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2.4 Maracatu é tradição
Na sua obra Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo (s/d) tece a seguinte definição de “folclore” – sentido que, por sua vez, nos ajudará a discutir a noção de tradição:
tornada normativa pela tradição. torna tradicionais os dados recentes, embora renovada na dinâmica das águas vivas. O primeiro ponto a se observar na definição elaborada por Câmara Cascudo é a relação entre “folclore”, “cultura do popular” e “tradição”. Essa relação claramente estabelecida nos possibilita nos valermos da sua argumentação para pensar e discutir a noção de tradição – noção importante na política do Patrimônio Cultural imaterial. A segunda observação a ser feita é a constatação do aspecto normativo da tradição. Ou seja, por meio dos processos de vivência e experiência da cultura (do popular) vão se instaurando certas normas, regras, padrões; certos preceitos, modelos e/ou hábitos. De certa forma, esse sentido de tradição denota a ideia de enrijecimento, mas também, é importante sublinhar, cria um terreno familiar, confortável, bem como sentimentos de identidade. Entretanto, na sequência, Câmara Cascudo faz outra observação muito importante, observação que coaduna com as concepções mais atuais sobre a noção de tradição e adotada pela política do patrimônio imaterial: trata-se da percepção que entende a cultura (do popular) como aberta ao novo, aos “dados recentes” também tornados tradicionais. Tanto é que, no final da citação, o autor afirma que nessa área há tanto a conservação, a dependência e a manutenção de padrões, quanto a remodelação e o abandono de elementos que se esvaziaram de sentidos. Em suma, uma prática ou manifestação cultural considerada “tradicional” não é, de forma alguma, unicamente composta por uma estrutura rígida e fechada ao diálogo com os tempos presente e futuro; algo herdado de um passado remoto e mantido tal como antes ao longo da sua trajetória. Isso não quer dizer que elementos e padrões herdados e mantidos não existam, entretanto,
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O esforço em justificar o emprego do termo “tradição”, com sentido idêntico ao que acabamos de apresentar também está presente na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, da Unesco (2003). busca-se sublinhar que o folclore, a cultura do popular ou as manifestações culturais ditas tradicionais são realizadas, mantidas e perpetuadas por pessoas situadas num tempo e num espaço que também sofrem transformações; pessoas do presente que não são as mesmas do passado; pessoas no plural, que possuem gostos e visões próprias, nem sempre conflitantes, mas diferentes. Logo, as práticas e manifestações culturais inevitavelmente passam por atualizações e mudanças sem, contudo, perderem o sentido de tradicional, pois a principal força de uma “cultura” tradicional não está no seu enrijecimento, mas no seu vínculo com o passado: é aquilo que a política do patrimônio imaterial chama de “continuidade histórica”. A noção de “continuidade histórica” dos bens culturais imateriais está relacionada ao entendimento de tradição ora apresentado. Segundo os formuladores da política federal do patrimônio imaterial, a noção de “continuidade histórica” foi escolhida em detrimento da “autenticidade” (MinC/IPHAN, 2012, p. 10). Pois esta ideia, utilizada durante muito tempo no campo do patrimônio material com os sentidos de pureza, verdade e originalidade, não é a mais adequada quando se trata do patrimônio imaterial, composto, segundo o entendimento da área, de bens culturais “vivos”. Desta feita, ao empregar a noção de continuidade histórica, busca-se identificar a presença de uma determinada manifestação cultural no tempo, sobretudo sua continuidade e dinâmica de transformação, suas características “essenciais” e “a tradição à qual se vinculam” (MinC/Iphan, 2012, p. 10). A intenção de não confundir tradição11 com conservadorismo e tradicionalismo tem levado os documentos que dão forma às políticas do patrimônio imaterial a sempre justificarem o emprego do termo tradição. Na Resolução 001/2006, normativa que regulamentou o Registro dos bens culturais de natureza imaterial em âmbito