Trilogia do reencontro
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Da esquerda para direita, sentada no banco, Johanna. Em primeiro plano, Elfriede e Klausinho e, atrás deles, Moritz, Martin, Viviane e Marlies. Na página à direita, ao centro e em primeiro plano, Susanne e, atrás, Félix. Sentado, 2 de costas, está Answald
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Trilogia do reencontro Botho Strauss
tradução Alice do Vale
Susanne
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Sobre esta edição Prefácio Milhares de opiniões que se acumulam para uma grande falta de opinião Stephan A. Baumgärtel
28 Trilogia do reencontro 33 Primeira parte: Círculo íntimo 98 Segunda parte: Ninguém em particular 144 Terceira parte: Boa relação 193 Notas Anexo 207 Ficha técnica das apresentações 210
Sobre o autor
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Sobre a tradutora
Sobre esta edição Antes de iniciar o trabalho como dramaturgo, Botho Strauss atuou intensamente na vida teatral de seu tempo, de início como crítico da revista Theater heute e, em seguida, como participante das montagens realizadas pelo Schaubühne am Halleschen Ufer, teatro berlinense que teve papel importante na renovação da cenografia e da direção teatral contemporâneas. Ao deixar a instituição, em 1975, e munido da experiência dos anos anteriores com o campo, Strauss começa a se dedicar à dramaturgia, até que em 1977 estreia sua primeira peça, Trilogia do reencontro, inspirada em Os veranistas (1904), de Maksim Górki, texto que havia montado alguns anos antes no próprio Schaubühne. O sucesso de público obtido por grande parte de seu repertório de peças, bem como o seu protagonismo na cena teatral das últimas décadas, faz desse dramaturgo um dos nomes de destaque do teatro contemporâneo alemão e europeu. A despeito disso, Strauss permanece ainda pouco conhecido no Brasil: suas peças poucas vezes são montadas ou editadas, e seu nome dificilmente aparece em livros ou artigos escritos em português brasileiro ou para ele traduzidos. Em razão disso, e com o intuito de fornecer subsídios estéticos e históricos para a fruição do leitor, esta edição é precedida de prefácio assinado por Stephan A. Baumgärtel, pesquisador e professor associado da Universidade do Estado de Santa Catarina, que expõe, ademais, uma reflexão sobre o sentido político do texto. Esta tradução, de Alice do Vale, baseou-se na terceira edição alemã da editora Carl Hanser, de 1978. Ao final do texto, a edição traz Notas (p. 193) a fim de auxiliar o leitor quanto aos temas e personalidades do universo das artes plásticas, que estão bastante presentes na obra de Strauss. Por fim, na seção 8
“Anexo” (p. 207) é possível, ainda, consultar a Ficha técnica das primeiras apresentações: a da estreia em Hamburgo, em 1977, e a de sua segunda montagem no Schaubühne, no ano seguinte. As fotografias da montagem berlinense, de 1978, de autoria de Ruth Walz, profissional alemã especializada no registro teatral, acompanham toda a peça.
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Prefácio Milhares de opiniões que se acumulam para uma grande falta de opinião Stephan A. Baumgärtel
A história das montagens de Trilogia do reencontro, do dramaturgo Botho Strauss, tem início com um pequeno escândalo. Na ocasião de sua estreia, em 18 de maio de 1977, no teatro Deutsches Schauspielhaus, na cidade alemã de Hamburgo, os assobios e gritos de protesto proferidos pela plateia ao fim do espetáculo expressaram a revolta do gosto burguês diante de um texto cujas ausência de narrativa e falta de profundidade psicológica dos personagens entediaram boa parte do público presente – público este não habituado à experiência de uma dramaturgia desdramatizada, portanto carente de chão referencial para consumi-la com prazer. Ainda mais longe foi um pequeno grupo de espectadores que acreditava, como simpatizantes de uma esquerda radical, que era preciso agitar e repolitizar a esfera pública, praticar um tipo de arte que reivindicasse mudanças diretas na estrutura da sociedade. Com palavras de ordem, ameaçaram interromper o espetáculo antes mesmo de ele se iniciar. A provocação teve duplo efeito: num primeiro momento, a direção do teatro convocou os seguranças para deter os “perturbadores da ordem”, o que adiou o início da exibição; na sequência, após o fim da apresentação, convidou os artistas e o restante da plateia para uma discussão aberta sobre o que o grupo de manifestantes (que fora detido e, por isso, evidentemente não participara do debate) reclamou e reivindicou, e também sobre a função política da arte na sociedade alemã dos 10
