Ana Kemper
AoLeo Lucenne Cruz
Denise Adams Jozias Benedicto
Elisa Castro Rafael Adorjรกn
Helena Trindade Ursula Tautz
Curadoria Isabel Portella 1
Exposição realizada no Centro Cultural Justiça Federal, Rio de Janeiro, de 23 de Fevereiro a 10 de abril de 2016 www.ccjf.trf2.jus.br CURADORIA E TEXTOS CRÍTICOS Isabel Sanson Portella isabel.portella@gmail.com
morgadoromy@gmail.com
FOTOGRAFIAS Os artistas Regina Cabral de Mello IMPRESSÃO Côrtes Indústria Gráfica, 1000 exemplares, 2016
ARTISTAS Ana Kemper
anakemper@gmail.com
Ao Leo
leomottacampos@yahoo.com.br
Denise Adams
deniseadams1967@gmail.com
Elisa Castro
elisamcastro@gmail.com
Helena Trindade
helenatrindade.carbonmade.com
Jozias Benedicto
jozias.benedicto@gmail.com
Lucenne Cruz
lucennemaria@gmail.com
Rafael Adorján
adorjan@gmail.com
Ursula Tautz
ursulatautz@ursulatautz.com
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PROJETO GRÁFICO Romy Morgado
AGRADECIMENTOS Adriano Luiz Trindade Casa 2 Centro Cultural Justiça Federal Cintia Kury Souto Severino Bezerra
Reminiscências m e m ó r i a e n a r ra t i v a
Pensar a memória como fenômeno da atualidade é trabalhar as possibilidades narrativas presentes no inconsciente que podem ser encontradas dentro de cada um e emergir em forma de sonhos, lembranças e registros. Provocar a articulação desse inconsciente em discurso é construir histórias e narrativas. Para trazer estas questões ao público interessado em arte, a curadora Isabel Portella convidou nove artistas do cenário contemporâneo carioca (Ana Kemper, AoLeo, Denise Adams, Elisa Castro, Helena Trindade, Lucenne Cruz, Jozias Benedicto, Rafael Adorján e Ursula Tautz), de poéticas diferentes, para construírem trabalhos pensando a memória e a narrativa em uma visão estética atual. Passagens do tempo deixam marcas que podem ser visíveis ou não, e estas carregam em si os rastros deste fluxo de vida. A memória pode ser despertada por imagens, cheiros, sons, que permitem novas combinações de leituras, sentidos, redescobertas, sustos. As narrativas têm como ponto
de partida experiências vividas ou imaginadas, que podem ser completadas com inquietações e anseios. Os nove artistas partiram do mesmo ponto: busca de elementos que potencializassem a memória e a narrativa e, em conversas com a curadora, cada artista desenvolveu o seu trabalho especialmente para esta exposição: Ana Kemper e AoLeo com fotos; Lucenne Cruz com objetos; Denise Adams e Rafael Adorján com fotos e vídeos; Helena Trindade com fotos e objetos; Jozias Benedicto com videoinstalações e uma performance; Ursula Tautz com uma montagem fotográfica e uma videoinstalação e Elisa Castro com desenhos e uma videoinstalação. Isabel Portella
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Ana Kemper Trabalha questões criativas dos mecanismos da memória e da des-memória e seu pensamento se encontra com o pensamento do poeta português Herberto Helder, trabalhador incansável das metáforas e dos símbolos. Diz o bardo que “a memória é improvável” e “a experiência é uma invenção.” Em sua obra “A memória é improvável” a artista observa a reação sofrida por uma fotografia submersa em água após a adição de um pigmento forçado a se dispersar por movimentos provocados no recipiente da experiência. Ao registrar o ocorrido em fotografias, Kemper questiona memória e apagamentos. Em “Insular”, uma foto-performance espontânea, são os limites entre corpo-natureza, dentro-fora, paisagem-retrato, memória-ideia que vão ocupar o centro das atenções da artista. Para ela não existe espaço interno e externo, “mas a forma total criada por uma energia rítmica sem quebra”. O espectador, então, diante da obra, se vê envolvido pela luz, pela delicadeza do tema, por tudo aquilo que o faz refletir sobre o interior e o exterior e sobre a superfície transparente onde essa distinção é 4
anulada. Maior do que a imagem é o desejo de fluidez, de comunicação, de tocar a natureza. “A natureza produz muito mais efeito em mim do que eu nela” (Richard Long). Talvez essa citação do escultor, fotógrafo e pintor inglês, revele a mesma inquietação, o mesmo interesse de Ana pelas questões ligadas à ecologia. O objetivo do trabalho de Long é a reflexão sobre os conceitos de natureza e o processo de transformação do espaço natural pelo homem. Ana Kemper, em “Vista Sonora”, volta-se para desenhos formados na areia pela passagem das ondas do mar. A fotografia serve como captura das percepções corpóreas relacionadas à memória de uma passagem, de seus rastros, da poesia que fica. Kemper permite que seu olhar repouse na natureza, captando com sensibilidade as variações de ritmo, a direção do caminhar, as incidências da luz. Interessa-se pelas marcas deixadas, construindo assim outras narrativas com uma visão estética atual.
