Jul2018 "As últimas testemunhas"

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A INDICAÇÃO DO MÊS

forte ou digno, onde as pessoas vivam bem, a resposta escolhida foi a primeira: forte. Agora é de novo o tempo da força. Os russos estão em guerra com a Ucrânia, com seus irmãos. Aviões russos bombardeiam a Síria... Não existe o império “vermelho”, mas o homem “vermelho” ficou. Continua. O tempo das esperanças se mudou para o tempo do medo. O tempo regrediu... Agora, eu não estou muito segura de ter escrito a história do homem “vermelho”... Sua obra explora consequências e efeitos decorrentes de grandes acontecimentos históricos, como a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Afeganistão e a dissolução da União Soviética. Em uma entrevista concedida ao jornalista francês Michel Eltchaninoff, você comenta que sua escrita busca “esculpir uma época”, mas de qual ponto de vista? Svetlana – Eu escrevi cinco livros, mas, na verdade, a vida inteira tenho escrito um único livro: uma enciclopédia do “homem vermelho”, da “utopia vermelha”, dessa vida que nós chamávamos socialismo. A cultura russa possui a experiência única, inocente e terrível da tentativa humana de construir o paraíso na terra, que terminou com uma gigantesca vala comum. Eu pensei que era importante fazer esse trabalho porque a “utopia vermelha” ainda vai tentar seduzir a humanidade por muito tempo.

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Nunca vou esquecer que no tempo do desmantelamento da usina por causa da catástrofe de Tchernóbil, eu passava as noites no alojamento em que moravam os trabalhadores encarregados disso. Na mesa, uma garrafa de três litros de aguardente caseira e as conversas sobre Tsiolkóvski e Gorvachev, e sobre Hitler, o comunismo e o capitalismo. E nesse momento, uma mulher já não tão jovem traz uns petiscos, e vejo que ela tem umas manchas vermelhas nas mãos. Eu lhe pergunto: “O que a senhora tem?”. Ela responde: “Nós lavamos o macacão de nossa gente todo dia. Estão contaminados. Prometeram dar-nos máquinas de lavar, mas não trouxeram. Lavamos na mão”. “Mas como é que pode?”, e me viro para o chefe que está sentado ao lado. “Prometem”, disse abanando a mão e continuou filosofando. Pois então, eu tenho certeza de que pessoas ocidentais falariam sobre as máquinas de lavar e não sobre as ideias malucas de Tsiolkóvski. E lá trabalhariam as máquinas de lavar, e não umas mulheres-kamikaze. Eu me pergunto o tempo todo, qual é o sentido dos sofrimentos que temos suportado. Por que, no nosso caso, os sofrimentos não se transformam em liberdade? Entre nós é costume, começando por Dostoiévski, enaltecer, entre outras coisas, essa magia do sofrimento. Eu penso que os sofrimentos, pelo contrário, petrificam a alma humana, e ela já não pode se desen-


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