BERNARDINA
FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: VÍRGULA TÍTULO:
BERNARDINA
AUTOR: MARIA DO PILAR FIGUEIREDO REVISÃO E PAGINAÇÃO: PAULO SILVA RESENDE CAPA: PATRÍCIA ANDRADE
1.ª
EDIÇÃO
LISBOA, NOVEMBRO
2012
IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ISBN:
PUBLIDISA
978-989-8413-76-5 351608/12
DEPÓSITO LEGAL:
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MARIA DO PILAR FIGUEIREDO
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO SÍTIO DO LIVRO, LDA.
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ROMA N.º 11 - 1.º WWW.SITIODOLIVRO.PT DE
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BERNARDINA MARIA DO PILAR FIGUEIREDO
I Sem pressas, suspendeu a leitura do jornal, tirou os óculos com o ar contrariado de quem se vê interrompido a meio de uma ocupação agradável e, finalmente, ergueu o rosto. Depois o queixo estendeu-se um pouco para a frente, os olhos encararam o rapaz e, gradualmente, o cérebro do velho foi compreendendo aquilo que à primeira vista se lhe apresentara confuso. – Avô! Olhe quem está aqui! – insistiu Bernardina. – Hum... Poisou o jornal devagar, interessado mas ainda hesitante, e disse como se estivesse a contar a si mesmo aquela novidade: – Mas és o Ricardo! Num costume antigo, conservado por si durante décadas, estendeu-lhe a mão que o rapaz beijou respeitosamente: – Sua bênção, Avô! – Deus te abençoe, rapaz! Deus te abençoe!...
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Depois pareceu alhear-se da presença dos dois e, num gesto automático, voltou a pegar no jornal como que resolvido a retomar a sua lenta e dificultosa leitura, mas de novo ergueu o rosto e encarou o jovem: – Por onde tens andado? Há muito que não te via... – Mas... Estive cá há quinze dias, Avô. – Huum... – resmungou de novo. Pareceu ficar indiferente à notícia e voltou a poisar o olhar no jornal como se nada mais o interessasse, ou desejasse assim demonstrar as últimas forças da velhice, o não comover-se com acontecimentos nos quais já não participaria nem com problemas que já não lhe diziam respeito diretamente, nem tampouco o interessavam. Agora, ao ultrapassar os noventa anos, um pudor insólito, uma espécie de reserva feita pelo instinto dos que em breve deixarão o mundo, levava-o a procurar isolar-se como se desejasse evitar aos outros o espetáculo da sua decadência humana. De fato, já não falava com ninguém e, na sua timidez forçada e fastidiosa, limitava-se a resmungar talvez para experimentar a sua capacidade de existir. Meses antes ainda gostava de, às vezes, ir até à varanda florida de gerânios e malva-rosa, deixando-se por lá ficar experimentando alguns passos, mudo, curvado, os ossos emperrados, os olhos meio apagados, os ouvidos meio obstruídos. Mas desde que trocara o chapeirão de palha com que percorria o horto, ou o chapéu de feltro com que dantes saía à rua por uma boina que lhe agasalhava a cabeça até às 8
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orelhas, passou a repartir o seu dia a dia entre a cama e a cadeira. O seu interesse agora ia, a bem dizer, apenas para as funções vitais: preocupava-se com o estômago, tinha um apetite infantil de guloseimas que comia castanholando a dentadura. Se o contrariavam nos seus apetites olhava-os com o coração repleto de uma cólera confrangida mas que logo esquecia. Embora continuasse a interessar-se pelas flores e gostasse de folhear revistas da especialidade, já não se interessava pelos assuntos de floricultura, ele que tinha sido um artista na criação de rosas. De todas ficara célebre uma rosa chá a que pusera o nome de Rosa Angélica, em homenagem à filha falecida na adolescência, uma rosa pálida que lhe evocava o rosto pálido da filha que débil nascera e débil se mantivera ao longo da sua curta vida. Do ser enérgico e sensível que ele fora restava agora um homenzinho enxuto de carnes e cujas faces pontilhadas por uma barba branca, rala, mal aparada, estavam cobertas de rugas divergentes, principalmente junto da boca murcha e dos olhos pardos, sem brilho. – Tu és filho da Ema? – interessou-se. – Não, Avô! Sou filho da sua neta Zilda.. – A que casou com esse malandro do Rodrigues Coutinho, de Viseu? – Não... Esse era o primeiro marido da prima Adelaide... O meu pai chama-se Vasco Correia Nunes... É oficial da Marinha... E a minha avó era a sua filha Ema, a que ficou viúva e veio para aqui morar com a minha mãe e os meus tios 9
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Manuel e Joaquim... Ia continuar a explicação mas o velho desviara o olhar e de novo pareceu desinteressado de tudo o que ali na sala o rodeava. Teve cinco filhos, o velho. Dois rapazes e três raparigas que lhe deram vários netos, alguns dos quais se foram por ali criando para mais tarde abalarem, deixando um vazio que não mais fora preenchido, situação que se agravou quando a sua companheira de quarenta e cinco anos morreu após uma relativamente curta doença. Ao contrário da esposa, ele nunca foi muito afetuoso para com os netos, mas gostava deles a seu modo. Acolhera-os e ajudara a encaminhá-los na vida: Bernardina, Zilda, Manuel, Joaquim, Maria Adelaide e, por fim, Álvaro. Agora que tinha já bastantes bisnetos não gostava deles, principalmente dos mais velhos, alguns já casados. Gente diferente da imagem que, na memória, guardava dos filhos, quando estes tinham essa idade. Gente estranha que o irritava com a sua maneira desenvolta de se comportar e, sobretudo, no modo de vestir e de lhe falar. Os mais novos, crianças ainda, deixavam-no indiferente. Vinham ali, de vez em quando, visitar esse bisavô seco, caquético, que nunca os reconhecia, que ignorava sempre os seus nomes e os nomes dos pais. Um ancião pouco falador que raramente sorria e, por vezes, quase os atemorizava. Empurrados pelos pais, entravam a medo, contrafeitos, para cumprimentar aquele ancião que, solene no seu cadeirão junto da 10
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janela, parecia ostentar no semblante o valoroso exemplo do seu passado de batalhador. Mas mais que o velho de olhar severo, intimidava-os o olhar daquela prima que Bernardina se chamava e cujo rosto fechado e severo, os acolhia com a mesma secura de gestos. Durante muitos e muitos anos o velho cuidou desta neta com desvelos de pai. Agora era ela quem todos os dias o ajudava a vestir-se, lhe preparava por suas mãos as refeições, lhe governava a casa e geria os negócios.
