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Introdução Capítulo I
Introdução
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"O Maracatu é a minha vida", afirmou a presidente do Maracatu Axé de Oxóssi em entrevista feita, em 2015, para a construção do dossiê para o registro do Maracatu. Certamente, o relato da presidente nos conduz a pensar as mais amplas e significativas facetas dos
Maracatus cearenses, isto é, sua dimensão histórica, tradicional, estética e de entretenimento, bem como seu espaço de memória e instrumento de visibilidade social, além de construção identitária para diversas pessoas que anualmente se envolvem na preparação do momento mais importante desta manifestação cultural no Estado do Ceará: o desfile de Carnaval em caráter competitivo. No ano de 2015, período de realização dessa pesquisa, havia vinte grupos no Estado1, mas a maior concentração estava na capital, totalizando quinze Maracatus em atividade2. Assim, com base na diversidade de Maracatus em Fortaleza, esta pesquisa teve como proposta fundamentar a solicitação de reconhecimento do Maracatu Cearense como Patrimônio Cultural de Fortaleza, mostrando as potencialidades dessa manifestação cultural na Cidade. O pedido foi realizado pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da Secretaria da Cultura de Fortaleza (Secultfor), a partir da solicitação do Sr. Rodrigo Damasceno Rodrigues. A pesquisa realizada foi fomentada a partir do projeto de Regulamentação do Patrimônio desenvolvido pela Secultfor, em parceria com o Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da Universidade Estadual do Ceará (IEPRO). O objetivo da pesquisa foi contemplar três perspectivas: a da comunidade detentora do bem cultural; a da Política Municipal de Patrimônio Cultural Imaterial; e a da sociedade, de forma geral que, por meio do reconhecimento dessa manifestação, teve a possibilidade de se aproximar melhor do conhecimento dos processos históricos e identitários da cidade, a partir de suas manifestações culturais. "Certamente, o processo do registro de um bem simbólico não é algo simples, pois “pressupõe um intrincado conjunto de ações e negociações, interesses e conflitos, por parte de todos os agentes e instituições envolvidas” (FALCÃO, 2002, p. 12). Ademais, uma manifestação cultural, por maior visibilidade social que possua, não é “patrimônio” por ela mesma (LONDRES, 2000, p. 11-12). Cecília Londres afirma que “os bens culturais não valem por si mesmos. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitos particulares e em função de determinados critérios e
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No período da pesquisa, havia, no interior do Estado, os grupos: Az de Espada, em Itapipoca; Nação Tremembé, em Sobral; Maracatu Nação Uinu Erê, no Crato; Estrela de Ouro, em Canindé e Nação Kariré, situado no Município de Cariré. Esses grupos concentravam suas atividades em seus municípios de origem e não possuíam nenhuma relação com a Associação Cultural das Entidades Carnavalescas do Estado do Ceará (ACECCE), representativa dos Maracatus em Fortaleza. Já na capital do Estado, no período da pesquisa, estavam em atividade os Maracatus Az de Ouro, Axé de Oxóssi, Filhos de Yemanjá, Vozes D’África, Nação Baobab, Nação Fortaleza, Nação Iracema, Nação Pici, Nação Palmares, Rei Zumbi, Rei de Paus, Rei do Congo, Kizomba (hoje denominado Obalomi), Solar e Leão de Ouro.
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Destaca-se aqui que o Maracatu Leão de Ouro integra essa totalidade. Contudo, é ponto de tensão entre alguns brincantes, pelo fato de o grupo ainda não ter estreado na apresentação de Carnaval que ocorre na Avenida Domingos Olímpio, no Centro da cidade de Fortaleza, desde os anos 1990.
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A equipe entrou em contato com todos os grupos diversas vezes por meio de telefonemas e e-mails. Não foram coletados dados com o Maracatu Solar, em razão de problemas pessoais que o presidente do grupo enfrentava à época da pesquisa de campo. Já o presidente do Maracatu Kizomba desmarcou a entrevista repetidas vezes. Porém, houve recusa da assinatura da carta de anuência, o que inviabilizou a coleta de dados do referido Maracatu na construção do inventário e registro do Maracatu.
