Drogas e Sociedade: o que eu tenho que ver com isso? (4ª edição)

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CONED - Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas

DROGAS E SOCIEDADE imagem: Freepik.com

O que eu tenho que ver com isso? Periódico bimestral Edição: 004. Ano: 2021


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“Drogas e Sociedade:

O que eu tenho que ver com isso?” Periódico bimestral. Edição: 001. Ano: 2021

O QUE É O CONED? O Conselho Estadual de Políticas Públicas sobre Drogas – CONED, foi instituído pela Lei 13.707/2013 da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. O Conselho está ligado à Secretaria de Justiça, e Sistemas Penal e Socioeducativo do Rio Grande do Sul e é composto por representantes de órgãos públicos, federações, associações e organizações de instituições e profissionais relacionados às políticas sobre drogas em seus diversos âmbitos, como saúde, segurança pública e educação.

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O CONED é o órgão competente por acompanhar e atualizar a política estadual sobre drogas, assim como por articular, integrar, coordenar e executar as atividades relacionadas a prevenção do uso indevido de drogas, de atenção e reinserção social dos usuários e dependentes e de repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas


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Instituições que compõem o CONED e seus representantes

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Instituições que compõem o CONED e seus representantes

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O que eu tenho que ver com isso?


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índice NARCÓTICOS ANÔNIMOS: PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO VIÁVEL ANONIMATO NARCÓTICOS ANÔNIMOS NA PANDEMIA COOPERAÇÃO

REDES SOCIAIS E FORMAS DE CONTATO A COMUNIDADE TERAPÊUTICA COMO MODELO DE TRATAMENTO PARA A DEPENDÊNCIA QUÍMICA INTRODUÇÃO COMUNIDADES TERAPÊUTICAS

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A COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA DEPENDENTES QUÍMICOS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS NO BRASIL A EFICÁCIA DAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

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REFERÊNCIAS

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NARCÓTICOS ANÔNIMOS: PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO VIÁVEL Narcó�cos Anônimos (NA) é uma organização internacional sem fins lucra�vos, de homens e mulheres para quem as drogas se tornaram um problema maior. Surgiu na década de 1950 no sul da Califórnia (EUA) e espalhou-se pelo mundo, estando presente hoje em cerca de 140 países e realizando aproximadamente 70 mil reuniões semanais de recuperação em mais de 50 idiomas diferentes. Os membros de NA aprendem uns com os outros, através da iden�ficação, do exemplo e da empa�a, a viverem livres das drogas e a se recuperarem dos efeitos da adicção em suas vidas. Este é um programa de total abs�nência de todas as drogas, inclusive o álcool. A experiência dos membros de NA tem sido a de que a completa e con�nua abs�nência fornece o melhor alicerce para recuperação e crescimento pessoal. Contudo, o uso de medicação psiquiátrica ou outras drogas prescritas por um médico e tomadas sob sua supervisão não são vistas como comprometedoras para a recuperação em NA. Qualquer pessoa que queira parar de usar drogas pode se tornar um membro de NA, independentemente do �po ou combinação de drogas que usou. Não há matrículas nem taxas. Também não há restrições sociais, religiosas, econômicas, étnicas, sexuais ou de qualquer outra natureza. O único requisito para ser membro é o desejo de

parar de usar. Para manter sua autonomia e independência, NA tem por premissa ser totalmente autossustentado, através de contribuições financeiras voluntárias e espontâneas de seus membros. Todavia, a par�cipação nas reuniões e o acesso ao método de recuperação que NA oferece são totalmente gratuitos a qualquer pessoa que queira se recuperar. As bases do Programa são a prá�ca dos Doze Passos de Narcó�cos Anônimos e a frequência regular às reuniões. Narcó�cos Anônimos não é um programa religioso; cada membro é livre para cul�var seu próprio entendimento – religioso ou não – dos princípios espirituais con�dos nos Doze Passos e aplicar esses princípios na vida co�diana. Da mesma forma, não é filiado a nenhuma outra organização, relacionada ou não com o tratamento ou recuperação do uso de drogas. Não tem conselheiros, profissionais ou terapeutas, nem oferece ou recomenda serviços médicos, sociais ou clínicas de desintoxicação. NA mantêm uma postura de total neutralidade em relação a qualquer assunto de fora da Irmandade. A principal abordagem da recuperação em NA é a ajuda de um adicto a outro. Nas reuniões, os membros compar�lham suas vivências e desafios na recuperação da adicção às drogas. Nossa experiência demonstra que o valor terapêu�co da ajuda de um adicto a outro não tem paralelo. A maioria das reuniões de NA ocorre