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Bernardina nasceu naquela casa no dia em que a mãe morreu e ali se criou aconchegada no carinho dos avós e, anos depois, no de tia Ema, irmã de sua mãe. Ali cresceu longe do olhar do pai que nunca viu e cuja história só muito mais tarde haveria de conhecer. Nesse tempo havia muita gente ali, naquela casa: os avós, tia Rosa Angélica, a mais nova de todos, falecida aos quinze anos, tia Ema, que inesperadamente enviuvara e para ali viera também com os filhos, prima Zilda, primo Manuel, primo Joaquim, embora este último cedo abalasse. Igualmente ali se acolhera a prima Adelaide, filha de tio Pedro e de uma cantora da rádio com quem nunca chegou a casar porque esta, apesar de empenhada na carreira artística, cedo o trocou por 11
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outro mais novo, deixando-lhe a criança – dois anos inocentes, rosto infantil de porcelana emoldurado de caracóis loiros, olhos de ternura a encher a casa de luz e calor, o “ai-jesus” de todos. Depois foi a chegada de Álvaro, seu meio-irmão, nascido anos antes em Angola, fruto de uma paixão passageira. Era muito diferente da irmã e, no seu rosto bronzeado, eram bem visíveis as suas raízes africanas. Trazido pelo pai para, no Porto, completar os seus estudos, cedo se revelou um aluno aplicado, cujo olhar só cintilava de alegria quando recebia carta da mãe. Não admira, portanto que, concluído o curso, logo abalasse para Luanda, mais tarde para junto de seu pai, então no Brasil, e dali para o mundo inteiro, numa peregrinação que durou anos. A seguir partiu prima Zilda para um casamento a contento de todos, com um elegante oficial da Marinha, conhecimento travado num baile da Associação Comercial, a cuja direção seu avô presidia. Depois foi a vez de Manuel abalar para ir ocupar um lugar de engenheiro químico numa fábrica, longe dali. E, logo de seguida, Joaquim, para correr mundo. A última a sair dali foi prima Maria Adelaide. Mal saída da adolescência abandonou a casa no dia do seu casamento, um casamento faustoso em que ela foi a noiva “mais distinta e bela de todos os tempos”, como disse um cronista social da época. De fato, ao descer a nave da igreja apoiada no braço forte e amadurecido do noivo, o seu rosto de um oval puro, o vulto elegante envolto numa nuvem de cambraia e rendas, o seu caminhar 12
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leve e lento, todo esse conjunto de tão belo parecia algo de irreal.
Bernardina, que de sua avó herdara o nome, dela herdara também a incumbência de gerir os destinos da casa já que sua tia Ema pouco tempo mais lhe sobreviveria. Foi portanto ela a única que ali ficou e isso arrogava-lhe certos direitos e privilégios que, aliás, nunca tinham sido definitivamente expressos mas também nunca contestados: “Cuidava do avô... Era senhora das chaves... Tinha a responsabilidade de tudo... Muitos encargos e trabalhos...”, concluía. Ostentando o seu zelo e cuidados perante todos os parentes, dizia com ar muito protetor, o olhar derramado de ternura pelo velho avô “que, entregue aos seus carinhos e cuidados, estava muito bem aconchegado na casa da qual era o único senhor! Um velhinho feliz!” E, na frente de visitantes, rodeava o velho desses mimos caricatos que é costume ministrar-se aos doentes e às crianças e que eles sempre aceitam com indiferença, e nem os bisnetos escapavam aos seus propósitos de ostentação. Assim, embora os acolhesse com rispidez mal disfarçada, principalmente aos mais velhos, logo acentuava na frente deles o tom adocicado com que falava ao avô, desejosa de que a aplaudissem. Esquecia-se, porém, de que os jovens não se interessavam por esse tipo de atitudes e nem perdiam tempo a avaliar o grau dessa ternura exibida. E, perante aquela indiferença 13
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que lhe provocava uma aflição sombria e desagradável, não podia deixar de os olhar com espanto, ainda mal afeita a essa atitude e, por vezes, tinha de conter-se para não os escorraçar com palavras desabridas. Mas se não gostava das atitudes dos bisnetos mais velhos, muito menos suportava a presença dos mais novos. No geral eram garotos irreverentes que lhe sujavam a casa e comiam as compotas que ela reservava para o ano inteiro. Tinha de conter-se para não lhes puxar as orelhas. Via-os partir com alívio. Eles, por seu lado, quanto mais cresciam mais se apercebiam dessa antipatia e mais espaçavam as suas visitas. Despediam-se logo que as conveniências o permitiam, com uma vénia quase jubilosa.
