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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Edições Vírgula
® (chancela Sítio do Livro)
TÍTULO: De Viva Voz AUTORA: Maria
do Pilar Figueiredo
REVISÃO:
Sílvia Lobo Alda Teixeira CAPA: Patrícia Andrade PAGINAÇÃO:
1.ª EDIÇÃO Lisboa, Julho 2015 ISBN:
978-989-8821-02-7 395258/15
DEPÓSITO LEGAL:
© MARIA DO PILAR FIGUEIREDO
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Rua da Assunção n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 | 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
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I Era a primeira vez que... Poderia começar desta ou de outra forma, visto tratar-se de uma espécie de missiva em que se convocam memórias. Ou talvez seja apenas uma história pessoal que dificilmente poderá servir de modelo para os sonhos de quem quer que seja. Quando muito, será apenas uma memória difusa, desordenada: a memória de palavras, gestos, sorrisos, a par de imagens várias: texturas, cores, água, paisagens exóticas sob a bênção de um Buda vietnamita. Mas não vou perder-me em detalhes porque isto não é relato de coisa acontecida. É, quando muito, a memória de um encontro fugaz noutra latitude, uma aproximação vivida na surpresa do olhar, nos gestos mal esboçados, nas palavras contidas, hesitantes. Normalmente nós, as mulheres, gostamos de dramatizar as nossas vidas se acaso desejamos ser compreendidas pelos
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outros. Não sei se será assim comigo, nem sei por que penso nisso agora. Sei que tudo vem até mim mesclado e confuso. E, a pouco e pouco, tomo consciência de que após a morte ter levado Bernardo do nosso convívio, a esfera onde eu até aí vivera comodamente instalada, partiu-se a meio, deixando-me à mercê dos elementos. E o tempo dividiu-se em duas etapas. Foi então que me apercebi, embora vagamente, de que a primeira etapa terminara e que aquela morte deixara atrás de si um imenso vazio. Um espaço sem fundo nem medida, porque ainda há quem, partindo, deixe o seu lugar definitivamente vago. Insubstituível. Por tudo isso, e porque tanto Bernardo como eu... (mas quem sou eu?) Não. Não vou ter nome nesta história. Serei apenas aquela que conta, e tu serás apenas o destinatário de uma mensagem que, de viva voz, jamais te enviaria. Mensagem escrita num tempo em que algo começou a morrer dentro de mim. Algo que tinha a ver com desalento, solidão, passividade. Era, portanto, um cansaço calmo, quase apático, a marcar o fim de todo o querer, do mais leve desejo, até que por fim, passivamente, deixei que me arrancassem desse túnel, onde acabara por me acocorar indiferente ao tempo, e me incluíssem num grupo de gente alegre. Foi então que, sem saber como, dei por mim numa agência de viagens, ouvindo discorrer sobre o percurso oferecido em imagens coloridas, numa ilusão de paraíso tropical. Lembro-me nitidamente de que, quando aí te vi pela primeira vez, algo de imprevisto aconteceu, porque enquanto
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tomava consciência da tua presença, perdi o contacto com aquilo a que se chama realidade exterior e, curiosamente, quando o funcionário da agência nos apresentou eu fiquei sem saber o teu nome, o que fazias, que espécie de relação te unia aos demais. Portanto, de ti guardei, sobretudo, a imagem de um homem simples e simpático, tanto mais que o sorriso que voou de encontro ao meu, em jeito de cumprimento, era um sorriso tranquilo, sincero, nada parecido com essa expressão forçada de cordial simpatia que alguns homens se julgam na obrigação de exibir. Eras, em suma, um homem que, até certo ponto me fascinou e que logo desejei conhecer mais de perto, certa de que muitas seriam as afinidades entre nós. ✳
Alguns dias passaram sem nos vermos até que nós, os componentes do grupo, nos encontrámos no aeroporto, na hora da partida. Recordo que ensonados, indispostos, mal falávamos uns com os outros. Na verdade, enquanto esperávamos pela vez do check-in, aquilo que mais desejávamos era a quentura da cama que, horas antes, havíamos deixado. Conforto que as salas do aeroporto nos negavam. Além disso, na incomodidade da espera custava-me a crer que estava de partida para uma viagem exótica, numa outra latitude e sem bem saber porquê, olhei em redor, como se procurasse a confirmação de que estava acordada. Mas o meu olhar mal se deteve nessa realidade que era o grupo de com-
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panheiros unidos pelo desejo de viajar, porque foi então que tu chegaste. Vi-te transpor a porta, empurrando o carrinho da bagagem e, enquanto tomava consciência da aproximação do vulto que eras tu, perdi o contacto com as outras presenças. E, por instantes, o tempo parou. Quase a medo, olhei a tua silhueta envolta por uma gabardina inglesa que te dava um ar de seriedade, de confiança protetora, e que estava de acordo com o teu ar atencioso, discreto, porque o que de ti ressaltava era a simplicidade. A tal ponto que se confundia com humildade. Eras, na verdade, um homem bem-parecido, limpo, barbeado, como que preparado para uma cerimónia solene. Reparei que te dirigiste, em primeiro lugar, ao funcionário da Agência, trocando com ele algumas palavras de circunstância. E de repente apercebi-me, de forma minuciosa, do som da tua voz, palavras às quais parecia dares uma acentuação particular, pois soavam a meus ouvidos diferentes das outras vozes. Um tom de voz macio que não sei descrever. Sei, isso sim, que de súbito demoraste o teu olhar em mim e que uma sensação estranha me tomou perante a luminosidade do teu sorriso. Um sorriso que fazia com que fechasses um pouco os olhos. E foi então que, ao tomar consciência da expressão dos teus olhos cintilantemente negros, houve como que um flash que me deslumbrou (posso dizê-lo), tal a doçura que deles se derramava e que me fez sentir um arrepio na pele. Um arrepio muito mais forte do que o sentido ao olhar aquele que
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haveria de ser o meu primeiro namorado, nos tempos em que era ainda uma adolescente lamechas. E, juntamente recordo, de maneira insólita, a voz que pelo altifalante anunciava voos para Estocolmo, Amesterdão, Zurique, e o modo como me distraí a pensar que havia pessoas que chegavam ou partiam de locais que para mim, naquele momento, não passavam de nomes lidos nos jornais. Assim acontecia com o Vietname, o nosso destino. O altifalante chamou os passageiros para o voo n.º 450, o nosso, e portanto restava-nos apenas voltar as costas à sala onde acabáramos de fazer o indispensável check-in, atravessar o controlo de segurança, alcançar a sala de embarque. Desses momentos recordo, não sei bem porquê, o teu olhar ansioso, ansiedade por partir, uma ansiedade igualmente bem nítida na voz, quando disseste: “Temos de ir!” E assim fomos das primeiras pessoas a tomar lugar no autocarro que levava os passageiros até ao avião que aguardava. Depois, ainda no interior da viatura sorriste e eu, correspondendo ao teu sorriso, tive a certeza de que muitas seriam as afinidades entre nós. E de súbito, senti que recuávamos no tempo e em nós despertavam os mais velhos, os mais primitivos instintos da nossa espécie. Era como se soubesse que tu tinhas chegado até mim no momento certo, no momento da conciliação harmoniosa do espaço e do tempo, sem que a vida pessoal tivesse uma importância especial.