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Isso foi possível, especialmente, em razão da experiência prévia da coordenadora de pesquisa do registro com a perspectiva etnográfica, tendo os Maracatus como campo de pesquisa desde 2006. Importante salientar que não tomamos aqui a etnografia como o manejo de técnicas de pesquisa, mas como um grande empreendimento antropológico. Dessa forma, a construção do campo e, nesse sentido, das questões que o orientaram, foi balizada pelas lentes teóricometodológicas da antropologia, atentando para suas premissas epistemológicas. interesses historicamente condicionados” (LONDRES, 2000, p. 11-12). Assim, para uma manifestação cultural ser patrimonializada, ela precisa ter sido objeto de uma série de ações e práticas anteriores que legitimarão seu reconhecimento institucional. Sobre essas questões, Cavalcanti (2008, p. 19) pontua que “a continuidade histórica dos bens culturais, sua ligação com o passado e sua reiteração, transformação e atualização permanentes tornam-se referenciais culturais para as comunidades que os mantêm e os vivenciam”. Dessa forma, todo o material coletado para esta pesquisa leva em consideração a importância dessa prática para a memória local, da formação da sociedade brasileira e, sobretudo, dos processos identitários de vários indivíduos.
A pesquisa em movimento
Foi durante os meses de abril e maio do ano de 2015 que a pesquisa começou a se sistematizar e a análise dos dados coletados na pesquisa de campo ganhou corpo, começando a fomentar a construção do texto. Para tanto, a Prefeitura Municipal de Fortaleza organizou uma reunião na Vila das Artes, local em que o projeto foi anunciado aos grupos de Maracatus presentes. Dos quinze grupos, doze concordaram com o processo de pedido de registro do Maracatu, colaborando por meio de entrevistas e entrega de materiais diversos como fotografias, letra das loas, dentre outros. Os demais, por motivos diversos, não participaram dessa fase do processo3. Importa salientar que a ação foi norteada por um referencial teórico-metodológico multidisciplinar, em que as perspectivas de produção do conhecimento das Ciências Sociais, da História e dos estudos no campo do Patrimônio Cultural compõem o repertório de orientações agenciadas para se alcançarem os objetivos da nossa ação. Dessa forma, com intenção deliberada de apreender os sentidos e valores atribuídos pelos próprios detentores do bem cultural em questão, a ideia foi, minimamente, orientarmo-nos por meio do trabalho etnográfico. Assim, considerando os limites operacionais desse projeto e a proposta de apreender os sentidos e valores atribuídos pelos detentores do conhecimento do Maracatu Cearense, não realizamos uma pesquisa etnográfica4, aos termos clássicos da disciplina, mas de uma perspectiva etnográfica. A referida orientação consiste, portanto, em ouvir os grupos detentores para, em seguida, compreendendo os sentidos do Maracatu para eles e, sobretudo, articular as categorias nativas com as analíticas dos pesquisadores. A pesquisa foi realizada, orientada por algumas etapas: instrução preliminar, análise documental, pesquisa de campo e redação do relatório técnico e analítico. No primeiro
momento, foram realizadas leituras relacionadas às áreas da Antropologia e da História, focando tanto em discussões teóricas sobre patrimônio, quanto nas metodológicas que orientassem o trabalho de campo. Destaca-se ainda a leitura de pesquisas sobre os Maracatus cearenses, tais como as de Cruz (2010, 2011 e 2013), Silva (2004), Souza (2014), entre outros. Foram também realizadas reuniões com os coordenadores e bolsistas, além de visitas às instituições detentoras de materiais referentes ao Maracatu, tais como bibliotecas, laboratórios, acervos privados e órgãos políticos. Essa tarefa tem uma dupla importância: atestar a densidade histórica do bem cultural na vida fortalezense, o que contribuiu para a justificativa da pertinência do seu registro e, também, para a preservação e promoção deste acervo dentro de uma perspectiva arquivista e museográfica. Sobre esta etapa, importa a perspectiva do olhar para o documento como um monumento, tal como, oportunamente, observou o historiador Jacques Le Goff (2003). Como é sabido, o monumento é uma obra intencionalmente construída para perpetuar algo, melhor, para lembrar: é um objeto de memória. Neste sentido, abordar metodologicamente o documento como um monumento contribui para que enxerguemos nesses fragmentos do passado as intenções deliberadas de sua perpetuação. Ou seja, o documento não é algo que simplesmente restou do passado, é também algo que se quer perpetuar para o futuro. Dessa forma, constrói-se uma perspectiva teóricometodológica que permite ao pesquisador identificar, com maior rigor, o jogo de poder que envolve a criação e a preservação do documento/monumento. Na pesquisa de campo, foram realizadas entrevistas com os doze grupos de Maracatu que participaram do processo, a saber: Az de Ouro, Vozes D’África, Leão de Ouro, Filhos de Yemanjá, Rei do Congo, Rei Zumbi, Nação Iracema, Nação Baobab, Nação Fortaleza, Nação Pici, Nação Palmares e Axé de Oxóssi.
