Revista Viu

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Artigo * Por Luís Eustáquio Soares

O pastor Marco Feliciano e as guerras humanitárias do Ocidente O que nos torna impotentes na atualidade é a relação tragicamente dissimétrica entre, de um lado os grandes desafios da humanidade, afundada em guerras de pilhagens, em destruição quase irreversível dos ecossistemas ditos naturais, no abandono de bilhões de pessoas à sua imprópria sorte e; de outro lado, na reificação generalizada de todos os âmbitos do mundo social, a ciência, a arte e vida, entendendo-se, vale destacar, por reificação, a aparentemente inocente insistência nossa diária em descontextualizar a tudo isolando dados, fatos, personagens, da trama geral, sistêmica, que nos apanha e nos rouba, condenando-nos a reduzir tudo ao particular, ao imediato, ao caso x ou y, na suposição de que surgem por eles mesmos, como uma espécie de retorno religioso planetário à geração espontânea, agora articulada em escala social, planetária. Vê-se, assim, o beco sem saída em que nos metemos. Todos os desafios da humanidade, sem exceção, exigem a produção de perspectivas teóricas, analíticas e práticas planetárias, razão pela qual a premissa fundamental de nossa época está diretamente vinculada à necessidade irrecusável de contextualizar sempre, mais e mais, a fim de entender realmente como o sistema-mundo funciona e, a partir de então, ter condições de criar respostas ousadas, coletivas (nunca descontextualizadas, nunca reificadas e reificantes), realmente capazes de destronar os bárbaros preconceitos patriarcais do atual modelo civilizatório, que vive – e mata -, parasitariamente, de sanguessugar alteridades econômicas, étnicas, de gênero, condenando-as ao abandono mais vil. Reificar, nesse sentido, é sempre a escolha pelo beco sem saída; é fazer o jogo de todos os preconceitos e exclusões. Resulta daí a necessidade da seguinte pergunta: que relação tem o pastor, Marco Feliciano (PSC), um racista e homofóbico confesso, sua recente nomeação precisamente para presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, com a Guerra de Quarta Geração, cuja doutrina, conhecida como guerra de espectro completo, foi redigida por William Lind - e mais três membros das forças armadas dos Estados Unidos - e publicada na Marine Corps Gazete, em 1989? Que relação tem o pastor Marco Feliciano com as bandas ou bandos mais fundamentalistas do islamismo, como os salafistas e yahadistas, ambas criadas por Estados Unidos e a Arábia Saudita,

a partir dos abandonados da Terra do Oriente Médio, para serem usadas, com seus acúmulos de preconceitos, contra a soberania de países e povos, como ocorreu recentemente na Líbia e está ocorrendo agora na Síria? Que relação tem o uso imperialista do fundamentalismo religioso contra seu eleito pior inimigo: os governos, instituições e pessoas laicas? Por fim, que relação tem o Pastor Marco Feliciano, um fundamentalista religioso, contra a livre expressão laica das subjetividades? Não foram os fundamentalistas yahadistas e salafistas, apresentados para o mundo, pelos comprados meios de comunicação do Ocidente, como liberadores da tirania de Muammar ALKaddafi, precisamente aqueles que massacraram a população negra da Líbia? Não são eles, após a morte de Kaddafi, que estão cassando, como se fossem bichos, em nome de Alá, as mulheres emancipadas, homossexuais femininos e masculinos das caóticas e barbarizadas cidades da Líbia pós-Kaddafi? Minha questão, portanto, neste pequeno artigo, é a seguinte: o deputado federal Marco Feliciano não constitui um isolado caso inaceitável de preconceito ético e de gênero justificado pelo mais patriarcal e primário fundamentalismo religioso, que parte da premissa de que o homem (leia-se todos os humanos) é a imagem e semelhança de Deus e, sendo Deus homem (leia-se, masculino, heterossexual, macho) qualquer diferença em relação a esse transcendental e despótico padrão avassalador é considerada uma aberração que é preciso combater como se participasse de uma cruzada divina. Não é, pois, circunstancial que o pastor Marco Feliciano tenha se apresentado, e sido eleito, para ocupar precisamente a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, pois, sem contradição alguma, ele acredita fundamentalmente que está a serviço de divinas justiças, as quais são inseparáveis, considerando o fundamentalismo vigente, da caça às bruxas laicas, sob o nome comum de alteridades. Para terminar, uma última pergunta: que relação tem a presidência de uma Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados do Brasil, ocupada por um pastor fundamentalista, com as guerras humanitárias do imperialismo ocidental? * Luís Eustáquio Soares (46 anos) é poeta, escritor, ensaísta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Espírito Santo – Ufes.


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