federal, a questão foi expressa da seguinte forma: Não há dúvidas de que o sentido de tradição traçado pela política federal do patrimônio imaterial, mas também pela política municipal de Fortaleza, pois, a política federal é a principal referência para as ações na área, está em sintonia com a definição elaborada por Câmara Cascudo. Dizer através do tempo, ou seja, as práticas e manifestações culturais tidas como tradicionais possuem um forte vínculo com o tempo passado (e também presente). A potencialidade de conectar passado, presente e futuro deve ser o elemento principal a ser identificado, reconhecido e valorizado nas culturas
ditas “tradicionais”. No Maracatu Cearense, como se viu, os elementos que, por um lado, melhor denotam a existência de padrões “antigos” e, por outro, revelam as tensões entre os grupos, é a introdução de “dados recentes” na pintura facial com tinta preta (ou negrume) e no ritmo musical. O negrume é uma pintura facial feita geralmente com uma tinta artesanal de cor preta, composta por vaselina, óleos minerais, talco e fuligem de lamparina. Há grupos que compram uma tinta própria de cor também escura. Quase todos os personagens pintam o rosto com essa tinta preta, como forma de representação e homenagem aos negros. Apenas os índios, os orixás e os convidados, que são personagens criados de acordo com o tema do carnaval de determinado grupo, não utilizam o negrume. Essa tintura é utilizada para pintar, apenas, o rosto ou de forma que cubra toda pele que escape ao figurino, nestes casos procurase esconder qualquer visualização da parte da pele do integrante. Além dessas formas, vale destacar que há em um dos maracatus cearenses a inovação quanto o uso da tinta preta na face, de forma que utilizam outras cores, como azul e branco, os brincantes não pintam necessariamente os rostos apenas com o negrume, mas utilizam também outras cores de tintas na face, com o sentido de inovar, gerando alguns pontos de tensão com os demais grupos, sobretudo com aqueles tidos como os mais tradicionais da cidade, tais como o Rei de Paus e o Az de Ouro. O fato da utilização do negrume não se resume à dimensão da representação, mas também de visibilidade da negritude autoafirmada por muitos integrantes do Maracatu. Porém, outra versão indicada, sobre o uso do negrume, é que “essa história de negro é de um tempo desses pra cá. Havia as festas de escravos, mas ninguém queria se pintar para sair de escravo. [...] Não tinha outra maneira de se pintar, o cara não queria ser visto como mulher” (PRAXEDES, presidente do Nação Baobab, 23/04/2015). Mesmo que não seja utilizado de um mesmo modo, importa considerar que o negrume é umas das principais especificidades do Maracatu Cearense, tido como um dos elementos mais tradicionais da manifestação. Sua utilização decorre do uso tradicional e simbólico de identificação à expressão cultural. Assim, seu uso é recorrentemente reivindicado pelos integrantes dos Maracatus, como símbolo importante para caracterização e identificação da tradição do Maracatu. Afinal, “quando eu digo tradicional é um Maracatu com o rosto pintado de preto, com aquelas roupas grandes, bordadas. Não é um Maracatu que sai sem pintar o rosto, ou seja, é um Maracatu com todos aqueles caracteres de um Maracatu Cearense” (Rodrigo, Rei do Congo, 29/04/2015). Para muitos grupos e brincantes, o negrume é uma forma de sublinhar e homenagear a herança cultural afro-brasileira. Dentro desta mesma linha interpretativa, outros,
sobretudo discursos ideológicos externos aos grupos, afirmam que o negrume é a evidência da “inexistência” de negros no Ceará, daí a necessidade de um “falso negrume” teatralizado. Outros, ainda, argumentam que a pintura era uma forma de criar certa “invisibilidade” (da pessoa, não do personagem), devido a preconceitos mais acentuados em outras épocas, pintura que acabou sendo normatizada pela tradição (pelo tempo), não tendo relação direta com questões afro-brasileiras. Considerando as duas primeiras justificativas ou interpretações, a relação entre o Maracatu Cearense e as questões afro-brasileiras é evidente. Mesmo naquela que diz ser a pintura uma comprovação da ausência do negro e suas manifestações culturais no Estado