Ana Kemper, Objetos 1, 2 e 3 da sĂŠrie Montagem do poema ausente 5
Ana Kemper, A memória é improvável 6
Ana Kemper, Insular
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AoLeo O artista procura, em seu projeto, investigar o verdadeiro limite do desenho que não está contido apenas no plano de suporte, mas desloca-se e ganha o horizonte do espaço. Através de intervenções com barbantes em árvores, AoLeo cria um novo horizonte para o desenho, com dimensões espaciais e temporais. “A linha antes contida nas margens do papel em branco desloca-se do plano do suporte...”, propõe o artista. Horizontes e Planos são as duas palavras que provocam e instigam tanto a visão quanto o pensamento na obra de AoLeo. Se por horizonte entendemos que seja uma linha que limita o campo da nossa observação visual, na qual o céu parece encontrar-se com a terra, plano nos remete a qualquer superfície lisa, sem desigualdades, limitada em relação a outras ou isoladamente. Mas isso são apenas definições que podem estar 8
contidas em qualquer dicionário. AoLeo, em seu projeto, procura ir além de horizontes definidos, explorando novos caminhos onde o limite pode ser expandido, onde planos se cruzem ou se sobreponham. Ampliando seu campo de visão, utiliza outra linguagem para falar de propostas e planos, criando imagens paralelas, horizontais. Linhas, cordas, coqueiros e encontros de mar e céu são elementos que constroem o pensamento do artista que investiga os limites do desenho, não se restringindo apenas a “coisa de lápis e papel”.
Ao Leo, Horizonte
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Ao Leo, Horizonte- oriente II
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Denise Adams Os trabalhos da artista apresentados na mostra Reminiscências discutem a questão da construção da imagem e da máquina, enquanto memória. Vídeo, fotos e objetos sugerem, para Denise, uma ausência. O que fica de tudo é memória - do aparelho e do objeto. A possibilidade de imagens está na visão do espectador que certamente utilizará suas próprias lembranças para atribuir sentido ao exposto. O tríptico “Todas as Fotografias do Mundo”- uma bobina, uma polaroide da bobina e um texto técnico a respeito do filme não revelado – desperta um universo de imagens bastante instigadoras. O que significam, no mundo, esses objetos? O que pode ser revelado a partir de uma bobina? Dentro das caixas de acrílico, Denise Adams encerrou objetos à procura, silenciosa, de sentidos, de revelações. Na fotografia de uma tela de Tintoretto, a escuridão predomina e a impossibilidade de ver perturba os sentidos. O que fica visível é a memória que temos a respeito. Tudo acontece a partir do que o espectador vê e interpreta. Novamente Denise nos 12
apresenta uma impossibilidade geradora de questionamentos, uma busca da luz que faria toda a diferença na percepção. A fotografia do sítio arqueológico da Serra da Capivara apresenta um espaço que parece abandonado, mas é, na verdade, um local preservado para outro tempo de investigações. Diante da impossibilidade a imagem pulsa, desperta a curiosidade e o desejo de revelações! Poderia ser um veículo de informação e de pesquisa, mas permanece apenas como uma possibilidade para o futuro. Um registro à espera de uma ação. Uma imagem latente. O impossível e o real, o visível e as possibilidades daquilo que pode ser percebido tanto com os olhos quanto com a memória são questões na obra de Denise Adams. Como propõe a artista “há sempre algo a ser revelado e na impossibilidade de acessar diretamente as informações ali contidas resta criar para si mesmo todas as possibilidades da imagem”.
