Imaterialidades | Maracatu
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Maracatu
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MARACATU © 2021 Copyright by PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA Impresso no Brasil / Printed in Brazil TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
Ficha Catalográfica Bibliotecária: Perpétua Socorro Tavares Guimarães CRB 3/801-98 P 923 m
Prefeitura Municipal de Fortaleza Maracatu / Coordenação de Danielle Maia Cruz, Darlan Neves da Costa, Leandro Ribeiro do Amaral.- Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2021. 144 p. ISBN: 978-65-5556-292-7 1. Patrimônio Cultural Imaterial 2. Maracatu cearense 3. Memória 4. Tradição I. Cruz, Danielle Maia II. Costa, Darlan Neves da III. Amaral, Leandro Ribeiro do IV. Título. CDD: 306.4
Créditos Institucionais | Ficha Técnica
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PREFEITURA MUNICIPAL DE FORTALEZA José Sarto Nogueira Moreira Prefeito José Élcio Batista Vice-Prefeito SECRETARIA MUNICIPAL DA CULTURA DE FORTALEZA Elpídio Nogueira Moreira Secretário Francisco Evaldo Ferreira Lima Secretário Executivo Ponce Júnior Chefe de Gabinete Thiala Cavalcante Assessora Jurídica Fernanda Cavalli Assessora de Comunicação Eliane Luz Assessora de Planejamento Ana Cláudia Mourão Coordenadora Administrativo Financeira Gilberto Rodrigues Coordenador de Ação Cultural Diego Zaranza Coordenador de Patrimônio Histórico-Cultural Cássia Cardoso Coordenadora de Criação e Fomento Mileide Flores Diretora da Vila das Artes Karla Karenina Diretora do Teatro São José Mimi Rocha Diretor do Centro Cultural Belchior Eduardo Pereira Diretor da Biblioteca Pública Municipal Dolor Barreira Sofia Dantas Diretora da Biblioteca Pública Infantil Herbênia Gurgel
EQUIPE DE EDIÇÃO DO DOSSIÊ Produção Editorial Arquiteta Soluções Projeto e Coordenação Editorial Adson Rodrigo S. Pinheiro Revisão de Textos Adriana Marly Sampaio Josino Fotografias Fernanda Siebra Nely Rosa Thiago Matine Fonte das Figuras Acervo Casa da Memória Equatorial Projeto Gráfico e Diagramação Hector Rocha Isaias Supervisão Técnica Graça Martins Lennon Martins Diego Amora
Créditos Institucionais | Ficha Técnica
EQUIPE DE PESQUISA DO DOSSIÊ Coordenadores de Pesquisa do Registro do Maracatu Cearense Danielle Maia Cruz Darllan Neves da Rocha Leandro Ribeiro do Amaral Pesquisadores Danielle Maia Cruz Darllan Neves da Rocha Leandro Ribeiro do Amaral Auxiliares de Pesquisa, Transcrição e Decupagem das Entrevistas Bruno Duarte Isick Kauê Laís Cordeiro de Oliveira Paulo Nicholas Lobo Supervisão de Pesquisa e Coordenação Geral do Registro do Maracatu Danielle Maia Cruz Texto Autoral Danielle Maia Cruz Darllan Neves da Rocha Leandro Ribeiro do Amaral
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Sumário
Sumário Apresentação A política de valorização do Patrimônio Imaterial Imaterialidades em Fortaleza: notas sobre os Maracatus Introdução Capítulo I 1. Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis Capítulo II 2. Memória, tradição e identidade: o Maracatu Cearense e suas facetas 2.1 Maracatu é Carnaval! 2.2 Cortejo Baliza Porta-Estandarte Índios Africanos Balaieiro Negros Calunga Casal de preto velho Baianas Capoeira e Maculelê Orixás Corte 2.3 Maracatu, instrumento de visibilidade e mobilização social! 2.4 Maracatu é tradição! Capítulo III 3. O Maracatu Cearense como patrimônio cultural 3.1 Constituição do campo do patrimônio cultural no Brasil: breves considerações 3.2 O registro do patrimônio cultural “imaterial” 3.3 Maracatu Cearense: ressonâncias de um “patrimônio cultural” em Fortaleza 3.4 Maracatu Cearense: Saber, Celebração, Forma de Expressão ou Lugar Capítulo IV Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense: ação em permanente construção Parecer técnico nº 311/2015 Refererências
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Maracatu é de bambaliê Ôêôêôê Olha o tronco do caminho Alevanta o pé Cadê a chave do baú? Mariana tem Você sabe, você viu? Eu não, meu bem Cadê meu lenço que o boi babou? Tá no sereno, no quarador Entrei na mata, escureceu Pedi uma vela, ninguém me deu Maracatu é de bambaliê Ôêôêôê Ô raia o sol, suspende a lua Bravo cambinda que anda na rua Maracatu é de bambaliê Composição de Raimundo Alves Feitosa Raimundo Boca Aberta
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Apresentação
Elpídio Nogueira Secretário da Cultura de Fortaleza
A Prefeitura de Fortaleza, por meio da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor), reconhecendo e reafirmando a relevância cultural dessa manifestação, registrou o Maracatu Cearense como Patrimônio Imaterial do Município, por meio do Decreto nº 13.769, do dia 14 de Março de 2016. O registro reitera a atenção do poder municipal à necessidade da criação e da manutenção de mecanismos de fomento e valorização da atividade.
Na capital cearense, o Maracatu tem seu ápice nos desfiles da Avenida Domingos Olímpio, um dos mais importantes e tradicionais polos do Carnaval da cidade. A festa recebe, por meio de edital, substancial investimento da Prefeitura de Fortaleza. Ao longo do restante do ano, eventos mensais fazem ver ações de Maracatu fora do período momino. “Todo dia 25 é dia de Maracatu”, costuma-se dizer, em alusão à Lei nº 10.771, de 5 de julho 2018, que estende para todos os meses do ano a celebração própria ao dia 25 de março, quando é comemorado oficialmente o Dia do Maracatu em Fortaleza. A data oficial faz referência ao dia da libertação dos escravos no Ceará, o primeiro Estado a abolir a escravatura no Brasil, em 1884. O projeto “Dia 25 é Dia de Maracatu” já teve como fruto desfiles em diferentes espaços da cidade, oficinas on-line, minidocumentários que contam a história de cada um dos Maracatus de Fortaleza, entre diversas outras atividades de caráter formativo e educacional. Tais ações representam importantes avanços para
o mapeamento, identificação, memória, visibilidade, fomento e valorização do Maracatu Cearense, metas próprias às medidas de salvaguarda recomendadas e previstas a partir do registro da manifestação como Patrimônio Imaterial. Esta publicação, Imaterialidades – Maracatu, é outro gesto que aponta neste sentido de salvaguarda. De forma atenta e cuidadosa, compila informações históricas, conceitos, depoimentos, além de oferecer um vasto acervo fotográfico que contempla diversas das agremiações existentes e atuantes na capital cearense durante o ato pleno e vivo dos festejos.
Apresentação
Guardião de tradições com raízes no continente africano, o Maracatu é uma manifestação cultural brasileira com rituais que chamam a atenção pelo brilho das vestes, pela eloquência das loas, pela exuberância das danças e pela força do batuque dos instrumentos, juntos apresentados em um fascinante cortejo repleto de personagens e alegorias carregadas de signos e funções simbólicas. Teve origem no Estado de Pernambuco, mas logo se espalhou pelo restante do País e encontrou, no Ceará, especial morada onde desenvolveu características singulares.
O Maracatu é uma expressão centenária de resistência, cultura, ritmo, tradição, religiosidade e alegria. Que este dossiê faça jus a tanta riqueza e sirva de instrumento de reconhecimento e perpetuação da arte dos maracatuqueiros. Vida longa ao Maracatu Cearense!
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A política de valorização do Patrimônio Imaterial Graça Martins Gerente de Patrimônio Imaterial da CPHC
Reconhecendo a importância das manifestações culturais tradicionais, compostas pelos seus fazeres e saberes, a Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, através da Coordenação de Patrimônio Histórico e Cultural (CPHC), registrou o Maracatu de Fortaleza como Patrimônio Imaterial da cidade, valorizando seus elementos identitários, que moldam pessoas e fortalecem a legitimação de sua memória. A preservação do bem é imprescindível à história, transformada em riqueza cultural para a comunidade e para a humanidade.
Partindo da premissa de que a Cultura Tradicional e Popular é garantida pela transmissão dos seus valores, de uma geração para outra, é fundamental a valorização dos detentores, que são razão de ser desse patrimônio, para que essa disseminação ocorra satisfatoriamente, na busca de condições favoráveis para sua perpetuação. A Secultfor, alinhada com a política de preservação do Patrimônio Imaterial, firmou convênio com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN por intermédio da Superintendência IPHAN no Ceará, para atender as demandas do Projeto Ações de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de Fortaleza, com recursos oriundos de Emenda Parlamentar concedida pelo então Deputado Federal Chico Lopes, tendo por objeto o fortalecimento, o apoio e o fomento à produção, transmissão, mobilização, difusão, valorização e reprodução dos bens imateriais de Fortaleza. Seguindo os trâmites
legais, foi licitada a empresa Arquiteta Promoções e Eventos. A publicação do Dossiê de Registro do Maracatu de Fortaleza, através da Coleção Imaterialidades, é um dos produtos que convoca a diversidade de nossas manifestações culturais, que representa nossas identidades relacionadas às expressões da cultura afro-brasileira e estará nas mãos dos detentores e pesquisadores, estará nas escolas, bibliotecas e universidades como forma de dar a ver os passos seguidos para o registro do Maracatu de Fortaleza.
Apresentação
Definir o Patrimônio Imaterial como algo que não vemos nem tocamos seria negar o olhar do coração, pois, para entender um bem imaterial, precisamos olhar de perto, de dentro, olhar com os olhos do “sentir”. É preciso uma relação com a tradição, com a história e a identidade do bem, forjada no dia a dia, na expressão do afeto, indo além dos limites do que podemos ver, para compreendê-lo.
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Imaterialidades em Fortaleza: notas sobre os Maracatus
Adson Pinheiro Coordenação Editorial
A Coleção Imaterialidades surge, nessa primeira perspectiva, com a proposta de apresentar à sociedade o resultado do trabalho desenvolvido por pesquisadores na constituição e produção de dossiês que compõem os processos de registro dos bens imateriais de Fortaleza, mostrando como manifestações culturais e seus conjuntos de saberes, técnicas e
fazeres passam a ser considerados e reconhecidos como patrimônio imaterial. Para além disso, mas não somente, a publicação servirá também de instrumento político de reconhecimento dos Maracatus e das políticas de salvaguarda pensadas e produzidas com os detentores. Esperamos, com essa obra, que as histórias dos brincantes e fazedores alcancem o máximo de pessoas, a fim de contribuir tanto para o seu (re)conhecimento, quanto para garantir condições de permanência e de avaliação de como a manifestação vem se transformando e mudando a sociedade, assim como as políticas de salvaguarda vêm sendo honradas para os grupos reconhecidos.
futuros que respeitem à diversidade e os patrimônios. Sendo assim, reconhecer o Maracatu como parte das nossas expressões culturais é nos aproximar um pouco mais do que é ser fortalezense. Esperamos que, a partir da leitura dessa obra, consigamos traduzir todos esses anseios e sentidos. Esperamos que essa imaterialidade faça sentido para você e o aproxime das nossas heranças. Viva o Maracatu Cearense! Viva a Cultura Negra! Viva Fortaleza!
Apresentação
Consideramos de grande importância essa publicação pelo registro desse patrimônio imaterial que imprime marcas em nossos territórios de identidades, aqui traduzidos pelos Maracatus de Fortaleza. Este bem cultural tem as marcas de uma forte presença das nossas origens e identidades negras, muitas vezes silenciadas na sociedade contemporânea, mas que insistem, resistem e reexistem aos preconceitos e às transformações homogeneizadoras globais que definiram, desde o processo colonizador, determinadas culturas como mais importantes do que outras.
Boa leitura.
Logo, o reconhecimento do Maracatu Cearense não é apenas pela importância para os seus brincantes, mas também para conectar nossa cidade aos seus passados significativos, ao seu presente vivo e para que auxilie na construção de uma urbe que tenha
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Introdução
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O Maracatué a minha vida...
histórica, tradicional, estética e de entretenimento, bem como seu espaço de memória e instrumento de visibilidade social, além de construção identitária para diversas pessoas que anualmente se envolvem na preparação do momento mais importante desta manifestação cultural no Estado do Ceará: o desfile de Carnaval em caráter competitivo. No ano de 2015, período de realização dessa pesquisa, havia vinte grupos no Estado1, mas a maior concentração estava na capital, totalizando quinze Maracatus em atividade2. Assim, com base na diversidade de Maracatus em Fortaleza, esta pesquisa teve como proposta fundamentar a solicitação de reconhecimento do Maracatu Cearense como Patrimônio Cultural de Fortaleza, mostrando as potencialidades dessa manifestação cultural na Cidade. O pedido foi realizado pela Prefeitura de Fortaleza, por meio da Secretaria da
Cultura de Fortaleza (Secultfor), a partir da solicitação do Sr. Rodrigo Damasceno Rodrigues.
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A pesquisa realizada foi fomentada a partir do projeto de Regulamentação do Patrimônio desenvolvido pela Secultfor, em parceria com o Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da Universidade Estadual do Ceará (IEPRO). O objetivo da pesquisa foi contemplar três perspectivas: a da comunidade detentora do bem cultural; a da Política Municipal de Patrimônio Cultural Imaterial; e a da sociedade, de forma geral que, por meio do reconhecimento dessa manifestação, teve a possibilidade de se aproximar melhor do conhecimento dos processos históricos e identitários da cidade, a partir de suas manifestações culturais.
No período da pesquisa, havia, no interior do Estado, os grupos: Az de Espada, em Itapipoca; Nação Tremembé, em Sobral; Maracatu Nação Uinu Erê, no Crato; Estrela de Ouro, em Canindé e Nação Kariré, situado no Município de Cariré. Esses grupos concentravam suas atividades em seus municípios de origem e não possuíam nenhuma relação com a Associação Cultural das Entidades Carnavalescas do Estado do Ceará (ACECCE), representativa dos Maracatus em Fortaleza. Já na capital do Estado, no período da pesquisa, estavam em atividade os Maracatus Az de Ouro, Axé de Oxóssi, Filhos de Yemanjá, Vozes D’África, Nação Baobab, Nação Fortaleza, Nação Iracema, Nação Pici, Nação Palmares, Rei Zumbi, Rei de Paus, Rei do Congo, Kizomba (hoje denominado Obalomi), Solar e Leão de Ouro.
"Certamente, o processo do registro de um bem simbólico não é algo simples, pois “pressupõe um intrincado conjunto de ações e negociações, interesses e conflitos, por parte de todos os agentes e instituições envolvidas” (FALCÃO, 2002, p. 12). Ademais, uma manifestação cultural, por maior visibilidade social que possua, não é “patrimônio” por ela mesma (LONDRES, 2000, p. 11-12). Cecília Londres afirma que “os bens culturais não valem por si mesmos. O valor lhes é sempre atribuído por sujeitos particulares e em função de determinados critérios e
Introdução
"O Maracatu é a minha vida", afirmou a presidente do Maracatu Axé de Oxóssi em entrevista feita, em 2015, para a construção do dossiê para o registro do Maracatu. Certamente, o relato da presidente nos conduz a pensar as mais amplas e significativas facetas dos Maracatus cearenses, isto é, sua dimensão
2 Destaca-se aqui que o Maracatu Leão de Ouro integra essa totalidade. Contudo, é ponto de tensão entre alguns brincantes, pelo fato de o grupo ainda não ter estreado na apresentação de Carnaval que ocorre na Avenida Domingos Olímpio, no Centro da cidade de Fortaleza, desde os anos 1990.
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3 A equipe entrou em contato com todos os grupos diversas vezes por meio de telefonemas e e-mails. Não foram coletados dados com o Maracatu Solar, em razão de problemas pessoais que o presidente do grupo enfrentava à época da pesquisa de campo. Já o presidente do Maracatu Kizomba desmarcou a entrevista repetidas vezes. Porém, houve recusa da assinatura da carta de anuência, o que inviabilizou a coleta de dados do referido Maracatu na construção do inventário e registro do Maracatu.
4 Isso foi possível, especialmente, em razão da experiência prévia da coordenadora de pesquisa do registro com a perspectiva etnográfica, tendo os Maracatus como campo de pesquisa desde 2006. Importante salientar que não tomamos aqui a etnografia como o manejo de técnicas de pesquisa, mas como um grande empreendimento antropológico. Dessa forma, a construção do campo e, nesse sentido, das questões que o orientaram, foi balizada pelas lentes teóricometodológicas da antropologia, atentando para suas premissas epistemológicas.
interesses historicamente condicionados” (LONDRES, 2000, p. 11-12). Assim, para uma manifestação cultural ser patrimonializada, ela precisa ter sido objeto de uma série de ações e práticas anteriores que legitimarão seu reconhecimento institucional. Sobre essas questões, Cavalcanti (2008, p. 19) pontua que “a continuidade histórica dos bens culturais, sua ligação com o passado e sua reiteração, transformação e atualização permanentes tornam-se referenciais culturais para as comunidades que os mantêm e os vivenciam”. Dessa forma, todo o material coletado para esta pesquisa leva em consideração a importância dessa prática para a memória local, da formação da sociedade brasileira e, sobretudo, dos processos identitários de vários indivíduos.
A pesquisa em movimento Foi durante os meses de abril e maio do ano de 2015 que a pesquisa começou a se sistematizar e a análise dos dados coletados na pesquisa de campo ganhou corpo, começando a fomentar a construção do texto. Para tanto, a Prefeitura Municipal de Fortaleza organizou uma reunião na Vila das Artes, local em que o projeto foi anunciado aos grupos de Maracatus presentes. Dos quinze grupos, doze concordaram com o processo de pedido de registro do Maracatu, colaborando por meio de entrevistas e entrega
de materiais diversos como fotografias, letra das loas, dentre outros. Os demais, por motivos diversos, não participaram dessa fase do processo3. Importa salientar que a ação foi norteada por um referencial teórico-metodológico multidisciplinar, em que as perspectivas de produção do conhecimento das Ciências Sociais, da História e dos estudos no campo do Patrimônio Cultural compõem o repertório de orientações agenciadas para se alcançarem os objetivos da nossa ação. Dessa forma, com intenção deliberada de apreender os sentidos e valores atribuídos pelos próprios detentores do bem cultural em questão, a ideia foi, minimamente, orientarmo-nos por meio do trabalho etnográfico. Assim, considerando os limites operacionais desse projeto e a proposta de apreender os sentidos e valores atribuídos pelos detentores do conhecimento do Maracatu Cearense, não realizamos uma pesquisa etnográfica4, aos termos clássicos da disciplina, mas de uma perspectiva etnográfica. A referida orientação consiste, portanto, em ouvir os grupos detentores para, em seguida, compreendendo os sentidos do Maracatu para eles e, sobretudo, articular as categorias nativas com as analíticas dos pesquisadores. A pesquisa foi realizada, orientada por algumas etapas: instrução preliminar, análise documental, pesquisa de campo e redação do relatório técnico e analítico. No primeiro
Sobre esta etapa, importa a perspectiva do olhar para o documento como um monumento, tal como, oportunamente, observou o historiador Jacques Le Goff (2003). Como é sabido, o monumento é uma obra intencionalmente construída para perpetuar algo, melhor, para lembrar: é um objeto de memória. Neste sentido, abordar metodologicamente o documento como um monumento contribui para que enxerguemos nesses fragmentos do passado as intenções deliberadas de sua perpetuação. Ou seja, o documento não é algo que simplesmente restou do passado, é também algo que se quer perpetuar para o
futuro. Dessa forma, constrói-se uma perspectiva teóricometodológica que permite ao pesquisador identificar, com maior rigor, o jogo de poder que envolve a criação e a preservação do documento/monumento. Na pesquisa de campo, foram realizadas entrevistas com os doze grupos de Maracatu que participaram do processo, a saber: Az de Ouro, Vozes D’África, Leão de Ouro, Filhos de Yemanjá, Rei do Congo, Rei Zumbi, Nação Iracema, Nação Baobab, Nação Fortaleza, Nação Pici, Nação Palmares e Axé de Oxóssi. Além de entrevistas semiestruturadas com os presidentes dos grupos citados, foram realizadas entrevistas diretas com quatro rainhas, três grupos de personagens e um pesquisador do Maracatu5. Essas entrevistas foram realizadas nas sedes dos Maracatus, bem como nas residências dos informantes que, por vezes, é a própria sede. Desta maneira, também se realizaram observações nas apresentações dos Maracatus no Centro de Fortaleza, como no dia 25 de março, evento organizado pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, por meio da Secultfor, e nomeado como “Dia do Maracatu”. Contudo, as pesquisas documentais e de campo não foram esgotadas, carecendo de mais tempo e despendimento para podermos alcançar o levantamento e a análise de forma exaustiva como preconiza um inventário.
5 Foram realizadas entrevistas com os presidentes dos Maracatus Leão de Ouro (Francisco Antonio Ferreira da Silva, conhecido como Babi), Az de Ouro (Maria Lucineide Magalhães, conhecida como Lucy), Nação Palmares (Francisco de Assis Daniel de Moura, conhecido como Paul) Nação Fortaleza (Calé Alencar) e Nação Pici (Francisco Carlos Lima Brito). Em relação às rainhas, foram entrevistados Johncier Bezerra da Silva, do Maracatu Az de Ouro; Débora Patrícia Lopes de Sá, do Nação Fortaleza, e Wesley Elias de Sousa Teixeira, do Nação Pici. Foram ainda entrevistados Antônio Marcos Gomes da Silva (tirador de loa do Az de Ouro), Érison Carpegiane Brasil da Silva (Balaieiro do Az de Ouro), Iran Chagas de Lima (índio do Az de Ouro) e Gerlano do Nascimento Barros (batuque do Az de Ouro). Além de Edna Cristal dos Santos (balaieira do Nação Fortaleza) e Felipe Wendel da Silva Santos (batuqueiro do Nação Fortaleza). Foram também concedidas entrevistas por alguns brincantes do Maracatu Nação Pici, tais como João Hugo Costa Albuquerque (Batuque), Carlos Henrique Lima Inácio (Balaieiro) e Ronaldo Marques Ramalho (Produtor). Em relação ao pesquisador, trata-se de Descartes Gadelha, figura de notoriedade local quanto aos Maracatus cearenses, dada sua participação nos grupos como compositor das loas, além de colaborar com a fundação de alguns grupos, tanto em Fortaleza como em municípios no interior do Estado.
Introdução
momento, foram realizadas leituras relacionadas às áreas da Antropologia e da História, focando tanto em discussões teóricas sobre patrimônio, quanto nas metodológicas que orientassem o trabalho de campo. Destaca-se ainda a leitura de pesquisas sobre os Maracatus cearenses, tais como as de Cruz (2010, 2011 e 2013), Silva (2004), Souza (2014), entre outros. Foram também realizadas reuniões com os coordenadores e bolsistas, além de visitas às instituições detentoras de materiais referentes ao Maracatu, tais como bibliotecas, laboratórios, acervos privados e órgãos políticos. Essa tarefa tem uma dupla importância: atestar a densidade histórica do bem cultural na vida fortalezense, o que contribuiu para a justificativa da pertinência do seu registro e, também, para a preservação e promoção deste acervo dentro de uma perspectiva arquivista e museográfica.