do Ceará, ela não invalida a relação, pois esta é a intenção de se cobrir com o negrume. Entretanto, por variados motivos, atualmente o uso do negrume não é ponto pacífico entre grupos e brincantes do Maracatu Cearense. Os motivos são particulares de cada um e, nem sempre, por ser ponto polêmico, foi possível acessá-los nesta pesquisa. Alguns dos Maracatus de Fortaleza têm se recusado a fazer uso do negrume; outros, em alguns momentos, têm pintado apenas um lado do rosto e, por vezes, utilizado outras cores e formas para tanto. Sobre tudo isto, pode-se entender que, se o uso do negrume é uma forma de sublinhar e homenagear a herança afrobrasileira e, de certa forma, satisfazer a ideia limitada que entendia que ser negro era ter a pele “preta”, atualmente não é mais necessário a pintura, pois uma nova configuração social e cultural no Brasil passou a entender que ser negro é muito mais que ter a pele “preta”. Ou, ainda, se a pintura do corpo tinha como função criar uma invisibilidade e evitar os preconceitos de épocas anteriores, não estando diretamente ligada a questões afro-brasileiras, não haveria problemas em fazer uso de outras cores; ou, à medida que o preconceito foi “superado” ou não é mais sustentado por uma política de Estado, também é possível fazer da pintura que tinha uma função prática e se tornou tradição como algo teatral, cobrindo apenas, por exemplo, um lado do rosto. Contudo, até que determinados elementos da tradição contestados sejam aceitos, infringi-los tem lá os seus pesares. Tão importante é a pintura facial ou corporal com o negrume para a “identidade” do Maracatu Cearense que, atualmente, no concurso que ocorre no Carnaval de Fortaleza entre os Maracatus, este é critério de pontuação e os grupos que não se pintam são penalizados com a perda de pontos. Sem dúvida, surgirá a indagação: mas e a dinamicidade da “tradição”, sua abertura para os “dados recentes”? Acreditamos que essa é uma questão pertinente para reflexão entre os grupos e brincantes do Maracatu Cearense. Do ponto de vista do
atual estágio do entendimento de cultura e tradição, a introdução dos “dados recentes” é compreensível. Se a brincadeira deixa ou não de ser Maracatu Cearense por não usar a pintura com o negrume, essa é uma decisão que concerne aos detentores da manifestação cultural. As questões em torno do uso ou não do negrume trazem à tona as tensões, hierarquias e conflitos que existem no Maracatu Cearense; evidenciam as relações de poder que existem na manifestação cultural. Mas isso não é algo familiar apenas ao Maracatu Cearense. É familiar ao campo das culturas, das representações, identidades e tradições culturais. São questões comuns, portanto, ao campo do Patrimônio Cultural e Canclini (1994, p. 97) tem feito observações importantes sobre elas, denominando-as de “hierarquia dos capitais culturais”. Entretanto, nem por isso o Maracatu Cearense deixa de ser uma manifestação cultural importante para a memória, a ação e a identidade das pessoas, grupos e comunidades que levam essa “brincadeira” muito a sério na atualidade. Da mesma forma, ele não deixa de ser uma das manifestações mais marcantes da vida cultural fortalezense. A música, forma de expressão de grande importância no Maracatu Cearense, é outro tema no qual as questões discutidas anteriormente são recorrentes. Para fazer uma comparação, o ritmo considerado característico e “tradicional” do Maracatu Cearense é lento, cadenciado. Isso lhe confere uma singularidade sonora. No capítulo anterior deste relatório, essa característica do ritmo foi apresentada como tendo uma relação ao lamento dos escravos, e a marcação estridente do ferro (instrumento fundamental da “bateria”), à batida das correntes que os aprisionavam. Essa característica da musicalidade do Maracatu Cearense também é importante na legitimação de um (novo) grupo, sobretudo por parte dos Maracatus mais antigos e guardiões dos valores “tradicionais”. Contudo, também não é ponto pacífico no Maracatu Cearense, o que tem suscitado a introdução de ritmos mais acelerados entre os grupos. Não iremos aqui aprofundar a discussão sobre a música, mas gostaríamos de fazer apenas uma observação sobre o ritmo musical no Maracatu Cearense.
