FOLHA DE SALA - A DAMA DAS CAMÉLIAS 2019

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SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL

DE ALEXANDRE DUMAS (FILHO) ENCENAÇÃO DE MIGUEL LOUREIRO 6 A 22 SETEMBRO 2019

© Estelle Valente

A DAMA DAS CAMELIAS


A Dama das Camélias, versão Maciel

Partindo deste pressuposto e estando longe das nossas ideias desautorizar Musset ou desvirtuar Dumas, quisemos nesta versão (que é para todos os efeitos a versão dos Waddington ou, melhor ainda, da Carla Maciel) aligeirar, formatar, analisar, fazer notas de rodapé, aportuguesar, afrancesar em excesso, ridicularizar, engrandecer, darmo-nos em ridículo, entregarmo-nos à pândega, agravar aqui e ali, cantar, dançar, pular, berrar, espatifar, cuidar, acrescentar, subtrair... mas sobretudo jogar este marco cénico, à nossa maneira (para citar os Xutos e Pontapés), com esta mentalidade que é a nossa (talvez redutora para uns, libertadora para outros), atores e artistas presos neste verão quente de dois mil e dezanove na cidade de Lisboa, a ensaiar uma peça de uma Dama que nos encanta, escrita por um senhor que não conhecemos, à luz dos nossos próprios preconceitos.

Miguel Loureiro, encenador

Não se brinca com o amor, dizia sabiamente Musset uns anos antes de Dumas Filho escrever o seu opus, A Dama das Camélias. E, de facto, nada há de brincadeira na aparente leveza com que Dumas transpõe o seu bem sucedido romance (1848) para a cena (1852). Epítome das longas agonias em palco, (do tardo-romantismo cénico francês) à maneira das grandes atrizes da época (para quem a obra se torna veículo de fama), a Dama é ainda assim, na sua estrutura trágica perfeita de cinco atos, diálogos céleres entrecruzados sobre a gravidade do amor, a fragilidade da beleza e as codificações sociais que nos permitem existir perto dos outros, uma concretização cénica exemplar do casamento de uma época com a sua estética.

Artes decorativas sob influência

Porquê A Dama das Camélias, perguntarão alguns. Precisamos mesmo de responder a isso? Porquê representá-la assim? A essa pergunta podemos, porém, responder: porque sim.

André Guedes, cenógrafo

As artes decorativas francesas atravessaram um longo e prolífico séc. XIX. É oportuno pensar como a sucessiva alternância de sistemas políticos – monarquias, repúblicas, revoluções populares – motivaram a eclosão de uma multiplicidade de estilos de mobiliário e de decoração, ora retrocedendo ao passado em busca de referências, ora avançando na modernidade, a par da ciência e da indústria. Foi uma época de generosas contradições e paradoxos, sociais, estéticos e tecnológicos. Surgem novos espaços de sociabilidade: os salões sociais onde convivem duas classes sociais privilegiadas, burguesia e nobreza. Nestes, a arquitetura é como que eclipsada, as paredes servem para expor uma exuberância de materiais, texturas, formas, cores, volumetrias, até. Exprime-se o desejo

Galeria de Damas

Eleonora Duse, 1882

Eleonora Duse, 1904

Sarah Bernhardt, 1911

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Sarah Bernhardt, 1912

Alla Nazimova, 1921

Greta Garbo, 1936

Eunice Munoz, 1962

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Isabelle Huppert, 1981

Sofia Aparício, 1997


Do Grotesco e do Sublime

supremo de conforto, anatómico e visual. Mas é o horror vacui. Foi nestes cenários onde teve lugar a celebrizada paixão entre Alexandre Dumas Filho e a demi-mondaine Marie Duplessis, Marguerite Gautier no romance. O espaço cénico desta Dama das Camélias não pretende mimetizar este contexto reconfigurando-o espacialmente, mas antes sublinhar um certo estranhamento para com ele e face à cena. As gravuras ampliadas de um livro identificam, na despropositada escala, o belo e o grotesco presentes no ecletismo do período. Um longo móvel ao fundo – arquivo, arrecadação, depósito, museu – reminiscente das estantes das reservas do Mobilier National em Paris, consubstancia essa distância. Nele encontram-se cadeiras, cópias e originais de época. Pastiche.

Victor Hugo

Tradução de Célia Berrettini, São Paulo, Perspectiva, 2007 (adaptado)

“A poesia nascida do Cristianismo, a poesia do nosso tempo é, pois, o drama: o caráter do drama é o real; o real resulta da combinação bem natural de dois tipos, o sublime e o grotesco, que se cruzam no drama, como se cruzam na vida e na criação. Porque a verdadeira poesia, a poesia completa, está na harmonia dos contrários. Depois, é tempo de dizê-lo em voz alta, e é aqui sobretudo que as exceções confirmaram a regra, tudo o que está na natureza está na arte. E, colocando-nos sob este ponto de vista para julgar as nossas pequenas regras convencionais, para desenredar todos estes labirintos escolásticos, para resolver todos estes problemas mesquinhos que os críticos dos dois últimos séculos laboriosamente levantaram ao redor da arte, ficamos surpreendidos pela prontidão com a qual a questão do teatro moderno se torna límpida. O drama não precisa senão de dar um passo para rebentar todos esses fios de aranha com que as milícias de Lilliput acreditaram sujeitá-lo no seu sono. Assim, pedantes estouvados (um não exclui o outro) pretendem que o disforme, o feio, o grotesco nunca devam ser objetos de imitação para a arte; responde-se-lhes 4