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– Se a prima não se importa, vou-me embora porque preciso de passar pela Conservatória com a Beatriz... E já não tenho muito tempo... – desculpou-se ao mesmo tempo que tentava despedir-se. – Mas nem sequer te sentaste... – retorquiu Bernardina ainda mais amável. – Gostava que ficasses mais um bocadinho... – Obrigado, mas não é possível... O avô não se deve importar que eu vá já embora, pois não? – perguntou, levemente preocupado. – Não. Podes estar descansado! Daqui a pouco já nem se lembra. 14
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A sua voz era agora francamente amável e nada traía nela o desagrado por aquela presença. Um desagrado extensivo a todos os seus parentes, primos e filhos desses primos que lhe invadiam a casa sob o pretexto de visitarem o velho patriarca. – A tua mãe, como está? Eu gostava de lhe fazer uma visita, passar uma tarde com ela, mas o avô e tudo o mais, ocupa-me o tempo todo... – lamentou-se. – Podia pedir a uma das suas primas para a vir substituir... A prima Adelaide... Ou a prima Gabriela... – retorquiu o rapaz mal convencido. – Isso é bom de dizer... Mas o avô, coitadinho, só me quer a mim... E depois, sabes, tenho receio de que lhe aconteça alguma coisa... Nunca me perdoaria... Ele está como uma criancinha... Como uma cri-anci-nha!... – repetiu martelando as sílabas como se receasse que o rapaz não desse crédito às suas palavras. Uma vez mais aí estava a afirmar-se afetuosa, cheia de delicadeza e cuidados para com o avô, o carinho, ternura e total abnegação, com que o tratava,. – Prima... Se me dá licença... – insistiu. Perante a crescente pressa do rapaz ofereceu, certa de que ele não aceitaria: – Queres tomar alguma coisa? Vou dizer à Ana que arranje o lanche para o avô... e também lanchas. Ele vai gostar... Comprei ontem, para ele, umas bolachinhas de manteiga que são uma delícia! Se visses como ele gostou... Raramente oferecia uma chávena de chá aos 15
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amigos ou familiares que, pela tarde, ali vinham visitar o velho. Mas perante a pressa do rapaz em partir, insistia maternalmente simpática: – Fica mais um bocadinho... Fazes companhia ao avô enquanto vou lá acima ver o que a Rosário está a fazer... Isto de “empregadas domésticas”, como agora se diz... – sorriu e, numa repentina mudança, insistiu: – Ao menos um café... – Não, prima. Obrigado. A Beatriz está à minha espera… – repetiu, dirigindo-se para a saída: – Bom… Sendo assim, não insisto. Mas acredita que fazia muito gosto em que ficasses um bocadinho mais… – Ia continuar mas o telefone interrompeu-a: – Olha, tenho de atender! Já que não aceitas… Adeusinho! Apressada, abriu-lhe a porta que logo fechou nas costas do rapaz e correu para o telefone e ali ficou largo tempo, de agenda na mão, anotando, discutindo preços, apresentando as suas razões, tentando decidir de modo vantajoso os negócios do horto que desde sempre se habituara a ouvir comentar.