Além de entrevistas semiestruturadas com os presidentes dos grupos citados, foram realizadas entrevistas diretas com quatro rainhas, três grupos de personagens e um pesquisador do Maracatu5. Essas entrevistas foram realizadas nas sedes dos Maracatus, bem como nas residências dos informantes que, por vezes, é a própria sede. Desta maneira, também se realizaram observações nas apresentações dos Maracatus no Centro de Fortaleza, como no dia 25 de março, evento organizado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, por meio da Secultfor, e nomeado como “Dia do Maracatu”. Contudo, as pesquisas documentais e de campo não foram esgotadas, carecendo de mais tempo e despendimento para podermos alcançar o levantamento e a análise de forma exaustiva como preconiza um inventário.
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Foram realizadas entrevistas com os presidentes dos Maracatus Leão de Ouro (Francisco Antonio Ferreira da Silva, conhecido como Babi), Az de Ouro (Maria Lucineide Magalhães, conhecida como Lucy), Nação Palmares (Francisco de Assis Daniel de Moura, conhecido como Paul) Nação Fortaleza (Calé Alencar) e Nação Pici (Francisco Carlos Lima Brito). Em relação às rainhas, foram entrevistados Johncier Bezerra da Silva, do Maracatu Az de Ouro; Débora Patrícia Lopes de Sá, do Nação Fortaleza, e Wesley Elias de Sousa Teixeira, do Nação Pici. Foram ainda entrevistados Antônio Marcos Gomes da Silva (tirador de loa do Az de Ouro), Érison Carpegiane Brasil da Silva (Balaieiro do Az de Ouro), Iran Chagas de Lima (índio do Az de Ouro) e Gerlano do Nascimento Barros (batuque do Az de Ouro). Além de Edna Cristal dos Santos (balaieira do Nação Fortaleza) e Felipe Wendel da Silva Santos (batuqueiro do Nação Fortaleza). Foram também concedidas entrevistas por alguns brincantes do Maracatu Nação Pici, tais como João Hugo Costa Albuquerque (Batuque), Carlos Henrique Lima Inácio (Balaieiro) e Ronaldo Marques Ramalho (Produtor). Em relação ao pesquisador, trata-se de Descartes Gadelha, figura de notoriedade local quanto aos Maracatus cearenses, dada sua participação nos grupos como compositor das loas, além de colaborar com a fundação de alguns grupos, tanto em Fortaleza como em municípios no interior do Estado.
Este livro está dividido em quatro capítulos. No primeiro, apresenta-se o percurso histórico do Maracatu no Ceará, apontando as mudanças e inovações no decorrer das décadas, sobretudo entre os anos 1937 e 2015. Em seguida, exploram-se as características dos grupos que participaram do processo de registro solicitado pela Prefeitura de Fortaleza, indicando assim as atuais dinâmicas do Maracatu na cidade. No terceiro capítulo, há uma análise minuciosa sobre o modo de operacionalização das políticas de patrimônios culturais. Mostra-se que políticas de patrimônio culturais constituem um saber que, assim como áreas específicas do conhecimento, operam com noções, conceitos e termos técnicos próprios, distantes ou diferentes dos saberes, conceitos e noções que outras pessoas possuem para dar conta da sua experiência cultural, por exemplo. De certa forma, esta foi uma constatação evidenciada na primeira reunião deste projeto, realizada entre os grupos de Maracatu de Fortaleza, a equipe de profissionais contratada para idealizar e executar a pesquisa e os gestores do projeto. Por fim, no último capítulo, expõe-se o Plano de Salvaguarda dos Maracatus, construído e encaminhado para a apreciação do COMPHIC, e vem sendo desenvolvido, paulatinamente, após o reconhecimento da manifestação em âmbito municipal. Portanto, esta pesquisa tem a intenção registrar e informar os grupos e os brincantes do Maracatu Cearense sobre as políticas de patrimônios culturais, uma vez que, historicamente, as ações da política do Patrimônio Cultural imaterial têm êxito somente quando os grupos alvos se apropriam dela, isto é, das suas noções, conceitos e implicações. Motivados pela busca do conhecimento construído ao longo do processo ao lado dos grupos, guiados pela preocupação com uma política para visibilidade e para salvaguarda dos Maracatus, e não somente de informação que essa rica manifestação nos ofertou ao longo de toda essa trajetória, convidamos aos leitores a percorrer nos caminhos construídos pela pesquisa até aqui. Desejamos boa leitura e que outros pesquisadores possam complementar e ressignificar essa obra coletiva.
Registro do Maracatu Cearense
Fortaleza, Ceará
Processo nº 122450/2011 de 08 de agosto de 2011. Proponente Associação Cultural Maracatu Rei do Congo Presidente Rodrigo Damasceno Rodrigues Aprovação do Registro na 71ª reunião do Conselho do Patrimônio Cultural de Fortaleza em 03 de dezembro de 2015. Decreto nº13.769 assinado em 14 de março de 2016.