6 semanalmente, no mesmo horário e lugar, geralmente em um local público e de fácil acesso. Existem dois �pos básicos de reuniões: aquelas que são "abertas" ao público em geral e as "fechadas" ao público (somente para adictos). A função de qualquer reunião é sempre a mesma: proporcionar um ambiente seguro e confiável para a recuperação individual dos membros da irmandade. Para encontrar a reunião de NA mais próxima, acesse www.na.org.br ou telefone para um dos números que constam no final desta matéria.

Anonimato A premissa básica do anonimato permite que os membros par�cipem das reuniões sem medo de repercussões legais ou sociais. Esta é uma consideração importante para um adicto que pensa em ir a uma reunião pela primeira vez. O anonimato também proporciona uma atmosfera de igualdade nas reuniões, assegurando que nenhuma personalidade ou circunstância pessoal seja considerada mais importante do que a mensagem de recuperação compar�lhada em NA. Os primeiros registros de reuniões de NA no Rio Grande do Sul datam da segunda metade dos anos 80. Começando na capital (Porto Alegre), os grupos foram se mul�plicando pelo estado e hoje somam mais de uma centena. Os esforços dos comitês de serviço de NA no Rio Grande do Sul são no sen�do de expandir cada vez mais esta abrangência, fomentando e apoiando o surgimento de novos grupos em cada vez mais cidades do RS. Sabemos que aqueles adictos que não encontram recuperação acabam em ins�tuições psiquiátricas, prisões ou morte. Trabalhamos para que nenhum adicto precise morrer dos horrores da adicção sem antes ter a oportunidade de encontrar o que nós encontramos: uma maneira de viver sem usar drogas. Embora não exista um "medidor de êxito" ou acompanhamento formal da recuperação dos seus membros, a experiência de décadas no mundo todo demonstra que os adictos que frequentam as reuniões regularmente e que têm um envolvimento a�vo com o Programa mantêm-se limpos por longos períodos de tempo, perdem a vontade de usar drogas e encontram uma nova maneira de viver, reintegrando-se à família e à sociedade.


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NARCÓTICOS ANÔNIMOS NA PANDEMIA COOPERAÇÃO NA também foi fortemente impactado pela pandemia do novo coronavírus. A quase totalidade de seus grupos no mundo todo permaneceu fechada por longos períodos, conforme a localidade e a evolução ou involução da transmissão da doença. Entretanto, as reuniões não deixaram de acontecer: NA rapidamente "migrou" seus encontros para as plataformas virtuais, sendo reconhecido por especialistas como referência pela agilidade e capacidade de adaptação. Atualmente, muitos grupos retornaram ao funcionamento presencial - sempre respeitando a legislação local e os protocolos universais de cuidados sanitários -, mas muitos ainda permanecem se reunindo virtualmente. Informações sobre como par�cipar destas reuniões também podem ser encontradas em nosso site nacional www.na.org.br ou através de nosso serviço de Linha de Ajuda (ver números no final da matéria).

Os mesmos princípios espirituais que possibilitam a recuperação de seus membros orientam NA como organização. Narcó�cos Anônimos valoriza e se empenha em estabelecer relações de cooperação não de filiação - com governos, profissionais e en�dades de saúde, Direitos Humanos, jus�ça criminal, entre outros. Os "amigos não adictos" de NA foram essenciais para o início das reuniões em muitos países e con�nuam ajudando a organização a crescer mundialmente. Entre as prá�cas de cooperação mais comuns estão fornecer informações ao público sobre o Programa e as reuniões (em escolas, empresas, fundações, centros de tratamento, instalações prisionais), distribuir sua literatura própria de recuperação, par�cipar de eventos, seminários ou congressos de medicina ou de profissionais que lidam com a problemá�ca das drogas ou mesmo eventos públicos em geral, divulgando "quem somos, onde estamos e o que temos a oferecer". Se você conhece alguém que esteja enfrentando um problema com drogas (incluindo o álcool), saiba que existe uma saída. Es�mule esta pessoa a se dar uma chance e ir a uma reunião. Tudo o que ela precisa levar consigo é o desejo de parar de usar e a disposição de experimentar esta nova maneira de viver, limpa, livre das drogas, um dia de cada vez. NA não oferece uma "cura" para a adicção, mas um método comprovadamente eficiente de recuperação.


