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3.4 Maracatu Cearense: Saber, Celebração, Forma de Expressão ou Lugar
3.4 Maracatu Cearense:
Saber, Celebração, Forma de Expressão ou Lugar?
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A necessidade de pensar os bens culturais de natureza imaterial a partir de categorias é um requisito da Lei do Patrimônio de Fortaleza, bem como do registro em âmbito federal. Para tanto, como foi tratado em momento oportuno, as categorias criadas a partir do Livro de Registros são: saberes, celebrações, formas de expressão e lugares. Não nos cabe neste momento definir qual ou quais categoria(s) deverá(ão) ser empregada(s) para o Maracatu Cearense. Acreditamos que isso deverá ser feito em parceria e sob a orientação dos próprios detentores do bem cultural em questão. Até porque, como ficou evidente nos capítulos anteriores, os sentidos do Maracatu Cearense são heterogêneos, variando entre os grupos e brincantes, o que dificultará mais ainda a escolha de uma categoria que dê conta dessa pluralidade de sentidos. Nossa intenção, no momento, é tecer breve discussão sobre o assunto, o que poderá contribuir para a escolha da(s) categoria(s) em momento mais adequado. No Livro de Registro das “Celebrações” serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social. Desta feita, vimos que, entre alguns (e não são poucos) grupos e brincantes, o Maracatu Cearense possui um caráter ritualístico, ligado à vivência da religiosidade, principalmente referente à Umbanda e ao Candomblé; para outros grupos e brincantes, os sentidos de festa popular estão ligados ao entretenimento, em que os sentidos carnavalescos são mais acentuados. Desta forma, em parte, o Maracatu Cearense corresponde às perspectivas dessa categoria e poderia ser reconhecido como uma celebração importante para os grupos e brincantes do Maracatu. No Livro de Registro das “Formas de Expressão”, serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas. Em relação a essa categoria, a descrição apresentada nos capítulos anteriores evidenciou, de forma elucidativa, a centralidade da música, principalmente do ritmo mais cadenciado, defendido por parte dos grupos, brincantes e público externo, como elemento forte da identidade do Maracatu Cearense. Esse ritmo, que o distingue de outros Maracatus fora do Ceará (mas também dentro, em alguns casos). Mas também a incorporação de novos ritmos mais acelerados deve ser reconhecida como uma forma legítima dos grupos que os utilizam para se comunicarem com o seu próprio tempo – atualização intrínseca à dinâmica cultural e aos bens culturais vivos. Os elementos plásticos, cênicos e lúdicos conformam características evidentes do e no Maracatu Cearense. Danças, gestos, figurinos, composição e disposição das alas garantem uma teatralidade performática capaz de transmitir sentidos e valores por meio da manifestação cultural. Dessa forma,
não há como negar que o Maracatu Cearense é uma forma de expressão, um meio de se exprimir e se comunicar das mais importantes no mundo cultural fortalezense. No Livro de Registro dos “Lugares” serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. Para essa categoria, poderíamos pensar a relação do Maracatu Cearense com a cidade de Fortaleza; com os espaços que, a partir da relação e dos investimentos simbólicos do homem, tornam-se lugares dotados de sentidos e valores. Foi abordada, no primeiro capítulo, a simbologia da igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos para o Maracatu Cearense. Embora o edifício tenha perdido a força que exerceu em outros contextos, ele ainda é um lugar onde é possível conectar passado e presente na trajetória do Maracatu Cearense. Também a Praça do Ferreira e a Avenida Domingos Olímpio têm sido lugares importantes na comemoração do dia 25 de março (dia da abolição da escravidão negra no Ceará e atualmente dia do Maracatu) e nos desfiles do Carnaval, respectivamente. Ainda que estejamos, aqui, apontando que o Maracatu Cearense é portador de lugares dotados de sentidos simbólicos importantes na trajetória da manifestação cultural, é preciso uma conversa com os grupos para pôr à prova a ressonância desses lugares. Nossa intenção também é problematizar que nenhuma prática ou manifestação