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A noite tinha já envolvido a casa e, da cozinha, vinha o tilintar de loiças e o som de palavras soltas da velha criada Ana, retransmitindo ordens de Bernardina... O velho retomava de tempos a tempos 16
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a leitura do jornal enquanto esperava o seu jantar, e Bernardina, sentada à escrivaninha, revia contas domésticas e do horto também. Na casa, portanto, a paz, a ordem, o sossego. Podia estar descansado, o velho. E estava. Por isso não tinha curiosidade em saber como iam os seus negócios, nem demonstrava qualquer tipo de preocupação a esse respeito. Confiava na neta. As lutas e perigos do negócio já não o obrigavam a refletir profundamente, como dantes, porque o lucro já pouco ou nada lhe interessava. A cada dia que passava parecia envelhecer mais rapidamente. Ao jantar, se havia visitas, demorava-se um pouco mais. E se mostrava disposição para conversar acabava por contar as mesmas histórias de sempre, aquilo que vinha repetindo há já alguns anos. Ultimamente, porém, já não soltava aquela risadinha final que lhe semicerrava as pálpebras. Nos seus olhos, outrora vivos e atentos, havia agora um ar impiedoso e cruel quando, diante de pessoas cuja idade era já avançada, dizia: “Que havemos de fazer? Quem andou, não tem para andar! Isto, meus amigos, quando o caruncho entra a roer...”. Os antigos parceiros de negócios, todos mais novos que ele, vinham visitá-lo de vez em quando mas, para os receber e com eles discutir qualquer assunto, lá estava a neta de cara murcha e olhos vivos a espreitar no fundo das órbitas. Ela nascera ali, tal como sua mãe e tios. Mas, ao contrário deles, que cedo tinham partido, ela ficara na 17
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casa e sempre ali se mantivera fiel àquelas paredes. Sempre ali tinha vivido, dia e noite. Nunca outra casa conhecera e isso dava-lhe certos direitos, tornava-a cada vez mais ciosa da sua posse. Era como se tivesse nascido para ser dona daquela casa do século XIX. E com esta ideia a martelar-lhe constantemente no cérebro, tornara-se extraordinariamente orgulhosa e ciosa da casa que considerava cada vez mais sua. Mais do que amor, era obsessão, ciúme, paixão por aquelas paredes de que só ela agora cuidava, cuidando do avô. Consequentemente, à medida que o velho ia declinando, ia ela alargando os seus poderes na administração dos bens, ao mesmo tempo que lhe crescia no peito a importância da sua própria pessoa. De tal modo que sentia uma violenta e enraizada animosidade contra esses parentes. Espiava-lhes os gestos, a expressão do rosto e carregava o sobrolho se eles na sala se quedavam a admirar com mais atenção um quadro ou um qualquer objeto de adorno. Apetecia-lhe escorraçá-los, pedir-lhes explicações daquela intromissão. Às vezes, incapaz de se dominar, tratava-os com uma ponta de sarcasmo, com aspereza, incapaz de suportar aquela presença, o que a tornava ainda mais azeda, a ponto de já quase não poder encarar a presença dos outros netos. Por isso, os primos, sempre que ali vinham, eram observados atentamente por Bernardina. Os seus olhinhos duros, verruminosos, faziam rapidamente o inventário das possibilidades de o visitante vir a ser um rival. A todos avaliava por igual: Zilda, Manuel, 18
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Joaquim, filhos de tia Ema; Gonçalo, Gabriela e Margarida, filhos de tio João; e ainda os filhos de tio Pedro, Adelaide, Álvaro e Rui. Embora este tivesse falecido prematuramente, dele ficara um filho e a viúva que constantemente fazia questão de se aproximar da família do marido.
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II Bernardina teve uma educação idêntica à das raparigas da sua idade e condição, tendo frequentado, desde os sete anos, um colégio feminino destinado a meninas da burguesia portuense. Como elas, gostaria de ter tido um pai e uma mãe que a acompanhassem, mas não lhes sentia verdadeiramente a falta, porque a sua precocidade lhe fizera compreender que os avós eram muito mais carinhosos, condescendentes que a maioria dos pais das amigas, ou dos próprios primos. Sabia que sua mãe morrera. “Estava no céu”, diziam-lhe. “E o Pai?” As respostas eram evasivas. Um dia, porém, ouviu a avó responder por entre dentes que “o pai estava nas profundas do inferno!”, e logo se calar como que arrependida de ter soltado semelhante frase. A partir daí, procurou saber. Indagou. Deram-lhe vagas informações:
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– O teu pai também já morreu, querida. Há muito tempo... – De desgosto? – perguntara, levada por um vago sentimento romântico. – Sim, sim! De desgosto... – apressaram-se a concordar. O pai... Só mais tarde compreendeu, ao deparar com o bilhete de identidade, que sempre haviam subtraído ao seu olhar, no qual pôde ler “filha de pai incógnito”. Frequentava já, nessa altura, o Curso Geral dos Liceus e logo sentiu que essa expressão, cujo significado conhecia, iria, como um labéu, persegui-la pela vida fora. Mais que um labéu, um estigma, um espinho a perturbar-lhe a vida que tinha pela frente. Mas, pior ainda, era nada saber do pai. Porque ela, como toda a gente, tinha de ter um pai... Foi através de Ana que conseguiu saber parte da verdade. Ele era trabalhador do horto, “pessoa de condição inferior...” Confidência de que Ana desde logo se arrependeu. Mas depois, cometida a inconfidência, conseguiu que Ana, pouco a pouco, lhe contasse toda a verdade, se alongasse na descrição. “Seu pai era um mocetão! Todo falinhas mansas... Sorriso de mel... E com um jeito de olhar como não havia outro por aí... Fácil lhe foi apanhar a menina Laura, coitadinha. A Laurinha era muito inocente. E apesar de já ter dezassete anos, não via maldade em nada... Às vezes até parecia simples de mais... Custou-lhe a aprender a ler... Gostava pouco de conversar... Gostava era de flores e, sempre que 22
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podia, ia para o horto e por lá andava de roda delas e... no meio do perigo! Mas quem poderia adivinhar? Ele, como era um grande sabidola, deitou contas à vida e futurou lá para ele que, casando com a filha do patrão, se tornaria num dos donos do horto. Só que as contas saíram-lhe furadas... Quando se soube, o seu avô queria dar cabo dele. E daria! Mas ele fugiu. E como finório e teve quem o aconselhasse, alistou-se na tropa e quando o procuraram, já ele ia a caminho da Índia... E foi melhor assim porque, naquele tempo, se alguém matasse ou ferisse um soldado era julgado em tribunal de guerra... Pelo menos era o que se dizia aqui em casa... Mas ele também teve mau fim, coitado, porque ficou lá pelas Índias, debaixo da terra. Parece que se meteu para lá numa ensarilhada e, ao querer escapar-se, fugiu para a floresta e foi mordido por uma cobra, daquelas muito venenosas. E como não lhe acudiram a tempo... Mas isso foi mais tarde. Entretanto a Laurinha passava o resto do tempo metida no quarto sem falar, a bem dizer, com ninguém... Depois... Foi aquela desgraça! Tudo culpa dele. Ai os homens, menina!” – exclamava sempre, ao terminar, quando se referia ao breve passado de sua mãe. “Ai os homens, os homens!... – suspirava Ana, suspirava a avó, suspirava também tia Ema, quando ainda casada. As mais novas, porém, procediam de modo diferente.