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REDES SOCIAIS E FORMAS DE CONTATO www.na.org (site mundial de NA) www.na.org.br (site nacional de NA) www.facebook.com/na.org.br (perfil nacional de NA no facebook) www.instagram.com/na.org.br (perfil nacional de NA no instagram) Linhas de ajuda no Rio Grande do Sul 51 3333 3550 51 99633 3550 54 99122 0060


A COMUNIDADE TERAPÊUTICA COMO MODELO DE TRATAMENTO PARA A DEPENDÊNCIA QUÍMICA Por: Pablo Kurlander¹

Introdução O uso nocivo de substâncias psicoa�vas (SPAs) vêm se tornando, nas úl�mas décadas, um problema endêmico de saúde pública no Brasil e no mundo. Problema para o qual parecem não exis�r estratégias capazes de diminuir efe�vamente sua incidência e seus agravos, não somente no que diz respeito à saúde do usuário, mas também, e principalmente, a todo o contexto familiar, social, polí�co, econômico e legal que permeia o assunto. Em sua e�ologia, o uso nocivo de substâncias já foi compreendido de diversas formas durante a história, desde uma perversão de caráter até um problema meramente biológico, sabendo-se hoje que é um problema mul�fatorial, que precisa ser abordado numa mul�plicidade de linhas de cuidado, ar�culadas e complementares (RIBEIRO; LARANJEIRA, 2016; RIBEIRO, 2012a; MARQUES, 2001), dentre as quais podem ser destacados os serviços de regime residencial, com promoção de ambientes livres de álcool e drogas ilícitas, assim como os serviços de regime ambulatorial, com critérios de adesão de menor exigência, que não consideram a abs�nência como critério de ingresso e permanência, que se norteiam

pelas estratégias de redução de danos (NIDA, 2018; BRASIL, 2001). No que diz respeito ao tratamento da dependência química, o Na�onal Ins�tute of Drug Abuse (NIDA), um dos principais ins�tutos de pesquisa sobre drogas do mundo, afirma que não há uma única forma de tratamento que seja apropriada para todas as pessoas e que, para ser efe�vo, o tratamento deve contemplar todas as necessidades e peculiaridades do indivíduo, sejam estas médicas, psicológicas, sociais, profissionais ou legais (NIDA, 2018). Segundo o NIDA (2018), o tratamento, para ser eficaz, deve estar disponível, ou seja, ser de fácil acesso, já que a mo�vação para o mesmo tem uma duração curta no dependente químico. A pesquisa do UNODC (2017) mostra que apenas 1 em cada 6 dependentes químicos que precisam de tratamento no mundo consegue acessar um programa, sendo que na América La�na esta proporção é de 1 para cada 11 pessoas. O estudo também mostra que estes programas estão mais disponíveis nas grandes áreas urbanas, em detrimentos das regiões rurais ou interioranas. Neste cenário de escassez de recursos, a Comunidade Terapêu�ca (CT) tornou-se uma das modalidades mais procuradas para a recuperação da dependência de álcool e drogas, tanto no Brasil como em muitas partes do mundo. Cada vez mais, tanto a

¹Psicólogo, Mestre e Doutor em Saúde Cole�va FMB - UNESP – Botucatu, Diretor da Eureka Educando, Coordenador do Curso de Pós Graduação em Dependência Química - Faculdade Inspirar, Editor Chefe da Revista La�no Americana de Saúde Mental e Comunidades Terapêu�cas. pablokurlander@gmail.com.


população leiga quanto os profissionais das diversas áreas da saúde procuram ou encaminham para esta forma de tratamento uma grande parte dos casos de dependentes de álcool e drogas atendidos, em detrimento dos antes tradicionais tratamentos de base medicamentosa na modalidade hospitalar.