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Portanto, esta pesquisa tem a intenção registrar e informar os grupos e os brincantes do Maracatu Cearense sobre as políticas de patrimônios culturais, uma vez que, historicamente, as ações da política do Patrimônio Cultural imaterial têm êxito somente quando os grupos alvos se apropriam dela, isto é, das suas noções, conceitos e implicações. Motivados pela busca do conhecimento construído ao longo do processo ao lado dos grupos, guiados pela preocupação com uma política para visibilidade e para salvaguarda dos Maracatus, e não somente de informação que essa rica manifestação nos ofertou ao longo de toda essa trajetória, convidamos aos leitores a percorrer nos caminhos construídos pela pesquisa até aqui. Desejamos boa leitura e que outros pesquisadores possam complementar e ressignificar essa obra coletiva.
Introdução
Este livro está dividido em quatro capítulos. No primeiro, apresenta-se o percurso histórico do Maracatu no Ceará, apontando as mudanças e inovações no decorrer das décadas, sobretudo entre os anos 1937 e 2015. Em seguida, exploram-se as características dos grupos que participaram do processo de registro solicitado pela Prefeitura de Fortaleza, indicando assim as atuais dinâmicas do Maracatu na cidade. No terceiro capítulo, há uma análise minuciosa sobre o modo de operacionalização das políticas de patrimônios culturais. Mostra-se que políticas de patrimônio culturais constituem um saber que, assim como áreas específicas do conhecimento, operam com noções, conceitos e termos técnicos próprios, distantes ou diferentes dos saberes, conceitos e noções que outras pessoas possuem para dar conta da sua experiência cultural, por exemplo. De certa forma, esta foi uma constatação evidenciada na primeira reunião deste projeto, realizada entre os grupos de Maracatu de Fortaleza, a equipe de profissionais contratada para idealizar e executar a pesquisa e os gestores do projeto. Por fim, no último capítulo, expõe-se o Plano de Salvaguarda dos Maracatus, construído e encaminhado para a apreciação do COMPHIC, e vem sendo desenvolvido, paulatinamente, após o reconhecimento da manifestação em âmbito municipal.
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Registro do
Maracatu Cearense Fortaleza, Ceará
Proponente Associação Cultural Maracatu Rei do Congo Presidente Rodrigo Damasceno Rodrigues
Introdução
Processo nº 122450/2011 de 08 de agosto de 2011.
Aprovação do Registro na 71ª reunião do Conselho do Patrimônio Cultural de Fortaleza em 03 de dezembro de 2015. Decreto nº13.769 assinado em 14 de março de 2016.
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Capítulo I Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis
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Em linhas gerais, o Maracatu poderia ser assim definido. Contudo, circunscrever a compreensão dessa prática cultural somente aos aspectos performáticos, dada a sua multiplicidade de usos e sentidos em distintas localidades brasileiras, sobretudo no Ceará e Pernambuco, Estados de maior concentração da manifestação cultural, implicaria em homogeneizá-la, desconsiderando, assim, o seu caráter plural, processual e dinâmico. No decorrer das décadas, praticantes de Maracatu, folcloristas, jornalistas e acadêmicos, vêm tentando definir o Maracatu com base em elementos específicos, especialmente os evocativos da coroação dos reis negros. Embora o cortejo dos reis negros seja aspecto central na conformação do Maracatu em distintas localidades, de acordo com lógicas próprias, os grupos existentes Brasil afora, apresentam particularidades de acordo com o lugar de origem. Assim, dentre as especificidades mais significativas que demarcam uma manifestação como um grupo de Maracatu, destacam-se os usos rituais dos espaços de apresentação,
a utilização de determinados instrumentos musicais, o estilo rítmico e melódico das músicas (denominadas pelos brincantes de loas), a presença de personagens específicos no cortejo, especialmente os relacionados à corte real, além da inserção de novas alegorias e do vínculo com as comunidades onde estão situados. Na preparação dessa prática cultural, ganham destaque ainda as noções particulares dos brincantes sobre tradição e inovação, bem como a relação com uma dada religião, conforme ocorre com os Maracatus Nação do Pernambuco6, historicamente relacionados ao candomblé ou xangô, à jurema e à umbanda. Embora existam elementos que, por décadas, ordenem e mobilizem os Maracatus, dando-lhes características marcantes, não se podem esquecer as inúmeras mudanças pelas quais essa prática cultural passou, desde os tempos mais remotos da sua existência. Note-se que há Maracatus seculares no Estado do Pernambuco. Portanto, convém considerar os Maracatus como resultados de processos históricos realizados na interlocução entre os diferentes agentes que atualizam a prática constantemente. Encerrar a pluralidade do Maracatu em categorizações implica em correr riscos, como o de reduzir a complexidade da manifestação e, sobretudo, o de desconsiderar as tensões, negociações e disputas em torno dessa prática cultural (CRUZ, 2011).
6 Sobre a relação dos Maracatus pernambucanos com as religiões de matriz africana, ver Lima (2005; 2009).
Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis
Imagine um cortejo composto de diversos personagens que, com acompanhamento sonoro, anuncia, pelas ruas de uma dada localidade, a coroação de reis negros, com ênfase na figura da rainha.
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Portanto, uma questão talvez mais importante do ponto de vista analítico para esta pesquisa seja se perguntar sobre os possíveis caminhos que o Maracatu tomou no Ceará, bem como refletir sobre suas particularidades, mudanças e permanências. Enfim, nos aspectos que legitimam essa prática no Estado. Pensar os caminhos percorridos pelos Maracatus cearenses implica dar voz às diferentes versões obtidas na pesquisa de campo para a composição desta publicação e também às análises de estudiosos do assunto. Assim, sobre o surgimento do Maracatu no Ceará, alguns depoimentos relacionam este fato diretamente às coroações dos reis negros, ocorridas no âmbito das irmandades religiosas no final do século XIX, conforme declarou Rodrigo Damasceno, presidente do Maracatu Rei do Congo. Segundo ele, o “[...] Maracatu não veio para cá na década de 1930. Maracatu é muito mais antigo. Maracatu era da Irmandade do Rosário”. Coaduna-se a essa ideia os relatos de Calé Alencar, presidente do Maracatu Nação Fortaleza, ao afirmar que:
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Dentro da história, a gente tem, assim, os principais estudiosos ɝɸDZ ɥDZ ǥɀȪɀǥLjȳ ʦLjʐɀɞljʐDZȓɥ Lj ɸȳLj ɯDZɥDZ ǫDZ ɝɸDZ ɀ iLjɞLjǥLjɯɸ descende das coroações de reis negros que aconteciam dentro das ȓȅɞDZȢLjɥ ǫDZ lɀɥɥLj DZȶȎɀɞLj ǫɀ ɀɥljɞȓɀԧ ɛɞȓȶǥȓɛLjȪȳDZȶɯDZԧ ȶDzԬ Lɥɥɀ ǫDZ ɸȳ ȳɀǫɀ ȅDZɞLjȪԬ uȶǫDZ ɯȓʐDZɞ ɸȳ iLjɞLjǥLjɯɸԧ DZȪDZ ɯDZɞȓLj DZʐɀȪɸȕǫɀ
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Nos últimos anos, pesquisadores de áreas diversas vêm realizando estudos sobre as irmandades religiosas. Em suas pesquisas, Cruz (2011) mostrou que essas confrarias se fizeram presentes nos mais diversos países, sendo Portugal um dos lugares mais destacados. A socióloga prossegue dizendo que, em relação ao Brasil, integrar as associações religiosas era sinônimo de prestígio, pois tais espaços eram valorizados socialmente. Para os africanos, ou negros nascidos no Brasil, as irmandades simbolizavam espaços de sociabilidade, onde se reuniam para devotar a um santo, cuidar da capela, oferecer auxílios aos necessitados, pedir pela liberdade e pelo livramento das aflições. Em Fortaleza, uma irmandade de grande notoriedade no final do século XIX era a de Nossa Senhora do Rosário dos
Homens Pretos, conforme mencionaram os presidentes dos Maracatus em sua fala. Criada em 1730 e situada, ainda na atualidade, no Centro da cidade, a igreja é bastante representativa para a memória da cidade, uma vez que, no passado, os escravos faziam lá suas orações e reuniões. De acordo com Marques (2009, p. 95), “a irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da capital provavelmente foi o espaço de maior organização social dos negros em Fortaleza na segunda metade do século XIX”. Além de se reunirem para devotar santos e realizar cuidados com a capela, os irmanados organizavam festas de louvor aos santos padroeiros, especialmente Nossa Senhora do Rosário7 e São Benedito. A festa, que ocorria no período natalino, era marcada por um momento de coroação dos reis negros escolhidos. Nesse dia, cortejos pelas ruas da cidade ocorriam em direção à igreja de Nossa Senhora do Rosário onde o pároco realizava a celebração de coroação.
7 A igreja foi tombada pela Secretaria de Cultura do Estado do Ceará em 1986 e, em âmbito municipal, no ano de 2006, pelo Decreto n. 11.958 de 11 de janeiro de 2006 – D.O.M. de 24 de janeiro de 2006.
Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis
relatos de cronistas e memorialistas. Há, na base disto, a noção de que os Maracatus são oriundos das transformações das celebrações dos Autos dos Reis do Congo. Para entender um pouco desse contexto, Caxilé (2009) mostra que, no final do século XIX, a cidade de Fortaleza era palco de uma diversidade de práticas culturais relacionadas à igreja católica. Tais manifestações religiosas externavam publicamente formas da fé católica, por meio dos cultos aos santos, procissões e funerais. Esses festejos ocorriam no âmbito das irmandades religiosas e eram momentos significativos para a dinâmica social da cidade.
Segundo Amorim e Benjamim (2002), os conflitos existentes entre os padres e os membros das irmandades provocaram, por volta do século XIX, a desvinculação entre a coroação dos reis negros e os festejos de Nossa Senhora do Rosário. Com o desmantelamento desses autos, cada momento que o compunha foi vivenciado, posteriormente, como uma manifestação cultural, e algumas dessas manifestações,
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36 Imaterialidades | Maracatu
Sobre a existência de Maracatus no final do século XIX, os grupos mais citados por cronistas e memorialistas da época são: Maracatu do Oiteiro (antiga Aldeota), Maracatu da Rua São Cosme e Damião (atual Padre Mororó, Centro), Maracatu da Apertada Hora (atual Governador Sampaio), o Maracatu do Morro do Moinho Conrado (atrás da estação ferroviária) e o Maracatu na Prainha. Estes se apresentavam, principalmente, no período das festas natalinas, migrando, posteriormente para os festejos de Carnaval. Sobre esses Maracatus, Gustavo Barroso (2000) lembra acontecimentos da infância situados em 1898: ȎDZȅLj ɀ LjɞȶLjʐLjȪԬ u ǤLjɯȓǥɸȳ ǫɀ ÔDz DZɞDZȓɞLj DZɥɯɞɸȅDZՒɥDZ ɛɀɞ ɯɀǫLjɥ Ljɥ ɞɸLjɥԬ u ɛɀʐɀ ǥȎLjȳLj Ljɀɥ ɯɞǵɥ ǫȓLjɥ ǫDZ ȄɀȪȓLj Ր ɀ ɯDZȳɛɀ ǫɀɥ LjɛLjȶȅɸɥԬ uɥ ɛLjɛLjȶȅɸɥ ɥǠɀ ɀɥ ȳLjɥǥLjɞLjǫɀɥ ɝɸDZ DZȶǥȎDZȳ Ljɥ ɞɸLjɥ ɛɞȓȶǥȓɛLjȓɥ DZȳǤɞɸȪȎLjǫɀɥ DZȳ ȪDZȶǨɁȓɥԧ ǥɀǤDZɞɯɀɥ ǫDZ ǫɀȳȓȶɁɥ ɀɸ ǫȓɥʦLjɞǨLjǫɀɥ ǫDZ ɯɀǫLjɥ Ljɥ ȳLjȶDZȓɞLjɥ ՃԬԬԬՄ u ɝɸDZ DZɸ ȅɀɥɯɀ ȶɀ LjɞȶLjʐLjȪ
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Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis
como os Maracatus, passaram a ser apresentados no Carnaval. No entanto, Marques (2009) aponta que, no final do século XIX e início do século XX, em Fortaleza, fossem em praças, terrenos baldios, ruas, entre outros espaços, era possível apreciar sambas, pastoris, bois, autos de Congo e também os Maracatus, o que nos leva a pensar que não podemos encerrar a explicação do Maracatu como somente uma reminiscência das festas de Coroações dos Autos de Congo.
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Imaterialidades | Maracatu
Fortaleza que ocorreu o desenrolar dessa manifestação, havendo o surgimento de grupos no interior do Estado somente em décadas recentes. Em entrevista ao jornal O Povo, de 13 de maio de 1995, Raimundo Alves Feitosa, contando à época com 93 anos, disse ao jornalista que, apesar de sua antiga admiração por algumas práticas culturais, o Maracatu do Recife – também designado, em meados de 1930, por cambindas – exerceu nele profundo encantamento. Movido por tal sentimento, o senhor, ao retornar para sua cidade natal, decidiu fundar um Maracatu como os de Recife, ocorrendo assim a fundação do Az de Ouro em 6 de setembro de 1936, conforme indica seu estatuto. Mas algumas ponderações devem ser feitas. Em razão das inspirações de Boca Aberta com os Maracatus do Recife, muito se afirma que os Maracatus cearenses são cópias dos pernambucanos, desconsiderando, dessa forma, a dinâmica específica que essa manifestação adquiriu no Ceará.
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Segundo os relatos daqueles que vivenciaram os primeiros anos do surgimento do Maracatu Az de Ouro, o grupo se constituiu timidamente e sem muitos recursos. No início, o grupo contou com a participação de alguns amigos e profissionais, como engraxates, sapateiros, fuzileiros, lustradores, entre outros. Após o primeiro ano de sua concepção, o Az de Ouro recebeu convite para desfilar no
Carnaval de rua, surgindo assim já como uma agremiação carnavalesca. Com poucos participantes, o Maracatu desfilou pela primeira vez em 1937. De acordo com o relato de alguns brincantes, bem como fotografias da década de 1950, compreende-se que o Az de Ouro levou para a rua da cidade o porta-estandarte, um pequeno cordão de índios e de negras, o balaieiro, além do batuque e da corte real. Cabe destacar o contexto social no qual os Maracatus iniciaram seus desfiles nas ruas de Fortaleza, pois possibilita entender o contexto no qual tal manifestação se configurou na cidade. Nos anos 1930, a Praça do Ferreira era um marco das festas carnavalescas na cidade, sendo assim, atraía grande fluxo de pessoas. Da periferia, vinham bondes abarrotados para assistir aos blocos, ao Corso e às bandas musicais alocadas no coreto que lá existia, sendo, em 1933, demolido por ordem do prefeito da época, Raimundo Girão, e construída, em seu lugar, a atual Coluna da Hora. Ocorre que, entre o final dos anos 1920 e começo dos 1930, teve início em Fortaleza um crescimento socioespacial desordenado. Entre alguns fatores, destacou-se uma severa seca no ano de 1932, provocando um fluxo migratório do interior para a capital do Estado e, consequentemente, uma concentração de pessoas com distintas realidades em um mesmo perímetro urbano. Diante desse cenário,
Como mostra Cruz (2013), com o deslocamento da elite para outros bairros, o Centro adquiriu para a elite fortalezense feições cada vez mais comerciais, passando a contar basicamente com a presença de trabalhadores, que, nos feriados de Carnaval, realizavam suas festas nas ruas do bairro. Com essas mudanças, o Carnaval da elite nas ruas limitou-se a “um corso pela Praça do Ferreira e ruas adjacentes” (NOGUEIRA, 1981, p. 138-149). A partir de então, as famílias com elevado poder aquisitivo interessaram-se cada vez mais pelo lazer em espaços privados, passando a realizar suas festas de Carnaval distantes da grande massa, especialmente nos clubes sociais. Assim, no final dos anos 1930, os festejos na Praça do Ferreira se tornaram cada vez mais esvaziados, aponta Cruz (2013). O Carnaval de rua da cidade de Fortaleza adquiriu novas feições. A elite se afastou dos espaços públicos, optando por bailes nos clubes sociais. Contudo, a população menos favorecida levou às ruas suas agremiações
carnavalescas. Foi, portanto, nesse cenário, que surgiram blocos de sujos, cordões, a famosa escola de samba Prova de Fogo, o famoso bloco carnavalesco das Coca-Colas e o Maracatu Az de Ouro.8 Os anos passaram e os festejos populares continuaram nas ruas de Fortaleza. Até 1944, o Az de Ouro era o único Maracatu a se apresentar no desfile carnavalesco de rua da cidade. Somente em 1950 surgiu outro Maracatu, o Az de Espada9. O Ás de Espada se inseriu no Carnaval de rua da cidade em 1950, sendo tricampeão da festa por duas vezes (1951-1953/1955-1957). De acordo com Afrânio de Castro Rangel, “o Maracatu Az de Espada marcou época. O estandarte dele era muito bonito, muito brilhoso. Eles usavam umas lantejoulas grandes, que brilhavam e o nome era feito com isso”. Com 80 anos de idade em 2015, Afrânio Rangel, embora não participasse mais dos Maracatus desde a década de 1960, é pessoa bastante importante no tocante à trajetória dos Maracatus no Ceará, pois suas memórias colaboram no entendimento das mudanças atravessadas por essa manifestação no Estado.
8 Sobre as festas carnavalescas das camadas mais populares em Fortaleza, entre o fim do século XIX e início do XX, ver Marques (2009). O historiador aponta sambas, congos, bois e coroações de reis e rainhas da Irmandade Nossa Senhora do Rosário que ocorriam na cidade, indicando para manifestações culturais de matriz africana que resistiam, apesar das perseguições da igreja, elite e polícia.
9 Há diferentes formas de redação para este Maracatu. Nas matérias jornalísticas do Jornal O Povo, entre os anos 1950 e 1970, é denominado com a grafia de Az de Espada ou Az de Espadas. Em algumas referências bibliográficas, denomina-se Ás de Espada.
Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis
os segmentos mais abastados migraram do Centro para o bairro do Jacarecanga, tido como o primeiro bairro elegante da cidade, como também para os bairros Benfica, Praia de Iracema (em menor escala), Meireles e Aldeota, considerados os dois últimos, ainda na atualidade, como bairros nobres da cidade.
Assim como Afrânio Rangel, notícias jornalísticas dos anos 1950 dão conta da importância do Maracatu Az de Espada para o Carnaval de rua da cidade, afirmando ser, naquela época, o bloco carnavalesco mais original e 39
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apreciado da cidade. Entretanto, esse Maracatu atravessou diversas crises financeiras, anunciando, inclusive, no ano de 1953, em nota jornalística, o fim das suas atividades. No entanto, conseguiu segui-las, havendo sua dissolução somente em 1964, totalizando quatorze vitórias como campeão do Carnaval, com exceção do ano de 1954, quando perdeu para o Maracatu Estrela Brilhante, como também no ano de 1963, já que não houve apresentação das agremiações carnavalescas, como forma de protesto às condições oferecidas à festa pela prefeitura (PINGO, 2007).
tirador de loas, também chamado de macumbeiro.
Um aspecto marcante dos anos 1950 foi a suspensão das atividades do Maracatu Az de Ouro entre os anos 1951 e 1958, dadas as graves crises financeiras da agremiação. Com isto, muitos dos seus componentes migraram para o estreante Maracatu Estrela Brilhante, fundado em 1951 com forte inspiração na sonoridade e na estética do Az de Ouro. Naquela década, surgiu também o Maracatu Leão Coroado, estreante no Carnaval de rua em 1958.
Conforme notícias jornalísticas da época, nos anos 1950, além dos Maracatus, os blocos participavam do Carnaval de rua, tais como “Paladinos do amor”, “Prova de fogo”, “Cordão das meninas do barulho” e “Garotas do Sputnik”. Cabia à Crônica Carnavalesca promover o concurso para eleger o vencedor do Carnaval que recebia a taça na Praça do Carmo pelas mãos do secretário de polícia. Havia também premiação em dinheiro oferecida pela rádio Uirapuru. A apresentação desses grupos ocorria no domingo, na segunda e na terça de Carnaval, fazendo um grande percurso pelas ruas do Centro, realizando paradas defronte aos palanques dos órgãos de imprensa que premiavam as agremiações carnavalescas. Usualmente, o percurso partia do Passeio Público, seguindo pelas ruas Major Facundo, passando pela Praça do Ferreira, tendo continuidade pelas ruas Guilherme Rocha, Senador Pompeu, Duque de Caxias e Floriano Peixoto.
Afrânio Rangel, ao rememorar sua época de rainha no Maracatu Estrela Brilhante, entre os anos 1954 e 1955, conta que a agremiação era composta pelo portaestandarte, depois vinha o baliza ladeado pelos lampiões que iluminavam o caminho. Depois, seguiam os índios, tendo ao centro desta ala o balaieiro. Seguia-se o cordão de negras e, por fim, a corte e a batucada acompanhada do
Nos anos 1960, Fortaleza contava com seis Maracatus: Az de Ouro, Ás de Espada, Leão Coroado, Estrela Brilhante e Ás de Paus – criado em 1961 e cujo nome foi modificado para Rei de Paus em 1964 – além do Nação Uirapuru, fundado em 1965. Eram aspectos interessantes da dinâmica dos Maracatus daquele período a sonoridade e as vestimentas. Notícias jornalísticas do ano de 1963 sobre o desfile do
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Maracatu Az de Espada trazem aspectos interessantes sobre esses elementos ao fazer referência à “riqueza coreográfica que apresenta, com seu instrumental, efeitos sonoros impressionantes, seus figurinos ricamente trajados, e seu cortejo em passos lentos e cadenciados lembrando nostalgicamente a terra que ficou distante”. De acordo com o jornal da época, o referido Maracatu trazia um canto triste que lembrava a África. Decerto, a sonoridade dos Maracatus cearenses é um aspecto importante para compreender a dinâmica dessa manifestação no Estado, uma vez que o ritmo é uma das principais especificidades que demarca tanto as diferenças entre os grupos locais, como em relação aos Maracatus situados em outras localidades brasileiras. Com base nas gravações do musicólogo Luís Heitor Corrêa de Azevedo com Raimundo Boca Aberta, no ano de 1943, músicos, pesquisadores e demais pessoas que se dedicam ao estudo do Maracatu no Ceará entendem que a música do Maracatu relacionava-se “ao coco, ao baião e à música de terreiro e sambas e que de fato havia uma prática de múltiplos ritmos em seu hinário” (PINGO, 2012, p. 31).
