente se ocupa durante a maior parte do tempo, e lhe sobra pouco tempo para reflexão. Hoje as mulheres assumem novos papéis na sociedade. A ideia de crescer, casar e constituir família, e dedicar-se exclusivamente a ela, dá lugar a independência das mulheres em relação ao marido e sociedade. Saem as ruas em busca de emprego explorando o mercado de trabalho, realizando tarefas ditas como masculinas, ocupando cargos antes restritros, e o mais importante, estão se empoderando, reivindicando direitos. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, mais de 48,5% das mulheres participam da população economicamente ativa, valor significante comparado à década de 1960, quando o conto foi publicado por Clarice. Em 1970, apenas 18% das mulheres brasileiras exerciam alguma atividade remunerada. Quarenta anos depois, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, cerca de 53% das mulheres trabalhavam com carteira assinada. Muitas mulheres, hoje, ao se casarem, se rebelam da condição de submissão. Mas atentamos aqui que o femicídio também tem lugar em nossa sociedade, o que significa que só se rebelar contra as condições impostas é pouco. É necessário ter políticas públicas de proteção e promoção da mulher para sua verdadeira independência e autonomia.


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Victรณria Mamelli Cossovan AN6RP

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EPIFANIA DE CONSCIÊNCIA

Não é segredo para ninguém que o mercado de trabalho está longe de ser um ambiente receptivo para o gênero feminino. Atualmente, as organizações que se dizem “pra frente”, seguindo “novos modelos”, acabam se tornando um desfavor, uma vez que, motivados por estratégias de marketing e comunicação interna, seguem perpetuando e reproduzindo o machismo de forma velada. O público feminino, infelizmente, possui um repertório imenso sobre as consequências de ser uma mulher no ambiente organizacional. Inclusive, encontrar vítimas que acabam reproduzindo machismo não é algo fora do comum, como uma diretora executiva que oprime e atribui a culpa à sua estagiária, que foi flertada por um colega no canal de comunicação da empresa. Desigualdade salarial, assédio, atribuição de resultados para colegas do gênero masculino, descrédito por parte dos chefes.... Apenas algumas das microagressões que sobrecarregam mulheres, onde as mesmas muitas vezes continuam cumprindo seu papel, como um cego mascando chiclete. Seguimos com nossa epifania de consciência, com pequenas mudanças. Porém, ao contrário de Ana, não devemos apagar a chama dentro de nós, devemos deixá-la crescer, queimar e consumir aquilo que ainda nos prende aos padrões de comportamento do patriarcado. Assim, podemos garantir, não só um ambiente de trabalho, mas também uma sociedade cada vez mais consciente e receptiva para aquelas que estão por vir.


Rebeca Andrade AN6RP

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SEXO FRÁGIL?

Em uma empresa multinacional, com segmento voltado a engenharia e digitalização, ser mulher é uma tarefa árdua. Ainda por cima, ser quem você sempre sonhou ser, é algo considerado impossível. Entre tanta testosterona, nos perdemos um pouco, não por nos cansar de lutar, mas por sermos constantemente silenciadas e por tirarem nosso lugar de fala. Perguntome sem parar porque, nós mulheres, somos caracterizadas e colocadas em posições de inferioridade. Se o homem tem mais capacidade e virilidade, qual a necessidade de rebaixamento do sexo oposto? Pelo visto não somos o sexo frágil. Muito pelo contrário, quem aguenta a dupla jornada, as piadas, o medo de sair na rua, o medo de apanhar em casa e faz de sua dor a sua luta? Somos nós, mulheres. A representatividade das mulheres, em empresas como essas, se limita a algumas áreas de atuação. Cargos de alto escalão e que possuem poder, são dominados por homens. Desde que viemos para o mundo, somos designadas a tarefas como: cuidar da casa, do marido, do filho. Responsabilidades são impostas a nós, sem ao menos sabermos se queremos. Amadurecemos com uma falta de identidade e problemas de reconhecimento pessoal. As empresas não podem se limitar em ações de responsabilidade social, com um posicionamento que apoia a diversidade e a imersão da mulher no mercado de trabalho, sem mudar suas políticas empresariais. É conivente utilizar uma mulher que chegou ao poder, escondendo o problema da maioria. As empresas estão tapando o sol com a peneira, enquanto isso, somos submetidas a cargos mal remunerados e a situações de chacotas com nosso período menstrual e nosso potencial. Somos todas Ana!