COMUNIDADES TERAPÊUTICAS A Comunidade Terapêu�ca (CT) é um serviço residencial transitório, de atendimento a dependentes químicos, de caráter exclusivamente voluntário, que oferece um ambiente protegido, técnica e e�camente orientado, cujo obje�vo – muito mais ambicioso do que apenas a manutenção da abs�nência – é a melhora geral na qualidade de vida, assim como a reinserção social do indivíduo (NIDA, 2015; VANDERPLASSCHEN; VANDEVELDE; BROEKAERT, 2014; DE LEON, 2008; DE LEON, 1994). De Leon (1994) diferencia a CT de outras modalidades de atendimento por duas questões fundamentais: primeiro, porque oferece uma abordagem terapêu�ca guiada na perspec�va da recuperação da dependência química através do desenvolvimento de um novo es�lo de vida; segundo, porque o principal agente terapêu�co dentro da CT é a Comunidade por si mesma, ou seja, o ambiente social, a convivência entre os pares que, uma vez sendo modelos de sucesso na recuperação pessoal, servem de guias no processo dos outros. Assim, a CT é tanto o contexto em que ocorre a mudança quanto o método que facilita a mesma. Segundo De Leon (2008), a ideia de comunidade como ambiente terapêu�co sempre esteve presente ao longo da história da humanidade, fato que se evidencia em

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muitos dos relatos an�gos, desde os protó�pos de comunidades ascé�cas, como os essênios de Qumran (Mar Morto), com regras de convivência muito semelhantes às das primevas CTs, até os posteriores grupos de autoajuda espalhados por toda a Europa e América do Norte através do movimento humanista, baseado nas ideias de teóricos como Abraham Maslow, Carl Rogers e Rollo May. Isto significa que há muito tempo a humanidade, ou pelo menos uma parcela desta, considera a vida democrá�ca da comunidade como um ambiente potencializador das estruturas saudáveis do indivíduo, em detrimento das ins�tuições asilares tradicionais, que se tornam improdu�vas e patologizantes. Neste intuito, muitas tenta�vas surgiram simultaneamente ao longo da história moderna, principalmente desde o início do século XX, quando ideias revolucionárias começaram a invadir o cenário segregatório da psiquiatria convencional. Já na segunda metade do século XX, num ambiente mundial de pós-Guerra, como afirmam Amarante (1995) e Jorge (1997), Maxwell Jones – psiquiatra sul-africano radicado no Reino Unido – inicia o movimento defini�vo de reforma da psiquiatria, criando o modelo de CT psiquiátrica, denominado de “terceira revolução em psiquiatria”. Maxwell Jones visava uma maior interação do paciente no seu próprio processo, fazendo-se este assim par�cipe das suas pequenas conquistas co�dianas. Ele afirma que “de maneira recíproca, a total dependência e passividade [...] precisa ser mudada a fim de permi�r-lhe uma par�cipação mais a�va em sua própria cura e na dos outros” (JONES, 1972, p. 43). Juntamente com Jones, muito relevante foi a an�psiquiatria de Franco Basaglia


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movimento que denunciava os valores tradicionais da psiquiatria, que tratava o louco como um ser alienado, à parte da sociedade, afirmando que “a psiquiatria sempre colocou o homem entre parênteses e se preocupou com a doença” (AMARANTE, 1995, p. 49). Desta forma, tanto Basaglia quanto Jones propunham uma psiquiatria humanizadora, democrá�ca, em que o doente mental �vesse a possibilidade de desenvolver-se como ser humano, e não apenas perceber-se (de uma forma ou de outra) segregado do ambiente social que não mais o comportava.

A COMUNIDADE TERAPÊUTICA PARA DEPENDENTES QUÍMICOS Uma vez estabelecido o processo de reforma psiquiátrica, e as pioneiras CTs psiquiátricas tendo sido iniciadas no ambiente setorial da saúde mental, o terreno estava fér�l para o surgimento de novas modalidades desta mesma prá�ca, como afirma Kurlander (2014). Por outro lado, diversos grupos já vinham cons�tuindo-se como organizações de trabalho em prol da recuperação do alcoolismo e da dependência química, como afirmam De Leon (2008) e Go� (1990). Segundo estes autores, o primeiro destes grupos a ser registrado foi uma organização religiosa da Inglaterra fundada em 1860, chamada Oxford, cujo obje�vo era o “renascimento espiritual da humanidade”, buscando um es�lo de vida mais fiel aos ideais cristãos e acomodando de modo amplo todas as formas de sofrimento humano. Alguns integrantes deste Grupo Oxford influenciaram a formação de outro grupo, depois difundido em nível mundial: os Alcoólicos Anônimos (AA). Em 1935, dois alcoólicos em busca de recuperação – Bill Wilson, corretor de Nova