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De súbito, ao subir as escadas, o meu olhar prendeu-se num potente Boeing 747 a erguer-se no ar cheio de chuva, enquanto outros, como que assustados, rastejavam em demanda da pista que lhes poderia oferecer a necessária segurança. Olhei-os impressionada, mas tu que vinhas alguns metros atrás de mim, sorriste novamente e eu esqueci toda a ansiedade. E foi então que após ter retomado o meu lugar na ordem natural das coisas, me senti de certo modo aliviada. Não tardou porém que outros passageiros se metessem de permeio e logo te perdi de vista. Depois, já no avião, no meu lugar, ao tentar com dificuldade levantar o saco de mão que era necessário colocar na bagageira, tu, sem que eu te visse aproximar, surgiste a meu lado e, gentilmente, tiraste-mo da mão, ergueste-o nos braços musculados até o introduzir na bocarra aberta por sobre as nossas cabeças. Esse teu gesto de levantar o saco sem qualquer dificuldade, surpreendeu-me, tanto mais que já não estavas, como é costume dizer-se, na primavera da vida. Não, não estavas na primavera da vida nem em pleno verão. Em pleno outono, talvez. Mas ainda eras robusto. E nos teus gestos era igualmente visível estares seguro de ti. Tentei dizer-te algumas palavras de agradecimento mas tu não podias ficar ali na coxia a impedir a passagem, por isso te afastaste. Mas apesar de logo te ter perdido de vista, deixaste ficar em mim a imagem de um homem em quem se adivinhava já uma força interior grande e ao mesmo tempo suave,
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viva, talvez inabalável, denunciada não só pelo gesto, mas sobretudo por um brilho rebelde no olhar. Poucas palavras havíamos trocado ainda, e nenhumas mais haveríamos de trocar durante a primeira parte da nossa viagem, tanto mais que a minha atenção foi atraída pelo gesticular de Natália, uma das nossas companheiras que, de longe, procurava dizer-me não sei o quê e, logo de seguida, tive de me preocupar com a chegada de um casal de ingleses que pretendia instalar-se a meu lado. Entretanto, tu tinhas-te dirigido já para o lugar que te pertencia, lá para a cauda do avião. Não sei qual lugar ocuparias mas isso não me preocupava. Ainda não tinha chegado o momento de desejar a tua companhia como se deseja a água para matar a sede numa tarde de verão. Nem ainda me via a aproximar-me de ti como se só de ti me fosse permitido receber a luz de que necessitava, tal como as plantas a recebem do sol. ✳
Finalmente, fechada a porta do avião, o aviso para apertar os cintos iluminou-se, as hospedeiras deram início aos costumados exercícios de demonstração de salvamento em caso de acidente e, terminada esta, não demorou que o avião começasse a rolar em direção à pista de descolagem, onde parou por momentos, a tomar fôlego. Depois, o pulsar dos motores aumentou e o avião precipitou-se em fúria pela pista e ergueu-se nos ares. E quando olhei pela janela vi, sob uma luz matinal, difusa, os campos lá em
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baixo, a copa dos pinheiros, as casas minúsculas, retalhos de relva atravessados por estradas onde, preguiçosamente, circulavam carros sob a chuva que não deixava de cair. Enquanto isso, ali sentada no avião, sentia-me viajante perdida entre centenas, uma desertora, e também uma mulher livre. Ou melhor, liberta. Liberta das preocupações domésticas, sobretudo as que dizem respeito a uma mãe de família convencional, atávica, essa que se sente na obrigação de respeitar a disposição matinal do marido, servir-lhe o café, escolher-lhe a camisa e a gravata condizente, cuidar-lhe do aspeto físico e da saúde. Zelar. Velar. E vigiar também. Preocupações que deixei de ter quando deixei de usufruir dessa espécie de conforto que consiste em alguém precisar da nossa atenção, preferir a nossa presença entre todas as outras presenças. ✳
Os minutos arrastam-se. A ordem de manter os cintos apertados ainda se mantém. E o avião prossegue no vazio azul-cinza, atravessando a chuva e as nuvens escuras, até alcançar, acima delas, um sol matinal, e montanhas de nuvens brancas atapetando o corredor por onde a grande ave metálica segue com determinação. Finalmente, o aviso para manter o cinto apertado desapareceu dos pequenos ecrãs. O avião ganhou estabilidade e agora ronrona como um gato preguiçoso, ao longo de uma paisagem macia, de azul, oiro, e a brancura de pacíficas nuvens.