cultural pode existir sem uma relação com espaços e lugares. Por fim, tem-se a categoria “Saberes”, onde serão inscritos os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades. A prática de registro e uso desta categoria tem sido mais frequente a ofícios relacionados ao mundo do trabalho. No entanto, o Maracatu Cearense também comporta a existência de pessoas que desempenham papéis centrais para sua realização, cuja guarda de certos saberes ou modos de fazer são imprescindíveis. Os tiradores de loas, as pessoas que desenham e confeccionam os figurinos, os instrumentistas e mesmo personagens centrais como o porta-estandarte, o balaieiro, a calunga e a rainha são exemplos possíveis de pessoas que guardam conhecimentos específicos e modos de fazer, sem os quais o Maracatu Cearense perderia o brilho que tem. Nenhuma prática ou manifestação cultural poderia existir sem que seus executantes fossem detentores de saberes indispensáveis. Com o Maracatu Cearense não é diferente. Importa observar que nosso esforço, neste momento, é o de evidenciar que uma manifestação cultural como o Maracatu Cearense é muito mais complexa, rica, e extrapola qualquer categoria que busque enquadrá-lo. Ainda que nossa exposição tenha sido feita em linhas gerais, uma pesquisa com maiores investimentos é capaz de demonstrar, de forma
mais consistente e convincente, que o Maracatu Cearense é, ao mesmo tempo, celebração, forma de expressão, saber e lugar (de certa forma, a exposição dos capítulos anteriores permite este tipo de leitura). Neste sentido, a cultura deve ser pensada e tratada dentro da sua totalidade. Pois, como nos alerta Reginaldo Gonçalves (2007c, p. 227 – grifo do autor): “O sentido fundamental dos patrimônios consiste talvez em sua natureza total”. Não poderíamos deixar de observar, portanto, que a dicotomia patrimônios material e imaterial acaba mutilando e tratando de forma fragmentada esses bens culturais e as categorias criadas para os livros de registro do patrimônio imaterial aprofundam essas questões, fazendo desses bens culturais uma espécie de cultura em migalhas. Sobre a problematização das categorias que estamos tecendo, é bastante elucidativa a fala de Lucy, atual presidente do Maracatu Az de Ouro, em entrevista concedida para este projeto: A fala de Lucy é importante porque, se fôssemos comparar o Maracatu Cearense com outros bens culturais “semelhantes” registrados em políticas do patrimônio imaterial, as categorias que mais se aproximariam dele seriam celebrações e formas de expressão; difícil saber. No entanto, na percepção da nossa interlocutora, que é uma pessoa de dentro, uma detentora da manifestação, é justamente a categoria saber que mais faz sentido para se referir ao “seu” Maracatu. Interessante também é que ela já aponta que essa é uma questão que pode variar entre os grupos. E, o ponto alto para nossa argumentação é justamente sua reflexão de que o Maracatu Cearense é, em relação às categorias, de tudo um pouco. Não podemos deixar de sublinhar também que as categorias criadas para se pensarem os patrimônios culturais imateriais possibilitam o esforço de se refletir sobre quais sentidos são mais fortes nesses bens. Ou seja, qual categoria melhor se aproxima dos sentidos principais que os grupos detentores atribuem às suas referências culturais, no caso aqui, o Maracatu Cearense. Ensaiamos, neste momento, alguns exemplos para que os grupos e brincantes do Maracatu possam, após a leitura deste
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trabalho e de uma melhor compreensão da política do registro, contribuir para a definição de uma ou mais de uma categoria para o Maracatu Cearense. Por fim, considerando, assim como Reginaldo Gonçalves (2007b, p. 114), que o patrimônio,
“de certo modo, constrói, forma as pessoas” e também serve para “agir”,
esperamos que, entre suas múltiplas mediações, ele seja uma forma de diálogo entre Estado e sociedade civil: no caso, entre a Prefeitura de Fortaleza e os Maracatus Cearenses. Espera-se, ainda, que tal aproximação seja importante para qualificar a construção de políticas públicas para esses grupos, e que eles possam orientar essas políticas, não o contrário. Já que se propõe pensar o Maracatu Cearense em termos patrimoniais, é o que se espera.