Na dissertação de mestrado de Silva (2004), intitulada “Vamos Maracatucá!!!: um estudo sobre os Maracatus cearenses”, a pesquisadora faz uma observação importante, de certa forma polêmica, sobre o ritmo musical e que envolve, diretamente, o tema da tradição. Utilizando como fonte as partituras musicais das loas dos Maracatus cearenses, a autora chegou ao seguinte resultado:
Chama-se a aferição da autora de “polêmica”, porque ela põe em xeque um dos discursos mais fortes quando se evoca a tradição e a identidade do Maracatu Cearense. Resgatando as observações feitas por Câmara Cascudo e citadas há um bom tempo, bem como considerando os resultados da pesquisa de Silva (2004), é possível argumentar que o ritmo mais “moderado” foi um “dado recente” introduzido em um determinado momento da trajetória do Maracatu Cearense e tornado “tradicional” com o tempo. No entanto, o ritmo aceito hoje como “tradicional” e marca forte da identidade da manifestação cultural não é aquele que poderíamos chamar de “original”. Dessa forma, tomando o ritmo do Maracatu Cearense nos dias de hoje, estaríamos diante de um caso exemplar do que Hobsbawm (1997, p. 9) conceituou como “tradição inventada”. Segundo o historiador inglês: Importa observar no trecho citado da obra que mesmo a “tradição inventada” necessita ser regulada ou legitimada por regras aceitas, ainda que de forma subentendida; que essas regras introduzem valores e normas de comportamento implementadas por meio da repetição e, dessa forma, há uma necessária relação com o tempo, mormente o tempo passado. Aqui é possível extrair um dado que consideramos dos mais elementares para o entendimento do que é a tradição, ou seja: a repetição. É a repetição ou, em outros termos, a “continuidade histórica” que torna uma prática ou manifestação cultural tradicional ou não. No que diz respeito à música no Maracatu Cearense, a introdução do ritmo mais “moderado” na década de 1950, certamente, atendeu as expectativas ou demandas da manifestação cultural, senão teria sido rejeitada. Uma interpretação que poderíamos tecer é que o ritmo mais “moderado” trouxe uma musicalidade que diferenciou o Maracatu Cearense dos Maracatus pernambucanos, conferindo-lhe um sentido (sentimento) de identidade vital. De qualquer forma, sua aceitação e repetição ao longo dos anos tornou esse “dado novo” tradicional. A questão da repetição enquanto elemento fundamental para a “invenção” ou formação das tradições também pode ser apreendida em uma das interpretações conferidas ao uso do negrume. Segundo vimos, alguns grupos afirmam que o negrume, no início, teve uma função prática: criar uma
invisibilidade e blindar os brincantes dos preconceitos da época e possíveis retaliações. Contudo, ao longo do tempo, pela repetição do uso, o negrume tornou-se uma marca do Maracatu Cearense praticamente impossível de “descartar”, ou, quando isso ocorre, paga-se o “preço”: tornou-se, portanto, uma “tradição”12. Inventada ou não, o que importa para as políticas do patrimônio imaterial é o reconhecimento dos sentidos e valores que os detentores dos bens culturais de natureza imaterial lhes atribuem. Assim, neste caso, importa reconhecer que tanto o negrume quanto o ritmo mais “moderado” são valorizados dentro do Maracatu Cearense, como elementos singulares da sua identidade cultural, assim como são tradicionais, pois dizem muito sobre a manifestação através do tempo. Igualmente, a introdução de dados recentes como, por exemplo, desfilar sem fazer uso do negrume ou a (re)introdução de ritmos mais acelerados, são meios legítimos de diálogos com o tempo presente; uma forma de atrair o público mais jovem que, talvez, sem essa reorientação, não se interessaria pela manifestação cultural; uma releitura da manifestação cultural na qual o sentido de festa do fazer popular é mais valorizado por esses grupos que o sentido de manifestação cultural afrobrasileira. Somados, essa complementariedade de elementos “antigos” e “modernos”, só atestam as múltiplas ressonâncias do Maracatu Cearense: sua capacidade de pôr para brincar pessoas de distintas visões de mundo; sua força enquanto manifestação cultural dotada de muitos sentidos e valores; sua continuidade histórica no seio da sociedade fortalezense; seu papel enquanto referência à memória, à identidade e à ação de parte importante dos grupos formadores da sociedade fortalezense. Ou seja, por tudo isso, não restam dúvidas sobre a potencialidade do Maracatu Cearense em ser reconhecido e valorização como Patrimônio Cultural de Fortaleza. Como demonstrado até aqui, os elementos culturais característicos do Maracatu Cearense não apresentam única forma, pois se relacionam aos sentidos que as pessoas dão à prática cultural. No decorrer da pesquisa foi possível perceber algumas concepções do sentido do Maracatu na vida dessas pessoas e que, embora distintas, não significam que são excludentes ou exclusivas.
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Vários foram os casos, ao longo da pesquisa realizada para este trabalho, em que a justificativa para o uso do negrume foi: “É a tradição!”