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Mas apesar disso, dessa viagem que ia prosseguindo naturalmente, tenho bem presente o meu isolamento perto desse casal de ingleses que, a meu lado, conversa animadamente, sem que eu consiga perceber o sentido das frases que se sucedem vertiginosamente. Creio que exprimi os meus pensamentos em voz alta, porque a inglesa voltou o rosto para mim, interrogativamente. Procurando remediar a situação, fixo a atenção no ecrã onde passam imagens várias. De súbito ela começa a rir-se e o companheiro imita-a. De que estarão eles a rir? De que falam ambos? Não posso saber. Sei, apenas, que a inglesa já se calou. “Ainda bem que assim é!” Segreda-me uma voz que conheço bem, a voz de minha bisavó Gabriela, essa que foi minha madrinha durante oito anos apenas. Há já várias décadas que a perdi mas sei que ela não me perde de vista. É inútil tentar fugir-lhe. Mesmo que o não deseje, ela aparece sempre nos momentos mais inesperados para me prevenir, para me censurar, para evitar que, por vezes, caia em armadilhas. Bisavó Gabriela tem sido a minha companheira, o meu arrimo, a minha guardiã. Não tarda que a minha atenção seja de novo atraída pelas hospedeiras que passam agora pela coxia empurrando o carro com os pequenos tabuleiros de comida que mais não são que o nosso pequeno-almoço. Uma refeição ligeira que logo termino, para me deixar de novo entregue aos meus pensamentos, numa espécie de banal introspeção.
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Não sei se dormitei e muito menos sei quanto tempo passou. Sei apenas que o tabuleiro do almoço há muito foi retirado, o avião diminuiu de velocidade e, simultaneamente, iluminou-se o aviso ou, antes, a ordem de apertar o cinto, não tardando que o barulho caraterístico do trem de aterragem descendo se fizesse ouvir, sinal de que está a aproximar-se do destino previsto. Daí a pouco, a pesada aeronave passa quase rente ao topo de uma fila de choupos e logo ultrapassa um amontoado de hangares baixos e compridos. Determinada, segue em frente e estremece bruscamente quando, finalmente, as rodas tocam o solo e logo, como pássaro gigante e assustado, desata a correr pela pista até finalmente se imobilizar. ✳
Vi-te novamente à saída quando seguíamos pela passadeira rolante, em direção à sala do novo embarque. Agora, a tua expressão amável tinha sido substituída por uma expressão neutra e silenciosa, perante a qual seria impossível dizer se refletias ou se havias mergulhado numa espécie de vácuo. E enquanto na sala de embarque esperávamos de novo, apeteceu-me conversar contigo, chamar a tua atenção para a viagem, as expetativas, os medos, mas as tímidas relações entre nós não permitiam ainda que a aproximação acontecesse. Depois foi, de novo, o embarque numa aeronave maior, os mesmos gestos de acomodação, as mesmas recomendações em linguagem gestual, de como deveríamos proceder em caso
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de emergência. E depois foi o novo horário, a perspetiva de cumprir a grande distância, num tempo sem tempo. Mais uma vez a minha atenção é atraída pelas hospedeiras que empurram um carrinho com os tabuleiros de comida, e não tarda que uma delas se incline para mim estendendo-me a bandeja de plástico com uma refeição de carne branca, puré e legumes, um bolo e uma salada verde. Recuso o vinho. Há muito que deixei de ingerir bebidas alcoólicas. Aceito um copo de água. Café. Um dos vícios que bisavó Gabriela também cultivava, segundo rezam as crónicas familiares, uma das suas pequenas libertinagens consentidas, a par da sua aparente austeridade. Depois é o dormitar, a paciência, o conformismo perante as horas que se arrastam, até que, de novo um outro aeroporto, o de Banguecoque, nos recebe. E logo de seguida, é o percorrer de extensos corredores, nova sala de embarque, novas formalidades e, finalmente, o início de um novo e derradeiro voo, em direção a Hanói. ✳
Estava já acomodada no avião, para cumprir a terceira e última etapa, quando, imprevistamente, constatei que iríamos seguir ao lado um do outro, passageiros anónimos no meio de centenas de passageiros, igualmente anónimos. Olhaste-me antes de te sentares a meu lado e talvez te lamentasses por
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esta aproximação a uma mulher que em princípio não tinha nenhuma aventura para te oferecer. Mas logo me censurei por este mau juízo. O que buscávamos na viagem que empreendêramos era, sobretudo, esquecimento, paz e doces momentos de lazer. E enquanto procuravas instalar-te no lugar indicado, recebi de ti o polido sorriso que a circunstância exigia. Olhei-te disfarçadamente, enquanto procuravas acomodar-te no lugar que no bilhete te era indicado, e logo senti que o gelo iria derreter-se, e que essa nossa imprevista aproximação seria, na verdade, algo mais. Algo cujo nome ignorava, mas que nos dizia respeito. Era algo difícil de descrever, porque sendo, à partida, pouco significativo, provocava em mim confusão, expetativa, e uma espécie de premonição. Ouvi-te falar com um sotaque que identifiquei como sendo nortenho. Talvez Braga. Talvez Viana. Uma ligeira entoação poveira, sobreposta a outra do interior, lá onde o frio é mais intenso e obriga a falar de dentes semicerrados. E a troca de informações não tardou: eu era apenas uma professora aposentada, viúva, filhos arrumados. Nascera numa aldeia do interior do concelho de Esposende, e vivia nos arredores do Porto: Maia. Tu, ex-oficial da marinha mercante. De Aver-o-mar. Viúvo. Filhos arrumados. Duas histórias sem história. E ao olhar-te de viés, logo reconheço, para lá das muitas marcas que o tempo te riscou no rosto, o rapaz que foras, e a memória trouxe até mim muitos rostos semelhantes, incluindo