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A ausência de uma diversidade de fontes impossibilita uma maior compreensão sobre as sonoridades dos Maracatus entre os anos 1930 e 1950. O argumento mais recorrente é que o ritmo passou a ser mais cadenciado,
também denominado “de coroação”, “fúnebre”, “de lamento”, “cadenciado”, entre outros. A partir do início dos anos 1950, prolongando-se até o fim dos anos 1960, essa melodia e rítmica se consolida entre os Maracatus cearenses, havendo novamente mudanças nos anos 1970, quando alguns Maracatus decidem acelerar o ritmo. Para produzir tais sonoridades, os instrumentos mais utilizados entre os grupos são a caixa, o bumbo e, principalmente, o triângulo, conhecido como “ferro de Maracatu”. Dependendo do grupo, outros instrumentos integram o batuque, como o chocalho e as alfaias utilizadas no Maracatu pernambucano, entre outros. Porém, dentre todos esses instrumentos, o que mais se destaca é o ferro que marca ritmicamente e visualmente a sonoridade do Maracatu Cearense. O ferro é o instrumento mais simbólico do Maracatu Cearense, pois, ainda que possa ser chamado de triângulo, possui especificidades rítmicas, dada à própria execução do instrumento pelos brincantes. Esse instrumento é tocado de forma cadenciada e marca o ritmo do Maracatu, que pode ser lento ou acelerado, de acordo com o grupo. Para alguns participantes do Maracatu, o ferro possui forte valor simbólico, pois sua sonoridade remete às correntes dos escravos. “Pra desfile, devido à nossa tradição ser antiga, é lenta, cadenciada, chamada, antigamente, na década de 1960,
Concomitante à mudança sonora, também surgiu a inserção de brilho, volume e luxo nas fantasias. Sobre aquela época, diz-se: “os trajes aprimoram-se de ano em ano. Há neles uma orgia de sedas, arminhos, veludo e damasco, lantejoulas, espelhos, pulseiras, colares, toda uma série de vistosos adereços” (Jornal O Povo 08/02/1975). As mudanças na sonoridade e nas vestimentas dos Maracatus ocorreram intimamente relacionadas ao surgimento das escolas de samba no Carnaval de rua da cidade. Em 1966,
tais agremiações passaram a fazer frente aos Maracatus na competição do desfile carnavalesco da cidade. O brilho, o luxo e o estilo de música impressionaram os jurados da época, colocando em risco os inúmeros títulos de campeões dos Maracatus que se apresentavam à época, como o Rei de Paus. Em razão da competição, cada vez mais, os Maracatus inseriram novos adereços nas vestimentas dos personagens, sobretudo na da rainha, figura central do cortejo. Sobre isto, note nas imagens a seguir, respectivamente, a vestimenta da rainha nos anos 1950 e 1970, quando mudanças notórias ocorreram. Entre as rainhas de grande visibilidade na trajetória dos Maracatus cearenses, cabe destacar Afrânio de Castro Rangel, conforme já mencionado, além do já falecido José Ferreira de Arruda, conhecido como Zé Rainha, bem como José Almeida, tido na atualidade como a rainha mais antiga em atividade nos Maracatus Cearenses.
Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis
de Lamento. Como se fosse o lamento dos negros” (Paul, presidente do Maracatu Nação Palmares, 16/04/2015). Mas se o Maracatu no Ceará é fortemente relacionado ao seu ritmo lento, especialmente em razão da consolidação dessa sonoridade entre 1950 e fim dos anos 1960, na década de 1980, surgiram outros com características que provocaram mudanças na dinâmica dos Maracatus, especialmente na sonoridade e estética dos grupos. Note-se aqui o surgimento do Maracatu Vozes D’África em 1981, que se apresentou no Carnaval da cidade, com ritmo acelerado em relação aos demais, especialmente aos tradicionais Maracatus Rei de Paus e Az de Ouro. Sobre isso, Pingo (2012, p. 51) diz: “depois da ação musical inovadora do Maracatu Vozes D’África, a dinâmica da prática rítmica dos Maracatus do Ceará só vai passar por uma grande e emblemática transformação em 1995, com a estreia do Maracatu Nação Baobab”.
Zé Rainha marcou a história do Maracatu pela sua dedicação e vínculo com a expressão, não se detendo apenas à manutenção de um determinado grupo, mas pela própria tradição e permanência do Maracatu no Estado. Diversos integrantes de diferentes grupos remetem a ele como uma pessoa e personagem importante para o Maracatu, devido ao seu jeito majestoso de se portar na avenida. 43
Imaterialidades | Maracatu
10 Essa entrevista foi realizada por Danielle Maia Cruz, quando esteve responsável pela curadoria e pesquisa da Exposição Maracatus no Ceará: festa, ritual e memória, realizada pela Secretaria da Cultura de Fortaleza, aberta ao público de 07 de fevereiro até o dia 10 de março de 2014.
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Um aspecto interessante das festas carnavalescas até meados de 1960 era a proibição da participação das
mulheres nas apresentações em vias públicas. Nessas festas, a elas cabiam os preparos dos alimentos e bebidas, além da confecção das fantasias e do auxílio aos homens no dia dos desfiles. Em razão dessa proibição, nos Maracatus, eram homens que se travestiam de mulheres para encenar personagens femininos, como a rainha, as índias, as princesas e as baianas; fato revelador do forte conservadorismo da época, em que uma série de regras morais estabelecia os papéis de homens e mulheres na sociedade. Mas apesar de ainda existirem homens na função de rainha, na atualidade, algumas mulheres já ocupam esse papel. Sobre isto, alguns afirmam que a estrutura de ferro que sustenta a saia da rainha traz um peso insuportável para a mulher. Outras pessoas afirmam que as mulheres não podiam ser rainhas devido a contextos históricos que impediam mulheres de participarem de manifestações públicas, como o Maracatu no Carnaval. Nos anos 1990 e 2000, outros Maracatus surgiram na cidade, conforme a linha do tempo a seguir, trazendo novas dinâmicas para a festa, a partir da inserção de novos personagens e novas sonoridades, como trataremos mais adiante. Mas um aspecto também importante é o caráter de visibilidade e mobilidade social com que essa prática cultural se coloca para uma diversidade de brincantes, e é sobre esse tema que queremos que você, leitor, fique também atento.
Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis 45
Registro do Maracatu Cearense como
Patrimônio Imaterial de Fortaleza.
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Maracatu Leão de Ouro, idealizado pelo carnavalesco Babi Ferreira.
2016 2012
Fundação do Maracatu Filhos de Yemanjá, pelos representantes da União Espírita Cearense de Umbanda (UECUM), a partir da comemoração dos cem anos da Umbanda no Brasil.
2008
Fundação do Maracatu Nação Pici, por iniciativa de Carlos Brito, professor de arte e educador que também participou da gestão da Escola Adroaldo Teixeira, onde o grupo surgiu como grupo artístico para participar do Segundo Festival de Artes promovido pela Prefeitura de Fortaleza, em 2003.
2003
Fundação do Maracatu Rei Zumbi, sendo criado por Antônio Barbosa Lima, conhecido como Antônio Leão, após o encerramento do bloco Garotos no Frevo, do qual também era o fundador.
2001
Fundação do Maracatu Kizomba, sendo idealizado pelo artista plástico Francisco Milton Soares Souza, conhecido como Miltinho, que passou alguns anos no Maracatu Rei de Paus.
1999
Fundação do Maracatu Vozes da África, no contexto das comemorações do dia da Consciência Negra, motivado pelo jornalista e folclorista Paulo Tadeu Sampaio de Oliveira.
1980
Notícia da existência, por cronistas e memorialistas, da época do Maracatu do Oiteiro (antiga Aldeota), Maracatu da Rua São Cosme e Damião (atual Padre Mororó, Centro), Maracatu da Apertada Hora (atual Governador Sampaio), o Maracatu do Morro do Moinho Conrado (atrás da estação ferroviária) e o Maracatu na Prainha.
final do século XIX
2013 2009 2007
Fundação do Maracatu Rei do Congo, por Rodrigo Damasceno, produtor cultural com passagens pelo Maracatu Vozes D’África e Rei do Congo. Fundação do Maracatu Solar, presidido por Pingo de Fortaleza, compositor cearense. Esse grupo estreou no desfile carnavalesco em 2007. Fundação do Maracatu Nação Axé de Oxóssi, concebido por Fátima Marcelino, brincante com experiências acumuladas em outros Maracatus, como o Az de Ouro e o Kizomba.
2004
Fundação do Maracatu Nação Fortaleza, pelo músico e produtor cultural Calé Alencar, logo após sua saída do Maracatu Az de Ouro.
2002
Fundação da Associação Cultural e Educacional Afro-Brasileira Maracatu Nação Iracema. Por incentivo do jornalista Paulo Tadeu, os brincantes Lúcia Simão, Cleide Simão e William Pereira, ligados ao Grupo de União e Consciência Negra do Ceará (GRUCON), fundaram o Maracatu.
1994 1954 1936
Fundação do Maracatu Nação Baobab, pelos artistas Raimundo Praxedes, Eulina Moura, Descartes Gadelha, Isidoro Santos, Mario Gualberto e Flávio Peixoto.
Maracatus no Ceará: trajetórias possíveis
2006
Fundação do Maracatu Nação Palmares, por Francisco de Assis Daniel de Moura, conhecido por Paul Moura.
Fundação do Maracatu Rei de Paus, liderado pela família Barbosa, vindo do Aracati (CE), com o nome, anteriormente de Ás de Paus, sendo mudado neste ano para Rei de Paus. Fundação do Maracatu Az de Ouro, por Raimundo Boca Aberta. É o grupo de Maracatu mais antigo, em atividade, no Estado do Ceará.
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Capítulo II Memória, tradição e identidade: o Maracatu Cearense e suas facetas
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2.1
Maracatu é carnaval!
um percentual do orçamento municipal era diretamente repassado, no período do Carnaval, à Federação das Agremiações Carnavalescas do Ceará (FACC), entidade representativa das agremiações carnavalescas entre 1949 e 2007, quando a instituição teve suas atividades suspensas. De acordo com o estatuto da Federação, a partir de critérios próprios, ela retinha 20% do valor total e distribuía o restante dos recursos entre os grupos de Maracatu, escolas de samba e blocos de sujos, de acordo com a categoria na qual estivessem inseridos. Havia, portanto, agremiações que recebiam um percentual mais elevado em relação a outras. Durante todo o seu período de atuação, a FACC representou os interesses das agremiações frente à sociedade civil e ao poder público. Quanto aos Maracatus,
era de responsabilidade da FACC pleitear apresentações em datas comemorativas da cidade, buscar apoio de patrocinadores para os desfiles de Carnaval, além de receber o fomento municipal, repassá-lo às agremiações e dele prestar contas ao fim das festas. Mas, em razão da suspensão de suas atividades nos anos 2008 e 2009, a Secultfor arcou sozinha com a organização dos desfiles na Avenida Domingos Olímpio. Para credenciar uma entidade com competência para assumir algumas responsabilidades que antes cabiam à FACC, como a organização dos desfiles das agremiações, a Secultfor lançou, em 2009, o 1º Edital de Chamamento Público. A Associação Cultural das Entidades Carnavalescas do Estado do Ceará (ACECCE) venceu o concurso. Fundada em 1999, essa entidade era responsável, até 2008, pelo apoio às agremiações carnavalescas e pela realização de eventos, como o Dia do Maracatu, em Fortaleza. Com a nomeação, coube à Associação organizar junto à Secultfor os desfiles das agremiações carnavalescas, representar as entidades frente à sociedade civil, captar recursos e elaborar as regras da competição.
Maracatu é carnaval!
Como se viu no decorrer do texto, desde os anos 1937, os desfiles dos Maracatus em Fortaleza ocorrem em caráter competitivo, havendo sucessivas mudanças quanto aos locais de apresentação, de forma que, desde os anos 1990, a apresentação ocorre na Avenida Domingos Olímpio, no Centro da cidade. Sobre os custeios da festa, até o ano de 2007,
Além da nomeação da ACECCE, a criação de uma política de editais, em 2008, foi outra mudança realizada pela prefeitura nas festas carnavalescas. De acordo com depoimento dos funcionários da Secultfor 51
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durante o processo de pesquisa, essa medida foi tomada principalmente com o intuito de estabelecer uma nova forma de repasse da verba municipal às agremiações. Assim, foi criada uma equipe, composta por funcionários da Secultfor para elaborar os editais. Dessa maneira, a partir de 2008, quando foi implementado o edital voltado para as agremiações carnavalescas como os Maracatus, a prefeitura assumiu o repasse direto às agremiações com projeto aprovado, conforme as exigências do edital, quanto às regras específicas para a composição das apresentações carnavalescas e para a ocupação do espaço público pelos brincantes. Antes dos editais, os desfiles ocorriam de acordo com os critérios dos próprios brincantes, com algumas regras postuladas pela FACC e relacionadas aos elementos obrigatórios na competição carnavalesca dos Maracatus. A composição do desfile pode variar de acordo com cada Maracatu ou com o tema de cada grupo, mas algumas alas são permanentes e presentes em todos os grupos, principalmente pelo fato de serem oficializados pela comissão julgadora formada para o desfile de Carnaval e também pela tradição de determinadas alas.
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Sobre os critérios do julgamento, a ACECCE informa que o tempo máximo para o desfile de cada agremiação é de
quarenta minutos, acrescidos de cinco minutos de tolerância. A agremiação que ultrapassar o tempo estabelecido será penalizada com perda de dois pontos para cada minuto excedente. O percurso ocorre na Avenida Domingos Olímpio, com início à Rua Barão de Aratanha, onde é instalado um espaço de concentração fechado no início do portal de entrada, indo até a Rua Senador Pompeu, também com espaço de dispersão fechado após o portal de saída do corredor. Dos quesitos obrigatórios para julgamento, são avaliados porta-estandarte, fantasia, balaieiro, loa, batuque e rainha. Apresentaremos as alas, ou cordões, como denominado por alguns brincantes, e seus personagens, indicando os sentidos do Maracatu Cearense que, numa perspectiva processual, são atualizados historicamente.
Maracatu é carnaval!
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2.2
Cortejo
Maracatu é carnaval!
O cortejo é formado por duas categorias: os cordões, compost0s por um grupo de pessoas que compõem determinada parte do cortejo e compartilham características performáticas; e os personagens, os quais são pessoas que representam uma função simbólica tão importante quanto os cordões. Desse modo, ainda que haja determinadas categorias em todos os grupos, cada qual busca marcar sua distinção através das especificidades do grupo ou de interpretações individuais. Vale salientar que as escolhas dos personagens ocorrem tanto de forma aleatória, como baseadas nas habilidades pessoais dos brincantes, sendo isto entendido por eles como um dom pessoal para tal função.
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É, abre o Maracatu.
(Babi, presidente do Maracatu Leão de Ouro, 15/04/2015).
O baliza é um personagem, comumente representado por homens, que anuncia a entrada do cortejo real, remetido como o bobo da corte que realiza movimentos de desenvoltura para chamar a atenção do desfile que se inicia. Apesar de vários grupos atribuírem valor simbólico ao baliza, muitos não trazem este personagem, principalmente por não ser critério de julgamento no carnaval. Além disso, em relação à escolha do baliza: “Assim, ó: alguns têm que ter, é como eu falei, têm que ter um dom, né? Porque, tipo, você não pode pegar o baliza e chamar qualquer um pra ser o baliza. Não, o cara tem que saber dar uma gingada.”. (Paul, presidente do Maracatu Nação Palmares, 16/04/2015). Esta individualização e propriedade do personagem demonstra como a performance pode agregar valor ao desfile do grupo, afinal, este não é um personagem critério de pontuação durante o carnaval. Ou seja, a composição e a manutenção da tradição do Maracatu não estão, exclusivamente, referidas aos critérios estabelecidos pelo poder público, são realizados também com base nas lógicas próprias dos brincantes.
Maracatu é carnaval!
É quem anuncia a chegada da pajelança, né. Que é todo aquele ritual do Maracatu. Ele anuncia, ele vem dançando na frente, apresentando o que vem atrás
Baliza
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O Maracatu, o símbolo oficial que é o estandarte.
(Babi, presidente do Maracatu Leão de Ouro, 15/04/2015).
Seguido do baliza, vem um personagem anunciando o Maracatu ao público, a partir do estandarte com o nome do grupo e as cores que o compõem e o identificam, como mostraremos nas imagens a seguir. Geralmente, são compostos por três cores que são reconhecidas oficialmente para identificar o grupo. As cores dos estandartes são compostas pelo valor simbólico relacionado à tradição, pela história e pelo nome, ou seja, não servem apenas para adornar o cortejo, mas representam uma continuidade histórica de relações ligadas às trajetórias de cada Maracatu. Entretanto, não significa que os grupos utilizam apenas essas cores em toda composição das fantasias e adornos do cortejo, mas, estampadas no estandarte, demarcam a sua identidade. Logo após o estandarte, vêm as alas do cortejo.
Maracatu é carnaval!
E o estandarte traz o símbolo oficial do Maracatu
Porta-estandarte
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Az de Ouro
Filhos de Yemanjá
Nação Baobab
Nação Fortaleza
Nação Palmares
Nação Iracema
Nação Pici
Fundador: Raimundo Alves Feitosa.
Fundadores: União Espírita Cearense de Umbanda (UECUM).
Fundadores: Grupo de amigos artistas plásticos como Raimundo Praxedes, Euliana Moura, Descartes Gadelha, Isidoro Santos, Douglas, Mário Galberto e Flávio Peixoto.
Fundadores: Calé Alencar e Fátima Lopes.
Fundadores: Grupo de amigos formado por Zezinho, Tarcísio, Agnaldo, Vinícius, Andreza, Iranilda e Júlio Correia.
Fundadores:
Fundador: Carlos Brito.
Cores predominantes: Vermelho, Branco, Amarelo e Ouro. Presidente: Luciano Magalhães.
Cores predominantes: Branco, Prata e Azul. Presidente: Tecla Sá de Oliveira.
Cores predominantes: Azul e Branco.
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Presidente: Maria Janaina Severo da Silva.
Cores predominantes: Vermelho, Amarelo, Azul e Branco. Presidente: Calé Alencar.
Cores predominantes: Preto, Branco e Dourado. Presidente: Paul Moura.
Por incentivo do jornalista Paulo Tadeu, os brincantes Lúcia Simão, Cleide Simão e William Pereira, ligados ao Grupo de União e Consciência Negra do Ceará (GRUCON). Cores predominantes: Azul, Branco e Verde. Presidente: William Augusto.
Cores predominantes: Amarelo, Preto e Azul. Presidente: Carlos Brito.
Rei do Congo
Rei Zumbi
Vozes da África
Rei de Paus
Maracatu Solar
Maracatu Obalomi
Fundadores: Maria de Fátima Marcelino.
Fundador: Rodrigo Damasceno.
Presidente: Maria de Fátima Marcelino.
Presidente: Rodrigo Damasceno.
Cores predominantes: Preto, Branco e Dourado.
Cores predominantes: Amarelo, Preto, Ouro e Prata.
Fundadores: Pingo, Descarte, Tieta, Arnóbio Pontes, integrantes da Associação Solar.
Fundadores: Milton de Sousa.
Cores predominantes: Azul, Branco e Amarelo.
Fundadores: Grupo de intelectuais e poetas encabeçados pelo jornalista Paulo Tadeu.
Fundadores:
Cores predominantes: Verde, Branco e Amarelo.
Fundadores: Antônio Barbosa de Lima conhecido como Antônio Leão.
Presidente: Antônio Barbosa Lima.
Presidente: Francisco Aderaldo.
Antônio Barbosa da Silva , juntamente com seus irmãos Geraldo, José Bernardino e amigos da vizinhança. Cores predominantes: Preto e Branco. Presidente: Francisco José Barbosa da Silva.
Cores predominantes: Amarelo, Marrom e Branco.
Cores predominantes: Azul, Branco, Preto e Dourado. Presidente: Cleyton Martins da Silva.
Maracatu é carnaval!
Axé de Oxóssi
Presidente: Pingo de Fortaleza.
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Índios
Fugindo um pouco, mas continuando na mesma história, esse ano a nossa roupa de índio foi feita lá na tribo dos Tapebas (Paul, presidente do Maracatu Nação Palmares, 16/04/2015).
O fato de os índios virem no início do cortejo, logo após os personagens que anunciam a abertura, remete à História do Brasil, pois foram os primeiros habitantes do território. Muitas transformações aconteceram nesta ala no decorrer das décadas. Segundo o presidente do Nação Baobab, “até a década de 1990, só tinha os índios americanos” (PRAXEDES, 23/04/2015). Sobre isso, o presidente do Nação Palmares afirmou que “antigamente, a gente chamava os índios de índios americanos. Era cocar, calça comprida, e tal... hoje? Foi tirado isso e colocando mais parecido com o índio brasileiro” (PAUL, 16/04/2015). Há ainda o caso em que “os índios são os Tapebas desde quando começou. Nós alugamos o ônibus e pagamos o cachê deles, eles vêm com as roupas deles e nós deixamos eles à vontade” (TECLA SÁ, presidente do Maracatu Filhos de Yemanjá, 05/05/2015). Assim, seria uma homenagem àqueles que sempre estiveram na terra, antes da chegada dos brancos e negros, pelo fato de virem primeiro, como forma de pedir licença a esses habitantes.
Maracatu é carnaval!
A gente já sabe fazer uma roupa de índio...
A ala dos índios é composta por homens e mulheres trajados com fantasias que remetem a uma figura estereotipada. A performance é marcada por movimentos ensaiados e contínuos, sem muitas variações individuais. Nesta ala, em alguns Maracatus, muitas crianças participam devido à maior liberdade de expressão que há neste espaço. Em alguns Maracatus, há também, nesta ala, personagens de índios com maior elaboração performática, ou seja, com adornos mais elaborados. Estes utilizam uma base de ferro suspensa pelas costas, toda enfeitada com plumagens, palhas, tecidos e outros adereços que são, muitas vezes, comprados no comércio local e em lojas virtuais ou físicas especializadas para fantasias carnavalescas, localizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Outras vezes, como descrito na epígrafe, essas fantasias são confeccionadas pelo próprio grupo e por incentivadores.
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Africanos Maracatu é carnaval!
Esta ala remete aos africanos como guerreiros, como lutadores que foram trazidos na condição de escravos. Não se trata da representação do negro escravo, mas da memória da força dos africanos como resistentes e guerreiros, antes de serem trazidos para o Brasil.
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Imaterialidades | Maracatu
Que é montar o balaio todinho ali. Quando eu não consigo, que eu não tenho tempo às vezes, outra pessoa vem, ajeita, organiza ali e bota as frutas direitinho, sabendo o que tá faltando, o que é que tá botando, acrescenta mais, entendeu, pra dar tudo certo na hora. (Brasil, Balaieiro do Az de Ouro, 28/04/2015).
Balaieiro
Dentre os balaieiros do Maracatu Cearense, Joaquim Pessoa Araújo, amplamente conhecido como Mestre Juca do Balaio, foi grande destaque por sua dedicação a essa tradição. Embora tenha participado com maior frequência do grupo Az de Ouro, Mestre Juca sempre manteve diálogo com os mais variados grupos de Maracatus. Sua dedicação foi reconhecida pelo Estado, sendo atribuído ao senhor o título de Mestre da Cultura Tradicional do Estado do Ceará, pela Secretaria de Cultura (Secult-CE), em 2004. O título foi, posteriormente, denominado de Tesouro Vivo do Ceará. Embora tenha se popularizado como balaieiro do Maracatu Az de Ouro, Mestre Juca do Balaio exerceu também a função de tirador de loas e, ainda, membro da diretoria. Em 2006, seu último ano de vida, Mestre Juca foi o homenageado do Carnaval de rua de Fortaleza por iniciativa da Prefeitura.
Maracatu é carnaval!
Este personagem é composto, sobretudo, por homens vestidos com roupas voluptuosas, cuja parte principal é o balaio que carrega sobre a cabeça. Trata-se de um cesto de frutas que é mantido encaixado na cabeça com auxílio de cordão preso abaixo do queixo ou, apenas, pelo próprio equilíbrio do personagem. Simboliza a fartura do cortejo e o alimento é representado como riqueza e poder de agregação para cortejar a rainha.
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Negros Maracatu é carnaval!
Esta ala conta com maiores variações, pois é composta por personagens que não estão presentes em todos os grupos. É o espaço de maior visibilidade dos elementos da cultura afro-brasileira.