anos 1970. Os acontecimentos da estreia se relacionam, de forma um tanto fantasmagórica, com o próprio texto de Strauss, precisamente com a cena em que o personagem Moritz, o diretor da galeria de arte, ao avaliar o contexto dos comentários feitos em voz alta por aqueles que visitavam a exposição (portanto observações feitas “em público”), logo acrescenta: “Mas, sim, o que significa aqui ‘público’? Estamos só entre nós, um círculo tão íntimo”. Apesar do episódio, não demorou muito para que a dramaturgia e os romances de Botho Strauss encontrassem, a partir daí, sucesso estrondoso. Entre os anos 1980 e 1985, seis das suas peças foram montadas por um total de 132 companhias teatrais de língua alemã consideradas estáveis. O romance A dedicatória (1977) teve três reimpressões dentro de um período de seis semanas, e o texto Rumor, de 1980, vendeu 10 mil cópias nos primeiros quinze dias após seu lançamento. Pelo visto, a burguesia cultural da Alemanha Ocidental, de círculo relativamente íntimo, apesar de seu caráter também público, tinha encontrado seu porta-voz, o sismógrafo de suas angústias, desejos e ansiedades. A noite da estreia desta Trilogia, entretanto, ressaltou ainda os dilemas e as contradições dessa jovem burguesia que, no início dos anos 1960, começava a se rebelar contra a complacência da mentalidade econômica pragmática de seus pais e contra a continuidade de um pensamento protofascista, característico da sociedade alemã do pós-guerra, somente para ver, ao longo dessa década e mais explicitamente nos anos 1970, seus sonhos revolucionários se dissolverem na repressão policial do Estado alemão e na “tolerância repressiva”1 de um projeto
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Termo cunhado por Herbert Marcuse, filósofo da Escola de Frankfurt. Cf. Herbert Marcuse, “Crítica da tolerância repressiva”. In. Crítica da tolerância pura. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
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social-democrata que almeja um tipo de progresso social tecnicista. Um desdobramento político que culminou, em 1977, mesmo ano da estreia em Hamburgo, no acontecimento que ficou conhecido como “Outono alemão”, momento em que a segunda geração de integrantes da Facção do Exército Vermelho (RAF)2 sequestrou e matou o presidente da Federação da Indústria Alemã, Hanns-Martin Schleyer, numa tentativa frustrada de negociar a liberdade do industrial pela soltura de seus companheiros, fundadores do grupo, à época encarcerados. A partir de obras inovadoras, de notável avanço formal, especialmente se comparadas ao contexto da época, Strauss documentou o olhar crítico, dotado de uma crescente melancolia, da geração alemã de 1968, da qual o próprio autor se declarou parte. Uma geração que reagiu à derrota de seus desejos políticos em prol de uma transformação social profunda e promoveu uma incursão pelos labirintos de sua subjetividade frustrada, danificada, alienada, numa tentativa de registrar e dissecar até que ponto – e de que maneira – as estruturas sociais formam e esvaziam a subjetividade e a comunicabilidade humanas numa sociedade capitalista. O projeto de Strauss não era, portanto, um projeto literário individual ou singular. Na Alemanha Ocidental, outros escritores como Peter Schneider, Karin Struck, Peter Handke ou Nicolas Born, entre muitos outros, também expressaram criticamente essa subjetividade – subjetividade esta que não sabia mais como impactar um estado social cujo sintoma era ela mesma. Em sua avaliação, não havia mais espaço para articular 2
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Mais conhecida pela alcunha Baader-Meinhof, refere-se à organização de guerrilha urbana de extrema-esquerda criada na Alemanha Ocidental, em meados dos anos 1970. O grupo, que surge principalmente a partir da repressão ao movimento estudantil da década de 1960, estendeu suas atividades até o ano de 1998, tendo três gerações ativas em diferentes períodos de sua história.
uma crítica sistêmica à “sociedade do bem-estar”, uma vez que a população, em sua maioria, olhava para esse estado social como o melhor mundo possível. O dramaturgo Heiner Müller, autor mais importante da Alemanha Oriental socialista, declarou o seguinte sobre a atmosfera estagnada e apocalíptica presente nos textos de Strauss: “[…] nesses tristes dramas capitalistas, a história se manifesta apenas como lacuna”.3 Em outro momento, um crítico do Berliner Zeitung, principal jornal da porção oriental de Berlim, avaliou que os textos do autor, por pertinentes que fossem com relação a seu funcionamento estrutural como “diagnósticos impiedosos da dissolução do humano”, não passam de “descrições do status quo, que desconhecem um ‘para onde’ e um ‘de onde’”.4 Sem dúvida, uma avaliação em parte pertinente acerca do gesto despolitizante desta Trilogia do reencontro, se não houvesse, na peça, o detalhe expresso nos personagens de Kiepert, executivo e político poderoso, e de seu filho Klausinho, uma criança que passa suas horas pensando apenas em maneiras de ganhar um trocado. O poder político autoritário e a força do dinheiro que transforma até os incidentes mais banais em mercadoria – em outras palavras, a colaboração intrínseca entre política e economia capitalistas, cujo sistema totalitário anula o que há de valor na experiência singular concreta em prol do valor de uma abstração homogeneizada (o poder do dinheiro) – são os vetores que definem as ações que marcam o passado e o futuro desse mundo ficcional, bem como as formas e os limites dos encontros, desencontros e reencontros no presente. 3
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Reinhard Baumgart, “Das Theater des Botho Strauss”. In. Heinz Ludwig Arnold (Org.), Botho Strauss. Text + Kritik, n. 81. Munique: Edition Text + Kritik, 1984, p. 17. Verbete sobre Botho Strauss. Disponível em: http://wiki.vonwolkenstein.de/ doku.php?id=strauss.