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os dos meus irmãos e primos e daquele que haveria de ser o pai dos meus filhos. Bastou, na verdade, muito pouco para saber o essencial sobre ti. As recordações da tua infância, o cheiro a tangerina, as palavras de teu pai, a sua austeridade. E eu, escutando-te, não dava pela passagem do tempo. Acho que ficaria o dia inteiro a ouvir-te falar desse teu passado que pouco tinha a ver com o meu. Recordações de um tempo em que o coração era leve porque, agora, o tempo já mal nos pertence. O tempo mais não é que árida extensão de palavras e de atitudes. Fraqueza do coração. ✳
Lembro-me de todas as frases que proferimos apesar da estranheza do lugar, dos ruídos dos motores, do som de palavras entrecruzando-se em várias línguas, e recordo, sobretudo, a tua voz emocionada enquanto parecias aludir a uma dolorosa ausência. Mas após um leve silêncio, algo ressuscitou na tua cabeça de antigo marinheiro: “Um dia no porto de Saint Jones...” E de tudo isso me falavas com a tua voz serena. E enquanto te oiço falar, Sindbad te imagino, deixando os portos marítimos sobre os tons de azul ou verde das águas que cortavas, e seguias trajetórias estipuladas previamente por quem no fim te pagava. Por quantos portos andaste, não sei. Sei que habituado a viver no meio de homens rudes, entre
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mar e céu, talvez fosse num cenário de perigos que aprendeste a expressão serena desse teu olhar profundo e negro. Por isso me perguntava como te olharia se te tivesse encontrado noutra latitude, em circunstâncias próprias desses anos em que eu era uma rapariga igual a muitas outras e, no entanto, diferente. Por momentos ficaste calado. Mas logo no instante a seguir disseste a medo: “Depois que me casei...” Fechaste os olhos com emoção: estavas a contemplar de longe um filho e uma filha, ambos nascidos do sémen e da sedução que se chama poesia e amor. As tuas recordações pareciam semelhantes às minhas e, no entanto, eram tão diferentes... Foi então que fiz um débil intento para te dizer que também eu tive alguém na minha vida, um homem que... Como se tivesses entendido as minhas silenciosas palavras, deixaste que o instante se prolongasse em silêncio, gravemente, para que ambos nos sentíssemos seguros nessa busca ardente dos nossos pequenos e inseguros paraísos escondidos lá no fundo dos nossos corações. Ia dizer-to mas, de súbito, olhei o teu perfil voluntarioso e não pude prosseguir. Havia nele, bem patente, um domínio de ti mesmo, profundo e sábio que me intimidava, tanto mais que eu não desejava parecer uma mulher bisbilhoteira, curiosa e intrometida e, por isso, preferi falar de mim. Contei-te algumas situações interessantes na história da minha família. Falei-te de Bisavó Gabriela, da sua coragem e determina-
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ção. Ia falar-te de Bernardo, mas em vez disso e sem que me pudesse conter, a pergunta saltou-me dos lábios: – E a sua mulher? Tu passeaste o olhar pelo interior do avião e depois detiveste-o na pequena janela para lá da qual apenas se viam montanhas de nuvens, inacessíveis. Os teus amargos olhos negros pareciam tão tristes como as tuas palavras: – Ela morreu de uma enfermidade grave e devoradora. Morreu guardando no olhar as poucas imagens de um casal que passou décadas afastado, vendo-se por escassas semanas após cada viagem, porque ela sabia que eu recordaria para sempre as pequenas coisas que, no fim de contas, nos mantiveram unidos tantos anos. Não aconteceu assim consigo? – Perguntaste por tua vez. Como não sabia que dizer, limitei-me a olhar o teu perfil, mas não deixei de, intimamente, me interrogar: “Recordarias tu as pequenas alegrias de ser pai e marido e depois a mal contida dor de entender que tudo isso acabou para sempre? E seria isto a única coisa que tínhamos em comum: a solidão? Não formulei, porém, qualquer pergunta porque queria confiar que algo mais poderia acontecer. Depois, pouco mais falámos de nós próprios. Tu não me contaste as circunstâncias em que decidiste viajar. E eu não te disse que tinha vindo para aligeirar o peso das cinzas porque aquilo que muito amara, em cinzas se transformou. E tu também não me falaste do vazio em teu redor. Tu que quase só sabias viver nos barcos, sulcar oceanos, e de longe em longe
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olhar a mulher e os filhos esperando-te no fim de cada viagem. Em casa. Sem jamais irem ao cais. Não falámos, portanto, do ermo em que agora vivíamos nem dissemos um ao outro o que poderíamos ter dito. Não proferimos a palavra “solidão” porque não queríamos admitir que estávamos sós. Mas apesar de as palavras nos soarem ocas por vezes, não precisávamos de lembrar que ainda não éramos dois velhos excêntricos. Ainda nos conseguíamos entusiasmar com a aproximação da terra prometida, onde a alegria jorraria como a água das fontes na terra onde pela primeira vez sentíramos o cheiro vegetal do vento. Lembro-me que tu não voltaste a fazer qualquer alusão à perda sofrida e te limitaste a acrescentar: – A vida continua, quer se queira quer não. A não ser que... – Não prosseguiste. “Que tinhas tu para me dizer? Que mais esperava eu de ti?” Interroguei-me em silêncio. De ti não me seria fácil obter confidências. Disso tive clara perceção. E também de que pouco podia saber de ti, através dos teus gestos e palavras. Aliás, tu tinhas o direito de esconder os teus segredos e eu a obrigação de respeitar a tua decisão. ✳
De súbito, a nossa conversa foi abruptamente interrompida pelos altifalantes avisando da aproximação de mau tempo, e das precauções a tomar pelos passageiros. Mal tive-
