Elzas Empoderadas

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ELZAS EMPODERADAS Uma série de reportagens-conto sobre fortalezas femininas


ELZAS EMPODERADAS

Agradecimentos Antes de mais nada, preciso agradecer àquelas que me incentivaram, de todas as formas, a chegar até aqui. Agradeço desde o leite do seio das minhas antepassadas que alimentaram cada criança de minha genealogia; agradeço à bravura dessas mulheres, que construíram suas famílias no Brasil e aqui pariram eu, minha mãe, minha avó, minha bisa. Se não fossem a força e coragem dessas mulheres, onde eu estaria?

Algumas precisaram cruzar os mares e deixar todo o mundo que conheciam para trás. Como vieram? Outras batalharam em colheitas, em restaurantes, em seus próprios lares. Qual a realidade enfrentaram? Como passavam pelos dias frios, pela escassez de alimentos, uma saúde pública precária ou até mesmo pelos períodos ditatoriais?

Infelizmente apenas posso imaginar o que passaram estes anos todos, pois não há registros que mostrem o ponto de vista feminino dessa parte de nossa história. Este trabalho surgiu da necessidade que sinto por ouvi-las, tentando preencher, mesmo que em parte, o silêncio de todas essas gerações.

Por fim, agradeço à Kassandra, pelo amor e fiel companhia em todos esses dias, bons ou difíceis. Serei eternamente grata.


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ÍNDICE

As protagonistas 3 A infância da mãe de Furnas 5 Meninas e pipas que "não combinam" 10 Uma criança negra campo-grandense 15 O frango 18 Untonha 20


As protagonistas

Ceci Barbosa

Inayรก Borba Martini

Romilda Pizani

Telma Cezรกrio

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Ceci Cearense, Ceci Barbosa da Silva migrou com sua família para o então Mato Grosso ainda na infância. Hoje reside da Comunidade Rural Quilombola Furnas de Dionísio, localizada na cidade de Jaraguari. No local atua como dirigente e organizadora política, tendo forte influência dentro da comunidade com mais de 400 pessoas.


A maior mãe de Furnas Caminho empoeirado, fazendas com gado ou monoculturas de soja, algumas pedreiras e duas vilas de barracos do MST. Quão mais perto do destino, a paisagem inesperadamente se colore, admirável aos olhos. É natureza por todos os lados. Quem avista o local pela primeira vez costuma dizer que chegou ao Paraíso. Repleto de paz, longe do tempo do relógio e do caos da cidade. Os moradores acolhem quem busca tranquilidade e inspiram quem escuta suas histórias. Estamos em Furnas do Dionísio, comunidade quilombola onde vive uma família com mais de 400 pessoas. Em sua maioria plantadores de cana e mandioca. Para chegar lá, saindo de Campo Grande, capital do Estado, é preciso encarar 40 quilômetros de estrada. O percurso passa por outra cidadezinha no trajeto, Rochedinho, e tem seus últimos 12 de chão batido. O percurso segue por uma estradinha de terra que conduz os visitantes à casa de uma mulher com sorriso que quase não cabe em seu 1,50 metro de gente. Seu nome é pequeno como ela: Ceci. Sua casa, hoje de alvenaria, é singela, à frente um morro e, atrás, um riacho. No quintal muitas árvores, cana e, pasme, um campo de futebol de dimensões quase profissionais. Por ali cresceram os três filhos que pariu, assim como as mais de 25 crianças que ajudou a criar.

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São cinco da manhã e as panelas já no fogo, afinal o almoço precisa estar pronto para quem passar por ali. Comida caseira, farta, feita por mãos que aprenderam a alimentar, literalmente, um batalhão de pessoas se preciso. - A pessoa que nos visita não precisa pagar nada, mas a gente aceita se ela quiser ajudar. Essa mãe entende quem passa por sufocos - afinal, mãe é mãe. Quem a vê na ativa e ainda não a conhece, não entende como esbanja tanta força: veio de nascença. Cearense, a família de Ceci abandonou sua terra, parentes e costumes quando ela tinha apenas oito anos. Buscavam uma vida melhor. Era década de 40 e as pessoas fugiam do solo infértil, rachado pela seca do sertão cearense. Ao fim, foi fácil escolher um caminho: as rádios propagavam massivamente as oportunidades presentes no Oeste, incentivando a ocupação desta parte do país. Vieram. Junto a seus pais e três irmãos, a menina cruzou mais de 3200 quilômetros até encontrarem um novo lar. “Não foi uma fuga”, ressalta.