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Calunga
roupa, a brincante e a calunga usam a roupa com o mesmo tecido. E esse posto de calungueira, ele foi entregue a uma
A calunga tem grande valor e agência simbólica no Maracatu. Trata-se de uma pequena boneca infantil, pintada de preto e adornada com acessórios diversos. É carregada na mão de uma integrante, com vestimentas de mesmo modelo, e, à medida que a personagem dança, a boneca é exaltada com movimentos leves. Outras vezes, são postas sobre a cabeça de várias integrantes da ala. Como exposto ao longo da descrição acima, percebemos o valor simbólico que a calunga pode ter para alguns grupos, sendo uma figura que remete à noção de sabedoria.
pessoa que brinca há onze anos nessa função, sabe? Ela é também uma pessoa que tem assim uma força espiritual, e que tem uma relação de ter fundado junto com a gente o Maracatu, e é uma pessoa que tá sempre muito presente. Então, por que isso? Porque a calunga, no sentido simbólico, ela tem a mesma importância da rainha.
A calunga é o axé do Maracatu, sabe? Ali, naquela bonequinha, vestidinha, ali, pode tá só um adereço de mão, mas o nosso olhar não é esse. Ali está a força, a energia, assim, que a gente devota, que a gente olha e sente uma relação, assim de espiritual. Abstraindo a questão
Maracatu é carnaval!
Esse cordão de negras, ele é aberto por uma negra que carrega a calunga. No nosso caso, a gente faz sempre a mesma
do Maracatu, é uma bonequinha vestida. Mas ela ali, dentro daquele cortejo, todo mundo sente essa vibração, sabe, porque é uma relação, assim, simbólica, da espiritualidade. Aí é que vem esse viés do negro (Calé Alencar, presidente do Nação Fortaleza, 30/04/2015).
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Casal de preto velho Maracatu é carnaval!
Estes personagens trajam roupas brancas ou cores claras, representando a ala da macumba, como curandeiros. Tendo, para alguns grupos, significado religioso, geralmente, o casal de pretos velhos vem no final da ala, simbolizando, entre outras coisas, as religiões de matriz africana.
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Umas dez, quinze pessoas que fazem. “Gente, tem que colar essas pontas aqui...” [...]
São da comunidade, são pessoas da ala das baianas (Ronaldo, Integrante do Maracatu Nação Pici, 17/04/2015).
Nesta ala, há um número significativo de participantes. A quantidade de pessoas depende mais do orçamento do grupo do que da quantidade de pessoas motivadas a participarem. Importa salientar que para esta ala são buscadas mulheres mais velhas, proporcionando espaços de maior integração para uma faixa etária, como também acontece na ala dos índios em relação às crianças. Outro aspecto interessante é que parte das pessoas que compõem essa ala são mães e filhos de santo de terreiro, convidados pelos grupos para se apresentarem no desfile de Carnaval.
Maracatu é carnaval!
Às vezes, as baianas vêm, sentam e ficam na máquina de costura, revezam com outra, aí eu digo:
Baianas
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Capoeira e maculelê Maracatu é carnaval!
Nesta ala, não muito usual, há grupos de capoeira ou de maculelê, que representam a permanência da cultura negra. Esta ala remete aos negros africanos ou aos negros escravos libertos que jogam, dançam e brincam livremente pela avenida.
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Orixás Maracatu é carnaval!
A inserção dos orixás em vários grupos de Maracatu aconteceu a partir de homenagens ou pela relação com os temas escolhidos para o cortejo, que remetia a algum orixá. Assim, de acordo com o tema, o grupo homenageava um orixá específico. No entanto, “hoje em dia, quase todos os Maracatus botam orixás, independente do tema, tem seus orixás” (Lucy, presidente do Maracatu Az de Ouro, 16/04/2015).
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Corte
Quando você está ali, naquele momento, você está no ponto mais alto. Não que você vá olhar as pessoas de baixo para cima. Mas, assim, você consegue ver nos olhos das pessoas o respeito, a admiração, a alegria. [...]
Se o carnaval é o principal momento para o Maracatu Cearense, a corte é o ápice de todo o cortejo. Composta por alguns vassalos, há também casais de príncipes e princesas, vestidos com roupas longas e robustas, com detalhes brilhosos, que desfilam antecedendo as grandes atrações do cortejo que são o rei e, principalmente, a rainha. Todas as alas e personagens são prenúncios remetidos ao rei e à rainha, vestidos com as roupas mais volumosas e ricamente detalhadas, além dos adornos que as compõem. Estas vestimentas são as peças de maior custo para os grupos, devido à quantidade de adornos, bordados e de tempo para serem elaboradas e confeccionadas.
Pessoas que levam sua cadeirinha para a Avenida, sentam lá, aquelas senhoras... E foi um momento, assim, que para mim, eu vinha passando, aquelas senhoras querendo, chamando para a gente pegar na mão. Aí, eu vi uma
Maracatu é carnaval!
A rainha é o personagem que veste a roupa mais cara do Maracatu. E eu acho que é muito gratificante.
senhorinha agarrada no ferro, chorando e gritando pelo nome do meu Maracatu. Aí isso aí, para a gente, para mim, é capaz, assim, de me derrubar. É muito bom mesmo, é gratificante você ver pessoas que sentem carinho (Lucy, presidente do Maracatu Az de Ouro, 16/04/2015).
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Mas a apresentação de Carnaval não é somente entretenimento. Entre outros aspectos, nesse momento, os integrantes dos Maracatus apresentam suas criações, reivindicações e visões de mundo à sociedade. Em torno do Carnaval, os brincantes tecem socialmente uma rede de relações para manter a existência de cada Maracatu. Para o êxito da apresentação, por todo ano, os brincantes trabalham para a preparação da festa. Ao findar o carnaval, iniciam-se os trabalhos do desfile do ano seguinte, ou seja, tomam-se decisões sobre o tema, as homenagens, a confecção das fantasias, além das inovações que são iniciadas com as participações de integrantes e incentivadores dos grupos.
O evento desencadeia, ao longo do ano, uma rede de relações sociais constituída muito além das fronteiras geográficas e da temporalidade da festa. A preparação para o Carnaval não envolve apenas as pessoas que compõem o desfile em si, pois há uma mobilização social de moradores do bairro, onde se concentra o grupo, como também de pessoas de outras localidades, que contribuem para a confecção do figurino e dos adereços. Além disso, vários adornos utilizados nas fantasias são adquiridos no comércio da cidade ou através de lojas virtuais sediadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. A festa congrega em torno de duzentos participantes, mas somente uma parte se mantém envolvida nas atividades realizadas no decorrer do ano, sendo os membros da presidência de fundamental importância para a manutenção da existência e as tomadas de decisões de cada Maracatu.
Maracatu é carnaval!
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Assim, comumente, pessoas que nunca desfilaram no Maracatu contribuem com a costura de figurinos ou confecção de adornos de forma voluntária, motivadas pela relação que têm com algum integrante ou pelo sentimento de orgulho em contribuir com a elaboração do Maracatu. Os preparativos mais intensos da festa, como os ensaios, iniciam-se somente próximo ao Carnaval, quando a maioria dos grupos ensaia pelas ruas do próprio bairro, 85
Imaterialidades | Maracatu
cujo público e integrantes, muitas vezes, são parentes ou mantém algum vínculo afetivo. Afinal, essas relações não são vinculadas apenas por interesses comerciais, mas também pelo sentimento e motivação de ser parte, não só de um Maracatu, mas de um grupo social, conforme indica a fala a seguir: - ǥɀȳɀ DZɸ ʦLjȪDZȓԦ ɝɸDZɥʧǠɀ ǫDZ LjȳȓʡLjǫDZԧ ȶDzԭ ȅDZȶɯDZ ɯDZȳ ȳɸȓʧLj LjȳȓʡLjǫDZԧ ȅɞLjǨLjɥ Lj &DZɸɥԩ ȕԧ LjȪȅɸȶɥ Ljȳȓȅɀɥ ɝɸDZ Ȣlj ȎLjʐȓLjȳ ɛLjɞɯȓǥȓɛLjǫɀ ǫDZ iLjɞLjǥLjɯɸԧ ɀɸɯɞɀɥ ǫDZ DZɥǥɀȪLj ǫDZ ɥLjȳǤLjԧ ɥLjǤDZȶǫɀ ǫɀ ȳDZɸ ȓȶɯDZɞDZɥɥDZԧ Ljȕ DZȶǫɀɥɥLjɞLjȳԧ ȶDzԭ ՜vԧ ɥDZ ʐɀǥǵ ǤɀʧLjɞԧ Lj ȅDZȶɯDZ ʧlj ǥɀȶɯȓȅɀ DZ ɯɸǫɀԬԬԬ՝ ,ȶʧǠɀ Lj ȅDZȶɯDZ Ȣɸȶɯɀɸ DZɥɥDZ ɛɀʐɀԧ ȢɸȶʧLjȳDZȶɯDZ com a parte da diretoria que somos doze componentes, presidente, ʐȓǥDZՒɛɞDZɥȓǫDZȶɯDZԧ LjȪȅɸȶɥ ɀɸɯɞɀɥ ǥLjɞȅɀɥԧ Ljȕ ȓȶǥȪɸȕ ȳȓȶȎLj ʦLjȳȕȪȓLjԧ ɛɀɞɝɸDZ ȳȓȶȎLj ʦLjȳȕȪȓLj ʧLjȳǤDzȳ Dz ȳɸȓɯɀ ȓȳɛɀɞʧLjȶɯDZ ȶDZɥɥDZ ȳɀȳDZȶɯɀԧ Ȅɀȓ ȳɸȓɯɀ ȓȳɛɀɞʧLjȶɯDZԬԬԬ iȓȶȎLj ȳǠDZ ɯDZȳ ɝɸLjɥDZ ҸҰ Ljȶɀɥ DZԧ ȶɀɥ ǫɀȓɥ Ljȶɀɥ ɥDZȅɸȓǫɀɥԧ DZȪLj DZɥʧlj Ȫlj ȶLj LjʐDZȶȓǫLj LjȢɸǫLjȶǫɀ Lj ǤɀʧLjɞ ɀ iLjɞLjǥLjɯɸ ȶLj LjʐDZȶȓǫLj Ȣɸȶɯɀ ǥɀȳ Lj ȅDZȶɯDZԩ Lɥɥɀ Dz DZȳɀɯȓʐɀԧ ȅɞLjɯȓ̇ǥLjȶɯDZ DZ ɯɸǫɀ ǫDZ Ǥɀȳ ɝɸDZ ʐɀǥǵ ɛɀǫDZ ɯDZɞԬԬԬ ȕԧ ʐɀǥǵ ȓȳLjȅȓȶLj ʐɀǥǵ ɯDZɞ ɥɸLj ʦLjȳȕȪȓLj ȪȎDZ ǫLjȶǫɀ Ljɥɥȓȳ ɸȳ Ljɛɀȓɀ ȶɀ ɥDZɸ ɥɀȶȎɀ Յ LjɸȪԧ ɛɞDZɥȓǫDZȶɯDZ ǫɀ iLjɞLjǥLjɯɸ lLjǨǠɀ LjȪȳLjɞDZɥԧ ұҶԲҰҴԲҲҰұҵՆԬ
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Assim, uma questão analítica importante para pensar nesta publicação seriam os sentidos que mobilizam tantas pessoas na organização e manutenção dessa prática no Ceará. Vale destacar que a maioria dos grupos de Maracatu está localizada em bairros da periferia de Fortaleza, cujos problemas decorrentes da desigualdade social são comuns.
O mapa a seguir mostra a localização dos grupos na cidade de Fortaleza, Ceará.
„
⬛ Regional I ⬛ Regional II ⬛ Regional III ⬛ Regional IV ⬛ Regional V ⬛ Regional VI
Maracatu é carnaval!
⬛ Regional Centro
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Imaterialidades | Maracatu
2.3
Maracatu,
instrumento de visibilidade e mobilização social!
O preconceito é uma das práticas mais recorrentes sofridas pelos integrantes dos Maracatus, seja por ser “coisa de negro” e “macumbeiro” ou “um monte de veado”, conforme os relatos dos brincantes entrevistados. Entendendo o preconceito como uma prática social, é possível perceber como ações e omissões são estabelecidas socialmente, seja pelo processo de invisibilização de uma prática ou por estratégias criadas como resposta ao desconhecimento. A própria rejeição ou reconhecimento da cultura negra no Ceará predispõe a desvalorização de ser negro, acarretando
a negação ou vergonha de se afirmar como tal. Afinal, há um consenso sobre as contribuições e relações entre os colonizadores e os índios na constituição do Estado, onde a figura do negro é estigmatizada como exemplo de rejeição social. Assim, o Carnaval se coloca como importante espaço para a difusão e reconhecimento dessa prática cultural, pois é nesse momento que os Maracatus se expressam como a principal manifestação negra da cidade, ganhando visibilidade e reconhecimento étnico. Afinal, a própria elaboração do Maracatu integra pessoas das mais variadas faixas etárias, com o intuito de manter uma manifestação da cultura negra. Outro elemento que aciona o preconceito é o vínculo de alguns integrantes dos Maracatus com religiões de matriz africana. Isto é, muitas vezes, visto de forma pejorativa e temerosa pelo próprio preconceito que há no Estado em relação a essas religiões, como ilustrado na fala abaixo: ՃԬԬԬՄ ɝɸLjȶǫɀ Lj ȅDZȶɯDZ ʐLjȓ ǥɀȶʐȓǫLjɞ LjȪȅɸȳLjɥ ɛDZɥɥɀLjɥԧ ȶɀɞȳLjȪȳDZȶɯDZ DZȪLjɥ ʦLjȪLjȳԦ ՜ Ȏԧ DZɸ ȶǠɀ ʐɀɸ ʦLjʡDZɞ ɛLjɞɯDZԧ ȶǠɀԧ ɛɀɞɝɸDZ ȓɥɥɀ Dz ȳLjǥɸȳǤLjԧ DZɸ ȶǠɀ ȅɀɥɯɀ ǫDZ ȳLjǥɸȳǤLjԬ Lɥɥɀ Dz ǥɀȓɥLj ǫɀ ǥǠɀԧ ǥɀȓɥLj ǫɀ ǫȓLjǤɀ՝Ԭ lǠɀԧ ɀ iLjɞLjǥLjɯɸ ȶǠɀ Dz ȳLjǥɸȳǤLjԬ u iLjɞLjǥLjɯɸ ȶǠɀ Dz ǥLjȶǫɀȳǤȪDzԬ u iLjɞLjǥLjɯɸ Dz ɸȳ ǥɀɞɯDZȢɀ ɞDZȪȓȅȓɀɥɀ ɝɸDZ Ȅɀȓ ɯɞLjʡȓǫɀ ǫLj ȄɞȓǥLj ɛLjɞLj ɀ ɞLjɥȓȪԬ - ɸȳLj ɞDZȄDZɞǵȶǥȓLj Ljɀɥ ȶDZȅɞɀɥԧ ʧljԧ DZ ȶǠɀ
Maracatu, instrumento de visibilidade e mobilização social!
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Imaterialidades | Maracatu
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ՃԬԬԬՄ ȳDZɥȳɀ ɞDZɥɛDZȓʧLjȶǫɀ DZɥɥLj ȄɀɞȳLjǨǠɀ ɯɞLjǫȓǥȓɀȶLjȪԧ ɛɀɞɝɸDZ Lj ȅDZȶɯDZ ɯDZȳ ɯɀǫɀɥ ɀɥ DZȪDZȳDZȶɯɀɥ ǫɀ iLjɞLjǥLjɯɸ ȎȓɥɯɁɞȓǥɀ ɯɞLjǫȓǥȓɀȶLjȪԧ ȳLjɥ Lj ȅDZȶɯDZ ʐLjȓ ȓȶ̈ɸȓȶǫɀԬ ɀɞɝɸDZ ʧLjȳǤDzȳ Dz ɸȳLj ɛɞDZȳȓɥɥLj ǫɀ iLjɞLjǥLjɯɸ lLjǨǠɀ >ɀɞʧLjȪDZʡLj LjɛɀɥʧLjɞ ȶLj ǫȓȶǑȳȓǥLjԧ ǥɀȶʐȓʐDZɞ ǥɀȳ Lj ǥɞȓLjɯȓʐȓǫLjǫDZ ǫDZȶɯɞɀ ǫDZ ɸȳLj DZʖɛɞDZɥɥǠɀ ǥɸȪɯɸɞLjȪ ɝɸDZ ȶǠɀ ɥDZ ɛɞDZɯDZȶǫDZ DZɥʧLjȶɝɸDZԧ ɝɸDZ ȶǠɀ ɥDZ ɛɞDZɯDZȶǫDZ ȓȳɁʐDZȪԧ ȶDzԭ - ǥɸȪɯɸɞLjԧ DZȶʧǠɀԧ Lj ȅDZȶɯDZ DZɥʧlj ǥɞȓLjȶǫɀԬ ¤ɀǫɀ Ljȶɀ Lj ȅDZȶɯDZ ǥɞȓLj ɸȳLj ǥɀȓɥLj ȪDZȅLjȪԧ ǤɀȶȓʧLjԧ ɝɸDZ ȳɀɥɯɞLj Lj ȄDZɥʧLj ǫLj ȶɀɥɥLj ǥLjɥLjԧ ɝɸDZ Lj ȅDZȶɯDZ ȪDZʐLj ɛLjɞLj ɞɸLj Յ LjȪDz ȪDZȶǥLjɞԧ ɛɞDZɥȓǫDZȶɯDZ ǫɀ iLjɞLjǥLjɯɸ lLjǨǠɀ >ɀɞʧLjȪDZʡLjԧ ұҷԲҰҴԲҲҰұҵՆԬ
Ê
Como se percebe, o Maracatu é, portanto, instrumento de visibilidade social, espaço de criação, inovação e também de construção identitária.
Maracatu, instrumento de visibilidade e mobilização social!
do desfile de Carnaval, pois criatividade e inovação são os elementos-chave para realizar um bom desfile. Sobre isto, Calé Alencar disse que:
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92 Imaterialidades | Maracatu
2.4
Maracatu é tradição!
A segunda observação a ser feita é a constatação do aspecto normativo da tradição. Ou seja, por meio dos processos de vivência e experiência da cultura (do popular) vão se instaurando certas normas, regras, padrões; certos preceitos, modelos e/ou hábitos. De certa forma, esse sentido de tradição denota a ideia de enrijecimento, mas também, é importante sublinhar, cria um terreno familiar, confortável, bem como sentimentos de identidade. Entretanto, na sequência, Câmara Cascudo faz outra observação muito importante, observação que coaduna com as concepções mais atuais sobre a noção de tradição e adotada pela política do patrimônio imaterial: trata-se da percepção que entende a cultura (do popular) como aberta ao novo, aos “dados recentes” também tornados tradicionais. Tanto é que, no final da citação, o autor afirma que nessa área há tanto a conservação, a dependência e a manutenção de padrões, quanto a remodelação e o abandono de elementos que se esvaziaram de sentidos.
- Lj ǥɸȪɯɸɞLj ǫɀ ɛɀɛɸȪLjɞԧ tornada normativa pela tradição. ɀȳɛɞDZDZȶǫDZ ɯDzǥȶȓǥLjɥ DZ ɛɞɀǥDZɥɥɀɥ ɸɯȓȪȓʧljɞȓɀɥ ɝɸDZ ɥDZ ʐLjȪɀɞȓʡLjȳ ȶɸȳLj LjȳɛȪȓLjǨǠɀ DZȳɀǥȓɀȶLjȪԧ LjȪDzȳ ǫɀ ǑȶȅɸȪɀ ǫɀ ȄɸȶǥȓɀȶLjȳDZȶɯɀ ɞLjǥȓɀȶLjȪԬ ȳDZȶʧLjȪȓǫLjǫDZԧ ȳɁǤȓȪ DZ ɛȪljɥɯȓǥLjԧ torna tradicionais os dados recentes, ȓȶɯDZȅɞLjȶǫɀՒɀɥ ȶLj ȳDZǥǑȶȓǥLj LjɥɥȓȳȓȪLjǫɀɞLj ǫɀ ʦLjɯɀ ǥɀȪDZɯȓʐɀԧ ǥɀȳɀ Lj ȓȳɁʐDZȪ DZȶɥDZLjǫLj ǫlj Lj ȓȪɸɥǠɀ ǫLj ɛDZɞȳLjȶǵȶǥȓLj DZɥʧljɯȓǥLjԧ embora renovada na dinâmica das águas vivas. u ȄɀȪǥȪɀɞDZ ȓȶǥȪɸȓ ȶɀɥ ɀǤȢDZɯɀɥ DZ ȄɁɞȳɸȪLjɥ ɛɀɛɸȪLjɞDZɥ ɸȳLj ɝɸLjɞʧLj ǫȓȳDZȶɥǠɀԧ ɥDZȶɥȕʐDZȪ Ljɀ LjȳǤȓDZȶɯDZԬ lǠɀ LjɛDZȶLjɥ ǥɀȶɥDZɞʐLjԧ ǫDZɛDZȶǫDZ DZ ȳLjȶɯDzȳ ɀɥ ɛLjǫɞəDZɥ ȓȳɛDZɞɯɸɞǤljʐDZȓɥ ǫɀ DZȶɯDZȶǫȓȳDZȶɯɀ DZ ǫLj LjǨǠɀԧ ȳLjɥ ɞDZȳɀǫDZȪLjԧ ɞDZʦLjʡ ɀɸ LjǤLjȶǫɀȶLj DZȪDZȳDZȶɯɀɥ ɝɸDZ ɥDZ DZɥʐLjʡȓLjɞLjȳ ǫDZ ȳɀɯȓʐɀɥ ɀɸ ̇ȶLjȪȓǫLjǫDZɥ ȓȶǫȓɥɛDZȶɥljʐDZȓɥ Lj ǫDZɯDZɞȳȓȶLjǫLjɥ ɥDZɝɸǵȶǥȓLjɥ ɀɸ ɛɞDZɥDZȶǨLj ȅɞɸɛLjȪ Յ i ò «&uԧ ɥԲǫԧ ɛԬ ҴҰҰ Ր ȅɞȓȄɀɥ ȶɀɥɥɀɥՆԬ Em suma, uma prática ou manifestação cultural O primeiro ponto a se observar na definição elaborada por considerada “tradicional” não é, de forma alguma, Câmara Cascudo é a relação entre “folclore”, “cultura do unicamente composta por uma estrutura rígida e fechada popular” e “tradição”. Essa relação claramente estabelecida ao diálogo com os tempos presente e futuro; algo herdado nos possibilita nos valermos da sua argumentação para de um passado remoto e mantido tal como antes ao longo pensar e discutir a noção de tradição – noção importante da sua trajetória. Isso não quer dizer que elementos e padrões herdados e mantidos não existam, entretanto, na política do Patrimônio Cultural imaterial.
Maracatu é tradição!
Na sua obra Dicionário do Folclore Brasileiro, Luís da Câmara Cascudo (s/d) tece a seguinte definição de “folclore” – sentido que, por sua vez, nos ajudará a discutir a noção de tradição:
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Imaterialidades | Maracatu
11 O esforço em justificar o emprego do termo “tradição”, com sentido idêntico ao que acabamos de apresentar também está presente na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, da Unesco (2003).
busca-se sublinhar que o folclore, a cultura do popular ou as manifestações culturais ditas tradicionais são realizadas, mantidas e perpetuadas por pessoas situadas num tempo e num espaço que também sofrem transformações; pessoas do presente que não são as mesmas do passado; pessoas no plural, que possuem gostos e visões próprias, nem sempre conflitantes, mas diferentes. Logo, as práticas e manifestações culturais inevitavelmente passam por atualizações e mudanças sem, contudo, perderem o sentido de tradicional, pois a principal força de uma “cultura” tradicional não está no seu enrijecimento, mas no seu vínculo com o passado: é aquilo que a política do patrimônio imaterial chama de “continuidade histórica”.