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mos tempo de apertar o cinto de segurança e logo a tempestade chegou e foi então que tudo se precipitou: o avião quase desgovernado, os avisos luminosos, o mal disfarçado nervosismo na voz do pessoal de bordo, e o medo geral, nascido de uma angústia sem medida. E no auge da tormenta, como se estivéssemos prestes a ser derrotados pela força dos elementos, enquanto a tempestade ribombava por cima das nossas cabeças, eu senti-me, na turbulência que sacudia o avião, tão frágil e atormentada como folha perdida na ventania e acho que essa atitude te comoveu, porque então tu abraçaste-me com os teus braços ainda fortes e eu encolhi-me muda de assombro, nesse abraço que assim tentava proteger-me do perigo e do barulho aterrador dos trovões, por entre as nuvens espessas. Embora soubesse que tu fazias parte do nosso grupo, eu ainda mal te conhecia e por isso confesso que me senti constrangida, mas o medo era mais forte e, simultaneamente, dava-me conta de que o único refúgio era a proteção que me oferecias, e assim cheguei-me um pouco mais para ti. E assim me mantiveste bem segura contra o teu flanco e recordo como, sem mais apoio, sentia contra o meu ombro a dureza do teu ombro. Mas daquele contacto, tão próximo, de corpo a corpo, nenhum sentimento de autocensura me ocorreu. Nem me ocorreu, aliás, catalogar aquele tempo de doação mútua, de silêncio, em que permanecemos abraçados, com o teu rosto mergulhado nos meus cabelos. E de súbito percebi, embora de um modo confuso, que era como que a resposta ao meu
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silencioso pedido de socorro. Mas o que sentia era mais que segurança. Contigo a meu lado tornava-me de novo corajosa. Depois a violência da tempestade abrandou sem quase darmos por ela, e então tu afrouxaste o abraço, para que pudéssemos afastar-nos um pouco, um do outro. E foi então que, aturdida, desejei esconder o rosto de encontro ao teu peito para que pudesses saber desta esperança que de um modo insano, delirante, me dizia que a minha vida tinha mudado para sempre. Era como se recuando no tempo, em nós despertassem os mais velhos, os mais primitivos instintos da nossa espécie. E, de súbito, tive a nítida sensação de que, apesar da natural estranheza inicial, era como se desde sempre nos conhecêssemos e ambos possuíssemos o mesmo passado, a mesma história contada com as mesmas palavras. Palavras ditas por ti, no meio de tantas palavras escutadas: palavras ocasionais, desprovidas de sentido, palavras amavelmente banais pronunciadas por pessoas indiferentes. Aturdida, ainda, olhei para ti, sem que tu o notasses e no meu silêncio disse para comigo que esta atração talvez não passasse de uma vulgar reação química, porque pouco era, afinal, tudo o que de ti sabia. Muito pouco mesmo. Mas apesar disso, e sem que o pudesse prever, a força daquele abraço permanecia na memória, e perante essa lembrança, o meu corpo ergueu-se, aprumou-se, desprezando as sombras, reacendendo a luz. “Como aconteceu isso?” Interro-
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guei-me, atรณnita. Serรก porque na hora do perigo te vi sob uma luz especial? Fosse que luz fosse, era uma luz que me colocava perante o fim de um longo tempo de trevas que, por sua vez, tinha posto fim a um longo tempo confortรกvel, rodeada por aqueles a quem queria bem, e que a mim estavam ligados por laรงos de consanguinidade.
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II Finalmente, Hanói. Embora sejam já 16:40 horas, quase não há sol e daqui a cerca de hora e meia será noite fechada. Cumpridas as necessárias formalidades aduaneiras logo nos dispomos a partir à descoberta deste exótico país. E, mal saídos do aeroporto, logo tomamos contacto com a temperatura do ar, bastante elevada, a contrastar com a imagem de frescura de verdes e extensos campos de arroz pontilhados por figuras humanas, na maioria mulheres que, protegidas do sol por largo chapéu cónico, se debruçam laboriosamente sobre tenros arrozais, extenso tapete de um verde luminoso. É uma paisagem que nos irá acompanhar quando, acomodados no autocarro, seguirmos a caminho do hotel, em busca do necessário repouso. A estrada é apenas sofrível, o que não constituirá problema porque não são muitos os automóveis que circulam. Já o mesmo não acontece com as bicicletas que enxameiam. Mas nós, nesta parte do mundo, mais não desejámos que poder 27
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refazer-nos da fadiga agravada pelo calor, embora este seja já suportável no interior do autocarro climatizado. E enquanto este nos conduz ao longo da estrada, olhamos a paisagem, expetantes e curiosos. Igualmente climatizado é o hotel que nos recebe. Um hotel cujo luxo me intimida e quase sufoca, porque não é este o padrão de vida para que me preparei ao longo dos anos, nessa terra do sul da Europa que me viu crescer. Algo há neste lugar que, em vez de me deslumbrar, me incomoda porque contrasta violentamente com o aspeto dos habitantes que ao longo do percurso pude observar, debruçados sobre campos de arroz ou pedalando penosamente sob um calor húmido, pesado. ✳
Há já algumas horas que estamos em Hanói e agora é a noite que nos envolve nesta parte do mundo. Mas este facto não nos incomoda porque, finalmente, o descanso é uma realidade neste luxuoso hotel, com um batalhão de criados a servir-nos. E agora que nos recompusemos minimamente da fadiga da viagem, aqui estamos aguardando a hora de entrarmos na sumptuosa sala de jantar e, enquanto aguardamos, permanecemos cautelosamente, frente uns aos outros, secretamente desconfiados, embora empenhados no afastamento dessa espécie de nostalgia que ameaça enfraquecer o vento da nossa precária alegria.