Mitologias

que o grotesco é a comédia, e que, aparentemente, a comédia faz parte da arte. Tartufo não é belo, Pourceaugnac não é nobre; Pourceaugnac e Tartufo são admiráveis jatos da arte. Se, repelidos deste entrincheiramento na sua segunda linha de fiscalização, renovarem a sua proibição do grotesco aliado ao sublime, da comédia fundida na tragédia, faça-se com que vejam que, na poesia dos povos cristãos, o primeiro destes dois tipos representa a fera humana, o segundo a alma. Estes dois ramos da arte, se se impede que os seus galhos se mistura, se são sistematicamente separados, produzirão como frutos, de uma parte, abstrações de vícios, de ridículos; ou seja, abstrações de crime, de heroísmo e de virtude. Os dois tipos, assim isolados e entregues a si mesmos, ir-se-ão cada um por seu lado, deixando entre eles o real, um à sua direita, o outro à sua esquerda. Consequentemente, depois destas abstrações, restará alguma coisa a representar: o homem. Depois destas tragédias e comédias, alguma coisa a fazer: o drama”.

Roland Barthes

Tadução de Rita Buongermino e Pedro de Souza, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 11a edição, 2001 (adaptado)

Representa-se ainda, não sei onde, A Dama das Camélias (que há pouco tempo foi também representada em Paris). Este sucesso deve-nos alertar sobre uma mitologia do Amor, que provavelmente ainda existe, pois a alienação de Marguerite Gauthier perante a classe dos “senhores” não é profundamente distinta da alienação das mulheres pequenoburguesas de hoje num mundo que continua dividido em classes. Ora, na realidade, o mito central de A Dama das Camélias não é o Amor, mas o Reconhecimento: Marguerite ama para ser reconhecida, e, dessa forma, a paixão (num sentido mais etimológico do que sentimental) provém inteiramente de outra pessoa. Armand (que é filho de um procurador-geral) manifesta, por seu lado, o tipo do amor clássico, burguês, herdado da cultura essencialista e que se prolongará nas análises de Proust: um amor segregativo, o do proprietário que se apodera de sua presa; amor interiorizado que só reconhece o mundo momentaneamente e sempre com um sentimento de frustração, como se o mundo fosse sempre a ameaça de um roubo (ciúmes, brigas, equívocos, inquietudes, afastamentos, movimentos de humor, etc.). 5


O Amor de Marguerite é exatamente o contrário. Inicialmente, ela fica sensibilizada por se sentir reconhecida por Armand, e a paixão foi para ela, em seguida, apenas a solicitação permanente desse reconhecimento, razão pela qual o sacrifício que ela concede ao Sr. Duval, renunciando a Armand, não é de modo algum moral (apesar da fraseologia), mas sim existencial; não é mais do que a consequência lógica do postulado de reconhecimento, um meio superior (muito superior ao amor) de fazer com que o mundo dos “senhores” a reconheça. E, se Marguerite esconde o seu sacrifício sob a máscara do cinismo, isso só acontece no momento que o argumento se transforma de facto em Literatura: o olhar agradecido dos burgueses é delegado aqui ao leitor, que, por sua vez, reconhece Marguerite por meio do próprio equívoco do amante. Tudo isso significa que os mal-entendidos que fazem avançar a intriga não são de ordem psicológica (mesmo que abusivamente, a linguagem o seja): Armand e Marguerite não pertencem ao mesmo mundo social, e entre eles não se pode passar nada que se assemelhe, seja à tragédia de Racine, seja ao estilo afetado de Marivaux. O conflito é exterior: não se trata de uma mesma paixão dividida contra si própria, mas de duas paixões de natureza diferente, porque provêm de zonas diferentes da sociedade.

A paixão de Armand, burguesa, apropriativa, é por definição assassina da outra; e a paixão de Marguerite só pode coroar o esforço que ela despende para ser reconhecida, graças a um sacrifício que constituirá, por sua vez, o assassinato indireto da paixão de Armand. A simples disparidade social, assumida e ampliada pela oposição de duas ideologias amorosas, só pode, portanto, produzir um amor impossível, impossibilidade de que a morte de Marguerite (por mais piegas que seja em cena) constitui de certa maneira o símbolo algébrico. A diferença entre os amores provém evidentemente de uma diferença de lucidez: Armand vive numa essência e numa eternidade de amor, e Marguerite vive na consciência de sua alienação, só vivendo em si mesma: cortesã, ela é consciente do que é e, de certo modo, deseja sê-lo. E mesmo as suas atitudes de adaptação são inteiramente atitudes de reconhecimento: ora assume excessivamente a sua própria lenda, mergulhando no turbilhão clássico da vida “fácil” (assemelhando-se a esses pederastas que assumem a própria pederastia ostentando-a), ora revela um poder de superação que visa menos obter o reconhecimento de uma virtude “natural” do que o de uma dedicação de condição, como se o seu sacrifício tivesse por função manifestar não a morte da cortesã que é, mas, muito pelo contrário, 6