Larissa Hashimoto Campos Louise Franciulli AN6RP

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“MUITA CORAGEM É O QUE EU PRECISO”

Diante de inúmeros casos de abuso de poder, assédio moral, assédio sexual e machismo dentro do ambiente corporativo, há muito que se falar da relação da mulher com o ambiente de trabalho. É difícil pensar que ainda hoje, a mulher é desvalorizada e diminuída em vários quesitos em relação ao homem. Sua realidade no trabalho, não é muito diferente da sua realidade em vários outros ambientes, mas o que mais choca, é a quantidade mínima de mulheres que ocupam cargos e posições iguais aos dos homens, e que tenham as mesmas condições funcionais e salariais que eles. A utopia em relação ao mundo corporativo é totalmente comum. Há quem pense que todos os ambientes corporativos são confortáveis, agradáveis e que aceita te ensinar tanto quanto você quer aprender. Mas logo após alguns dias, as mulheres, principalmente, se deparam com alguns ambientes extremamente machistas e desiguais. A hierarquia é predominante, o estagiário não tem voz e espaço, as mulheres são inferiorizadas, e as estagiárias mulheres sofrem com o abuso de poder em cada atividade que é exigida. Claro que existem lugares bons, mas em sua maioria, não é isso que vivenciamos. Com o psicológico totalmente abalado, elas não sabem mais dizer quem são e o que almejam para o seu futuro: “É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.”, como dizia Clarice Lispector. É exatamente isso que muitas sentem nesse momento, medo de se expressar e de mostrar o seu “verdadeiro eu”. Muitas foram e são as lutas que levaram as mulheres a inúmeras descobertas, finalmente algumas perceberam que não devem se esconder, e resolveram tomar coragem para se libertar daquela realidade que não só elas vivem, mas que muitas outras mulheres também sofrem e tem medo de dizer. Assim como alertava Clarice Lispector: “É preciso coragem. Uma coragem danada. Muita coragem é o que eu preciso. [...] porque parece que sou portadora de uma coisa muito pesada. [...] Que fatalidade é esta?” Clarice Lispector.


Carolina Pires Helena Garufi Juliana Real Lara Barros Leonardo Marchezini Renata Cucchi AN6RP

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MULHER, CULTURA E ARTE

O livro ‘Laços de Família’ de Clarice Lispector foi lançado nos anos 1960, uma época cujo o movimento feminista estava lutando arduamente pela igualdade dos direitos, dos salários, e pela participação na sociedade. Isso resultou em aspectos libertadores, como por exemplo: o uso da pílula anticoncepcional, roupas curtas (minissaias, vestidos curtos...), ingresso das mulheres nas faculdades e no mercado de trabalho. Ou seja, esses últimos pontos são parte do questionamento que a personagem Ana faz por si. A personagem é uma dona de casa, que cuida da manutenção do lar, do bem-estar familiar (deixando suas vontades de lado), e que vive uma vida monótona. Ana se questiona: e aquela vida perfeita que imaginava dentro de casa? A personagem começa a enxergar o mundo com uma nova lente, desenvolvendo, de uma forma confusa, pensamentos “fora da caixa”, questionamentos que nunca havia feito. Porque Ana, sempre viveu uma vida monótona, mas antes disso, ela não sabia que era monótona, porque ela nunca tinha parado para pensar e julgar que sua vida era realmente monótona. A cena do cego, quebrou a caixinha de porcelana que ela vivia dentro. O problema dessa cultura é que não ficou apenas presa até os anos 60 e logo depois tudo mudou. Não, não mesmo! Até hoje, as mulheres assim como Ana, enfrentam esse tipo de discriminação, esse tal jeito que não são consideradas “capacitadas o suficiente”, ou que foram criadas para “ficar dentro de casa”. O mundo anda mudando, e graças a globalização e progresso, as informações voam pelo mundo dando acesso e alimentando