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Após o jantar e porque a noite, no exterior, não se nos apresenta muito convidativa, deixamo-nos ficar sentados no hall do hotel, em conversa branda e, finalmente reanimados da fadiga, libertos de nós próprios, descontraídos, dizemos, calmamente, palavras prudentes, circunspetas, e assim continuamos, falando daquilo que, de momento, não terá poder para nos causar qualquer espécie de sofrimento. Bem pelo contrário. Tu, tal como os outros aqui sentados, olhas em redor com um brilho de entusiasmo nos olhos. Ninguém parece querer lembrar-se de um passado recente em que àquela hora se levantavam sonolentos do sofá onde permaneceram horas diante da televisão, e se preparavam para dormir por não saber que fazer das suas noites. Agora, porém, todos contam coisas e falam como se fossem heróis ou aventureiros. Embora ultrapassadas as dificuldades do nosso primeiro dia, ou melhor, da nossa primeira tarde vietnamita, foi uma tarde difícil, mal habituados que estávamos ainda, a esse calor tropical, pesado, apesar da cor indefinida, vegetal, do verde húmido da paisagem. Daí que o nosso serão cedo termine porque o que mais desejamos é, afinal, uma boa cama num quarto climatizado. E tudo isso está à nossa disposição pelo que não tardamos a prepararmo-nos para uma noite tranquila que nos ajude a repor as energias perdidas. ✳
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Antes de adormecer surpreendo-me a rever pequenos incidentes e detenho-me nos largos momentos em que permanecemos lado a lado e pudemos conversar sem qualquer inibição. Primeiro foi o acaso que nos pôs frente a frente, na hora da partida, da qual guardo imagens fugidias porque quando pela primeira vez te vi, uma voz cá dentro dizia-me insistentemente que valia a pena viver. E assim, enquanto tomava consciência da tua presença, devo ter perdido o contacto com algo a que talvez se possa chamar realidade porque, curiosamente, quando o funcionário da agência, já à despedida, nos apresentou eu, tomada de uma leve ausência, não ouvi o que ele disse e fiquei sem saber o teu nome, o que fazias, quem eras tu, afinal. Essa perceção de ti foi, portanto, algo de pouco nítido, como se então não me fosse possível distinguir o sonho da realidade. Foi como se, estando a dormir, alguém me tivesse despertado do sono e eu me agitasse, me voltasse para o outro lado, e de novo me quedasse tranquilamente adormecida. No entanto reconheço que ao iniciar a última etapa da viagem os meus sentidos despertaram e, a partir daí, deixei que os passos me conduzissem por esta vereda fingindo banalizar os passos que dei. No entanto, insisto em dizer agora que tudo o que dentro de mim se enovela, me sufoca, é simples imaginação. E enquanto o sono não vem, mantenho-me de olhos cerrados, até que, súbito, me vem à memória uma figura femi-
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nina representada numa fotografia antiga e logo dou por mim a pensar em bisavó Gabriela, na sua austeridade, na sua argúcia, na sua capacidade de amar, de ir mais além do amor e dos instintos. Zeladora de afetos, como ela, eu era. E sem que o procure, continuo a refletir sobre esta imprevista aproximação: matriarca como ela, eu sou também a asa estendida sobre aqueles a quem dei vida e que de mim precisariam sempre, julgava eu, encerrada na minha torre, para lá da ponte levadiça. Até que, depois, houve aqueles anos turbulentos e outros, agitados também. Anos, apesar de tudo, de um certo equilíbrio afetivo, de felicidade, no tempo em que Bernardo, guardião da minha torre, ainda era vivo. Tudo, porém, acabou por se desmoronar irremediavelmente e em seu lugar ficou apenas uma espécie de túnel escuro onde me deixei ficar acocorada, protegida por aquela escuridão. Era um túnel infindável, de cuja saída eu não sabia. Ou não queria saber. Não sei qual seria o motivo de assim proceder, mas sei que por vezes me iam surpreender imóvel, diante do retrato de minha madrinha, e eu deixava que dali me levassem sem opor resistência porque estava demasiado frágil, desmotivada, indiferente, para me opor ao que quer que fosse. Pouco a pouco, porém, comecei a aperceber-me de que aquela contemplação, aquela espécie de diálogo mudo me dava uma vitalidade desconhecida, algo que eu não poderia desprezar, porque me ajudava a manter-me de pé.