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Disfarçadamente, Bernardina observava algumas raparigas da sua rua que começavam a namorar, um namoro consentido pelos pais, e por isso ali ficavam à porta, de pé, por detrás das grades do postigo, conversando, e toda a gente da casa evitava entrar ou sair por aquela porta para não incomodar os dois jovens. Acontecera assim com tia Ema e outras da vizinhança, sobretudo as que moravam em frente e que ela observava, protegida pelas cortinas. Às vezes eles não resistiam à tentação de se tocarem, de se afagarem, apesar das grades, e tentavam mesmo beijar-se furtivamente, ao de leve, que as grades mais não permitiam. Geralmente, ao fim de dois ou três anos de namoro, casavam. Evidentemente que haviam exceções e acidentes, mas esses, salvo um caso ou outro, eram prontamente sanados com a intervenção das respetivas famílias.
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Bernardina atingira os dezassete anos mas não tinha ainda namorado. Era então uma rapariga magra, de olhos negros, esquivos, um pouco afundados nas órbitas, num rosto comprido onde sobressaía a boca de lábios finos, o que não estava nada em moda naquela época. Por isso se julgava feia, e como ninguém a convencia do contrário, fechava-se com o seu secreto desgosto, tornando-se de dia para 24
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dia mais bisonha. Nunca ia a festas. Apenas ia ao cinema, de longe em longe, e ficava-se a sonhar durante dias com o galã do filme, e então transpunha o sonho para um dos rapazes conhecidos, desejando aproximar-se de um deles, o escolhido, tocar-lhe o rosto com a ponta dos dedos, sentir-lhe a pele áspera e quente. Imaginava então ouvir os galanteios que não quisera escutar nos bailes a que não quisera ir, e fantasiava carícias que a perturbavam e lhe faziam o sangue correr cada vez com mais força nas veias jovens. Um dia, porém, tinha ela dezoito anos, assistiu acidentalmente ao parto duma sobrinha da criada Ana que, pouco tempo antes, para ali viera como empregada interna e que ninguém sabia grávida. Os gritos, as convulsões da parturiente, prolongando-se por largas horas num parto demorado, impressionaram-na. A aflição e o medo que leu no rosto das mulheres, o cheiro a sangue, o aspeto do recém-nascido, um pequeno ser engelhado e viscoso que logo entrara a berrar, a incomodar, encheram-na de pânico. Naquele momento pungente ela conheceu o destino de muitas das mulheres: as canseiras, as dores e, sobretudo, as atrocidades a que os seus corpos estavam sujeitos. Mulheres donas de um belo corpo como por certo teria sido o da criada Rosa, corpo dentro do qual uma outra vida se formara. E o que mais a impressionava era que Rosa, em vez de se sentir orgulhosa ou vaidosa com o filho ao colo, como tia Ema sempre se sentira, mostrava-se envergonhada, 25
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submissa, rastejante e, sobretudo, conformada com a indiferença dos homens perante tais situações. Até aí admitira que a finalidade da sua vida seria o casamento, fizera uma ideia um pouco vaga do que seria a sua futura vida sexual, mas agora as consequências dessa vida revelavam-se-lhe de uma forma brutal. E a ideia de um dia ficar grávida, de aguentar um ventre enorme, pesado, de ter de sofrer aquele suplício bárbaro de dar à luz, horrorizava-a. Portanto, se lhe acontecia, num impulso, desejar aproximar-se de um rapaz, logo um outro impulso vinha e ela fugia espavorida, surda a quaisquer galanteios. Como consequência, cedo começou a ser votada ao ostracismo pelos jovens com quem tinha começado a conviver.