Rapadura Uma vez por ano a família se reúne para uma festa tradicional, que tem a cana como protagonista. Planta principal que sustenta a comunidade. Pretos e pretas livres hoje a comemoram, relembrando o calvário passado por seus antepassados nos engenhos, remodelando a dor como motivo para resistência. O processo da manufatura da cana é um ritual, seguido a risca há mais de 100 anos, antes mesmo do quilombo surgir. Corta-se a cana, mói, tira o sumo, descarta o bagaço. No tacho, do suco faz-se o melado – que por si só é um produto – ou a rapadura, quitute tradicional da região. Com vários sabores, ela só não agrada quem não é de doce: tem de mamão, amendoim, tradicional ou coco. Com leite ou sem. Fica a gosto do cliente. Um quilo pela bagatela de 10 reais. E um detalhe: por lá são as mulheres que comandam os trabalhos comunitários. São quatro horas da manhã e a movimentação no galpão dá sinais. A expectativa chega a ecoar no salão. Até as condições climáticas são motivos de preocupação - se chover a estrada lamaceia. Mas é dia de festa e, quando se trata de festa, o povo de Furnas faz até debaixo d’água.


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Nos dias anteriores os homens carnearam uma ou duas vacas, que hoje assam para o tradicional churrasco de chão. Já as mulheres assumem o restante das atividades, incluindo a produção dos doces e da “Farinha das Furnas”, reconhecida nos melhores mercados do Estado por sua qualidade. Braços negros e fortes, delineados pelo trabalho duro, agitam os tachos onde serão produzidos quilos e quilos de arroz e mandioca, complementos do prato principal. Outras mãos picam centenas de tomates, cebolas e repolhos para o vinagrete que será servido junto. Também são elas que limpam e organizam o local. Barracas artesanais, cobertas por lona e folhas de palmeira trançadas são levantadas para abrigar os produtores das delícias do que foi plantado e fabricado ali mesmo. Enquanto isso, as crianças correm, dançam, alheias aos preparativos. As mais velhas ajudam, com olhos atentos sob as menores. O público chega perto do horário do almoço, quando o cheiro convidativo da comida fresca já está por todo o lugar, salão, palco, barracas. É gente de todo o Estado visitando a comunidade, incluindo integrantes dos demais quilombos sul-mato-grossenses. A banda arrisca os primeiros acordes, se preparando para animar a todos. No repertório há sertanejo, arrasta-pé e vanerão, ritmos tradicionais do interior do Mato Grosso do Sul.


Aqui e ali se vê Ceci, que mexe numa panela, recepciona algum convidado, ralha com alguma criança arteira. Assoberbada por tantos compromissos, orgulhosa da equipe organizadora do evento. — Aqui na associação nóis mostramos que nóis tinha poder. E aqui nas Furnas é tudo governado, a força é mais das mulheres. É na farinha, é na rapadura, é nos trabalhos, as mulher que coordena tudo as coisa. Do pesado ao leve, tudo as mulher resolve — explica Ceci. A pequena senhora carrega as lutas locais com a coragem da mulher sem medo de viver - e disso ela não foge.

Aqui nas Furnas é tudo governado pela força das mulheres. É na farinha, na rapadura, nos trabalhos, as mulher que coordena tudo as coisa. Do pesado ao leve, tudo as mulher resolve.


Inayá Inayá Borba Martini é uma jovem campograndense cuja vida espiritual e política norteia suas atitudes. A intensa atividade política de seus pais a fez passar por diversas situações atípicas durante a infância.


Meninas e pipas que "não combinam" - Vamos brincar na rua? A menina topa, olhos animados com o convite. Branquela, vivia com os cabelos compridos presos. Magricela em seus vestidos infantis, desses com cores, flores e laços que carregam toda a feminilidade permitida a uma criança. A pivete ainda é pequena, porém ligeiramente maior do que as demais crianças de sua idade. Castanhos e grandes, seus olhos são até hoje as duas melhores janelas que possui para expressar ao mundo todo o sentimento que o rosto demorou a entender como colocar para fora. A rua de casa, envolta em muito verde, terminava em uma BR. Em frente havia uma favela, suficientemente perto para estar em suas lembranças da região até hoje, mas não dentro o bastante para lhe gerar pertencimento. Mesmo com a proximidade, a distância socioeconômica separava as crianças dos dois locais, que se distinguiam verbalmente entre filhos de burgueses ou favelados. Esta diferença impediu a menina e irmãos de subirem o morro por todo o tempo que moravam ali, mas não que os meninos de lá descessem para todos brincarem juntos. Ou quase isso.


‒ Você não pode brincar de pipa por que é menina ‒ vinha algum desavisado tentar barrar a garota na rua.