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York, e Dr. Bob Smith, médico cirurgião de Akron – se conheceram na casa deste úl�mo, quando o primeiro tentava contatar outro alcoólico em recuperação, a fim de evitar uma recaída, como apresenta o filme My name is Bill W. – O valor da vida (2006). O filme ainda mostra um dos amigos de Bill, chamado Ebby Tatcher, que tenta uma e outra vez ajudá-lo a parar com a bebida, principalmente depois de ter encontrado a “iluminação” num grupo religioso, que seria, segundo De Leon (2008), o Grupo de Oxford.

Desta forma, através deste alcoólico em recuperação, assim como de outros integrantes do grupo, os fundadores dos AA �veram os primeiros contatos com os princípios espirituais deste grupo. Ainda segundo De Leon (2008) e Go� (1990), em 1958, Charles Dederich, alcoólico em recuperação e membro dos AA, uniu suas experiências pessoais com as experiências do grupo e iniciou um grupo semanal de “associação livre” em seu apartamento junto com outros membros da irmandade. Estas reuniões foram consideradas pelos seus par�cipantes como uma nova modalidade de terapia, e em pouco tempo resolveram cons�tuir este grupo como uma comunidade residencial. Em agosto de 1959, em Santa Mônica, Califórnia, EUA, foi fundado oficialmente o Synanon, o primeiro protó�po de modelo residencial comunitário para a recuperação da dependência química da história. A mais notável mudança promovida por este grupo foi a passagem do ambiente não-residencial das reuniões regulares para a convivência integral no modelo de CT. Obviamente, as questões rela�vas ao ambiente residencial do novo programa de tratamento exigiram mudanças radicais quanto à estrutura organizacional, regras, metas, filosofia e orientação ideológica e, principalmente, o perfil dos atendidos pelo

programa. Outra peculiaridade deste grupo foi o atendimento a dependentes químicos, e não somente a alcoólicos, já que os grupos anteriores (Oxford e AA) atendiam unicamente público com esse �po de dependência. Como, de acordo com De Leon (2008), o perfil do dependente químico é diferente do perfil do alcoólico, isto também exigiu uma mudança na postura e na metodologia do grupo, o que significou também um marco evolu�vo na conceituação do que é, e a quem trata, uma CT. De Leon (2008) e Go� (1990) indicam que o primeiro modelo autodenominado de fato como CT foi o Daytop Village, fundado em Nova York, em 1963, por David Deitch, dissidente de Synanon, junto ao Monsenhor William O’Brien. O principal diferencial desta nova abordagem foi a inclusão de uma equipe mul�disciplinar, o que, apesar das grandes resistências por parte dos par�cipantes das primeiras gerações de CTs, se tornou parte integrante do modelo principal do que se entende atualmente como CT.


COMUNIDADES TERAPÊUTICAS NO BRASIL

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Depois de um longo e complexo caminho, finalmente as CTs chegam ao Brasil. Segundo Fracasso (2008), em 1968, na cidade de Goiânia, nasce a primeira inicia�va brasileira: o Movimento Jovens Livres, fundado pelo casal Pastor Paulo Brasil e Pastora Ana Maria Avelar de Carvalho Brasil. A segunda inicia�va brasileira teria sido o Desafio Jovem (Teen Challenge) Brasil (DESAFIO JOVEM, 2018). A fundação da primeira casa de Goiânia teria acontecido em 1977, tendo como primeiro presidente o Pr. Bernardo Johnson, cinco anos depois do lendário Pr. David Wilkerson ter vindo ao Brasil pela primeira vez em 1972. Já em 28 de maio de 1978 foi fundada uma en�dade filantrópica chamada Associação Promocional Oração e Trabalho (APOT), hoje designada “Ins�tuto Padre Haroldo”, que no mesmo ano iniciou os trabalhos na “Fazenda do Senhor Jesus” para homens adultos, que seria o primeiro serviço no Brasil com caracterís�cas específicas de Comunidade Terapêu�ca, uma vez que o Padre Haroldo trouxe e implantou na “Fazenda” o modelo de Daytop, que depois foi amplamente disseminado pelo Brasil (IPH, 2018; FRACASSO, 2008). De acordo com o “Mapeamento das ins�tuições governamentais e não-governamentais de atenção às questões relacionadas ao consumo de álcool e outras drogas no Brasil” (BRASIL,

