Lugar nenhum - Sérgio de Carvalho

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Lugar nenhum

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Lugar nenhum Sérgio de Carvalho

Peça da Companhia do Latão


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Apresentação Sérgio de Carvalho Lugar nenhum

117 Posfácio Um lugar muito familiar Maria Rita Kehl 122 Notas sobre o processo A dança da morte, ninguém frequentava Helena Albergaria Anexos 127 Ficha técnica da estreia 129 Partituras 136 Sugestões de estudo 137 Sobre a Companhia do Latão 139

Sobre o autor


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Apresentação Sérgio de Carvalho

“A gente só aprende imitando.” (Fúria Santa, personagem de O pão e a pedra, citando Aristóteles)

Em seus últimos anos de vida, já na companhia de teatro Berliner Ensemble, quando se vê diante da necessidade de organizar uma pedagogia artística para o teatro épico-dialético, Bertolt Brecht incorpora em seu vocabulário a ideia de “modelo artístico”. Suas obras de teatro deveriam, ao serem publicadas, mostrar o “trabalho teatral” contido nelas, algo que ultrapassaria a ação de uma única pessoa e de um resultado formal. É o trabalho de muita gente que conecta uma obra a seu passado e a seu futuro. Sua possível atitude clássica, como observou certa vez meu querido amigo José Antonio Pasta, se liga a sua imitabilidade e à capacidade de dialogar com realizações de muitas épocas. Brecht produziu, assim, modelos de encenação para serem copiados por outros artistas, o que causa estranheza na medida em que parece contrariar o ideal de uma livre invenção estética. Como bom dialético, o dramaturgo considerava que o processo de cópia engendra sua própria negação ao se dar como arte, o que está de acordo com a tradição da arte pré-burguesa. Por saber que não é possível um acesso puramente teórico aos métodos do teatro dialético, considerava que o melhor processo de aprendizado para um dramaturgo ou encenador é a “cópia, no domínio da prática”, desde que ele seja capaz de “tornar a cópia 9


uma arte”.1 Sua intenção, ao fim das contas, era estimular que outros encenadores produzissem visões próprias a partir do nível de elaboração atingido pelo modelo, o que só pode ser feito com uma compreensão totalizante de seu processo gerativo. Brecht gostava de anunciar que sua dramaturgia nasceu da “cópia” do teatro japonês, elisabetano e grego. Foi essa a verdade de seu aprendizado, reinventado a cada peça. É muito comum, entretanto, que jovens dramaturgos, quando se valem do mesmo procedimento, enxerguem apenas aspectos estilísticos das obras que admiram. Reproduzem uma dimensão mais externa e visível da forma, ignorando a relação provocada com o público de seu tempo, sua atitude geral, também feita do tema e da postura ideológica. A utilização do trabalho de um grande artista como modelo exige sempre algo mais do que a apreciação de suas conquistas estéticas: é preciso também realizar a sondagem dos sentidos nem sempre explicitados na forma. O exercício da cópia exige, portanto, o enfrentamento e a desmontagem de um conjunto de valores que se transmitem do modelo à nova obra. Caberá ao artista aprendiz verificar em que medida concorda ou discorda da visão de mundo contida na obra (seus enunciados visíveis e invisíveis), tendo em vista interesses atuais. Lugar nenhum surgiu para mim de uma admiração imensa pela obra do escritor russo Anton Tchékhov. Por anos pensei em encenar uma de suas peças e sempre esbarrei nas dificuldades técnicas da realização e na exigência de condições quase impraticáveis hoje: longo tempo de elaboração, tranquilidade produtiva, conjunto da equipe com maturidade artística e pessoal. Por outro lado, ao estudar sua obra, sempre a conside1

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Bertolt Brecht, “A utilização de um modelo restringe a liberdade artística?” In. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 177.