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A noção de “continuidade histórica” dos bens culturais imateriais está relacionada ao entendimento de tradição ora apresentado. Segundo os formuladores da política federal do patrimônio imaterial, a noção de “continuidade histórica” foi escolhida em detrimento da “autenticidade” (MinC/IPHAN, 2012, p. 10). Pois esta ideia, utilizada durante muito tempo no campo do patrimônio material com os sentidos de pureza, verdade e originalidade, não é a mais adequada quando se trata do patrimônio imaterial, composto, segundo o entendimento da área, de bens culturais “vivos”. Desta feita, ao empregar a noção de continuidade histórica, busca-se identificar a presença de uma determinada manifestação cultural no tempo,
sobretudo sua continuidade e dinâmica de transformação, suas características “essenciais” e “a tradição à qual se vinculam” (MinC/Iphan, 2012, p. 10). A intenção de não confundir tradição11 com conservadorismo e tradicionalismo tem levado os documentos que dão forma às políticas do patrimônio imaterial a sempre justificarem o emprego do termo tradição. Na Resolução 001/2006, normativa que regulamentou o Registro dos bens culturais de natureza imaterial em âmbito federal, a questão foi expressa da seguinte forma: ՃԬԬԬՄ ɯɀȳLjՒɥDZ ɯɞLjǫȓǨǠɀ ȶɀ ɥDZɸ ɥDZȶɯȓǫɀ DZɯȓȳɀȪɁȅȓǥɀ ǫDZ ՜ǫȓʡDZɞ LjɯɞLjʐDzɥ ǫɀ ɯDZȳɛɀ՝ԧ ɥȓȅȶȓ̇ǥLjȶǫɀ ɛɞljɯȓǥLjɥ ɛɞɀǫɸɯȓʐLjɥԧ ɞȓɯɸLjȓɥ DZ ɥȓȳǤɁȪȓǥLjɥ ɝɸDZ ɥǠɀ ǥɀȶɥʧLjȶɯDZȳDZȶɯDZ ɞDZȓɯDZɞLjǫLjɥԧ ɯɞLjȶɥȄɀɞȳLjǫLjɥ DZ LjɯɸLjȪȓʡLjǫLjɥԧ ȳLjȶɯDZȶǫɀԧ ɛLjɞLj ɀ ȅɞɸɛɀԧ ɸȳ ʐȕȶǥɸȪɀ ǫɀ ɛɞDZɥDZȶɯDZ ǥɀȳ ɀ ɛLjɥɥLjǫɀ Յiȓȶ ԲL G lԧ ҲҰұҲԧ ɛԬ ұҶՆԬ Não há dúvidas de que o sentido de tradição traçado pela política federal do patrimônio imaterial, mas também pela política municipal de Fortaleza, pois, a política federal é a principal referência para as ações na área, está em sintonia com a definição elaborada por Câmara Cascudo. Dizer através do tempo, ou seja, as práticas e manifestações culturais tidas como tradicionais possuem um forte vínculo com o tempo passado (e também presente). A potencialidade de conectar passado, presente e futuro deve ser o elemento principal a ser identificado, reconhecido e valorizado nas culturas
O negrume é uma pintura facial feita geralmente com uma tinta artesanal de cor preta, composta por vaselina, óleos minerais, talco e fuligem de lamparina. Há grupos que compram uma tinta própria de cor também escura. Quase todos os personagens pintam o rosto com essa tinta preta, como forma de representação e homenagem aos negros. Apenas os índios, os orixás e os convidados, que são personagens criados de acordo com o tema do carnaval de determinado grupo, não utilizam o negrume. Essa tintura é utilizada para pintar, apenas, o rosto ou de forma que cubra toda pele que escape ao figurino, nestes casos procurase esconder qualquer visualização da parte da pele do integrante. Além dessas formas, vale destacar que há em um dos maracatus cearenses a inovação quanto o uso da tinta preta na face, de forma que utilizam outras cores, como azul e branco, os brincantes não pintam necessariamente os rostos apenas com o negrume, mas utilizam também outras cores de tintas na face, com o sentido de inovar, gerando alguns pontos de tensão com os demais grupos, sobretudo com aqueles tidos como os mais tradicionais da cidade, tais como o Rei de Paus e o Az de Ouro.
O fato da utilização do negrume não se resume à dimensão da representação, mas também de visibilidade da negritude autoafirmada por muitos integrantes do Maracatu. Porém, outra versão indicada, sobre o uso do negrume, é que “essa história de negro é de um tempo desses pra cá. Havia as festas de escravos, mas ninguém queria se pintar para sair de escravo. [...] Não tinha outra maneira de se pintar, o cara não queria ser visto como mulher” (PRAXEDES, presidente do Nação Baobab, 23/04/2015). Mesmo que não seja utilizado de um mesmo modo, importa considerar que o negrume é umas das principais especificidades do Maracatu Cearense, tido como um dos elementos mais tradicionais da manifestação. Sua utilização decorre do uso tradicional e simbólico de identificação à expressão cultural. Assim, seu uso é recorrentemente reivindicado pelos integrantes dos Maracatus, como símbolo importante para caracterização e identificação da tradição do Maracatu. Afinal, “quando eu digo tradicional é um Maracatu com o rosto pintado de preto, com aquelas roupas grandes, bordadas. Não é um Maracatu que sai sem pintar o rosto, ou seja, é um Maracatu com todos aqueles caracteres de um Maracatu Cearense” (Rodrigo, Rei do Congo, 29/04/2015).
Maracatu é tradição!
ditas “tradicionais”. No Maracatu Cearense, como se viu, os elementos que, por um lado, melhor denotam a existência de padrões “antigos” e, por outro, revelam as tensões entre os grupos, é a introdução de “dados recentes” na pintura facial com tinta preta (ou negrume) e no ritmo musical.
Para muitos grupos e brincantes, o negrume é uma forma de sublinhar e homenagear a herança cultural afro-brasileira. Dentro desta mesma linha interpretativa, outros, 95
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sobretudo discursos ideológicos externos aos grupos, afirmam que o negrume é a evidência da “inexistência” de negros no Ceará, daí a necessidade de um “falso negrume” teatralizado. Outros, ainda, argumentam que a pintura era uma forma de criar certa “invisibilidade” (da pessoa, não do personagem), devido a preconceitos mais acentuados em outras épocas, pintura que acabou sendo normatizada pela tradição (pelo tempo), não tendo relação direta com questões afro-brasileiras. Considerando as duas primeiras justificativas ou interpretações, a relação entre o Maracatu Cearense e as questões afro-brasileiras é evidente. Mesmo naquela que diz ser a pintura uma comprovação da ausência do negro e suas manifestações culturais no Estado do Ceará, ela não invalida a relação, pois esta é a intenção de se cobrir com o negrume.
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Entretanto, por variados motivos, atualmente o uso do negrume não é ponto pacífico entre grupos e brincantes do Maracatu Cearense. Os motivos são particulares de cada um e, nem sempre, por ser ponto polêmico, foi possível acessá-los nesta pesquisa. Alguns dos Maracatus de Fortaleza têm se recusado a fazer uso do negrume; outros, em alguns momentos, têm pintado apenas um lado do rosto e, por vezes, utilizado outras cores e formas para tanto.
Sobre tudo isto, pode-se entender que, se o uso do negrume é uma forma de sublinhar e homenagear a herança afrobrasileira e, de certa forma, satisfazer a ideia limitada que entendia que ser negro era ter a pele “preta”, atualmente não é mais necessário a pintura, pois uma nova configuração social e cultural no Brasil passou a entender que ser negro é muito mais que ter a pele “preta”. Ou, ainda, se a pintura do corpo tinha como função criar uma invisibilidade e evitar os preconceitos de épocas anteriores, não estando diretamente ligada a questões afro-brasileiras, não haveria problemas em fazer uso de outras cores; ou, à medida que o preconceito foi “superado” ou não é mais sustentado por uma política de Estado, também é possível fazer da pintura que tinha uma função prática e se tornou tradição como algo teatral, cobrindo apenas, por exemplo, um lado do rosto. Contudo, até que determinados elementos da tradição contestados sejam aceitos, infringi-los tem lá os seus pesares. Tão importante é a pintura facial ou corporal com o negrume para a “identidade” do Maracatu Cearense que, atualmente, no concurso que ocorre no Carnaval de Fortaleza entre os Maracatus, este é critério de pontuação e os grupos que não se pintam são penalizados com a perda de pontos. Sem dúvida, surgirá a indagação: mas e a dinamicidade da “tradição”, sua abertura para os “dados recentes”? Acreditamos que essa é uma questão pertinente para reflexão entre os grupos e brincantes do Maracatu Cearense. Do ponto de vista do
As questões em torno do uso ou não do negrume trazem à tona as tensões, hierarquias e conflitos que existem no Maracatu Cearense; evidenciam as relações de poder que existem na manifestação cultural. Mas isso não é algo familiar apenas ao Maracatu Cearense. É familiar ao campo das culturas, das representações, identidades e tradições culturais. São questões comuns, portanto, ao campo do Patrimônio Cultural e Canclini (1994, p. 97) tem feito observações importantes sobre elas, denominando-as de “hierarquia dos capitais culturais”. Entretanto, nem por isso o Maracatu Cearense deixa de ser uma manifestação cultural importante para a memória, a ação e a identidade das pessoas, grupos e comunidades que levam essa “brincadeira” muito a sério na atualidade. Da mesma forma, ele não deixa de ser uma das manifestações mais marcantes da vida cultural fortalezense. A música, forma de expressão de grande importância no Maracatu Cearense, é outro tema no qual as questões discutidas anteriormente são recorrentes. Para fazer uma comparação, o ritmo considerado característico e “tradicional” do Maracatu Cearense é lento, cadenciado.
Isso lhe confere uma singularidade sonora. No capítulo anterior deste relatório, essa característica do ritmo foi apresentada como tendo uma relação ao lamento dos escravos, e a marcação estridente do ferro (instrumento fundamental da “bateria”), à batida das correntes que os aprisionavam. Essa característica da musicalidade do Maracatu Cearense também é importante na legitimação de um (novo) grupo, sobretudo por parte dos Maracatus mais antigos e guardiões dos valores “tradicionais”. Contudo, também não é ponto pacífico no Maracatu Cearense, o que tem suscitado a introdução de ritmos mais acelerados entre os grupos. Não iremos aqui aprofundar a discussão sobre a música, mas gostaríamos de fazer apenas uma observação sobre o ritmo musical no Maracatu Cearense.
Maracatu é tradição!
atual estágio do entendimento de cultura e tradição, a introdução dos “dados recentes” é compreensível. Se a brincadeira deixa ou não de ser Maracatu Cearense por não usar a pintura com o negrume, essa é uma decisão que concerne aos detentores da manifestação cultural.
Na dissertação de mestrado de Silva (2004), intitulada “Vamos Maracatucá!!!: um estudo sobre os Maracatus cearenses”, a pesquisadora faz uma observação importante, de certa forma polêmica, sobre o ritmo musical e que envolve, diretamente, o tema da tradição. Utilizando como fonte as partituras musicais das loas dos Maracatus cearenses, a autora chegou ao seguinte resultado: uɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥ ǫLj ǫDzǥLjǫLj ǫDZ ұҹҳҰ ɯȓȶȎLjȳ ɸȳ ɞȓɯȳɀ ȳLjȓɥ LjǥDZȪDZɞLjǫɀ ՅԬԬԬՆԬ ɀɞ ȳLjȓɥ ǫDZ ǫDZʡ Ljȶɀɥԧ Ȅɀȓ DZɥɥLj ǤLjɯȓǫLj ɝɸDZ ȓȶ̈ɸDZȶǥȓɀɸ ɀɥ ȅɞɸɛɀɥ DZʖȓɥɯDZȶɯDZɥԬ lLj ǫDzǥLjǫLj ǫDZ ұҹҵҰ ǫɀ ȳDZɥȳɀ 97
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ɥDzǥɸȪɀԧ ɀ iLjɞLjǥLjɯɸ ʡ ǫDZ ,ɥɛLjǫLj ȓȶɯɞɀǫɸʡȓɸ ɸȳLj ȶɀʐLj ǤLjɯȓǫLj ȳLjȓɥ ȳɀǫDZɞLjǫLjԧ ǥɀȳɛLjɥɥLjǫLjԬ ,ɥɥDZ ɞȓɯȳɀ Ȅɀȓ ʧǠɀ ʦLjɥǥȓȶLjȶɯDZ ɝɸDZ ɯɀǫɀɥ ɀɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥ ɛLjɥɥLjɞLjȳ Lj ɸɯȓȪȓʡljՒȪɀԧ ɯɞLjȶɥȄɀɞȳLjȶǫɀՒɥDZ ȶLj ȳLjɞǥLj ǫɀɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥ ǥDZLjɞDZȶɥDZɥ Յ L`Ã ԧ ҲҰҰҴԧ ɛԬ ҵҹՆԬ Chama-se a aferição da autora de “polêmica”, porque ela põe em xeque um dos discursos mais fortes quando se evoca a tradição e a identidade do Maracatu Cearense. Resgatando as observações feitas por Câmara Cascudo e citadas há um bom tempo, bem como considerando os resultados da pesquisa de Silva (2004), é possível argumentar que o ritmo mais “moderado” foi um “dado recente” introduzido em um determinado momento da trajetória do Maracatu Cearense e tornado “tradicional” com o tempo. No entanto, o ritmo aceito hoje como “tradicional” e marca forte da identidade da manifestação cultural não é aquele que poderíamos chamar de “original”. Dessa forma, tomando o ritmo do Maracatu Cearense nos dias de hoje, estaríamos diante de um caso exemplar do que Hobsbawm (1997, p. 9) conceituou como “tradição inventada”. Segundo o historiador inglês:
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ɀɞ ՜ɯɞLjǫȓǨǠɀ ȓȶʐDZȶʧLjǫLj՝ DZȶɯDZȶǫDZՒɥDZ ɸȳ ǥɀȶȢɸȶɯɀ ǫDZ ɛɞljɯȓǥLjɥԧ ȶɀɞȳLjȪȳDZȶɯDZ ɞDZȅɸȪLjǫLjɥ ɛɀɞ ɞDZȅɞLjɥ ʧljǥȓʧLjɥ ɀɸ LjǤDZɞʧLjȳDZȶɯDZ LjǥDZȓʧLjɥԱ ʧLjȓɥ ɛɞljɯȓǥLjɥԧ ǫDZ ȶLjɯɸɞDZʡLj ɞȓɯɸLjȪ ɀɸ ɥȓȳǤɁȪȓǥLjԧ ʐȓɥLjȳ ȓȶǥɸȪǥLjɞ ǥDZɞɯɀɥ ʐLjȪɀɞDZɥ DZ ȶɀɞȳLjɥ ǫDZ ǥɀȳɛɀɞʧLjȳDZȶɯɀ LjɯɞLjʐDzɥ ǫLj ɞDZɛDZɯȓǨǠɀԱ ɀ ɝɸDZ ȓȳɛȪȓǥLjԧ LjɸɯɀȳLjɯȓǥLjȳDZȶɯDZԧ ɸȳLj ǥɀȶɯȓȶɸȓǫLjǫDZ DZȳ ɞDZȪLjǨǠɀ Ljɀ ɛLjɥɥLjǫɀ ՅGu Äiԧ ұҹҹҷԧ ɛԬ ҹՆԬ
Importa observar no trecho citado da obra que mesmo a “tradição inventada” necessita ser regulada ou legitimada por regras aceitas, ainda que de forma subentendida; que essas regras introduzem valores e normas de comportamento implementadas por meio da repetição e, dessa forma, há uma necessária relação com o tempo, mormente o tempo passado. Aqui é possível extrair um dado que consideramos dos mais elementares para o entendimento do que é a tradição, ou seja: a repetição. É a repetição ou, em outros termos, a “continuidade histórica” que torna uma prática ou manifestação cultural tradicional ou não. No que diz respeito à música no Maracatu Cearense, a introdução do ritmo mais “moderado” na década de 1950, certamente, atendeu as expectativas ou demandas da manifestação cultural, senão teria sido rejeitada. Uma interpretação que poderíamos tecer é que o ritmo mais “moderado” trouxe uma musicalidade que diferenciou o Maracatu Cearense dos Maracatus pernambucanos, conferindo-lhe um sentido (sentimento) de identidade vital. De qualquer forma, sua aceitação e repetição ao longo dos anos tornou esse “dado novo” tradicional. A questão da repetição enquanto elemento fundamental para a “invenção” ou formação das tradições também pode ser apreendida em uma das interpretações conferidas ao uso do negrume. Segundo vimos, alguns grupos afirmam que o negrume, no início, teve uma função prática: criar uma
Inventada ou não, o que importa para as políticas do patrimônio imaterial é o reconhecimento dos sentidos e valores que os detentores dos bens culturais de natureza imaterial lhes atribuem. Assim, neste caso, importa reconhecer que tanto o negrume quanto o ritmo mais “moderado” são valorizados dentro do Maracatu Cearense, como elementos singulares da sua identidade cultural, assim como são tradicionais, pois dizem muito sobre a manifestação através do tempo. Igualmente, a introdução de dados recentes como, por exemplo, desfilar sem fazer uso do negrume ou a (re)introdução de ritmos mais acelerados, são meios legítimos de diálogos com o tempo presente; uma forma de atrair o público mais jovem que, talvez, sem essa reorientação, não se interessaria pela manifestação cultural; uma releitura da manifestação cultural na qual o sentido de festa do fazer popular é mais valorizado por esses grupos que o sentido de manifestação cultural afrobrasileira.
Maracatu Cearense: sua capacidade de pôr para brincar pessoas de distintas visões de mundo; sua força enquanto manifestação cultural dotada de muitos sentidos e valores; sua continuidade histórica no seio da sociedade fortalezense; seu papel enquanto referência à memória, à identidade e à ação de parte importante dos grupos formadores da sociedade fortalezense. Ou seja, por tudo isso, não restam dúvidas sobre a potencialidade do Maracatu Cearense em ser reconhecido e valorização como Patrimônio Cultural de Fortaleza. Como demonstrado até aqui, os elementos culturais característicos do Maracatu Cearense não apresentam única forma, pois se relacionam aos sentidos que as pessoas dão à prática cultural. No decorrer da pesquisa foi possível perceber algumas concepções do sentido do Maracatu na vida dessas pessoas e que, embora distintas, não significam que são excludentes ou exclusivas.
12 Vários foram os casos, ao longo da pesquisa realizada para este trabalho, em que a justificativa para o uso do negrume foi: “É a tradição!”
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invisibilidade e blindar os brincantes dos preconceitos da época e possíveis retaliações. Contudo, ao longo do tempo, pela repetição do uso, o negrume tornou-se uma marca do Maracatu Cearense praticamente impossível de “descartar”, ou, quando isso ocorre, paga-se o “preço”: tornou-se, portanto, uma “tradição”12.
Somados, essa complementariedade de elementos “antigos” e “modernos”, só atestam as múltiplas ressonâncias do 99
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Capítulo III O Maracatu Cearense como patrimônio cultural
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3.1
Constituição do campo do Patrimônio Cultural no Brasil: breves considerações
chamado de Patrimônio Cultural, e, na recente política de Fortaleza, de patrimônio histórico-cultural). Desde então, com muitos anos de história e prática social na área, o olhar sobre quais bens compõem o Patrimônio Cultural brasileiro sofreu mudanças significativas. Do seu momento inicial até os anos 1980, a política federal do Patrimônio Cultural privilegiou a seleção e preservação de casarões, mosteiros, monumentos, fortes, conjuntos urbanísticos, casas natais de personagens ilustres do País e outros bens deste gênero. Esse olhar restrito suscitou críticas posteriores a classificá-los como patrimônios de pedra e cal, representativos das classes dominantes ou de uma história oficial. Entretanto, esse cenário está em processo de mudança. Embora casos esporádicos tenham ocorrido anteriormente, foi a partir do ano 2000 que uma diversidade de práticas e manifestações culturais diferenciadas passou a ser reconhecida como Patrimônio Cultural do País, digna de valorização e salvaguarda. Nesse novo cenário, ganharam destaque os bens culturais representativos de comunidades
de matriz cultural afro-brasileira, povos indígenas e comunidades locais ou “tradicionais”, ou ainda, do fazer popular (AMARAL, 2014). Para tanto, foi de importância crucial a formulação de uma política específica para esses bens classificados como Patrimônio Cultural “imaterial”. Isto se deu por meio da sanção do Decreto Presidencial nº 3.551, de 4 de agosto do ano 2000, instrumento jurídico que criou o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e a Política Nacional do Patrimônio Imaterial. Importa observar que a promulgação do Decreto nada mais fez que regulamentar um preceito da Constituição Federal do Brasil em vigor, que, em seu Artigo 216 estabelece que o Patrimônio Cultural brasileiro é composto por bens culturais de natureza “material” e “imaterial”, portadores de referência à memória, à identidade e à ação dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Nota-se que a Constituição adotou um entendimento claramente marcado pelo reconhecimento da contribuição de uma diversidade de grupos formadores da sociedade brasileira. A ruptura com o olhar que, por muito tempo, investiu em uma identidade nacional homogênea, privilegiando certa conexão da brasilidade com a civilização ocidental europeia se deu, no texto da Constituição, a partir do reconhecimento legal da diversidade cultural da sociedade brasileira.
Constituição do campo do patrimônio cultural no Brasil: breves considerações
No Brasil, por volta dos anos 1937, ocorreu a criação, em âmbito federal, de uma política especificamente voltada para a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional (atualmente
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Diferente do Tombamento, instrumento comumente utilizado para a preservação do dito patrimônio material ou de pedra e cal, que de certa forma tem por finalidade conservar e preservar as características físicas do bem, o que implica em obrigações para o Estado e o seu proprietário, o Registro, instrumento criado para a salvaguarda do “patrimônio imaterial”, tem por finalidade principal o reconhecimento e a valorização dos bens por ele patrimonializados. Em suma, o Registro não cria obrigações para os detentores (ou proprietários) do bem, como ocorre com o Tombamento. Até porque o entendimento que se criou no processo de elaboração do Registro foi que o patrimônio imaterial é composto por bens culturais “vivos”. São celebrações, formas de expressão, saberes e lugares cujo protagonismo está nas pessoas que fazem desses bens uma realidade. É fundamental esclarecer que, enquanto patrimônios vivos, não faria sentido que o poder público criasse obrigações que impedissem mudanças no bem, interferindo na sua dinâmica enquanto bem cultural vivo. Por isso, no caso do patrimônio imaterial, em vez de se falar em preservar (termo já carregado de sentidos por ser frequente na área do patrimônio material), criou-se a expressão salvaguarda, isto é: apoiar a sua continuidade; criar e buscar condições favoráveis para a
sua perpetuação, valorizando as pessoas que são a razão de ser desses patrimônios. Se a formação do campo do patrimônio cultural brasileiro teve no âmbito federal o seu protagonismo, nos últimos anos tem ocorrido um esforço considerável dos Estados e Municípios para a criação de políticas, instrumentos e ações para reconhecer e valorizar os patrimônios culturais das suas localidades. Para o que nos interessa, este é o caso de Fortaleza (CE) que, no ano de 2008, sancionou a Lei nº 9.347, a lei do patrimônio. Por meio da referida lei, foi-se instituindo tanto a figura do Tombamento para a preservação do patrimônio material, quanto a do Registro para a salvaguarda do patrimônio imaterial. Complementarmente, a Prefeitura de Fortaleza, através da sua Secretaria de Cultura (Secultfor), vem implementando ações que visam garantir aquilo que a lei determina, como é o caso, por exemplo, do projeto Regularização Patrimonial de Fortaleza, cujo estágio atual buscou criar subsídios para o reconhecimento do Maracatu Cearense como “Patrimônio Cultural de Fortaleza”.