2007) realizado pelo Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas (OBID), 55% das ins�tuições que ofereciam atendimento para dependentes químicos no Brasil se autodenominavam CTs, e 80% dos atendimentos para dependentes químicos no Brasil seriam realizados dentro destas CTs. Segundo divulgado pela Secretaria Nacional de Polí�cas sobre Drogas – SENAD, no levantamento realizado juntamente com o Ins�tuto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2014), em 2014 exis�am quase 1900 CTs no Brasil. Destas, cerca de trezentas estavam sendo financiadas pelo governo federal, no âmbito do programa “Crack: é possível vencer”. A maior parte destas CTs encontrava-se nas regiões Sudeste (41,77%) e Sul (25,57%) do país. A região Norte era a que �nha menor percentual de CTs (7,37%). A comparação destes dados evidencia a proliferação de locais que se autodenominavam CTs no país neste período, fato este que já provocava grande preocupação em todas as áreas adjacentes às polí�cas sobre drogas, principalmente considerando a quan�dade de locais irregulares e sem as mínimas condições estruturais técnicas que surgiam diariamente. A falta de serviços públicos de qualidade e em quan�dade suficiente para atender pessoas com problemas mentais e também dependentes químicos, junto a falta de regulamentação e, principalmente, de fiscalização por parte do Estado, contribuíram para que grande parte dos locais que se autodenominam CTs não atendam os requisitos mínimos de funcionamento técnico, é�co e sanitário, assim como também com a presença constante de abusos, violências e violações de diretos básicos, proseli�smo religioso, imposição de credo, ausência de equipe profissional, trabalho análogo à escravidão


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(com os acolhidos e também com a equipe) e isolamento social, o que diverge totalmente do modelo original de CT.

Outra mutação patológica ocorrida no cenário brasileiro, pelos mesmos mo�vos acima descritos, foi a criação e rápida proliferação de um mercado clandes�no de supostas internações involuntárias, que mais podem ser descritas como prá�cas de sequestro seguidas de cárcere privado, em ins�tuições/empresas/locais que muitas vezes também se autodenominam CTs, tanto por ignorância quanto por oportunismo, visto que as exigências sanitárias para os acolhimentos voluntários (RDC 29/2011) são mais brandas que para as internações involuntárias (RDC 50/2002). Esta realidade tem despertado tensões polí�cas e reações antagônicas permanentes de diversos grupos organizados, relacionados com os Direitos Humanos e a Reforma Psiquiátrica, o que exige ainda mais uma maior organização do Estado em relação à legislação e à regulamentação destes locais que se autodenominam CTs.

A EFICÁCIA DAS COMUNIDADES TERAPÊUTICAS Embora não exista grande quan�dade de estudos que provem a eficácia do programa da CT, algumas evidências podem ser destacadas no cenário internacional. A principal evidência, embora discreta, se encontra numa metanálise publicada na Biblioteca Cochrane (SMITH; GATES; FOXCROFT, 2006), que incluiu sete estudos de comparação de resultados entre CTs e nenhum tratamento, CTs e ambulatórios, CTs tradicionais e modificadas (programas mais curtos), e CTs prisionais e nenhum tratamento. Neste estudo aparecem evidências significa�vas:

algumas

as CTs modificadas �veram melhor resultado em relação a estar empregado pós tratamento, tendo 32,0% maior chance; as CTs �veram muito melhor desfecho que as residências terapêu�cas em relação à abs�nência 12 meses pós tratamento, tendo 86,0% maior chance; as CTs prisionais �veram bom resultado em relação à reincidência após 12 meses, tendo 32,0% menos chance do que nenhum tratamento as CTs prisionais também apresentaram melhores resultados que outros programas de tratamento de saúde mental, tendo 72,0% menos chance de reincidência após 12 meses, 31,0% menos chance de a�vidade criminal após 12 meses, e 38,0% menos chance de cometer delitos relacionados a


álcool ou outras drogas após 12 meses.

