Bateira ILHAVA

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houvesse, desde logo nos elucida sobre a presença daquelas gentes no Tejo, e do seu inseparável instrumento de trabalho – a ílhava – num período longínquo da história, coincidente com o período de penúria lagunar em que se verificou, praticamente, o desaparecimento de toda a vida (piscícola e salífera) em que até ali aquela era pródiga. Mas certo é que existem muitas outras referências. Por exemplo, Baldaque da Silva31 no seu livro Estado Actual das Pescas em Portugal, escrito em 1891, salientava que “no século passado” – portanto séc. XVIII – a emigração de gentes da laguna de Aveiro para Lisboa, “era já consistente”. Do terramoto de 1755 são referidos trabalharem nessa data, em Lisboa, 200 pescadores da laguna, sendo certo de que haveria notícias de que “nenhum teria morrido no infausto acontecimento”. Uma “guerra” entre varinos e pescadores de Alverca e Alhandra, em 1819, teria merecido do rei D. João VI a ordenança para apreensão, aos prevaricadores, das suas redes, “quando aqueles entrassem na barra do Tejo”32. De 1833 pode consultar-se o registo de, no Tejo, se encontrarem a pescar no saveiro Rio Tejo, na referida data, os ílhavos Francisco Bichão e Joaquim Fernandes Matias33. Em 1855 escrevia-se34 que muitos ilhavenses, murtoseiros e vareiros, “tinham tido uma safra abundante” em Lisboa e, por isso, se anunciava que no referido ano “vêm para Ílhavo, Murtosa e Ovar, muitos contos de réis”. Por estas e outras razões (inseridas com mais prolixidade no Capítulo 7 do citado livro), poderemos fixar os meados do referido séc. XVIII como data provável para a chegada dos ílhavos ao Tejo. A partir daí verificar-se-ia um notável crescimento das colónias então constituídas, que se reforçaram durante o séc. XIX, por lá se mantendo (em número assinalável) até à primeira/segunda década do séc. XX. Altura em que o desafio da pesca nos mares do Norte, de novo, os veio inquietar, lançando-lhes irrecusável repto, altieiro. Para uma significativa parte dos migrantes a ida para Lisboa era sazonal. Deslocavamse na devida altura, no Outono, depois de terminada a safra na beira-mar, chamados pelos contratantes, os mercantis. Eram estes que adiantavam a soldada e lhes facilitavam telhado e sustento. Apresentavam-se em data combinada em Lisboa, para isso seguindo a pé pela beira-mar, que era o caminho mais curto, mas e também, o mais seguro. A temporada terminava depois do Entrudo. Dependendo do resultado da pesca, o que sobrava depois de reembolsado o abonador das despesas, era dividido em quinhões. O arrais era o responsável, e, por isso, quando a sorte era arredia, por lá ficavam de penhor a embarcação e as artes. Muitos pescadores optavam, então, por restar por aquelas bandas – principalmente se a safra não tivesse sido farta – embarcando noutras companhas. Uns aproveitavam a safra do sável; outros empregavam-se no tráfego marítimo local. E assim foram surgindo as colónias de ílhavos, gente endurenta, de trabalho e sacrifício, afoutada, em que a rudeza dos gestos e palavras contrastava com a agilidade felina dos corpos fluidos.

31

Silva, 1891.

32

Amorim, 1970: 94.

33

Arquivo Geral da Marinha, exemplar nº 718, citado por Aires Amorim.

34

Amorim, 1970.


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