crítica alguma sobre a sua alienação). Mas, no fundo, pouco lhe faltaria para atingir o estatuto da personagem brechtiana, objeto alienado, mas fonte de crítica. O que a afasta desse estatuto – irremediavelmente – é a sua positividade: Marguerite Gauthier, “emocionante” por sua tuberculose e suas belas frases, provoca a pegajosa adesão de todo o seu público e comunica-lhe a sua cegueira: risivelmente tola, teria aberto os olhos pequeno-burgueses. Nobre, e com suas grandes frases, em suma, “séria”, só consegue adormecê-los.

revelar uma cortesã superlativa, engrandecida porque capaz, sem nada perder de si própria, de um elevado sentimento burguês. Assim, vemos tornar-se claro o conteúdo mítico deste amor, arquétipo da sentimentalidade pequeno-burguesa. É um estado muito particular do mito, definido por uma semi-lucidez, ou, para ser mais exato, por uma lucidez parasitária (a mesma que notamos no real astrológico). Marguerite tem consciência de sua alienação, isto é, vê o real como uma alienação. Mas ela prolonga esse conhecimento com comportamentos de pura servilidade: desempenha o papel que os senhores esperam dela ou tenta atingir um valor propriamente interior a esse mesmo mundo dos senhores. Nos dois casos, Marguerite nunca é mais do que uma lucidez alienada: ela vê que sofre, mas imagina apenas uma solução parasitária em relação ao seu próprio sofrimento: ela tem consciência de ser um objeto, mas não pensa em outro destino senão o de mobiliar o museu dos senhores. Apesar do grotesco da fabulação, tal personagem não deixa de ter uma certa riqueza dramática: sem dúvida que não é trágico (a fatalidade que pesa sobre Marguerite é social, e não metafísica) nem cómico (o comportamento de Marguerite é devido à sua condição, e não à sua essência) e, bem entendido, também não é revolucionário (Marguerite não exerce 7


© Estelle Valente

6 a 22 setembro teatro

A DAMA DAS CAMÉLIAS

DE ALEXANDRE DUMAS (FILHO) ENCENAÇÃO: MIGUEL LOUREIRO estreia Quarta, sexta e sábado, 21h; quinta, 20h, domingo, 17h30 Sala Luis Miguel Cintra A classificar pela CCE €12 a €15 com descontos Duração: 2h45 com intervalo

Texto: Alexandre Dumas (filho); Tradução: João Paulo Esteves da Silva; Encenação: Miguel Loureiro; Assistência de encenação: Leonor Buescu; Interpretação: Álvaro Correia, António Durães, Carla Bolito, Carla Maciel, Gonçalo Ferreira de Almeida, Gonçalo Waddington, Leonor Buescu, Miguel Mateus, Rita Rocha, Sonja Valentina; Cenografia: André Guedes; Figurinos: Catarina Graça; Danças: Miguel Pereira; Desenho de luz: Daniel Worm d’Assumpção; Produção executiva: Nuno Pratas, com apoio de Manuel Poças e Vítor Alves Brotas/Agência 25; Apoios: Museu dos Coches, Museu de Lisboa, Teatro Nacional São Carlos Agradecimentos: Carlos Bártolo, Joana Sousa Monteiro, O Som e a Fúria (Cristina Almeida e Marta Léon), Silvana Bessone e Teatro Experimental de Cascais Coprodução: Teatro Nacional São João, Gonçalo Waddington & Carla Maciel Lda.e e São Luiz Teatro Municipal

22 setembro, domingo, 17h30

Direção Artística Aida Tavares Direção Executiva Ana Rita Osório Programação Mais Novos Susana Duarte Assistente da Direção Artística Tiza Gonçalves Adjunta Direção Executiva Margarida Pacheco Secretária de Direção Soraia Amarelinho Direção de Comunicação Elsa Barão Comunicação Ana Ferreira, Gabriela Lourenço, Nuno Santos Direção de Produção Mafalda Santos Produção Executiva Andreia Luís, Catarina Ferreira, Mónica Talina, Tiago Antunes Direção Técnica Hernâni Saúde Adjunto da Direção Técnica João Nunes Produção Técnica Margarida Sousa Dias Iluminação Carlos Tiago, Ricardo Campos, Tiago Pedro, Sérgio Joaquim Maquinaria António Palma, Vasco Ferreira, Vítor Madeira Som João Caldeira, Gonçalo Sousa, Nuno Saias, Ricardo Fernandes, Rui Lopes Operação Vídeo João Van Zelst Manutenção e Segurança Ricardo Joaquim Coordenação da Direção de Cena Marta Pedroso Direção de Cena Maria Tavora, Sara Garrinhas Assistente da Direção de Cena Ana Cristina Lucas Bilheteira Cristina Santos, Diana Bento, Renato Botão

TEATROSAOLUIZ.PT


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