os movimentos feministas. Aquela identidade “Bela, recatada e do lar” vem perdendo força, mas de acordo com pesquisa do Ibope de 2017, que buscou um relato entre os preconceitos no Brasil, o machismo está em primeiro lugar, seguido pelas conhecidas e ignorantes frases como: “Mulher tem que se dar ao respeito” – com 49% dos votos; “Mulher no volante, perigo constante” – com 28% dos votos. Outro fator que ainda gera muitas discussões é o da desigualdade salarial entre homens e mulheres no Brasil. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostram que em 2017, o salário médio pago as mulheres foram apenas 77,5% do rendimento pago aos homens. Enquanto eles receberam R$ 2.410, elas ganharam R$ 1.868. A porcentagem ficou levemente acima da registrada em 2016 (77,2%). O ponto principal que se discute e é usado como justificativa é que esta desigualdade existe pelo fato de mulheres poderem engravidar e os homens não, e que isso afetaria o trabalho e desempenho delas. Grande parte da população feminina do país, mesmo sem perceber, acaba aceitando essas condições injustas por achar normal, pois muitas vezes já está enraizado em suas ideias que o homem sempre será o “provedor” e a mulher se encarrega de cuidar da casa e dos filhos, assim como a vida de Ana. A personagem, foi e continua sendo a representação de muitas mulheres que diariamente sofrem com a cultura machista, seguindo as expectativas sociais que foram impostas gentilmente para esse gênero e hoje estão tão enraizados ao ponto de parecer ser o básico para uma vida completa. Ana, por viver dentro desse meio, apenas em função da casa e dos filhos não tinha a liberdade para ter experiências novas e poder buscar a sua verdade. Se torna cada vez mais fácil identificar a Ana nas mil faces da mulher contemporânea, que não pode ser reduzida a uma breve explicação, a grandeza desse significado deve levar em consideração a existência de inúmeras vivencias dentro do Brasil, as diferentes condições de vida criam a singularidade e o peso de ser cada mulher, valorizando a autenticidade de cada uma. Ana está presente na mulher que tem ansiedade quando sofre com as crises de identidade e o questionamento da própria vida em relação ao mundo, Ana é a mulher que na correria não consegue tempo para se conhecer, Ana é a mulher periférica que se sente culpada por ser traída por não ter sido


suficiente para o homem de sua vida, Ana é aquela que pensa grande, quer chegar longe mas tem sua vontade diminuída diariamente por saber que o espaço é dos homens. Por mais distantes as realidades existentes, a luta das mulheres cria um elo de união, as questões mais básicas de reflexões psicológicas acabam gerando um sentimento de mal-estar, a insegurança de pensar sobre você mesma e não conseguir chegar em uma resposta livre de exigências externas, sem o uso de máscaras, se dá pelo passado problemático em cima do gênero feminino. As diferenças salariais, de tratamento, direitos, reconhecimento e toda ou qualquer outra que possa e deva ser relatada, existem através do que se forma no subjetivo. Palavras, dentro de frases, olhares, dentro de contextos, disposições das coisas dentro de locais, fazem-se da forma como tal, dentro dessa ordem desigual, como elementos de perpetuação do machismo. A redução da figura da mulher são características do reflexo da História que se faz presente até os dias de hoje no pensamento e na forma que se organizam certos grupos. Estamos mudando e vamos persistir para que o espaço das mulheres seja respeitado em sociedade por suas escolhas.



