Machado #02

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passado alguns meses de penúria, com a ajuda abnegada da mãe e algumas poucas economias não dilapidadas pelo divórcio, até que conseguiu ser notado por editores cada vez mais poderosos, até que meros cinco anos se passaram, até que teve assinado seu primeiro contrato de edição e desenvolvido sua máscara primorosamente. Os círculos especializados não deixaram de notar as conexões entre Stéfano e DB — para alguns tinham sido amantes, para outros pai e filho e, para outros ainda mais imaginativos, tudo aquilo tinha sido vergonhosamente roubado do falecido. Mas Stéfano aprendeu a seguir alheio a isso tudo — blasé, com roupas muito discretas, com um ar de desimportância que ele aprendeu a converter em charme ao ponto de ter deixado sua marca — a marca do despojamento, como o administrador de empresas que larga tudo para seguir sua vocação, uma história bonita de contar e um admirável contraponto aos exageros de seu mentor. Às vésperas de viajar para Paris para acompanhar o lançamento de suas obras em língua francesa, Stéfano resolveu abrir-se para a única pessoa que tinha permanecido em seu convívio desde o início desta narrativa. Foi até sua mãe, com a fita mais recente que estava processando, e contou a ela tudo o que sabemos, em todos os pormenores, queria dela uma repreensão, palmas, pânico ou o que quer que seja, e enquanto isso colocou a fita para rodar como pano de fundo. Ela não pôde dar-lhe nenhuma dessas coisas, apenas um olhar confuso, aturdido “Mas filho, essa voz aí não é a sua. Não se parece nada com a sua voz quando você estava acamado.” “Como não, mãe?! Como você se lembraria?!” E ela trouxe para ele uma fita bem velhinha, apenas uns fiapos como rótulo, que colocou para rodar no mesmo gravador. “Esta é a sua voz. Eu gravei algumas dessas quando nos encontrávamos durante o dia, na época em que você estava doente.” E era mesmo uma voz de criança, mas outra, completamente diferente. Não havia a desculpa do sono, nem do aparelho: eram timbres absolutamente diversos. Sua voz, gravada pela mãe, era menos aguda, mais pomposa, seus esses sibilavam irritantemente em todas as ocasiões, e nada na sua voz remetia ao erre gutural que saía sempre da voz que vinha das fitas com os poemas. Ele agora soube: não tinha sido ele a criança das gravações. Ele se transformara no membro da segunda geração de uma mesma fraude. Ligou para Aurora, que estava já quase no fim das forças, e conseguiu que ela dissesse que naquele mesmo ano Dino Benedetti tinha atendido quatro ou cinco crianças enquanto levantava dinheiro para concluir a faculdade. Ela sabia que ele não tinha sido o único, mas quando foi ao seu quarto e disse que um deles estava ali, no jardim, ele garantiu que quando o visse, lembraria


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