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Os anos foram passando. Às vezes desejava dar à sua vida sem horizontes um pouco de amor, de alegria. Mas a crosta exterior não cedia e ela continuava a manter a sua natural reserva e desconfiança. Começou então a utilizar os recursos a que os solitários costumam deitar mão: aproximou-se da Igreja, ligando-se às mil e uma pequenas coisas da paróquia, no seguimento das pisadas da avó e, aos vinte e poucos anos, era já uma católica militante, 26
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muito ativa, o que agradava não só à avó mas também à tia Ema que a dava como exemplo à sua alegre filha Zilda e, mais tarde, à estouvada Maria Adelaide. Deste modo, quando a avó faleceu, estava já bastante ligada às coisas da religião e, a par disso, começava a mostrar-se intransigente com tudo o que fosse para além dos limites da sua noção de moral. No entanto era simpática, embora discreta no trato e contida nos gestos, ao contrário de sua prima Adelaide, agora com quinze anos esplendorosos, adejantes como asa de borboleta, na qual se revelava, de dia para dia, um temperamento ardente e apaixonado, o que começou a preocupar seriamente as mulheres da família. Ela era “o oposto da ingénua e saudosa Laura mas, mesmo assim, podia ter um destino muito semelhante”, agouravam. Bernardina tinha nessa altura vinte e cinco anos e possuía alguns bens que herdara da avó. Era, de certo modo, independente. Nada precisava de pedir a tia Ema, que era agora a senhora da casa em substituição da avó. Foi-o, no entanto, por pouco tempo pois teve a primeira crise cardíaca pouco depois de sua mãe ter morrido, o que a obrigou a repouso absoluto. Tia Ema tinha vindo anos antes para aquela casa, por sugestão de seus pais, após ter ficado viúva e com três filhos para educar. A ela confiou a mãe o governo da casa, já que Bernardina, além de ser ainda muito nova, “estava amolecida pelo excesso de mimos”, como dizia Ana, e não demonstrava grandes aptidões para dirigir uma casa como aquela, onde diariamente 27
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se sentavam à mesa cerca de uma dezena de pessoas, sobretudo crianças e adolescentes. No entanto, e dadas as circunstâncias, foi Bernardina quem, mais tarde, passou a orientar a casa e logo procurou tomar a seu cargo, também, a orientação da sua desorientada prima Adelaide. Tentou aconselhá-la, preveni-la dos perigos que corria, adverti-la de que deveria ser mais contida, a fim de poupar a fragilizada tia Ema, mas em vão. A sua vida era um autêntico redemoinho entre desafios de basket, festas de aniversário, bailes no clube onde o avô era agora sócio honorário. Os namoricos de ocasião, a camaradagem, os passeios, tudo o que fosse movimento, fascinava-a. Bernardina, cada vez mais preocupada, repreendia-a. Ameaçava. Chegou a responsabilizá-la pela doença de tia Ema que agora já não saía do leito, mas daí nada resultou para além de uma ligeira crise de lágrimas. Por essa altura tinha já toda a liberdade necessária para dispor dos destinos da casa que agora se apresentava mais silenciosa. Zilda estava já casada e parecia feliz. Não lhe dava cuidados, ao contrário de Maria Adelaide por quem se sentia responsável. Tomava-a uma desagradável sensação de impotência perante aquela rebeldia jovem, sobretudo quando nos raros convívios com uma ou outra amiga que ainda conservava do tempo da sua militância religiosa, aproveitava para analisar em grupo “o comportamento dos jovens que começavam a aproximar-se dos caminhos da perdição...” Não se atreviam, porém, 28
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a criticar ali a jovem Adelaide mas criticavam as suas companheiras e citavam fatos concretos de outras más companhias. De um modo velado preveniam-na contra “o perigo da perdição” que ameaçava Adelaide. “Pobrezinha... Desde pequenina sem mãe...” – lamentavam. – “Tem tudo e... não tem nada, afinal! A mãe nunca quis saber dela. O pai pouco se preocupa, tal como o irmão...” E perante a testa levemente enrugada de Bernardina logo se apressavam a acrescentar: “O que lhe vale é a prima... Se não fosse Bernardina dar-lhe os bons conselhos... Ah! mas que responsabilidade moral Bernardina tem agora sobre os ombros! Que res-pon-sa-bi-li-da-de!” – repetiam abanando a cabeça em sinal de admiração. Bernardina sentia-se desorientada. Nunca enfrentara problemas de tal género... Zilda também fora um pouco estouvada, mas nada que se comparasse com Maria Adelaide. Além disso, ela tinha tido mãe para assumir a responsabilidade do que acaso lhe pudesse acontecer, mas tia Ema, agora, em vez de ajudar, precisava de ser ajudada. Por isso lhe ocultavam os problemas da família. Maria Adelaide sempre fora uma estudante sofrível mas acabara por terminar o Curso Geral dos Liceus, como então se dizia, e logo declarou que não queria prosseguir estudos universitários. Ia já no terceiro namoro, namoros sem consequências a que punha termo de ânimo leve, se acaso se sentia enfadada, mas este último terminara por decisão dele, o que fizera brotar nela um certo despeito. Sentia-se 29