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Agora no outro lado do mundo, a braços com uma insónia, penso em tudo isso e é como se visse por detrás das pálpebras cerradas o retrato, a sala, a casa. Na verdade, pendurada na sala de visitas da casa onde nasci, há uma velha fotografia numa moldura envernizada. A fotografia mostra uma mulher idosa com um vestido preto de gola alta, severo, à moda do início do século XX. A fotografia já não está muito nítida, mas nota-se ainda, no olhar da senhora, um brilho malicioso que não condiz com a severidade do cenário em que se enquadrou, nem com a postura rígida obrigada a adotar. A senhora da fotografia podia ser uma senhora qualquer, sem nome. Sem história. Mas eu sei quem ela é. É bisavó Gabriela, essa cujos braços foram os primeiros a embalarem-me quando nasci, tal como outros braços a devem ter embalado docemente quando na segunda metade do século XIX ela nasceu na Galiza. Gestos repetidos pelas mulheres, ao longo das gerações. Que posso mais dizer de bisavó Gabriela, minha madrinha de batismo? Que mais posso dizer acerca dela? Que foi para o Brasil com seu marido e no Rio de Janeiro se tornou na burguesa que nunca quis ser, porque ela adorava os campos verdes da Galiza, daí continuar a ser mais galega que brasileira, mais camponesa que citadina. Quando regressou do outro lado do oceano, e por uma dessas reviravoltas do destino se radicou em Portugal, em vez de Espanha, logo se adaptou bem ao Barcelos rural onde
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podia expandir a sua alegria, num cenário de prados, eiras, pequenos regatos. Porque ela amava as cantigas, as danças alegremente saltitantes, os carros sonoramente puxados por juntas de bois arruivados. Sem dúvida que ela gostava da alegria. Julgo mesmo que ela seria a única pessoa da família que se deixava empanturrar de alegria a tal ponto que perdia a noção do que a rodeava. De facto, ficava, por vezes, tão tomada de alegre exaltação que tinha de se afastar das outras pessoas, respirar fundo uma ou duas vezes, sentar-se e fechar os olhos para recuperar a calma, a estabilidade, a compostura que a condição burguesa exigia dela. Numa sucessão de um tempo incontrolável, as imagens de uma época não recente continuam a revolutear diante das pálpebras cerradas, o que aliado à fadiga me impede de adormecer, só o conseguindo tarde demais. ✳
De manhã, porém, ao acordar, todos estes devaneios me envolvem e de novo penso e desses pensamentos me revisto como de uma couraça. E, deste modo, oiço as palavras que não dizes. E o diálogo que mantemos é em parte imaginado. É como se os olhos, as mãos, a memória não tivessem necessidade de nenhuma motivação para executarem o seu concerto festivo. E agora receio que, sem dar por tal, me tenha deixado hipnotizar pelas imagens que representavam o teu rosto, às quais
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emprestava as minhas palavras. Essas que gostaria de ouvir da tua boca. E por isso pergunto: trocámos algumas promessas? Mais tarde, já no autocarro, foste tu que, procurando a minha companhia, te vieste sentar a meu lado e logo uma emoção inesperada, confusa, tomou conta de mim. A tal ponto que era como se eu tivesse nascido pela segunda vez. Será que me impressionaste tão profundamente, a ponto de provocares em mim uma espécie de fascínio que faz com que os meus olhos comecem a só desejar o teu olhar? Será porque o acaso nos colocou lado a lado? Não sei. Sei apenas que, mesmo a contragosto, tenho de admitir que a tua companhia me dá segurança e que a tua presença me torna absurdamente feliz. Uma felicidade que quase me sufoca. Me assusta. Não obstante, digo-te em silêncio: sei que gostas de conversar, para assim fugires à solidão. Eu mal te conheço, mas jamais te negaria um pouco de ternura e também um pouco de calor, de compreensão. E, para me fortalecer digo de mim para mim que jamais saberei quais são os teus sentimentos a meu respeito. Apenas suponho, é provável, que não te queres ligar a ninguém. Surpreendo-me, portanto, a refletir sobre a presente situação ainda mal começada, a qual não tardará a terminar porque o tempo é implacável. E subitamente entendo que o que procurava durante todos estes anos, era alguém como tu, sereno e forte, um homem em quem uma mulher se pudesse apoiar, pousar a
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cabeça no seu ombro sempre que se sentisse fragilizada, sempre que tivesse perdido o vigor e em si não restasse nada mais que melancolia. ✳
São quase oito horas da manhã quando finalmente, reunidos no hall, nos preparamos para dar início ao nosso primeiro dia de passeio pela cidade. É a primeira vez que viajamos num mesmo grupo e, de certo modo, constrange-nos o facto de termos de atuar em conjunto, cumprindo programas preestabelecidos, conciliando horários e projetos, simples gestos. Aceitando-os. Porque contestá-los equivale a falar em nome individual, o que não se coadunará com a circunstância, porque vai contra o regulamento, que o mesmo é dizer “contra o programa tacitamente aceite”. E, para além disso, mal nos conhecemos ainda, porque, para já, o que mais nos preocupa é a procura, a tentativa de descoberta não só da paisagem mas também do que poderá haver para lá de cada rosto, de cada sorriso, de cada gesto exuberante ou apenas esboçado. Consequentemente, é sob o quente sol do Vietname, um sol desmedido, que mais tarde nos apeamos do autocarro, partindo de imediato, à descoberta da cidade, pese embora este calor excessivo para nós, que não tivemos tempo ainda de, a ele, nos habituarmos. Um calor violento, que nada parece capaz de atenuar. Mas a curiosidade empurra-nos e assim, estoicamente, iniciamos a nossa deambulação a pé,
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pela cidade, admirando todo esse conjunto de construções de vários estilos. E é já em pleno centro que Perla, que é a nossa guia, fala da cidade onde nos encontramos e chama a nossa atenção para o rio serpenteante que envolve a cidade de Hanói, cujo nome é composto pela palavra Ha (rio) e Noi (interior). Hanói quer dizer, portanto, “cidade no interior do rio”. Na verdade, são muitos os lagos e rios que acompanham o quotidiano da população, sob a bênção da paz finalmente alcançada. E embora no rosto dos mais velhos haja vestígios de antigo sofrimento, no olhar dos mais novos parece ler-se a esperança, a par do empenhamento na luta por uma vida melhor. Assim, quando paramos à beira-rio, logo somos rodeados por vendedores ambulantes que a todo o custo nos querem vender T-shirts, bem como pequenos recuerdos e postais. Perla observa a atitude dos vendedores, mas nada faz para os deter, e já no interior do autocarro, não diz uma palavra sequer a este respeito. Prefere, é evidente, falar do passado do Vietname e, por isso, volta a falar dos reis que, em séculos passados, aqui reinaram. Entre algumas curiosidades ficamos a saber que só os reis se podiam vestir de amarelo e que, tal como no Japão, se acaso o rei saísse à rua, ninguém do povo podia fitá-lo. Se transgredisse, sofreria pena de morte. Perla é uma mulher bonita, de corpo esguio, que veste de modo singelo, à ocidental. Prudente com as palavras que profere, não emite juízos de valor e, por vezes, tomada de uma