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3.2
O Registro do Patrimônio Cultural “Imaterial”
Para se registrar os bens culturais eleitos, segundo o Artigo 34, Parágrafo 1º da Lei 9.347/2008, foram criados quatro livros:
u ɛLjɯɞȓȳɄȶȓɀ ȎȓɥɯɁɞȓǥɀՒǥɸȪɯɸɞLjȪ DZ ȶLjɯɸɞLjȪ ǫɀ iɸȶȓǥȕɛȓɀ ǫDZ >ɀɞʧLjȪDZʡLj Dz ǥɀȶɥɯȓɯɸȕǫɀ ɛDZȪɀɥ ǤDZȶɥ ǫDZ ȶLjɯɸɞDZʡLj ȳLjɯDZɞȓLjȪ DZ ȓȳLjɯDZɞȓLjȪԧ ȳɁʐDZȓɥ DZ ȓȳɁʐDZȓɥԧ ɛɹǤȪȓǥɀɥ DZ ɛɞȓʐLjǫɀɥ ɯɀȳLjǫɀɥ ȓȶǫȓʐȓǫɸLjȪȳDZȶɯDZ ɀɸ DZȳ ǥɀȶȢɸȶɯɀԧ ɛɀɞʧLjǫɀɞDZɥ ǫDZ ɞDZȄDZɞǵȶǥȓLj Ǚ ȓǫDZȶɯȓǫLjǫDZԧ Ǚ LjǨǠɀԧ Ǚ ȳDZȳɁɞȓLj ǫɀɥ ǫȓȄDZɞDZȶɯDZɥ ȅɞɸɛɀɥ ȄɀɞȳLjǫɀɞDZɥ ǫLj ɥɀǥȓDZǫLjǫDZ ȄɀɞʧLjȪDZʡDZȶɥDZ DZ ɝɸDZԧ ɛɀɞ ɝɸLjȪɝɸDZɞ ȄɀɞȳLj ǫDZ ɛɞɀɯDZǨǠɀ ɛɞDZʐȓɥʧLj DZȳ ȪDZȓԧ ʐDZȶȎLjȳ Lj ɥDZɞ ɞDZǥɀȶȎDZǥȓǫɀɥ ǥɀȳɀ ǫDZ ʐLjȪɀɞ ǥɸȪɯɸɞLjȪԧ ȎȓɥɯɁɞȓǥɀ DZ ȶLjɯɸɞLjȪԧ ʐȓɥLjȶǫɀ Ǚ ɥɸLj ɛɞDZɥDZɞʐLjǨǠɀԬ
L Ւ Livro de Registro dos Saberesԧ ɀȶǫDZ ɥDZɞǠɀ ȓȶɥǥɞȓɯɀɥ ɀɥ ǥɀȶȎDZǥȓȳDZȶɯɀɥ DZ ȳɀǫɀɥ ǫDZ ʦLjʡDZɞ DZȶɞLjȓʡLjǫɀɥ ȶɀ ǥɀɯȓǫȓLjȶɀ ǫLjɥ ǥɀȳɸȶȓǫLjǫDZɥԱ
Como foi dito, existem dois instrumentos distintos para a legitimação dos bens materiais e imateriais, ou “patrimônio material” e “patrimônio imaterial”. Vamos nos ater, em seguida, ao instrumento destinado ao reconhecimento do patrimônio imaterial, pois por meio dele que o Maracatu Cearense foi reconhecido como “Patrimônio Cultural de Fortaleza”. No caso da política de Patrimônio Cultural de Fortaleza, os institutos do Tombamento e do Registro estão dispostos no mesmo instrumento legal, isto é: a Lei nº 9.347/2008. Na lei do patrimônio de Fortaleza, as determinações propriamente referentes ao patrimônio imaterial estão estabelecidas no seu capítulo VI, entre os artigos 37 e 4113.
LL Ւ Livro de Registro das Celebraçõesԧ ɀȶǫDZ ɥDZɞǠɀ ȓȶɥǥɞȓɯɀɥ ɞȓɯɸLjȓɥ DZ ȄDZɥʧLjɥ ɝɸDZ ȳLjɞǥLjȳ Lj ʐȓʐǵȶǥȓLj ǥɀȪDZɯȓʐLj ǫɀ ɯɞLjǤLjȪȎɀԧ ǫLj ɞDZȪȓȅȓɀɥȓǫLjǫDZԧ ǫɀ DZȶɯɞDZɯDZȶȓȳDZȶɯɀ DZ ǫDZ ɀɸɯɞLjɥ ɛɞljɯȓǥLjɥ ǫLj ʐȓǫLj ɥɀǥȓLjȪԱ LLL Ւ Livro de Registro das Formas de Expressãoԧ ɀȶǫDZ ɥDZɞǠɀ ȓȶɥǥɞȓʧLjɥ ȳLjȶȓȄDZɥʧLjǨəDZɥ ȪȓɯDZɞljɞȓLjɥԧ ȳɸɥȓǥLjȓɥԧ ɛȪljɥɯȓǥLjɥԧ ǥǵȶȓǥLjɥ DZ ȪɹǫȓǥLjɥԱ LÃ Ւ Livro de Registro dos Lugares, ɀȶǫDZ ɥDZɞǠɀ ȓȶɥǥɞȓɯɀɥ ȳDZɞǥLjǫɀɥԧ ȄDZȓɞLjɥԧ ɥLjȶɯɸljɞȓɀɥԧ ɛɞLjǨLjɥ DZ ǫDZȳLjȓɥ DZɥɛLjǨɀɥ ɀȶǫDZ ɥDZ ǥɀȶǥDZȶɯɞLjȳ DZ ɞDZɛɞɀǫɸʡDZȳ ɛɞljɯȓǥLjɥ ǥɸȪɯɸɞLjȓɥ ǥɀȪDZɯȓʐLjɥԬ A discussão sobre as categorias criadas para os Livros do Registro nos é importante, pois se definiram, a partir da voz ativa dos Maracatus, as categorias que expressam o que é o Maracatu Cearense. Embora a Lei do Patrimônio determine que o Registro seja feito em um dos livros, logo, que o bem cultural seja pensado com base em apenas uma categoria, tem-se aceitado o Registro em mais de um dos
13 Não poderíamos deixar de observar que o conteúdo da Lei do Patrimônio de Fortaleza sobre o Patrimônio Imaterial é, com pouquíssimas diferenças, uma reprodução literal do Registro federal instituído pelo Decreto nº 3.551/2000.
O Registro do Patrimônio Cultural “Imaterial”
Seguindo os passos do que estabelece a vigente Constituição Federal Brasileira – o que não poderia ser diferente – a lei do patrimônio de Fortaleza preceitua no seu Artigo 1º que:
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14 Informações obtidas em: <http://portal.iphan. gov.br/pagina/detalhes/504>. Acesso em: 28.05.2015. As informações que seguem sobre os outros exemplos de patrimônio imaterial em âmbito federal também formam obtidas na página no Iphan na web.
livros. Esse foi o caso, por exemplo, do reconhecimento da “Festa de São Pedro dos Pescadores”, como uma celebração, e o da “Igreja de São Pedro dos Pescadores”, como um lugar. Assim, partes de um mesmo complexo de práticas e manifestações culturais, ocorridas na região do porto do Mucuripe, foram reconhecidas como “Patrimônio Cultural de Fortaleza”, no ano 2012. Também foi o caso do Registro da capoeira como “Patrimônio Cultural do Brasil”, para o qual foram reconhecidos “roda de capoeira”, como forma de expressão, e “ofício do mestre de capoeira”, como saber. Para ilustrar melhor o que vem a ser o patrimônio imaterial convém mencionar alguns exemplos de bens culturais já registrados. Como existem apenas três casos no Município de Fortaleza, sendo dois já mencionados no parágrafo anterior, iremos nos ater aos Registros em âmbito federal.
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Um exemplo próximo aos Maracatus cearenses foi o registro, no ano 2014, do Maracatu Nação ou Baque Virado de Pernambuco como “Patrimônio Cultural do Brasil”. Prática e manifestação cultural marcante na vida cultural da região metropolitana do Recife, principalmente no período do Carnaval, o Maracatu Nação foi registrado no Livro das Formas de Expressão. Para tanto, foi identificada, nas apresentações dos grupos de Maracatu durante o período carnavalesco, a apresentação de “um espetáculo repleto de simbologias e marcado pela riqueza estética
e pela musicalidade.” O seu valor enquanto Patrimônio Cultural pelo Iphan reside no reconhecimento de “sua capacidade de comunicar elementos da cultura brasileira e carregar elementos essenciais para a memória, a identidade e a formação da população afro-brasileira”14. Outro bem cultural registrado como patrimônio imaterial em âmbito federal foi o “Complexo Cultural do BumbaMeu-Boi do Maranhão”. Reconhecido como uma Celebração e registrado no respectivo livro no ano 2008, trata-se de uma tradicional festa maranhense, cuja figura central é o boi e suas simbologias. Embora a manifestação cultural ocorra durante todo o ano, o ápice da festa é no período junino, em que devoções aos santos católicos e elementos da cultura afro-brasileira do Maranhão fazem dessa celebração um verdadeiro complexo cultural. Muitos outros elementos enraizados no cotidiano das relações de trabalho e sociabilidade da sociedade maranhense, mas também de toda região Norte, contribuíram para o reconhecimento dessa festa como um “Patrimônio Cultural do Brasil”. No ano 2005, foi a vez do “Ofício das Baianas de Acarajé” ser reconhecido e valorizado como “Patrimônio Cultural do Brasil”. Registrado no livro dos Saberes, tratase de uma atividade de produção e comercialização predominantemente feminina, disseminada nos espaços
Para completar os quatro Livros de Registro do Patrimônio Imaterial, falta apenas a categoria Lugar. Pois bem, no ano 2006, o Iphan consagrou a Feira de Caruaru, localizada no Município de Caruaru, Pernambuco, como “Patrimônio Cultural do Brasil”. A Feira de Caruaru surgiu ainda no período colonial brasileiro, incrustada em uma fazenda situada em um dos caminhos do gado, era local de encontro de vaqueiros, tropeiros e mascates. Ao longo dos anos, com o crescimento da Feira, deu-se a formação e o desenvolvimento da própria cidade de Caruaru. Atualmente, a Feira ainda é lugar de troca de conhecimentos, de modos de fazer e viver próprios da sociedade que se desenvolveu no sertão pernambucano (e nordestino de uma forma geral), para a qual a criação do gado e a confecção de produtos de
seus derivados e muitos outros saberes daquele meio sociocultural são indispensáveis. A Feira de Caruaru é, portanto, um Lugar onde se desenvolve e se guarda conhecimentos específicos daquele meio, um Lugar de sociabilidade, encontros e vivências. A partir dos exemplos apresentados anteriormente, fica clara a distinção dos bens que se convencionou chamar de patrimônio imaterial, daqueles que conformam o patrimônio material. Se no caso do patrimônio imaterial o que tem sido valorizado são festas, culinárias, procissões, lugares e tantos outros bens que marcam as experiências coletivas do trabalho, da religiosidade e da sociabilidade, as ações do patrimônio material buscam preservar os aspectos físicos de edificações, conjuntos urbanos, coleções documentais, sítios arqueológicos etc. Por fim, outra característica marcante do patrimônio imaterial é a ênfase dada pela prática do registro aos bens culturais das populações afro-brasileiras, do fazer popular e dos povos indígenas.
O Registro do Patrimônio Cultural “Imaterial”
públicos de Salvador, Bahia, como praças, feiras, orla marítima, ruas etc. Embora sejam conhecidas como “Baianas de Acarajé”, o Ofício comporta a produção e comercialização de um número variado de alimentos conhecidos também como “comidas de baiana”. Preparadas a partir de receitas e um modo de fazer próprios, nos quais se destaca o uso do azeite de dendê, as comidas de baiana estão relacionadas ao culto dos Orixás. Tem-se, assim, mais uma vez, um saber rico de elementos culturais de matriz afro-brasileira, fortemente arraigada na memória e identidade da sociedade baiana.
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Imaterialidades | Maracatu
3.3
MaracatuCearense: ressonâncias de um “Patrimônio Cultural” em Fortaleza
Comecemos a apresentar esses exemplos a partir de uma instituição cuja função, entre outras, é a da constituição de uma memória coletiva, meio importante para a consolidação de identidades culturais, isto é: os museus públicos. No caso, trata-se do Museu Histórico do Ceará, doravante Museu do Ceará. Localizado no centro histórico da cidade de Fortaleza, o Museu do Ceará guarda e expõe uma coleção variada de objetos que, de certa forma, buscam representar e criar um sentido para a formação, desenvolvimento e atual estágio daquela sociedade. No seu espaço, estão dispostos aos visitantes, por exemplo, artefatos arqueológicos das populações indígenas que habitaram (e habitam em alguns casos) a região; arquivos de personalidades do Estado; um bode embalsamado, que no início do século XX se tornou um “personagem” admirado e respeitado na região central da cidade; as vestes características e outros objetos do Padre Cícero, uma das personalidades mais conhecidas do Ceará; a mesa onde foi assinada a abolição da escravidão no Estado, cinco anos antes da abolição nacional, e tantos outros objetos. Juntamente com esses bens museográficos,
também estão expostos no Museu do Ceará, para o que nos interessa, dois bens representativos do Maracatu Cearense: um vestido de rainha e uma boneca calunga15. A presença de objetos que representam o Maracatu Cearense entre tantos outros que buscam constituir uma memória e identidade do Estado por meio do Museu do Ceará é uma evidência inconteste de que essa manifestação cultural passou a ser reconhecida e usada pelo poder público, pela história oficial do Estado, como parte da sua memória coletiva; símbolo da identidade cultural cearense. Outro marco importante e que sublinha o já reconhecimento do Maracatu Cearense como manifestação cultural importante na vida social e cultural da sociedade fortalezense foi a instituição do dia 25 de março como Dia do Maracatu. Daí, constata-se que há três décadas o Maracatu Cearense já integra o calendário festivo da cidade de Fortaleza. Outro aspecto simbólico desse fato é que 25 de março é o dia em que se comemora a abolição da escravidão negra no Estado do Ceará, libertação que se deu, como é sabido, cinco anos antes da abolição em âmbito nacional. Observa-se, ainda, que a partir do ano 2011, por força da Emenda Constitucional nº 72, o dia 25 de março também foi instituído como feriado estadual no Ceará.
15 Importa observar que, para nossa surpresa, este foi um exemplo encontrado, por acaso, em uma visita típica de um turista aprendiz na referida instituição.
Maracatu Cearense: ressonâncias de um “Patrimônio Cultural” em Fortaleza
Atualmente, existem alguns exemplos que evidenciam o já reconhecimento do Maracatu Cearense como uma manifestação cultural importante para as memórias e identidades culturais do Ceará, cujo lugar de destaque é o da sua capital, Fortaleza.
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Imaterialidades | Maracatu
Integrado à comemoração do dia 25 de março como Dia do Maracatu Cearense, a Prefeitura de Fortaleza iniciou, em 2013, uma ação extensiva que celebra todo dia 25 como dia de Maracatu (Souza, 2014). Assim, a cada dia 25, um grupo de Maracatu de Fortaleza realiza, em locais estratégicos da cidade, geralmente pontos de grande circulação ou lugares simbólicos, uma apresentação cultural que visa promover a manifestação cultural. Essa ação, que tem sido intitulada Dia 25 é dia de Maracatu, é mais uma evidência do reconhecimento e, de certa forma, apropriação, por parte do poder público municipal, do Maracatu Cearense como parte da memória e identidade coletiva da sociedade fortalezense. Outro encontro por acaso que, também para a nossa surpresa, fundamenta a argumentação tecida nesta seção é a presença do Maracatu Cearense em um vídeo que faz parte de um ambiente montado no aeroporto internacional de Fortaleza destinado aos turistas. Com a temática conheça as belezas do Ceará, juntamente com cenas das belas praias do Estado, de pontos turísticos da capital como, por exemplo, o Espaço Cultural Dragão do Mar, a praia do Futuro, a orla marítima da praia de Iracema e outros cartões postais, também é apresentado o Maracatu Cearense como uma das “belezas” do Estado.
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A existência de uma série de iniciativas que evidenciam a presença do Maracatu Cearense nas ações oficiais do
Estado e da Prefeitura de Fortaleza fornece elementos importantes para o reconhecimento dessa manifestação cultural como Patrimônio Cultural de Fortaleza. Com isso, buscamos sublinhar também que já existe toda uma conjuntura ou intenção deliberada dos poderes públicos em tela, sobretudo o municipal, em patrimonializar o Maracatu Cearense. Assim, a elevação formal da manifestação a “Patrimônio Cultural de Fortaleza” e sua inscrição no respectivo Livro de Registro seria apenas o corolário de uma intenção já pré-estabelecida. Para finalizar esta seção, gostaríamos de tecer breve observação sobre as ressonâncias do Maracatu Cearense para além dos detentores e brincantes de uma forma geral (fato axiomático) e dos poderes públicos estadual e municipal de Fortaleza. Para ficar mais claro, buscaremos dar indícios sobre as ressonâncias da manifestação cultural na sociedade envolvente, isto é, no seu público “externo”. Este não foi um dado possível de ser alcançado pela pesquisa que subsidiou a realização deste produto, mas encontram-se algumas referências sobre, na pesquisa realizada por Cruz (2013) na sua tese de doutorado. Os dados a serem apresentados são referentes ao Carnaval do ano 2011. Valendo-se de uma ampla pesquisa qualitativa realizada por meio de questionários estruturados e “aplicados em diversos espaços da Avenida Domingos Olímpio”, Cruz (2013, p. 178) obteve resultados importantes para
É extremamente significativo constatar que basicamente 50% das pessoas que estavam no local naquele ano de 2011 tinham como motivação principal assistir aos Maracatus. Isto é, sem dúvida, um dado revelador da ressonância do Maracatu Cearense no seio da sociedade fortalezense. Outra constatação positiva é o alto percentual familiar do público que lá estava, algo nem sempre frequente no mundo dos carnavais na atualidade, predominantemente marcado por um público mais jovem ou menos familiar. Ainda segundo Cruz (2013, p. 178), do total dos entrevistados, “41,6% tinham faixa etária entre 30 e 49 anos”.
manifestação cultural: em alguns casos, família sanguínea propriamente dita; em outros, família afetiva construída no e para o Maracatu. Se o Maracatu Cearense já possui uma representatividade considerável na sociedade fortalezense devido às suas características próprias, isto é, são quinze grupos com um número de brincantes que somam, em alguns Maracatus e em determinados momentos, trezentas pessoas na avenida16, o fato de 60,2% do público “externo” não possuírem “qualquer laço afetivo com os participantes dos grupos de Maracatu” adensa ainda mais a sua representatividade na sociedade fortalezense. Se não possuem laços afetivos com os brincantes, indubitavelmente
Maracatu Cearense: ressonâncias de um “Patrimônio Cultural” em Fortaleza
Complementando a argumentação acima e dotando ainda mais de significado o percentual de quase 50% dos 16 apreciadores da festa estarem lá para ver os Maracatus, Este foi um dado informado durante esta pesquisa pelo Maracatu Vozes D’África. ɥ ȳɀɯȓʐLjǨəDZɥ DZȳ ȓɞ Ǚ ʐDZȶȓǫLj &ɀȳȓȶȅɀɥ uȪȕȳɛȓɀ DZɞLjȳ Cruz (2013) faz esta importante observação: ǥDZɞʧLjȳDZȶɯDZ ʐLjɞȓLjǫLjɥԬ &ɀ ɯɀʧLjȪԧ Ҵҹԧҹֱ ǫLjɥ ɛDZɥɥɀLjɥ ɯȓȶȎLjȳ ǥɀȳɀ uɸɯɞɀ LjɥɛDZǥɯɀ LjȳɛȪLjȳDZȶɯDZ ǫȓȄɸȶǫȓǫɀ ȶɀ ɥDZȶɥɀ ǥɀȳɸȳ Dz ɝɸDZ principal motivação assistir aos MaracatusԬ ,ɥɥDZ ȓȶǫȓǥLjɯȓʐɀ ɥDZ ɀ ɛɹǤȪȓǥɀ ǫɀɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥ Dz ǥɀȳɛɀɥɯɀ ɛɀɞ ɛDZɥɥɀLjɥ ǥɀȳ ȪLjǨɀɥ ɀɛəDZ Ǚ ǫȓȶǑȳȓǥLj ǫɀɥ ǤȪɀǥɀɥ ǫDZ ɛɞDzՒ LjɞȶLjʐLjȪԧ ɸȳLj ʐDZʡ ɝɸDZ ɛLjɞɯDZ ǫDZ LjȳȓʡLjǫDZ ɀɸ ʦLjȳȓȪȓLjɞ ǥɀȳ ɀɥ ǤɞȓȶǥLjȶɯDZɥ ǫɀɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥԬ DZʖɛɞDZɥɥȓʐLj ǫLjɥ ɛDZɥɥɀLjɥ ʐLjȓ Ljɀ DZʐDZȶɯɀ ɛLjɞLj DZȶǥɀȶɯɞLjɞ LjȳȓȅɀɥԬ lɀ DZȶʧLjȶɯɀԧ ҶҰԧ Ҳֱ ǫLjɥ ɛDZɥɥɀLjɥ ɝɸDZ ɥDZ ǫȓɞȓȅȓɞLjȳ Ǚ ʐDZȶȓǫLj uɸɯɞɀ LjɥɛDZǥɯɀ ɝɸDZ ɞDZȄɀɞǨLj Lj ɛLjɞɯȓǥɸȪLjɞȓǫLjǫDZ ǫLjɥ ȄDZɥʧLjɥ ȶLj ʐDZȶȓǫLj &ɀȳȓȶȅɀɥ uȪȕȳɛȓɀ ȶǠɀ ɯȓȶȎLjȳ ɝɸLjȪɝɸDZɞ ȪLjǨɀ LjȄDZɯȓʐɀ ǥɀȳ ɀɥ &ɀȳȓȶȅɀɥ uȪȕȳɛȓɀ ȶɀ ǫȓLj ǫɀɥ ǫDZɥ̇ȪDZɥ ǫɀɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥ Dz ɝɸDZԧ ǫɀ participantes dos grupos de Maracatu Յ «Ôԧ ҲҰұҳԧ ɛԬ ұҸҰ Ր ɯɀʧLjȪ ǫDZ ɛDZɥɥɀLjɥ ȓȶɯDZɞɛDZȪLjǫLjɥԧ ҵҲԧҹֱ DZɥʧLjʐLjȳ LjǥɀȳɛLjȶȎLjǫLjɥ ǫDZ ȅɞȓȄɀ ȶɀɥɥɀՆԬ ʦLjȳȓȪȓLjɞDZɥԬ ¤LjȪʐDZʡԧ DZȳ ɞLjʡǠɀ ǫȓɥɯɀԧ Lj ȄDZɥʧLj ǫɀɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥ ɥDZȢLj Como é sabido e foi apresentado nos capítulos anteriores, ȄɀɞɯDZȳDZȶɯDZ ǥLjɞLjǥɯDZɞȓʡLjǫLj ɛDZȪɀ ɥDZȶɥɀ ǥɀȳɸȳ ǥɀȳɀ ՜ʦLjȳȓȪȓLjɞ՝Ԭ internamente, os grupos de Maracatus possuem laços Յ «Ôԧ ҲҰұҳԧ ɛԬ ұҷҹ Ր ȅɞȓȄɀ ȶɀɥɥɀՆԬ familiares fortes e imprescindíveis para a realização da uma compreensão a respeito da relação entre o Maracatu Cearense enquanto manifestação cultural carnavalesca e o público apreciador da festa. Segundo nos informa a autora:
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Imaterialidades | Maracatu 114
possuem com a manifestação cultural. Não temos dados para a seguinte afirmativa, mas arriscaríamos dizer que dificilmente outra manifestação cultural no mundo das ditas culturas populares possuem ressonância tão significativa para a sociedade fortalezense como é possível perceber no Maracatu Cearense. Como tem apontado José Reginaldo Santos Gonçalves em importantes e originais contribuições para os estudos dos patrimônios culturais, a necessidade de encontrar “ressonância” junto a seu público é um requisito importante para esses bens culturais serem considerados como tais; ao mesmo tempo, é um dos limites do patrimônio. Nesse sentido, não basta a vontade do Estado ou do mercado em “criar” patrimônios de acordo com seus respectivos interesses, pois é preciso que esses bens encontrem ressonâncias no seu público e sejam legitimados pela sociedade. De ambos os lados, tanto da parte do poder público quanto da sociedade fortalezense, verifica-se que o Maracatu Cearense possui os requisitos necessários para ser consagrado como Patrimônio Cultural de Fortaleza, o que o torna, daí por diante, merecedor de ações qualificadas para sua salvaguarda. Importa sublinhar, por fim, ainda segundo orientações de importantes estudiosos da área, que essas ações devem ser idealizadas, implementadas e avaliadas, segundo orientações e voz ativa dos detentores da manifestação cultural (ARANTES NETO, 2004).