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ferida, humilhada, furiosa. E foi nessa altura que ele apareceu. “Ele” o que haveria de modificar profundamente a sua maneira de ser. Era uma bela figura de homem, apesar das rugas verticais que já se notavam nos cantos da boca. O pai dele, em tempos, havia mantido negócios com seu avô e, sempre que necessário, ainda se procuravam, mutuamente confiantes, se acaso necessitavam de um parecer avalizado nesse vasto mundo dos negócios. Portanto, quando pai e filho se deslocaram ao Porto na intenção de aí abrirem uma sucursal a cujos destinos o filho presidiria, procuraram o parecer do velho amigo que os recebeu com a afabilidade de sempre e os convidou para almoçarem em sua própria casa. Maria Adelaide, nesse dia, porque tia Ema tinha piorado, ficara em casa como que tentando redimir-se da quase indiferença que até ali mantivera em relação à doença da tia. Aliás, não lhe apetecia emparceirar com os amigos do costume, apesar de ser tempo de férias, receosa de que soubessem que o namorado a trocara por outra. Sentados à mesma mesa, não tardou que o Rodrigues Coutinho mais novo se deixasse impressionar por aquele tipo de beleza sadia, fresca, muito jovem. Maria Adelaide estava habituada a ser admirada. Gostava de ouvir galanteios. Sabia responder. Mas subitamente sentiu-se intimidada perante aquele homem de voz cálida e olhar sedutor. Contra sua vontade sentiu-se ruborizar quando ele lhe disse que 30
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ela lhe fazia lembrar “Água fresca bebida na concha da mão...” Não estava habituada àquele tipo de frases e, por isso, tentou sorrir, trocista, como era seu costume, mas não foi capaz. Perante a segurança dele sentia-se desajeitada, ignorante, insegura. Passearam pelo horto e ele soube chamar-lhe a atenção para certos pormenores das rosas que ela, por se ter habituado a viver no meio delas, mal tinha reparado. Ouvia-o falar com uma ternura a que ela não estava habituada, de mistura com um leve tom de condescendência, idêntico ao que se tem com algumas crianças. Uma altura houve em que, parados sob a grande tília, ele a olhou com tal insistência que ela julgou que a iria beijar. Mas não beijou. Quando já no fim da tarde ele se despediu, Maria Adelaide sentia-se profundamente perturbada, ansiosa e irritada também. Passaram-se alguns dias sem que ele desse acordo de si. Uma nova forma de despeito tinha-se acendido dentro de si, anulando a sensação de orgulho ferido que a atitude do antigo namorado lhe havia causado. Começou a desejar que ele aparecesse ou, pelo menos, telefonasse. E ele finalmente apareceu, mas aparentemente para falar com o velho Fontes, o que a deixou de novo irritada. Não tardou, porém, que voltasse. Voltou mais vezes para conversar com o avô, pedir-lhe o seu conselho e o seu apoio no mundo dos negócios. E se a encontrava e com ela trocava algumas palavras, eram apenas encontros casuais. Pelo menos era o que 31
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ele parecia querer demonstrar. No entanto, passou a aceitar com mal disfarçada satisfação os convites para jantar lá em casa e quase se esquecia do anfitrião, de tal modo o olhar lhe fugia para a rapariga que, volúvel, ora parecia aceitá-lo, ora quase o ignorava. Mas Bernardina, sempre atenta às atitudes de ambos, não perdia um único gesto ou expressão na intenção de avaliar do quilate moral do jovem empresário e, sobretudo das suas intenções. E, não contente com isso, procurou obter informações, de forma discreta, e as que conseguiu foram de molde a deixá-la optimista. Pertencia a uma família muito considerada em Viseu, os Cunha Rodrigues. Desde adolescente que revelava qualidades de trabalho e certa habilidade para os negócios e, sobretudo, para os dirigir, apesar de, por vezes, usar de alguma prepotência. E embora tivesse fama de femeeiro, o que desagradou a Bernardina, essa particularidade foi, de certo modo, subestimada. Apenas disse, de si para si, que “tinha de defender a pomba das garras do falcão”, embora considerasse que a prima era ladina demais para poder ser comparada com uma pomba o que, de certo modo, lhe sossegou a consciência. Foi, portanto, com alguma cautela e um certo tato, de que ninguém a julgaria capaz, dada a sua falta de experiência nesse campo, que os foi aproximando. E, sempre que possível, com mais tato ainda, fingia não se aperceber do interesse recíproco que neles ia aumentando, deixando cair uma ou outra frase inocente: 32
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– A tua colega Mimi parece interessada no Geraldo... pelo menos, no dia dos anos do Avozinho... Não reparaste como ela procurava chamar-lhe a atenção? E não admira... Ele tem todas as qualidades para agradar... Boa figura... Rico... Se ela o apanha vai fazer morrer de inveja todas as do grupo... E não é só ela. A Graciete... – A Graciete?!... – exclamou, subitamente indignada. – Sim, essa mesma. Não a viste na esplanada da Foz com esse tal Jorge, esse que ainda há pouco andava atrás de ti? – acrescentou, fingindo não reparar na fúria que se lhe acendera no olhar. – Ela não tirava os olhos dele. – A Graciete?!... – repetiu, ainda incrédula, – Tu estavas de costas para eles e por isso não te apercebeste. Mas por aquilo que observei, basta só ele querer... – Não pode ser! Não. Desta vez, não! – murmurou com raiva mal contida. Ela tinha-lhe roubado a atenção do seu último namorado, e era menina para fazer o mesmo com este. Ai, mas desta vez não ia levar a melhor, não! E não levou. Empurrada pelo seu orgulho ferido, certa de que iria contrariar os intentos da sua rival, rodeada pelas constantes cortesias de Geraldo, cercada pelos incentivos de todas as mulheres da família e dos seus círculos de amizade, empurrada pela prima Bernardina, deixou que ele lhe estendesse o laço do 33
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noivado e a agarrasse para a levar ao altar num casamento faustoso que deu brado ali no bairro. Ainda não tinha dezanove anos.