fragmentos


Beatriz Barros Diego Oliveira Karen Torrado Vanessa Vieira AN4CS

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ÉPOCA DE MUDANÇAS

Tudo começa como um sopro. O preparo do jantar em família, o cuidado, quase que obrigatório, em arrumar as roupas dos filhos. Com isso, Ana esquece as necessidades do mundo. E também as dela. É uma dona de casa, quase sem consciência, que só se permite refletir quando percebe o vento na cortina. Como um “lavrador”. Quase que como no “mito na caverna”, ela descobre que viver sob as sombras dos filhos e marido, a impede de viver e ver além. Nem todas as pessoas desempenham o papel que lhes foi imposto. E o principal exemplo disso é o cego. Que está mascando chiclete, como se nem deficiente o fosse. A partir daí, o mundo de Ana cai em absoluta sofreguidão. Ela se dá conta do que perdeu ao se adequar a diferença de direitos entre homens e mulheres, mães e crianças, deficientes e passageiros de bonde. Fazendo um paralelo com um contexto contemporâneo, podemos destacar a crítica discreta da autora sobre a imposição de tarefas que são determinadas para as mulheres na época. Hoje em dia, as mulheres e diversos grupos sociais lutam pela independência e seu lugar na sociedade. Querem seguir os próprios caminhos... E não aceitam limitações. Mas na sociedade patriarcal e conservadora que Ana vive, isso é visto como incompatível com a vida em família. Tanto que, quando a autora descreve o ovo que se partiu, ela se refere ao fim da conformidade de Ana. Ainda nos dias de hoje, padrões de felicidade são impostos para as mulheres, como: ser mãe, constituir uma família, viver a serviço de alguém e até mesmo de manter em um casamento no qual não se encontra harmonia e felicidade. Porém, é visível que a quebra de paradigmas e a luta para se expandir e desviar este padrão de pensamento é muito maior atualmente.


Hoje, se é possível ver mulheres dando apoio uma as outras, estudando, saindo do ambiente doméstico e conquistando grandes cargos no mercado de trabalho e tendo o poder de escolha sobre seu futuro. Porém, apesar de grandes passos e mudanças ainda há uma grande dificuldade para a conquista de alguns direitos e até mesmo respeito pela questão de gênero. Ainda se tem o conceito que ser mulher relaciona-se a uma ligação direta com a maternidade e responsabilidades domésticas (o que pode interferir em seu ambiente de trabalho), que por ser mulher o salário não pode ser do mesmo teto salarial que um homem por ela não conseguir sustentar uma família, que por ser mulher muitas vezes ela não é dona de seu próprio corpo e de suas escolhas por usar uma determinada roupa, que por ser mulher a submissão ao seu parceiro e a certas situação é de seu papel entre diversas outras coisas. Estamos em uma época de mudanças. Mudanças que interferem em luta para uma sociedade menos patriarcal e mais acolhedora, que busca a igualdade de gênero e o respeito de tal. Hoje, as mulheres estão cada vez mais afloradas para este assunto e conscientes sobre a sua liberdade e seu papel na sociedade, deixando assim o sentimento de aprisionamento, que é citado por Clarice em seu conto cada vez mais distante da realidade da mulher atual.


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Aline Nakahara Bruna Moraes Caique Martins Fernanda Angelo Gabriela Landim Igor Felicio Maria Beatriz Rodriguez AN4CS

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MULHER E A CONSTRUÇÃO FAMILIAR

“Laços de Família” foi publicado no século passado, muitas características daquela sociedade ainda perduram atualmente, mesmo que de modos diferentes. O papel da mulher na sociedade e a construção familiar são assuntos que continuam sendo debatidos. Ser mulher no século XXI não é nada fácil e nem tampouco justo. Mulheres são ainda vistas em espaços de trabalho como incompetentes e que servem apenas para ter filhos e realizar os afazeres domésticos. De acordo com a fonte promoview.com a desigualdade entre gêneros no Brasil só será superada em 2095 (!!!!). Clarice reflete essa desigualdade sobre a condição da mulher e seu destino imposto. Percebe-se também que o conto traz uma reflexão acerca da construção familiar e como isso acaba se tornando uma causa da alienação que a personagem se insere. As noções de família estão mudando, e com isso a noção do papel da mulher na sociedade também se modifica. Antes a cultura ditava que uma mulher deveria crescer, se casar, ter filhos, cuidar da casa, envelhecer e morrer. Hoje com novas concepções de família e de padrões comportamentais a mulher passa a ter mais espaço e mais liberdade nas tomadas de decisões na sociedade. Assim, podemos concluir que Clarice Lispector foi importante para nos apresentar a compreensão de âmbitos e situações cotidianas que não são levadas a sério em uma sociedade machista e patriarcal.