Maracatu Cearense: ressonâncias de um “Patrimônio Cultural” em Fortaleza 115
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Imaterialidades | Maracatu
3.4
MaracatuCearense: Saber, Celebração, Forma de Expressão ou Lugar?
outros grupos e brincantes, os sentidos de festa popular estão ligados ao entretenimento, em que os sentidos carnavalescos são mais acentuados. Desta forma, em parte, o Maracatu Cearense corresponde às perspectivas dessa categoria e poderia ser reconhecido como uma celebração importante para os grupos e brincantes do Maracatu.
Não nos cabe neste momento definir qual ou quais categoria(s) deverá(ão) ser empregada(s) para o Maracatu Cearense. Acreditamos que isso deverá ser feito em parceria e sob a orientação dos próprios detentores do bem cultural em questão. Até porque, como ficou evidente nos capítulos anteriores, os sentidos do Maracatu Cearense são heterogêneos, variando entre os grupos e brincantes, o que dificultará mais ainda a escolha de uma categoria que dê conta dessa pluralidade de sentidos. Nossa intenção, no momento, é tecer breve discussão sobre o assunto, o que poderá contribuir para a escolha da(s) categoria(s) em momento mais adequado.
No Livro de Registro das “Formas de Expressão”, serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas. Em relação a essa categoria, a descrição apresentada nos capítulos anteriores evidenciou, de forma elucidativa, a centralidade da música, principalmente do ritmo mais cadenciado, defendido por parte dos grupos, brincantes e público externo, como elemento forte da identidade do Maracatu Cearense. Esse ritmo, que o distingue de outros Maracatus fora do Ceará (mas também dentro, em alguns casos). Mas também a incorporação de novos ritmos mais acelerados deve ser reconhecida como uma forma legítima dos grupos que os utilizam para se comunicarem com o seu próprio tempo – atualização intrínseca à dinâmica cultural e aos bens culturais vivos. Os elementos plásticos, cênicos e lúdicos conformam características evidentes do e no Maracatu Cearense. Danças, gestos, figurinos, composição e disposição das alas garantem uma teatralidade performática capaz de transmitir sentidos e valores por meio da manifestação cultural. Dessa forma,
No Livro de Registro das “Celebrações” serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social. Desta feita, vimos que, entre alguns (e não são poucos) grupos e brincantes, o Maracatu Cearense possui um caráter ritualístico, ligado à vivência da religiosidade, principalmente referente à Umbanda e ao Candomblé; para
Maracatu Cearense: Saber, Celebração, Forma de Expressão ou Lugar?
A necessidade de pensar os bens culturais de natureza imaterial a partir de categorias é um requisito da Lei do Patrimônio de Fortaleza, bem como do registro em âmbito federal. Para tanto, como foi tratado em momento oportuno, as categorias criadas a partir do Livro de Registros são: saberes, celebrações, formas de expressão e lugares.
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Imaterialidades | Maracatu 118
não há como negar que o Maracatu Cearense é uma forma de expressão, um meio de se exprimir e se comunicar das mais importantes no mundo cultural fortalezense. No Livro de Registro dos “Lugares” serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. Para essa categoria, poderíamos pensar a relação do Maracatu Cearense com a cidade de Fortaleza; com os espaços que, a partir da relação e dos investimentos simbólicos do homem, tornam-se lugares dotados de sentidos e valores. Foi abordada, no primeiro capítulo, a simbologia da igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos para o Maracatu Cearense. Embora o edifício tenha perdido a força que exerceu em outros contextos, ele ainda é um lugar onde é possível conectar passado e presente na trajetória do Maracatu Cearense. Também a Praça do Ferreira e a Avenida Domingos Olímpio têm sido lugares importantes na comemoração do dia 25 de março (dia da abolição da escravidão negra no Ceará e atualmente dia do Maracatu) e nos desfiles do Carnaval, respectivamente. Ainda que estejamos, aqui, apontando que o Maracatu Cearense é portador de lugares dotados de sentidos simbólicos importantes na trajetória da manifestação cultural, é preciso uma conversa com os grupos para pôr à prova a ressonância desses lugares. Nossa intenção também
é problematizar que nenhuma prática ou manifestação cultural pode existir sem uma relação com espaços e lugares. Por fim, tem-se a categoria “Saberes”, onde serão inscritos os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades. A prática de registro e uso desta categoria tem sido mais frequente a ofícios relacionados ao mundo do trabalho. No entanto, o Maracatu Cearense também comporta a existência de pessoas que desempenham papéis centrais para sua realização, cuja guarda de certos saberes ou modos de fazer são imprescindíveis. Os tiradores de loas, as pessoas que desenham e confeccionam os figurinos, os instrumentistas e mesmo personagens centrais como o porta-estandarte, o balaieiro, a calunga e a rainha são exemplos possíveis de pessoas que guardam conhecimentos específicos e modos de fazer, sem os quais o Maracatu Cearense perderia o brilho que tem. Nenhuma prática ou manifestação cultural poderia existir sem que seus executantes fossem detentores de saberes indispensáveis. Com o Maracatu Cearense não é diferente. Importa observar que nosso esforço, neste momento, é o de evidenciar que uma manifestação cultural como o Maracatu Cearense é muito mais complexa, rica, e extrapola qualquer categoria que busque enquadrá-lo. Ainda que nossa exposição tenha sido feita em linhas gerais, uma pesquisa com maiores investimentos é capaz de demonstrar, de forma
Sobre a problematização das categorias que estamos tecendo, é bastante elucidativa a fala de Lucy, atual presidente do Maracatu Az de Ouro, em entrevista concedida para este projeto: ,ɸ LjǥȎɀ ɝɸDZ ɥDZɞȓLj ɸȳ ɥLjǤDZɞԧ ɸȳ ǥɀȶȎDZǥȓȳDZȶɯɀԬ - ɸȳLj ȄɀɞȳLj ǫDZ DZʖɛɞDZɥɥǠɀԧ ȶǠɀ ǫDZȓʖLj ǫDZ ɥDZɞԬ - ǫDZ ɯɸǫɀ ɸȳ ɛɀɸǥɀԧ ȶDzԩԭ ɀɞɝɸDZ Ljɝɸȓ Dz ǥɀȳɀ ɥDZ ȶɁɥ ̇ʡDzɥɥDZȳɀɥ ɸȳ ɯDZLjɯɞɀԬ lɁɥ DZɥʧLjȳɀɥ ʐȓʐDZȶǥȓLjȶǫɀ ɸȳ ǥɀɞɯDZȢɀ DZ LjȪȓ ȶɁɥ DZɥʧLjȳɀɥ ɯDZLjɯɞLjȪȓʡLjȶǫɀ ɀ ɛDZɞɥɀȶLjȅDZȳԧ ȶǠɀ Dzԩԭ ɀɞɝɸDZ DZɸ LjǥȎɀ ɝɸDZ ȶǠɀ Dz ɥɁ ʐɀǥǵ ʐDZɥɯȓɞ Lj ɞɀɸɛLj DZ ɥLjȓɞԱ Lj ȅDZȶɯDZ ɯDZȳ ɝɸDZ ɯDZɞ LjɝɸDZȪLj ɛɀɥɯɸɞLj DZ DZȶǥLjɞȶLjɞ ȳDZɥȳɀ ɸȳ ɛDZɞɥɀȶLjȅDZȳԬ lLj ȅɞLjȶǫDZ ȳLjȓɀɞȓLj LjǥɀȶɯDZǥDZ ȓɥɥɀԬ &DZ ɯɸǫɀ ɯDZȳ ɸȳ ɛɀɸǥɀԬ iLjɥ DZɸ
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Maracatu Cearense: Saber, Celebração, Forma de Expressão ou Lugar?
mais consistente e convincente, que o Maracatu Cearense é, ao mesmo tempo, celebração, forma de expressão, saber e lugar (de certa forma, a exposição dos capítulos anteriores permite este tipo de leitura). Neste sentido, a cultura deve ser pensada e tratada dentro da sua totalidade. Pois, como nos alerta Reginaldo Gonçalves (2007c, p. 227 – grifo do autor): “O sentido fundamental dos patrimônios consiste talvez em sua natureza total”. Não poderíamos deixar de observar, portanto, que a dicotomia patrimônios material e imaterial acaba mutilando e tratando de forma fragmentada esses bens culturais e as categorias criadas para os livros de registro do patrimônio imaterial aprofundam essas questões, fazendo desses bens culturais uma espécie de cultura em migalhas.
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Imaterialidades | Maracatu 120
trabalho e de uma melhor compreensão da política do registro, contribuir para a definição de uma ou mais de uma categoria para o Maracatu Cearense.
z
Por fim, considerando, assim como Reginaldo Gonçalves (2007b, p. 114), que o patrimônio,
“de certo modo, constrói, forma as pessoas” e também serve para “agir”, esperamos que, entre suas múltiplas mediações, ele seja uma forma de diálogo entre Estado e sociedade civil: no caso, entre a Prefeitura de Fortaleza e os Maracatus Cearenses. Espera-se, ainda, que tal aproximação seja importante para qualificar a construção de políticas públicas para esses grupos, e que eles possam orientar essas políticas, não o contrário. Já que se propõe pensar o Maracatu Cearense em termos patrimoniais, é o que se espera.
Maracatu Cearense: Saber, Celebração, Forma de Expressão ou Lugar?
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Capítulo IV Plano de salvaguarda do Maracatu Cearense: ação em permanente construção
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Desta forma, a salvaguarda constitui ações de apoio e fomento aos patrimônios culturais imateriais. Importa observar que são ações apreendidas no processo da pesquisa que subsidiam a avaliação do registro. Para tanto, é imprescindível que essas ações sejam idealizadas, implementadas e avaliadas com a participação direta dos detentores do bem cultural registrado.
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Outra observação importante a ser feita é que, nem sempre, as ações aqui recomendadas deverão ser obrigatoriamente implementadas com recursos diretos da Prefeitura de Fortaleza. No entanto, é imprescindível que o Poder Municipal seja o mediador na busca de parcerias para a realização das ações aqui propostas, seja com outras esferas do poder público ou no setor privado.
Considerando o exposto anteriormente, sempre se teve, no âmbito da pesquisa com os Maracatus, especial atenção para as principais demandas colocadas pelos presidentes e brincantes para a melhoria das condições de existência do Maracatu Cearense. No entanto, ressaltamos, desde já, a necessidade de aprofundamento do diálogo com os grupos para a construção do Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense.
Plano de salvaguarda do Maracatu Cearense: ação em permanente construção
A salvaguarda dos patrimônios culturais constitui um aspecto central da política do registro dos bens culturais de natureza imaterial. Como foi tratado no capítulo que discute o Maracatu Cearense na perspectiva do patrimônio, enquanto as ações no campo do patrimônio material visam à preservação e conservação desses bens, com o patrimônio imaterial o objetivo é implementar as ditas ações de salvaguarda, ou seja:
A partir dos resultados da pesquisa realizada neste momento, é possível fornecer alguns apontamentos para as ações de apoio ao Maracatu Cearense, a saber: 125
I Maior visibilidade midiática aos Maracatus Já no primeiro dia de reunião com os Maracatus, na qual estiveram presentes representantes das agremiações, gestores e pesquisadores do projeto, duas demandas foram colocadas pelos detentores do bem cultural e que acabaram se repetindo em toda a pesquisa de campo com os grupos, tal como a falta de visibilidade do Maracatu Cearense na mídia local.
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Sobre a primeira demanda, ou seja, a falta de visibilidade do Maracatu Cearense na mídia local, alguns dos representantes (presidentes) dos Maracatus afirmaram que, na época do Carnaval, as mídias noticiam com mais ênfase e qualidade as manifestações culturais carnavalescas de outras regiões, sobretudo o desfile
das escolas de samba do Rio de Janeiro, em detrimento do Carnaval local, e, claro, do Maracatu Cearense. Március, vice-presidente do Maracatu Vozes D’África fez a seguinte colocação, na entrevista que nos concedeu: “Eu espero mais visibilidade. O que falta no nosso Maracatu é visibilidade. Até hoje, tem gente que acha que aqui não tem Carnaval, que não tem Maracatu” (16/04/2015). Não obstante, como identificamos ao longo da pesquisa, segundo os entrevistados, o Maracatu Cearense possui visibilidade midiática no período do carnaval, mas ainda de forma bastante tímida. Neste ponto específico da mídia local, existe um limite do poder de ação da Prefeitura de Fortaleza e dos grupos de Maracatu, pois, em grande parte, esses meios de comunicação são propriedades privadas. Daí, não há como exigir que divulguem determinada matéria. Contudo, pode-se
sugerir a possibilidade deum diálogo intermediado pelo poder público municipal no sentido de sensibilizar a mídia local para valorizar mais o carnaval fortalezense, e, no caso, uma das manifestações culturais mais importantes desse tempo de festas, o Maracatu Cearense. Certamente, o reconhecimento e a valorização proporcionados pelo registro da manifestação como Patrimônio Cultural de Fortaleza contribuirão para tanto, levando as mídias locais a darem a devida e merecida atenção ao Maracatu Cearense.
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II
manifestação cultural singular de Fortaleza e do Ceará.
Constituição de um espaço de memória ou “Museu do Maracatu Cearense”.
Para a criação desse lugar, é requisito, para a sua qualidade e o seu sucesso, que os grupos e brincantes sejam os seus principais idealizadores. Por isso, recomendamos que seja estabelecida uma agenda entre o poder público municipal, o estadual e os grupos, com o intuito de discutirem essa ação em específico. O diálogo com os grupos é crucial, pois eles são os detentores dos bens e de toda uma coleção de fontes que poderão figurar nesse lugar. Igualmente, é bom atentar para questões sobre direitos autorais e direitos de imagem das pessoas que estarão expostas ali. Para tudo que for feito, é imprescindível a anuência das pessoas e dos grupos. Isto é um requisito mínimo para a qualidade da relação que está sendo construída entre o poder público e as pessoas que fazem do Maracatu Cearense uma manifestação cultural viva em Fortaleza.
A falta de visibilidade da manifestação também tem relação com a demanda colocada pelos grupos sobre a criação de um espaço de memória do Maracatu Cearense na cidade de Fortaleza. Foi afirmado ainda que as pessoas (ou turistas) que visitam a cidade e que não têm a sorte de coincidir com os momentos de cortejo e apresentações pouca chance têm de conhecer o Maracatu Cearense. Vimos que existem, no Museu do Ceará, em Fortaleza, duas peças que representam a manifestação cultural. Entretanto, sem dúvida, pela historicidade do Maracatu Cearense no seio da sociedade fortalezense, seria um grande ganho, tanto para os grupos quanto para a cidade em si, a criação de um espaço especificamente destinado para representar essa
Também se pode pensar este lugar não só como um lugar de memória e representação do Maracatu Cearense, mas, complementarmente, como um lugar de formação. Essa foi uma demanda que a senhora Lúcia, coordenadora do Maracatu Nação Iracema, colocou da seguinte forma: uɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥ ɛɞDZǥȓɥLjȳ ǫDZ LjȢɸǫLj ɛLjɞLj ɝɸDZ DZȪDZɥ ɛɀɥɥLjȳ ɝɸLjȪȓ̇ǥLjɞ Ljɥ ɛDZɥɥɀLjɥ ɝɸDZ ǤɞȓȶǥLjȳ ȶɀɥ iLjɞLjǥLjɯɸɥԬ u iLjɞLjǥLjɯɸ ȶǠɀ ɛLjȅLj ȶȓȶȅɸDzȳԧ ɥɁ ǫLjȶǨLjȳԧ ɥDZ ǫȓʐDZɞɯDZȳ DZ ȶǠɀ ǥɀȳ ǥɀȳȓǫLjԧ ɞɀɸɛLjɥԧ ȳLjɥ ɝɸDZ ȄɀɥɥDZ ȳLjȓɥ ʦljǥȓȪ Lj ȅDZȶɯDZ ǥɀȶɥDZȅɸȓɞ LjǨəDZɥ Lj̇ɞȳLjɯȓʐLjɥ ɛLjɞLj Ljɥ ɛDZɥɥɀLjɥ ɝɸDZ ǤɞȓȶǥLjȳ ȶɀ iLjɞLjǥLjɯɸ DZ Ljɥ LjǨəDZɥ ȓɞȓLjȳ ɝɸLjȪȓ̇ǥLjɞ DZɥɥLjɥ ɛDZɥɥɀLjɥ DZ ȓɞȓLjȳ ȶɀɥ LjȢɸǫLjɞ Յ`¬ L ԧ ɀɀɞǫDZȶLjǫɀɞLj ǫɀ iLjɞLjǥLjɯɸ lLjǨǠɀ LɞLjǥDZȳLjԧ ҲҰԲҰҴԲҲҰұҵՆԬ Igualmente, a demanda por se pensar o aspecto formativo dos brincantes que o Maracatu comporta foi apontado por Brito, presidente do Maracatu Nação Pici. À nossa pergunta sobre suas expectativas com o registro municipal ele respondeu: “Que enxergasse os
grupos de Maracatu, o Maracatu em si, como uma ferramenta de formação cultural. Não só como uma atração” (17/04/2015). Assim, no processo de idealização deste lugar do Maracatu Cearense em Fortaleza, é possível pensá-lo – sempre sob orientação dos grupos – como lugar de memória, onde história, trajetória, diversidade de grupos e formas de brincar o Maracatu Cearense fossem contadas e também como um espaço de formação cultural. Aulas de música e artes em geral, cursos de corte e costura, escrita e gestão de projetos, tudo isso compõe um conjunto de temas a ser contemplado nesse Lugar de Memória e Formação Cultural do Maracatu Cearense. Somada a esta demanda por maior e melhor visibilidade do Maracatu Cearense, e já observado pelo presidente do Nação Pici que o Maracatu é uma “ferramenta de formação cultural”, igualmente importante é a elaboração
III
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Maior apoio financeiro às agremiações
Inventário Sonoro dos Maracatus cearenses
Documentário sobre os Maracatus cearenses
Outra demanda recorrente nas falas dos presidentes e demais coordenadores dos Maracatus Cearenses foi em relação ao repasse da verba disponibilizada pela Prefeitura para a realização do concurso de Carnaval. Segundo essas pessoas, a verba sempre chega num prazo inviável ou nas vésperas, ou ainda, o que é pior, após os desfiles do Carnaval. Assim, segundo eles, fica muito difícil e custoso realizar os desfiles com a qualidade que eles requerem. A Prefeitura precisa encontrar um meio de o repasse de verba ser realizado com antecedência. Também aqui é preciso estabelecer um diálogo entre as partes para tratar desta questão em específico, em que ambos os lados expusessem suas demandas e chegassem a um acordo que contribuísse para a salvaguarda do Maracatu Cearense.
Outra recomendação a ser feita e que poderá entrar no Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense é a realização de um Inventário Sonoro da manifestação, isto é, uma gravação das loas de todos os Maracatus em atividade na atualidade. Mas não somente isso. Afrânio de Castro Rangel está com 81 anos de idade. Ele é a única pessoa viva, que se tem conhecimento de que se apresentava nos Maracatus nos anos 1960. Além da importância de suas memórias para o entendimento dessa prática na cidade de Fortaleza, Afrânio é compositor e, dessa forma, compôs diversas loas para os Maracatus. Nesse sentido, esse material precisa ser transformado, com urgência, em partituras musicais, com o intuito de servir como fonte para pesquisadores.
Além do inventário sonoro, recomenda-se que haja um projeto que possibilite um documentário sobre o Maracatu Cearense, especialmente com as personalidades importantes na trajetória dessa manifestação na cidade. Isto seria importante para a memória dessa prática cultural. Há pessoas de extrema importância, que estão com idade avançada ou, ainda, que suas falas estão registradas em entrevistas realizadas por pesquisadores para suas monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Porém, somente fragmentos dessas falas são transcritos, não sendo possível ter maior profundidade sobre quem são essas pessoas, qual sua importância para o Maracatu Cearense e como elas ajudam a compreender as transformações dessa manifestação no decorrer das décadas.
Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense: ação em permanente construção
de um material pedagógico, sobretudo para crianças e jovens, que pudesse contribuir para o tratamento do Maracatu Cearense nas escolas de Ensino Fundamental e Médio da cidade de Fortaleza. Aqui, sem dúvida, serão necessárias ações conjuntas entre as Secretarias de Cultura e Educação. Igualmente, esse material deverá passar pelo crivo dos grupos para que as narrativas sobre o Maracatu Cearense encontrem sentidos e valores atribuídos pelos próprios grupos, que, como sabemos, são múltiplos e estão longe de ser homogêneos.
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Aprofundamento da pesquisa documental e criação de metodologia específica para o registro de bens culturais em âmbito municipal Outro aspecto muito importante é a necessidade de aprofundamento do Levantamento Documental sobre a manifestação cultural, especialmente no que tange aos acervos que estão sob a guarda dos grupos e, conforme notamos, constituem o material mais valioso sobre a manifestação cultural, tanto por sua quantidade quanto por sua qualidade. É importante sublinhar que esta pesquisa fez um Levantamento Documental, mas que, pelos seus limites, foi realizado nas instituições
públicas externas aos grupos, como, por exemplo: museus, arquivos, bibliotecas, universidades e outras. Na pesquisa de campo, foi constatado que a maior parte do material está com os grupos – e assim deve permanecer – e não disporíamos das condições necessárias para fazer um levantamento qualificado no prazo do projeto. Outro fator é que acessar esses acervos particulares de cada grupo, às vezes de uma ou outra pessoa, envolveria questões de direitos de propriedade, que não poderíamos solucionar no momento. Assim, será o nível da relação estabelecida entre a Prefeitura e os grupos, no âmbito da política do registro, que abrirá ou não as portas desses acervos. De qualquer forma, esse é outro assunto a ser discutido em específico com os grupos. É importante deixar claro a eles que não se trata de transferir o material para o poder público, mas realizar um levantamento com profissionais da área para fornecer ações necessárias
para a preservação desses acervos, verdadeiras memórias que autenticam a historicidade do Maracatu Cearense no seio da sociedade fortalezense. Faz-se ainda necessária a criação de uma metodologia específica para o inventário de bens culturais municipais. Isso permitiria maior precisão do levantamento de campo e análise do material, colaborando de forma significativa com a política municipal de patrimônio.
Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense: ação em permanente construção
VI
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VII Registro do Maracatu em âmbito federal Além da esfera municipal, seria importante o pedido do registro dos Maracatus cearenses também em âmbito federal. Isso possibilitará ampla visibilidade dos grupos no cenário local e nacional, além de viabilizar maiores oportunidades aos grupos no planejamento e execução de ação, através de recursos provenientes de projetos federais. É crucial que a solicitação de reconhecimento em âmbito federal ocorra a partir da iniciativa dos próprios grupos. Contudo, iniciativas municipais de educação patrimonial trariam maiores esclarecimentos
aos grupos, possibilitando que estes compreendessem melhor a relevância da realização do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do Maracatu Cearense.
c) a revisão histórica do legado cultural dos Maracatus do Ceará, através de pesquisas sociológicas, historiográficas e etnográficas, registradas na produção acadêmica;
Com base nos apontamentos de Souza (2014), sobre os elementos necessários ao registro dessa manifestação por meio do Iphan, verifica-se que a pesquisa realizada colabora para o pedido de abertura do processo, pois cumpre, em parte, alguns quesitos, apresentando comprovações, a partir de levantamento documental e bibliográfico, sobre:
d) o histórico de registros e exposições de curta e longa duração, referentes à temática, já acontecidas no Estado;
a) a relevância histórica dos Maracatus para o Carnaval de Fortaleza; b) a existência de vestígios materiais do desenvolvimento econômico, político e cultural dos grupos de Maracatus, no Ceará;
algumas demandas recorrentes no âmbito desta pesquisa. Acreditamos que elas já fornecem os temas a serem tratados nas futuras ações de apoio e fomento, mas a forma e como elas serão implementadas necessitam de uma conversa mais qualificada com aqueles que dedicam tempo e energia aos Maracatus17.
e) a relevância socioeconômica de eventos culturais voltados aos Maracatus, como o Dia do Maracatu (25 de março); o projeto Dia 25 é dia de Maracatu; a Festa de Nossa Senhora do Rosário; e as apresentações dos Maracatus, em eventos artísticos de diferentes naturezas. Por fim, voltamos a sublinhar que a construção do Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense precisará de um maior aprofundamento e diálogo com os grupos. Aqui, apenas esboçamos
17 Cabe ressaltar que as ações previstas no Programa de Salvaguarda, em parceria com o Iphan, visam ao desenvolvimento dessas ações a partir do ano de 2020.
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Parecer técnico nº 311/2015 da coordenação de patrimônio histórico e cultural da secretaria municipal de cultura de fortaleza Assunto: registro do maracatu cearense como patrimônio imaterial de fortaleza-ce Vimos apresentar Parecer Técnico sobre o Registro do bem imaterial Maracatu Cearense como Patrimônio Imaterial de Fortaleza, nos termos da Lei do Patrimônio nº 9347 de 11 de março de 2008, vigente no âmbito do município de Fortaleza. O pedido data do dia 08 de agosto de 2011, procedido pelo presidente do Maracatu Rei do Congo, Rodrigo Damasceno Rodrigues e corroborado pela gestão atual da Prefeitura Municipal de Fortaleza, através da Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza – SECULTFOR. A instrução do Registro em análise, coube à Coordenadoria de Patrimônio Histórico e Cultural – COPHC da SECULTFOR emitir parecer, por meio da Célula de Patrimônio Imaterial e colaboração da Célula de Pesquisa e Educação Patrimonial. 1. Sobre o processo de registro do maracatu cearense Para desenvolver a pesquisa, a Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza – SECULTFOR, contratou o Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da Universidade Estadual do Ceará – IEPRO, entidade sem fins lucrativos, com vasta experiência em mapeamentos, inventários e pesquisas sociais e culturais, no ano de 2015, através do Convênio nº 34/2013 de 10 de dezembro de 2013, para desenvolver um estudo sobre o Processo de Registro do Maracatu Cearense como Patrimônio Imaterial de Fortaleza.
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A coordenação do referido projeto e a pesquisa ficaram a cargo dos profissionais Danielle Cruz Maia, socióloga, Darllan Neves da Rocha, antropólogo, e Leandro Ribeiro do Amaral, historiador, contou com a participação dos auxiliares de pesquisa Bruno Duarte (Ciências Sociais), Isick Kauê (História), Laís Cordeiro de Oliveira (Ciências Sociais)
e Paulo Nicholas Lobo (Ciências Sociais). É importante ressaltar que toda a equipe foi escolhida através de processo seletivo, que considerou os aspectos curriculares e entrevistas. Em virtude de alguns projetos de Políticas Públicas voltados para o Patrimônio Cultural de matriz africana e outras formas de fomento já existentes na Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza, voltados para o Maracatu Cearense, consideramos o bem uma manifestação relevante para a cultura afro-brasileira na cidade de Fortaleza-CE, além da existência do pedido de registro, seguindo o Capítulo VI, Artigo 35 da Lei do Patrimônio nº 9347, que diz: “- O pedido de registro poderá ser feito por qualquer cidadão ou pelo Município, cabendo à Coordenação de Patrimônio Histórico - Cultural da Secretaria de Cultura de Fortaleza - SECULTFOR receber o pedido e, apreciando-o, abrir o respectivo processo”. Dessa forma, o Maracatu Cearense foi escolhido pela Célula de Patrimônio Imaterial como objeto de estudo nesse processo. A pesquisa foi realizada em 04 (quatro) etapas, a saber: 1. Instrução Preliminar 2. Análise Documental 3. Pesquisa de Campo 4. Redação do Relatório Técnico e Analítico. Durante a etapa número um, nota-se uma significativa coleta de dados bibliográficos, escritos e em audiovisual. Também foram realizadas várias visitas, nas quais foram feitas entrevistas com 12 (doze) dos 15 (quinze) grupos de Maracatu existentes, a saber: Az de Ouro, Vozes da África, Leão de Ouro, Filhos de Yemanjá, Rei do Congo, Rei Zumbi, Nação Iracema, Nação Baobab, Nação Fortaleza, Nação Pici, Nação Palmares e Axé de Oxóssi. Não foram coletados dados sobre o Maracatu Solar em razão de problemas sociais que o presidente enfrentava na época da pesquisa de campo. Já o presidente do Maracatu Kizomba desmarcou a entrevista repetidas vezes. Quanto ao Rei de Paus, após
A Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza - SECULTFOR - recebeu da equipe de pesquisadores, como resultado desse processo, uma cópia do Relatório Técnico e Analítico, uma cópia de Anexos contendo fichas de 12 (doze) Maracatus que tratam de temas como a fundação de cada Grupo, de aspectos culturais, como “falso negrume”, figurinos, ritmos, instrumentos, Rainhas, Religião, o que é Maracatu e a opinião de cada Grupo sobre o que é o Registro, entre outros. O Caderno de Anexos contém a transcrição de 18 (dezoito) entrevistas realizadas com os 12 (doze) grupos e também com o pesquisador e compositor de Loas, Descartes Gadelha. A Bibliografia é composta por 35 (trinta e cinco) referências bibliográficas, referência de acervo de material audiovisual do Museu da Imagem e do Som – MIS. E ainda termos de anuência de 18 (dezoito) entrevistados e mais cópia das Leis Municipais. No dia 9 de abril de 2015, nas dependências da Vila das Artes, às 14h, foi promovido um encontro com os Grupos de Maracatus, a equipe contratada e os representantes da Secultfor, para apresentação da importância do Registro e do processo de patrimonialização do Maracatu Cearense. Nesse encontro foram esclarecidas algumas dúvidas sobre o Registro. 2. Sobre o bem imaterial maracatu cearense Aspectos históricos e contexto social
Conforme tratado pelo Relatório Técnico, o que demarca as especificidades mais significativas de uma manifestação como o Maracatu Cearense são os usos rituais dos espaços de apresentação, a utilização de determinados instrumentos musicais, o estilo rítmico e melódico das músicas (denominadas pelos brincantes como loas), a presença de personagens específicos no cortejo, especialmente os relacionados à corte real, além da inserção de novas alegorias e do vínculo com as comunidades em que estão situados (2015, p.16).
Pensar sobre essas definições é refletir sobre as caracterizações construídas pela prática cultural ao longo de décadas. Mais do que pensar nas origens, é importante considerar quais são as bases de formação do Maracatu Cearense, durante as décadas, para compreensão de sua atuação e os significados das representações e dos discursos nela desenvolvidos. Sobre esse tema, segundo o trabalho realizado pela equipe do Iepro, o Maracatu Cearense é marcado por duas proposições que demarcam o seu período de existência. A primeira proposição de registros sobre a manifestação do Maracatu data-se ao final do século XIX. Segundo memorialistas e cronistas do assunto, como por exemplo Rodrigo Damasceno, Calé Alencar e Gustavo Barroso, as “origens” do Maracatu Cearense estão diretamente ligadas às coroações dos reis negros, ocorridas no âmbito das irmandades religiosas. Há, na base textual dos relatos coletados, a noção de que os Maracatus são originados das transformações das celebrações dos Autos dos Reis do Congo na cidade. As referências mais antigas encontradas nas citadas crônicas de época da existência de Maracatus no final do século XIX se fazem pela menção aos Maracatu do Oiteiro (antiga Aldeota), Maracatu da rua São Cosme Damião (atual Padre Mororó, Centro), Maracatu da Apertada Hora (atual Governador Sampaio), o Maracatu do Morro do Moinho Conrado (atrás da estação ferroviária) e o Maracatu na Prainha são referências da existência no período. É importante considerar, conforme assinala a pesquisa, que estes grupos se apresentavam principalmente no período das festas natalinas, migrando, posteriormente, para os festejos de Carnaval, sobretudo na década de 1930. A segunda proposição é a versão que afirma que essa manifestação surgiu no estado em 1936, quando Raimundo Alves Feitosa, o Boca Aberta (também chamado de Boca Mole), ao retornar de Recife, após três anos trabalhando na capital pernambucana, fundou o Maracatu Az de Ouro na cidade de Fortaleza, inspirado pela influência do Maracatu de Recife.
Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense: ação em permanente construção
sucessivas conversas, a entrevista foi realizada com o presidente do grupo, entretanto no final da mesma, ele não assinou o termo de anuência do processo em questão.
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O interessante a destacar é que, independente da versão narrada, foi na cidade de Fortaleza, segundo o Relatório Técnico, que ocorreu o desenrolar dessa manifestação, havendo o surgimento de grupos no interior do estado somente nas décadas recentes, tais como: Ás de Espadas em Itapipoca, Nação Tremembé em Sobral, Maracatu Nação Uinu Erê no Crato, Estrela de Ouro em Canindé e Nação Kariré no município de Cariré. Ainda sobre a presença e atuação do Maracatu Cearense, é importante considerar que, até 1944, os registros coletados na pesquisa reunida pelos profissionais do Iepro apontam o Az de Ouro como único Maracatu a se apresentar no desfile de carnaval de rua da cidade. É na década de 1950 que surge outro Maracatu, o Ás de Espada. Na década de 1960, Fortaleza contava com seis Maracatus: Az de Ouro, Ás de Espada, Leão Coroado, Estrela Brilhante e Ás de Paus, - criado em 1961 e cujo nome foi modificado para Rei de Paus em 1964, além do Nação Uirapuru, fundado em 1965. Ao passar dos anos, formavam-se os outros Maracatus, sobretudo nas décadas de 1990 e 2000, já apontados neste parecer.
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Nesse sentido, é inquestionável, por base nas informações reunidas, a continuidade ao longo do tempo da presença desse bem cultural na cidade, que parte das memórias e histórias reunidas tanto por história oral, quanto de bibliografia específica e fontes primárias de referência. Sobre a sua inserção social, entre outros aspectos, é importante refletir sobre os integrantes dos Maracatus e sobre suas criações, reivindicações e visões de mundo à sociedade. Em torno do Carnaval, os brincantes constroem socialmente uma rede de relações para manter a existência de cada Maracatu. Para o êxito da apresentação, segundo a pesquisa realizada para este parecer, por todo ano, os brincantes trabalham para a preparação da festa. Ao terminar o carnaval, iniciam-se os trabalhos do desfile do ano seguinte. Os grupos decidem o tema, as homenagens, a confecção das fantasias, além das inovações que são iniciadas com as participações de integrantes e incentivadores dos grupos.
A preparação para o carnaval não envolve apenas as pessoas que compõem o desfile em si. A mobilização social acontece também com os moradores do bairro onde se concentra o grupo, como também de pessoas de outras localidades. Elas contribuem para a confecção do figurino e dos adereços. Além disso, vários adornos utilizados nas fantasias são adquiridos no comércio da cidade ou por meio de lojas virtuais sediadas principalmente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Assim, comumente, pessoas que embora não desfilem no Maracatu Cearense contribuem com a costura de figurinos ou confecção de adornos de forma voluntária, motivadas pela relação que têm com algum integrante ou pelo sentimento de orgulho por contribuir com a elaboração do Maracatu. Os preparativos mais intensos da festa, como os ensaios, iniciam-se somente próximo ao Carnaval, quando a maioria dos grupos ensaia pelas ruas do próprio bairro cujo público e integrantes, muitas vezes, são parentes ou mantêm algum vínculo afetivo. Vale destacar também que a maioria dos grupos de Maracatu está localizada em bairros, onde muitas vezes, problemas decorrentes da desigualdade social são comuns, bem como a ausência de políticas públicas direcionadas ao lazer e à cultura são menos acessíveis. Sobre a localização desses grupos, cabe considerar que são: Axé de Oxóssi (Farias Brito), Az de Ouro (Jardim América), Filhos de Yemanjá (Centro), Kizomba (Lagoa Redonda), Nação Baobab (Bela Vista), Nação Fortaleza (Aldeota), Nação Iracema (Planalto Iracema), Nação Pici (Planalto Pici), Rei do Congo (José Bonifácio), Rei de Paus (Joaquim Távora), Rei Zumbi (Itaperi), Solar (Benfica), Vozes da África (Centro), Nação Palmares (Jardim América). Nesta perspectiva, o Maracatu é um importante espaço para proporcionar atividades de lazer e de cultura para a população local, além de também poder considerar o Maracatu como importante espaço de visibilidade e mobilização social dos brincantes.
O Relatório Técnico do Maracatu Cearense, com o objetivo de identificar os componentes históricos, culturais e sociais para a compreensão dos elementos corporativos do bem imaterial, vem falar do cortejo pelo qual o Maracatu é composto e dos personagens formados por pessoas que têm uma função simbólica. Nessa formação temos a Baliza, personagem geralmente representado por um homem, que anuncia a entrada do cortejo real, fazendo menção ao bobo da corte; em seguida o Porta-Estandarte, que identifica o Grupo através do nome, das cores e do seu ano de fundação; a Ala dos Índios, composta por homens e mulheres e em muitos grupos há a participação de crianças, que nos remete aos primeiros habitantes do Brasil; logo depois os Africanos, uma ala que traz os negros africanos como guerreiros ou lutadores, não se tratando apenas de uma representação do negro escravo; depois dessa ala vem o Balaieiro, que traz geralmente um homem com um balaio carregado de frutas, encaixado na cabeça, simbolizando a fartura e o alimento representado como poder e riqueza; seguem os Negros, uma ala que é adotada somente em alguns Grupos; a Calunga trata-se de uma boneca pintada de preto, carregada por uma calungueira ou dama do paço e ambas vestem o mesmo traje. A Calunga representa um ser supremo, com o poder de evocar antepassados. Possui dois significados religiosos: Orixá maior – Deus – ou Deus Calunga, que corresponde ao “mar”. Representa, ao mesmo tempo, o sexo masculino e o feminino, podendo ser chamado tanto de D. Leopoldina como de Dom Luiz. Segundo a tradição africana, é dedicada ao Orixá Omulu, segundo o pesquisador Virgílio Nogueira Gomes; vem, em seguida, o Casal de Pretos Velhos, personagens que representam os curandeiros na ala da macumba e possui cunho religioso para alguns Grupos, significando, muitas vezes, personificando a sabedoria; seguem depois as Baianas, cuja ala vem com um número significativo de participantes, e é normalmente composta por mulheres mais velhas; a Capoeira e Maculelê representam a permanência da cultura negra em nosso país, presente na maioria dos grupos; os Orixás, presentes nos Grupos a partir de homenagens ou dependendo do tema escolhido; a Corte
é o esplendor do cortejo e é composta por vassalos, príncipes, princesas, todos vestidos com roupas longas, bordadas com pedraria e muito brilho, que antecedem a maior atração do cortejo: a Rainha. Essa figura vem acompanhada de seu Rei, cobertos por um pálio rodopiante. Seu trajeto é defumado por um incensor. A solenidade é marcada pelos seus passos elegantes, seus braços abertos e receptivos, seu porte imponente e orgulhoso. A sua coroação é o ápice do cortejo. Geralmente, a coroa é colocada na sua cabeça pela preta velha, numa atitude de respeito às velhas africanas portadoras de grande sabedoria, conforme apontado pela pesquisa de Ana Cláudia Rodrigues da Silva na dissertação intitulada “Vamos Maracatucá!!!: um estudo sobre os Maracatus cearenses”. A rainha também representa a “mãe África”. Em alguns Maracatus, ela é associada à rainha Ginga. Finalizando o cortejo, segue o Batuque, com os batuqueiros e cantadores de loas. Outro elemento característico dessa manifestação é o Negrume, pintura facial feita geralmente com uma tinta artesanal de cor preta composta por vaselina, óleos minerais, talco e fuligem de lamparina. Há grupos que também usam uma tinta própria de cor escura. Quase todos os personagens pintam o rosto com esta tinta preta como forma de representação e homenagem aos negros, com exceção dos Índios e Orixás. Entretanto, existem alguns grupos que optam por não usar o negrume, por considerarem que o sentimento de ser negro vai além do ato de pintar o rosto. Ainda falando de peculiaridades, o Ritmo, que é a maior forma de expressão, por isso de grande importância para o Maracatu Cearense, é outro tema muito discutido. O ritmo considerado “tradicional” é o lento, cadenciado, considerado uma característica própria do nosso Maracatu. Para alguns brincantes, esse ritmo tem relação com o lamento dos escravos. Quanto à marcação do ferro, principal instrumento do batuque, para alguns faz alusão à batida das correntes que aprisionavam os escravos.
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3. Elementos característicos do bem cultural
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Este ritmo cadenciado do Maracatu Cearense é importante, principalmente para os Grupos mais antigos, que guardam os valores “tradicionais”. Entretanto, essa manifestação também possui Grupos com ritmos mais acelerados, o que vem a colaborar com a necessidade de convivência da tradição e contemporaneidade. 4. As referências culturais e a relevância do maracatu cearense A proposta do registro do Maracatu Cearense fundamenta-se, portanto, na relevância de considerar a manifestação: 1. Por divulgar, identificar, manter, reconhecer e dar visibilidade às referências culturais de matriz afro-brasileira na capital cearense, tornando, assim, um importante espaço para a aproximação e o reconhecimento das pessoas com as tradições de raízes africanas e das memórias dos negros na cidade de Fortaleza; 2. Por esta prática cultural manter vínculos, para alguns grupos de Maracatus, com as religiões de matriz africana, colaborando com a divulgação e o combate à intolerância religiosa; 3. Por esta manifestação guardar elementos constitutivos e referências da constituição da formação do povo de Fortaleza, como, por exemplo, os povos indígenas e ibéricos; 4. Por este bem cultural proporcionar lazer e atividades para a juventude, engajando-a nas diversas atividades relacionadas ao Maracatu, tais como cursos de dança, de confecção de fantasias e de instrumentos, entre outras atividades que são proporcionadas como ação social; 5. Em sua dimensão estética, o Maracatu Cearense é um importante espaço de expressão artística para vários brincantes do carnaval de Fortaleza;
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Por tudo o que foi apresentado no processo ora analisado, e por ser o Maracatu Cearense uma manifestação muito rica, sua complexidade, junto com a sugestão dos próprios detentores da manifestação, colhidas em um encontro no dia 23 de novembro de 2015, no
Teatro Antonieta Noronha – SECULTFOR, inspira-nos um parecer favorável à inscrição do Maracatu no “Livro de Registro dos Saberes”, onde serão inscritos os conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades, por entendermos que existem participantes do Maracatu Cearense, como batuqueiros, tiradores de loas, desenhistas, confeccionadores de figurinos, além de alguns personagens como Balaieiro, Calungueira e Rainha, que são pessoas detentoras de especial e indispensável saber para a prática dessa manifestação. Sugerimos também que seja registrado no “Livro de Registro das Celebrações”, onde são inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social, por entendermos que alguns grupos de Maracatu possuírem ações e rituais que traduzem sua religiosidade referente à Umbanda e ao Candomblé, assim como outros grupos têm o Carnaval como mote principal do seu Maracatu, onde as festas populares dão sentido à manifestação. Por fim, propomos ainda que o Maracatu Cearense seja registrado no “Livro de Registro de Formas e Expressão” onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas. Como já foi citado anteriormente, a música do Maracatu Cearense, com seu ritmo cadenciado, deixa clara sua especificidade e importância dentro dos grupos e fora deles, como vetor de identificação dessa manifestação, por diferenciar nosso Maracatu de todos os outros existentes, principalmente pela marcação pulsante do ferro.
Fortaleza, 22 de novembro de 2015. Maria das Graças Almeida Martins Gerente da Célula de Patrimônio Imaterial Adson Rodrigo Silva Pinheiro Historiador e Gerente da Célula de Pesquisa e Educação Patrimonial De acordo, Jober José de Souza Pinto
Homenagem Póstuma
Iraguassú Teixeira A Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza presta uma homenagem póstuma a José Iraguassú Teixeira, figura pública e grande incentivador das tradições carnavalescas na Capital cearense. Nascido em 7 de janeiro de 1941, em Canindé, Iraguassú passou a residir em Fortaleza em 1942, dedicando 51 anos de sua vida ao serviço público, na função de médico. Em 1988, entrou na carreira política, atuando como vereador durante sete mandatos. Sua trajetória é fortemente lembrada pela defesa da pauta cultural da capital cearense e por ter sido um entusiasta e admirador do carnaval popular de rua, sempre presente nos tradicionais desfiles da Avenida Domingos Olímpio, apoiando e reconhecendo os Maracatus, os Afoxés, as Escolas de Samba, os Cordões e os Blocos de Carnaval de Fortaleza. Iraguassú Teixeira partiu no dia 22 de fevereiro de 2021, aos 80 anos, deixando uma trajetória perpetuada por lutas e conquistas na Capital cearense.
Plano de Salvaguarda do Maracatu Cearense: ação em permanente construção
5. Recomendações de salvaguarda A partir das discussões feitas com os grupos de Maracatu e expostas no Dossiê, temos como recomendações: - Maior visibilidade midiática aos Maracatus; - Manutenção do projeto Todo Dia 25 é Dia de Maracatu; - Apoio financeiro mais significativo aos Maracatus por ocasião do Desfile de Carnaval; - Reconstrução ou criação de um novo espaço para o Museu do Maracatu; - Inventário Sonoro dos Maracatus Cearenses; - Documentário sobre os Maracatus Cearenses. Este é o parecer que remetemos para análise do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico-Cultural (COMPHIC) de Fortaleza para exame e aprovação.
Coordenador do Patrimônio Histórico e Cultural
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Referências
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Este livro foi impresso em 2021. A fonte usada no miolo é Cormorant. O papel do miolo é Couché fosco 170 gm/m2.
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