‒ Ah, vai tomar no cu! ‒ Ela retrucava, com agressividade.

‒ Uuuuuuuh! ‒ gritavam os demais presentes. A reação era rotineira, pois sempre havia algum menino desacostumado com meninas falando palavrões. A vergonha por ser insultado por uma mulher geralmente desencadeava brigas maiores. A garota não se intimidava e ia para cima com socos, chutes e muitos xingamentos.

‒ Isso aconteceu muito comigo. Ainda bem que sou brava, conta Inayá, gargalhando, hoje com 25 anos. Natural de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, ela vivenciou infância e parte da adolescência na capital do país. Apesar do riso, a situação acabou por lhe gerar traumas. Um deles foi abandonar os vestidos e saias, que gostava, para conseguir se impor no grupo.


"Nessa época fiquei com raiva de ser mulher" " Não podia brincar de certas coisas, pois eram determinadas como "de menino". Foi neste dia da pipa que sentiu literalmente na pele a segregação por gênero culturalmente enraizada na sociedade. Daí em diante, e apenas por ter o gênero feminino, Inayá viu-se cobrada em dobro para ser aceita. Desafiada por ‘não poder’ brincar de pipa com os meninos, ela foi atrás de como produzir as suas próprias, assim como aprender a soltá-las sozinha.


Romilda Romilda Neto Pizani é uma reconhecida ativista do movimento negro na capital sul-mato-grossense. Sua história de vida passa por diversas situações onde precisou superar os estigmas contra pobres, mulheres, pessoas negras, mães solo e (por que não citar?), mulheres empoderadas.


Como cresce uma negra campo-grandense Foi beirando meio dia da segunda que o choro espalhou-se pela casa, alertando o nascimento e pausando as atividades da família. Toda a vizinhança da rua Ângelo Serenza já acompanhava as dores e gritos que vinham da casa 38 desde o sábado. “Essa vai gostar de almoçar”, aos risos disseram os pais, simples assim. A cria nos braços, negra como a mãe, de tão pequena caberia facilmente em uma caixa de sapato. A infância da menina, batizada Romilda, transcorreu envolta a uma situação precária, numa cidade que tinha cara de interior mesmo sendo uma das capitais do país. Seus pais, migrantes e sempre sem dinheiro, não possuem parentes na cidade para recorrer. O chão local, avermelhado, mancha fácil as roupas das crianças que brincam soltas pelas ruas ainda por asfaltar. Lares brotam ao redor de sua moradia, também muito simples, tomando conta do ambiente. As construções improvisadas são erguidas às pressas, do dia para a noite, pelas próprias famílias que residiriam por ali. Todos querem uma boquinha do território antes que sua situação se regularize. Na prefeitura, o local possuía apenas a documentação da chácara abandonada que ali havia antes da população invadir. Assim, diversas crianças, Romilda entre elas, acompanham o desabrochar de um novo bairro, cujo nome, Guanandi, seria definido apenas anos depois.


Ainda que sempre sob condições financeiras precárias, a menina considera sua infância normal. Mas quais são os padrões de normalidade dentro da realidade da infância negra e pobre brasileira? Desde nova, Romilda encara diariamente o velho, encardido e xexelento preconceito de cor, que teima em continuar plantado na população brasileira. É a única negra de sua sala, por azar mais alta que seus colegas à época. As festas juninas eram um pesadelo anual. Ninguém queria dançar com a neguinha da turma. Em um desses anos, seu suposto par de dança some antes da apresentação. Romilda o procura junto a professora pela escola inteira. Descobrem: escondeu-se para não entrar contigo o salão. Isso decretou que aquele seria o último arraial de Romilda. Ela entendera que não há par para quem tem sofrimento ímpar. Anos depois, durante uma aula de educação física, Romilda combina com uma amiga para aproveitar a manhã bonita, tomando Sol até o final da aula.


— Tomar Sol pra quê? — Escarneia a professora, em frente à boa parte da classe. Todos os presentes riram. Romilda, criança, não soube reagir. Na adolescência, a situação perdura. Ainda que Romilda seja bonita, ela continua sendo negra, o que limita suas possibilidades entre os garotos. É quando entende “seu papel” no imaginário popular: a mulher preta não é para se namorar, muito menos para apresentar à família. Aos poucos, Romilda encontra voz no ativismo político, que muitas vezes a deixa longe de suas crias, sem dormir. Ali, também aprende a rebater os preconceitos velados e driblar machistas que lhe perturbam. A menina, agora mulher, aguenta sua cruz, paciente, juntando forças para poder ajudar àqueles que passam por situações semelhantes nesta vida. A cultura torna-se seu porto seguro. Ali recolhe para perto de si outras mulheres, atrizes, militantes. Misturam sangue, grito e dor, sempre na postura altiva. As origens da família que gerou Romilda seguiram caminhos tão sinuosos que era inevitável que levasse a uma vida desafiante. Ainda bem!