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Nascido em 1944, Botho Strauss começou a participar do cenário teatral da Alemanha Ocidental como crítico da Theater heute, a mais prestigiada revista de língua alemã da área à época. Entre 1967 e 1970, após interromper sua formação em germanística, sociologia e ciências teatrais, Strauss passou a estudar os espetáculos estreantes e as tendências da vida teatral da Alemanha e, mais ainda, da Europa. Em seus artigos, refletiu sobre as relações estabelecidas entre acontecimentos estéticos e políticos, criticando, por um lado, uma estética realista que, segundo ele, apontava para uma denúncia direta das injustiças sociais, e, por outro, a forma maneirista e melodramática de apresentar esses conflitos que não trate de suas causas socioeconômicas. Posteriormente, até 1975, trabalhou como dramaturgista no teatro Schaubühne am Halleschen Ufer, estabelecido em Berlim, instituição que defendia e implementava um modelo colaborativo de gestão e que criou, sob a orientação do diretor teatral Peter Stein, releituras políticas de textos clássicos, formalmente arrojados, que inovaram a história teatral da Alemanha Ocidental. Destacam-se, entre suas adaptações, a do poema dramático Peer Gynt (1867), de Henrik Ibsen, em 1971; no ano seguinte, O príncipe de Homburgo (1809–10), de Heinrich von Kleist;5 e, em 1974, Os veranistas (1905), de Maksim Górki. Após a montagem de Górki, Strauss deixou a instituição para trabalhar apenas como escritor. Mais tarde, em 1978, o berlinense Schaubühne montou justamente Trilogia do reencontro, um ano após a polêmica estreia de Hamburgo. Entre as apropriações idealizadas por Strauss naquele período, Os veranistas era um triunfo internacional, com apresentações 5
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Heinrich von Kleist, O príncipe de Homburgo. Tradução e prefácio de Luísa Costa Gomes. Lisboa: Ática, 2010.
muito elogiadas em Paris e Londres – “Teatro sempre deveria ser assim”, declarou, por exemplo, o jornal Le Monde, na ocasião da temporada dos alemães de Schaubühne em Paris. A adaptação do texto de Górki evocava princípios que, posteriormente, se manifestariam em sua Trilogia. Onde o autor russo criou cenas separadas, Strauss montou uma tessitura fluida de conversas, sobrepondo, num constante vaivém, personagens e falas que deixam transparecer um mal-estar cada vez mais intenso, como se quisesse criar um equivalente formal para a afirmação de Varvara, personagem central de Górki: “Somos apenas veranistas em nosso próprio país. Não pertencemos a nenhum lugar. Não fazemos nada. Falamos apenas muito, terrivelmente muito”. O princípio estrutural era tamanho a ponto de fazer surgir “um tipo de realismo que se desenvolve a partir do discurso mais do que da psicologia das diferentes figuras”, como afirmaram diretor e dramaturgista no programa da montagem.6 Dessa maneira, na transição de um diálogo psicológico para um discurso estrutural, de uma relação pessoal intersubjetiva para um funcionamento impessoal de diferentes vozes – características que também atravessam a estrutura da peça de Strauss –, a adaptação antecipou princípios dramatúrgicos textuais que hoje são discutidos sob as denominações de “desdramatização” do drama, ou de qualidades “pós-dramáticas” e “performativas” do texto teatral, ao mesmo tempo que começou a deslocar a crítica da sociedade a partir de uma abordagem hegeliano-marxista para uma perspectiva outra, que evoca posições deleuzianas e foucaultianas pós-estruturalistas, bem como insights da teoria crítica de Theodor W. Adorno.
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Moray McGowan, “Unendliche Geschichte für die Momo-Moderne? Rezeptionskontexte zum märchenhaften Erfolg der Stücke von Botho Strauss”. TZS – TheaterZeitSchrift, n. 15, 1986, p. 93.
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