Gabriela Costa AM3RP

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FUTURO FORJADO

O poema “Amor”, de Clarice Lispector é mais atual do que se imagina. Se passa na década de 60, porém leva algo que ainda está presente e intrínseco em nossa sociedade: o papel de mulher. É bem provável que a personagem do conto reflita um pouco a vivência e experiência de muitas mulheres. A sociedade pressupõe expectativas de comportamento e relações de acordo com o gênero de cada indivíduo. Espera-se que homens e mulheres desempenhem papéis e comportamentos diferentes nesse sistema patriarcal. A figura feminina ainda é associada com uma ideia de fragilidade, o que a colocaria em um papel de dependência da figura masculina, que é associada à força e proteção. Seguindo esse modelo, o papel estipulado para ser desempenhado por mulheres só as caberia casar. O seu destino seria sempre casar, construir uma família e cuidar de seu lar. A mulher, na sociedade atual, tem mais autonomia, liberdade de expressão do que na época em que se passa o conto. Porém ainda existe o estigma de papéis e funções que devem ser esperadas e cumpridas de acordo com o seu gênero. Ana não tinha o entendimento de que o seu futuro foi forjado e estipulado socialmente, mesmo não se sentindo feliz com o seu destino, o peso de entender que a escolha foi dela a fazia continuar. É visível a luta contra a vontade de fazer algo além do papel ao qual foi designado a ela. O papel da mulher, é justificado por amor. Como se a figura feminina fosse condicionada ao cuidado, proteção, como se estivesse intrínseco em seu ser. Entretanto, isso faz com que escolhas sejam naturalizadas e formam um padrão que muitas vezes sufoca aquelas que entendem o seu futuro como além disso.


Juliana Vieira AN6RP

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TRABALHO, TRABALHO, TRABALHO

“É, o desafio é grande! Mas pega fôlego porque só começou”. Foi isso que nossa personagem principal pensou assim que disse “Olá” ao novo emprego ela com sangue nos olhos, e uma vontade imbatível de aprender tudo o que fosse possível se deparou com seu maior desafio, a chefia predominantemente masculina. Mas para nossa personagem isso não seria um empecilho, mas seria como gasolina para sua vontade de se provar, imagina só ganhar e no território deles? Ser a melhor e ainda ser melhor isso é prêmio duplo, mas como pensou, precisa de fôlego. Portanto, hoje quando ela se depara com um homem usurpa seu espaço no trabalho, o que ela faz é devolver com elegância, afinal fazer o mesmo não é ‘coisa’ de mulher, tem que fazer o dobro, trabalhar o dobro e se provar o dobro, constantemente.


Phillip Bammer Gabriela Dantas Gabriela Gutierres AN4CS

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VIDA MECÂNICA

O conto nos mostra a história de Ana, casada, dona de casa. Um daqueles casos onde a mulher atende as expectativas sociais impostas à ela desde pequena, reforçando que deveria se casar, constituir uma família, etc. Sendo assim, sua vida é preenchida de tarefas domésticas e familiares, colocando-a em uma bolha social, onde apenas existe sua família e seus afazeres. Ana percebe que sua vida é mecânica. Sua vida é monótona, onde se encontra satisfeita e feliz por amar sua família, mas se sente triste e presa pela responsabilidade de seus afazeres. A dona de casa tem um momento de epifania ao se ver fora de sua rotina. Se vê fazendo uma pergunta para si mesma, sobre sua identidade a muito perdida por imposições sociais. O próprio narrador chama esse momento de lacuna, de um momento “perigoso”, pois é neste momento que Ana pode ser quem ela realmente é, ou quem ela quer ser. O conto nada mais é do que uma reflexão sobre pessoas que vivem no mecânico. Que vivem como o homem cego mascando chiclete, fechados em uma bolha social.



Professores Mirlene e Luiz com as turmas participantes da atividade ‘Anas’ (22 de agosto de 2018)


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