Telma Telma Nogueira Cezário é uma das mulheres mais fortes que conheci. Nascida no interior do Mato Grosso do Sul, enfrentou diversas situações de pobreza, machismo e abandono familiar. Trabalhou durante a infância para ajudar sua família e até hoje, aos 62 anos e já aposentada, não prevê quando irá parar.


O Frango O raiar do dia trazia o começo dos trabalhos para toda a família. Enquanto os mais velhos se preparavam para a roça com a mãe, uns para plantar e outros para não aprontar demais, mãos pequeninas ficavam para trás, trabalhando em casa. A morada era simples, sem forro, sem azulejo, sem alvenaria, onde onze filhos se acomodavam com os pais, numa pobreza sem fim, sempre esperando melhoras, um dia após o outro, um dia de cada vez. Por ser ligeira, danada e “esperta demais”, Telma foi escolhida para tomar conta da casa - assim não tinha tempo para estripulias. Aos nove já encarava o serviço pesado, aprendido com a mãe de uma só vez, pois apanhava se errasse. - Você sabe o que é criar galinha? Minha mãe me punha para matar frango. Eu pegava ele no terreiro, pisava no pescoço e pedia para minha irmã pequena puxar, porque sozinha não tinha força para dar conta. Tinha vezes que eu fazia isso com só um pezinho, ai o frango fugia, corria bobão pelo cercado. E então eu tinha que correr atrás dele de novo. Após degolar o frango, Telma o colocava na água quente, depenava, cortava junta por junta. Depois lavava tudo com sabão, raspando bem pois era costume da família também comer a pele. "Você vai aprender e se cortar errado você vai apanhar. É pra prestar atenção", falava a mãe. E só com um frango ela ensinou.


- Eu tinha que aprender a ser mulher, mulher de coragem! Vai que um homem quisesse me matar um dia, eu tinha que matar ele primeiro, não é? Ela me falava assim: "Se você tem dó de matar o frango, você vai deixar o homi te matar?” Não, não, eu não gostava, mas tive que aprender a matar. Telma usava dois tijolos para alcançar o fogão a lenha. Terminada a matança, era então a hora de socar arroz no pilão, que abanava, catava, fazia. Depois ainda cozinhava feijão. Para levar o almoço para a família, ia tudo em um caldeirão: feijão embaixo, arroz no meio,frango por cima. Depois seguia para a roça com tudo na cabeça, ainda pela manhã cedo. Nas mãos iam os pratos, talheres e copos. O segredo era amarrar bem, com elástico - se caísse, não perdia todo o serviço feito. - Minha mãe judiou de mim, mas ela me puxou também. As outra eram tudo bobona, não eram igual eu não. Se deixar elas morriam de fome. Eu tinha nove anos de idade, hoje em dia uma menina de 15 anos não sabe fritar um ovo!

"Vai que um homem quisesse me matar um dia, eu tinha que matar ele primeiro, não é?


Untonha A infância de Telma aconteceu na Fazenda Lajadinho, do senhor Lazinho Correa, localizada pelas bandas de Maracaju, interior do então Mato Grosso. Foi ali também que nasceu, em casa, no primeiro dia de junho de 1955. Relembra, junto às irmãs Maria das Graças e Marlene, que nos dias de frio, iam para debaixo do feno para se manterem quentes. Já nos dias de calor usava seus vestidinhos de saco de estopa, que a mãe tingia com colorau para ficar menos parecido com pano de chão. Todos na fazenda a conheciam como Antonia Telma, nome escolhido pelo pai após seu nascimento. Porém era o próprio pai, homem simples de interior, sem estudo, quem mais errava a pronúncia. Era um tal de Untonha pra todo lado, que acabou pegando como oficial por todos do local. A situação chegou no seu limite quando resolveram registrá-la, aos 13 anos. - Escuta aqui pai, meu nome é só Telma, não vai colocar esse tal de Untonha que nem você sabe falar, viu? Todo mundo me chamava de Untonha, eu não aguentava mais, então parei de atender, até lembrarem que eu tinha mudado. E eu só olhava quando me chamavam certo. Eu mesma fiz o povo largar do meu nome.


E-book apresentado em agosto de 2017 como requisito parcial para aprovação na disciplina Projetos Experimentais do Curso de Comunicação Social - habilitação em Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS.

Orientador: Prof. Dr. Edson Silva


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