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Foi com alívio que Bernardina viu partir daquela casa, a sua fogosa prima Maria Adelaide. Pela primeira vez, durante os últimos anos, podia enfim respirar, descansar um pouco. Na casa grande, o silêncio e a paz. O avô, sempre ativo, constantemente solicitado pelos problemas das suas pequenas empresas, pouco parava em casa. Não incomodava, e tia Ema também não, uma vez que, doente, vivia retirada num dos extremos da casa, entregue aos cuidados de Ana e dos filhos que a visitavam frequentemente. Bernardina continuava a ser uma jovem mulher quase bonita, simpática, embora um pouco reservada, e o avô era ainda um homem lúcido, vigoroso como um velho carvalho, resistindo aparentemente bem aos desgostos que a vida lhe trazia. Parecia, perante as adversidades, lançar-se com mais força ainda, quase com raiva, no mundo dos negócios. Possuía já uma fortuna considerável de que quase não usufruía.
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Alguns anos foram passando desde que Maria Adelaide casou. Esta poucas vezes ali vinha pois entretanto surgira uma séria desavença entre o marido e o avô, quando aquele imaginou reduzida, a argúcia do velho e tentou ludibriá-lo num negócio que era dos dois, o que trouxe como consequência o corte de relações entre ambos e, para Maria Adelaide, a proibição de visitar esse velho severo e exigente que dificilmente perdoava deslealdades. Um dia, porém, Maria Adelaide viera às escondidas visitar tia Ema e não resistiu a confessar-lhe as suas mágoas, a denunciar as atitudes grosseiras e prepotentes de seu marido. Contou pormenores. Mostrou provas de maus tratos, fez com que tia Ema se emocionasse e chorasse com ela. Mas o seu frágil coração logo se ressentiu e Bernardina, olhando a prima com severidade, levou-a dali, repreendendo-a e responsabilizando-a pela saúde de tia Ema. Depois, mais branda, preveniu: – O dever de uma mulher é tentar conviver o melhor possível com o marido. O teu terá defeitos... Mas quem os não tem? – Mas ele... – balbuciou Maria Adelaide, de novo com as lágrimas nos olhos. – Ele não me dá carinho. É prepotente... Não me deixa sair de casa... – Foste estragada com mimo... – cortou Bernardina, sorrindo com leve condescendência, – Mas agora és uma mulher. E o dever de uma mulher é respeitar a vontade do marido... – repetiu. – Apoiá-lo... Perdoar-lhe as impaciências... 35
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– Tu não queres compreender... – tentou protestar. – Compreendo, sim. E compreendo que só tu podes resolver os teus problemas... Continuou por mais algum tempo a derramar sobre a chorosa cabeça de sua prima palavras cheias de sábia moralidade, mas esta não tardou a despedir-se e descer as escadas sem se voltar uma única vez. Tinha apenas vinte e três anos, mas o andar arrastado, os ombros curvados, pareciam os de uma mulher de meia idade gasta pelas agruras da vida. Bernardina não pôde evitar sentir-se um pouco culpada mas, com certo esforço, tentou rejeitar esse sentimento de culpa: “Ora!... Mimo a mais... foi o que foi! – disse de si para si, sacudindo a cabeça. – Ela, com os anos, aprende… Que não tem outro remédio!... A vida de casada é assim mesmo... Queria liberdade, julgava que a folia iria continuar... Enganou-se. Que vá tendo paciência!” A lembrança de que ela perdera o seu primeiro filho por culpa do marido assaltou-a de repente. Fora no regresso de uma festa. Ele estava embriagado... E já em casa tiveram uma pequena discussão e ele derrubara-a com uma bofetada que a fez desequilibrar-se. Talvez esse desequilíbrio se devesse, não à violência da bofetada mas ao fato de ela, apesar do seu estado de gravidez, ter ingerido, também ela, alguma bebida alcoólica a que não estaria habituada, e cujo efeito seria inevitavelmente acentuado. Tentou afastar essa lembrança de um fato que toda a gente aceitou como um acidente e não uma agressão sob os efeitos 36
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do álcool. Aliás, ele mostrara-se suficientemente arrependido para a comover. Chorara na clínica, frente a toda a gente. Pedira-lhe perdão a sós. Presenteara-a principescamente. Tornara-se mais terno, mais atencioso ainda. “Depois tudo voltou ao mesmo... – queixava-se Adelaide. – Quando ele se embriagava era grosseiro e, por vezes, maltratava-me.” Bernardina sacudiu os ombros como a querer afastar aquela ideia. Pouco a pouco, a sensação de culpa ia desaparecendo, dando lugar a outros pensamentos. Respirou fundo e dirigiu-se para o escritório. E quando, daí a pouco, o telefone tocou, ela foi atender com uma sensação de alívio. A sua forma desinibida de falar já nada tinha a ver com o tom compungido e doutrinário das palavras que dirigira à prima. “É lá com ela!”, disse intimamente, ao mesmo tempo que procurava encarar a situação com a indiferença possível. Por isso escutava atenciosamente a amiga que a convidava para uma festa de aniversário, convite que aceitou. Sentia-se livre para fazer o que mais lhe agradasse.
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