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Magor-Blatch et al. (2014), numa revisão sistemá�ca de 11 estudos de eficácia de CTs (caso controle: CT x não tratamento), encontraram evidências de melhores resultados para o tratamento em CT em 4 áreas pós tratamento: abs�nência, crimes, saúde mental e inserção social. Goñi (2005), na avaliação de eficácia do Proyecto Hombre de Espanha (Tese de Doutorado), apresenta resultados de vários estudos que apontam para menores taxas de recidiva para quem concluiu o tratamento (usuários de heroína, haxixe e álcool principalmente), melhores indicadores de qualidade de vida (trabalho, lazer, saúde) e menores taxas de crimes e prisão. Cabe destacar que alguns destes estudos realizaram seguimento por quase quatro anos pós tratamento. Na tese de doutorado do Dr. Pablo Kurlander (2019), que é o primeiro estudo de eficácia de CTs da América La�na, apareceram dados importantes sobre a eficácia da CT em relação à melhora da qualidade de vida: os que concluíram o processo na CT �veram 2,5 mais chance de melhor qualidade de vida pós saída; 23% dos homens e 48% das mulheres se man�veram abs�nentes após 12 meses; quem manteve abs�nência após 12 meses teve maior predominância de indicadores de qualidade de vida. Todos os estudos de eficácia de CT apresentam limitações e vieses que precisam ser superados por estudos mais apurados, com amostras maiores, com seguimentos mais longos e, principalmente, com método mais criterioso. Por outro lado, um dos grandes entraves na avaliação dos resultados é que,

tradicionalmente, as equipes das CTs, assim como os membros e dirigentes de grupos de apoio, compreendiam a recuperação como algo binário: “de pé” ou “recaído”. Ou seja, abs�nente ou não abs�nente, considerando a abs�nência como o maior indicador de sucesso – independentemente de todos os outros aspectos da vida do indivíduo –, e o consumo como o maior indicador de fracasso – independentemente do �po de substância, da quan�dade, da frequência e, principalmente dos danos sofridos. Assim, a “recaída” se configurou ao longo do tempo como o fracasso absoluto, sempre sendo associada muito mais a falhas no caráter do que à própria sintomatologia do problema, sendo, geralmente, muito mais punida do que tratada. Segundo a OMS a dependência química é uma doença crônica, progressiva e recidivante, “e não uma simples falta de vontade ou de desejo de se libertar” (OMS, 2004). Portanto, a volta ao uso, ou as situações de consumo, devem ser compreendidas como sinais e sintomas naturais da problemá�ca, e abordados com intervenções terapêu�cas específicas, e não com “sermões” e cas�gos.


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CONSIDERAÇÕES referências FINAIS

AMARANTE, Paulo (Org.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Osvaldo Cruz, 1995.

O uso de SPAs é um fenômeno social mul�fatorial presente em todas as culturas e épocas e pode derivar em várias formas de danos individuais e cole�vos, assim como em uma patologia passível de tratamento especializado, chamada dependência química. Uma das modalidades de atenção para a dependência química mais acessadas no Brasil é a CT, que, mesmo estando em meio a grandes controvérsias polí�cas e tensões sociais, presta um serviço de grande relevância para a sociedade e, principalmente, para a população que sofre com o problema da dependência química. Estudos nacionais e internacionais sugerem que, com prá�cas adequadas e organização técnica e metodológica, as CTs podem apresentar resultados muito posi�vos, tanto no que diz respeito à manutenção da abs�nência quanto à melhora da qualidade de vida. Porém, tendo em conta a quan�dade de locais que atuam de forma inadequada e iatrogênica, fica evidente a necessidade de uma sistemá�ca fiscalização e regulamentação das CTs, a fim de que sejam evitadas todas as irregularidades, violências e abusos que ocorrem nas falsas CTs e nos serviços organizados de forma precária, moralista e de base unicamente religiosa. Desta forma, as CTs poderão fazer parte das estratégias de atenção integral aos dependentes químicos, consolidando-se como um excelente instrumento nos casos em que as outras alterna�vas se mostrem inexistentes ou ineficazes.

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Maxwell Jones pe. haroldo


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