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certa cautela, é de forma evasiva que responde a alguma pergunta circunstancialmente indiscreta. É bem claro que não gosta de falar do presente, sobretudo do que diz respeito a assuntos de política partidária. Prefere falar do passado, desse tempo antigo em que esta terra era governada pela realeza, e apenas aborda um outro tempo mais recente, o qual, apesar da presença dos franceses, era dominado, sobretudo, por variadas e poderosas seitas. Após a desejada saída dos franceses, foi a luta pelo poder e depois a guerra, a intervenção de outros países, a devastação. Curiosamente e apesar de os franceses aqui terem permanecido durante l50 anos, ninguém fala francês. Em contrapartida, e apesar das más lembranças deixadas pelos americanos, o inglês é a segunda língua mais utilizada. Perla fala com indisfarçável orgulho da alma do seu povo que após ter resistido às forças do inimigo, acabou por o vencer. Agora apenas pretende exorcizar um passado doloroso afirmando o seu espírito de independência, de sacrifício e o seu inesgotável amor pela vida. ✳
De novo nos acomodamos no autocarro bendizendo a temperatura amena que aí se usufrui, mas é por pouco tempo porque, cumprindo um programa preestabelecido, voltamos a sair, sob o olhar atento de Perla. E assim, mal desembarcados, logo tomamos contacto com um novo local arborizado, bastante mais sossegado, onde está situado o famoso e vetusto
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Templo da Literatura, que tínhamos já avistado de passagem, o qual a um primeiro olhar, contrasta com um moderno estádio de futebol, para o qual a guia chamou a nossa atenção quando por ele passamos. Durante o tempo em que nos detivemos frente ao Templo da Literatura, olhei-te disfarçadamente e apercebi-me do interesse que demonstravas por esse local sagrado. De facto, perdido entre os do grupo eras talvez o mais atento de todos e não perdias uma só palavra do que Perla dizia. E assim ficamos a saber que este Templo foi restaurado no século XVII. E pouco depois, no início do século XVIII, foi criada a primeira universidade vietnamita. Na Art Gallery (Quan Thanh Temple, que consta do nosso roteiro, estão expostos numerosos quadros, de diferentes escolas, o que não admira porque no Vietname há muitos pintores. E ao longo da galeria aberta ao exterior sob uma espécie de telheiro apoiado em colunas redondas, tartarugas de pedra sustentam as lápides com nomes de homens célebres. E enquanto Perla continua a falar do seu “país bem-amado”, observo-te de soslaio: aparentemente, és dos ouvintes mais atentos, mas como o teu olhar continua protegido por óculos escuros, atitude que nada tem de singular dado a necessidade de, cada um de nós, se proteger deste sol intenso, não sei o que pensarás nem por que razão estás tão interessado na história atribulada deste país. Sei, agora que tiraste os óculos de sol e o teu olhar me procura sorrindo, que cintila, para além do sorriso, um curto olhar de inteligência como se estivéssemos em muda sinto-
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nia. E olhando-te com discreta atenção, noto que o teu sorriso surge em primeiro plano sublinhando a cor profunda dos teus olhos. E não tardo a sentir que deves ser alguém muito especial. Receosa porém, tento não te dar a perceber a importância que, a contragosto, começas a ter cada vez mais para mim, porque há no teu olhar a cor negra, opaca, misteriosa de noite densa que não permitirá que se possa ler nele os sonhos que teceste e talvez ainda não cumpriste. O museu tem dois andares cujas salas abrem para arejadas galerias. De entre os muitos objetos de arte haveríamos de nos quedar diante de uma estranha imagem religiosa que não sendo católica, também não é budista. Está colocada sobre uma espécie de altar adornado por vasos de flores. É uma figura esguia, de pé, empunhando uma espécie de lança. Imagem, talvez, de alguma divindade protetora a quem é prestado culto por vietnamitas devotos. Segundo a guia, este Museu de Belas-Artes foi construído pelos franceses e possui um recheio valioso, para além de variado, que vai desde a arqueologia até á pintura de diferentes escolas. Pintura não só sobre tela mas também sobre seda e outros materiais. Lacas. Todas as salas abrem para galerias situadas nos dois pisos, onde se podem observar diversas esculturas. Vejo-te percorrer a galeria situada a nível do primeiro andar, atento aos pormenores da arte que te rodeia nas suas mais variadas formas, e então eu, movida não sei por que
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impulso, tiro a máquina do saco e procuro focá-la contra ti. Depois carrego no botão e, numa fração de segundo, apanhei-te de perfil, o corpo banhado de sol. E assim ficaste na objetiva sem te aperceberes de que levava comigo um pouco de ti. Era algo de quase secreto. Algo que eu guardei só para mim, mesmo quando pouco depois, lado a lado, admirámos os tetos vermelhos e dourados do Templo da Literatura, cuja construção data do século XI. Vamos, de seguida, visitar o cemitério dos bonzos, homens que, pela fé e ritmo de vida, se demarcaram dos demais. Passeamos por entre as campas rasas, todas elas despidas de qualquer ornamento, símbolo de quem durante os anos de vida ativa, despojada, cumpriu ordens ou parou para refletir sobre a vida e, sobretudo, a vida para além da morte. Depois deambulámos um pouco pelos jardins. Parámos, lado a lado, por momentos, à sombra de uma árvore frondosa, diferente das demais. E logo ficámos a saber que se tratava de uma Bo Dé, oriunda da Índia, e que ali foi plantada já no século XX, a qual, adaptando-se ao clima deste país, cresceu esplendorosamente. Já em plena rua, à porta dos jardins, vendedoras oferecem-nos fruta que carregam no balanceiro, ou seja, em cestos pendentes das extremidades duma vara em equilíbrio sobre o ombro e cujo peso nos parece excessivo, atendendo à aparentemente frágil constituição física da mulher que os transporta. Há também cães que são transportados em bicicleta, dentro de um balaio protegido por rede, os quais nos olham triste-
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