São Tomé e Príncipe - Relatório de desenvolvimento humano

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Identidade cultural e desenvolvimento humano

modelos para facilitar a compreensão das identidades em jogo. O padrão histórico tradicional encontra-se profundamente ligado a um sistema de roças que é preciso explicitar. A roça é, na sua origem, uma unidade de produção, mas ao mesmo tempo desenvolve-se como o espaço onde o sistema social é construído na base dos que chegaram a um local em princípio estranho. O processo de decadência do sistema de monocultivo do açúcar ao longo do século XVII e a sua substituição por um outro baseado em vários cultivos de subsistência faz com que a roça deixe de ser a antiga unidade de produção, mas continue a ser o modelo de referência social, inclusive no processo de urbanização do século XVIII1. O cultivo do cacau desde o século XIX volta a fazer recuperar todos os seus valores iniciais. Esta vivência antecipada da roça como entidade de referencia social, política e económica manifesta-se em última instância numa cultura forjada em relação a esta antiga tradição. Esta cultura não fica restringida a esse âmbito rural onde se desenvolve pois que se difunde no conjunto dos santomenses, incluindo os que vivem nas cidades. Isto não implica como é lógico, que as atitudes e visões em relação a essa cultura e o sistema de origem rural associado sejam similares entre os sectores sociais e grupos étnicos. Como em qualquer outro lugar convivem formas distintas de pensar e de reflectir sobre si próprio, mesmo compartilhando o sistema simbólico que dá sentido e faz possível a comunicação. As características que mais se destacam neste padrão histórico que serve de referência comum são: 1. A criação e reprodução de relações de solidariedade constituídas através de um intercâmbio desigual de favores entre os patrões e os antigos escravos em primeiro lugar e os assalariados depois. Esta lógica de solidariedade encontra-se em STP estreitamente ligada ao estabeleci1 Ver Caldeira, 1999:72 2 Ver Caldeira, 1999:72

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mento de um sistema económico baseado numa mão-de-obra completamente desenraizada. Levados a força para o novo território produz-se uma perda das referencias físicas, sociais e simbólicas, traduzindo-se numa desintegração da sua anterior identidade pessoal e colectiva. Como explica Caldeira2 os que chegaram a STP perderam até o seu nome próprio e a língua e tentam aculturar-se segundo modelos europeus, produzindo uma brutal reconstrução de uma identidade. As tentativas de reconciliação provocam constantes fugas e revoltas durante séculos, mas os que permanecem nas roças vêm-se obrigados a reconverteremse, procurando apoio em quem possa garanti-lo. Por outro lado, os que ocupam posições privilegiadas neste sistema das roças, sejam portugueses ou mestiços, podem também beneficiar-se, contando desta maneira com uma mão de obra estável e controlada, aumentando a sua produtividade e o seu poder. Este padrão passa assim a exercer uma função de construtor e garante da ordem social, que se tem conservado ao longo dos tempos, e difundindo-se entre os sectores locais libertados que foram ocupando lugares no poder. 2 O exercício de mediação por parte dos que ocupam o poder simbólico entre a riqueza produzida e a gente comum imersa nos intercâmbios de favores. Vinculado ao estabelecimento de um sistema de apoio mutuo, mas desigual, é a lógica de admitir a acumulação por parte daquele que se encontra na situação de poder. Não estamos falando dos meios convencionais de acumular riqueza numa economia livre de mercado mas de aproveitar essa posição privilegiada, para utilizar os recursos colectivos e públicos para enriquecer, sem ter em conta critérios de propriedade publica ou privada, nem de produtividade, competitividade, mercado etc. O poder de acumulação é assegurado pela posição privilegiada que se ocupa e que está legitimada socialmente pela reprodução desse papel e pela função redistribuidora de quem o exerce. Quer dizer, acumula-se, mas distribui-se, de maneira a aumentar o estatus e ao mesmo tempo reproduz-se o modelo social, dotando-o de coesão, pela aceitação dessa lógica. Esta forma de conceber

Relatório do Desenvolvimento Humano - STP

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