Denise Adams, Veneza 13
Denise Adams, Bloco testemunho
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Helena Trindade Tem como proposta abordar o inconsciente como um tipo singular de memória “que irrompe em sonhos, atos falhos e chistes e, uma vez articulada em discurso, constrói nossas histórias, tradições e narrativas.” Assim resume a artista o ponto de partida para a realização de suas obras. A letra aparece como o símbolo do mistério do ser, com sua unidade fundamental oriunda do Verbo divino e com sua diversidade inumerável resultante de combinações virtualmente infinitas. Ao inscrever e escrever letras num labirinto difuso e desordenado a artista movimenta símbolos à procura de novos significados. Imagens adormecidas despertam como letras que se unem, aleatórias, seguindo o impulso criador e desta forma revelando a infinita capacidade do homem de reinventar. Se uma letra impressa pressupõe, de algum modo, a permanência, o que dizer de um suporte como a areia? Em Gosto do 16
Deserto, a imagem inquietante e provocadora de tipos de uma máquina de escrever irrompendo da areia remete à fragilidade, à instabilidade. Helena desperta a memória das muitas palavras que já foram escritas na areia e que o mar apagou. As obras de Helena Trindade trazem a força da palavra como conteúdo latente da memória. Palavras e letras com osso, letras desordenadas e em ruínas, sons de palavras que se misturam. Com extrema sensibilidade a artista busca a poética das letras armazenadas no inconsciente para que estas despertem outras narrativas, outros diálogos com o espectador.
Helena Trindade, Carta a Lygia, esculturas interativas construĂdas a partir de estĂŞnceis de letras de metal articulados por dobradiças.
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Helena Trindade, Moebianas n°º2
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Jozias Benedicto Para guardar na memória é preciso dizer, escrever, criar, declarar. Só a obra guarda a memória do criador, só o feito revela as emoções para que possam ser entendidas e iluminadas pelos que a virem. Jozias Benedicto brinca com a memória, joga um jogo do qual ele mesmo sobreviveu, escapando para lembrar as possibilidades narrativas presentes no inconsciente e que emergem na forma de lembranças e registros. “O pior morto é quem perde as memórias e segue vivo sem nada de si”, diz Jozias em seus poemas. E então o artista, em duas videoinstalações, “Memórias Queimadas”, faz uma releitura de momentos de sua vida, recupera fotos e lembranças criando outra história que tem como ponto de partida experiências vividas. As imagens, desconexas para quem observa, falam de memórias guardadas em gavetas, “sem medo nem maldade”, junto com “sonhos, euros e ouro”. Para Bachelard a gaveta é “a casa das coisas” que, como nós, têm a necessidade de abrigo. Só guarda 20
bem, só conhece “a poética e a psicologia da gaveta, quem sabe habitar”. Habitar é estar guardado. O alarme de incêndio é um despertador de emoções. A partir desse som profundamente perturbador, é preciso avaliar prioridades, necessidades e riscos. Na urgência do momento cabe somente ao indivíduo buscar aquilo que deve ser resgatado e o que precisa ser deixado para trás. A fuligem vai cobrir tudo que restar, vai reduzir a cinzas o passado, mas vai possibilitar uma renovação. A pequena sereia de louça sobreviveu, sem brilho e sem braço, mas ainda atenta às imagens e memórias de água, na vídeoinstalação “O tempo” (Nam June Paik)”. Talvez ela saiba que “guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, velar por ela, estar acordado por ela (...)” como diz um outro poeta.
Jozias Benedicto, “O jogo de memória”
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Jozias Benedicto, MemĂłrias queimadas (alarme de incĂŞndio)
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Lucenne Cruz O objeto de pesquisa e trabalho em arte de Lucenne Cruz está voltado para a escrita enquanto palavra e matéria. A palavra escrita, seus diversos suportes e formatos, interessa à artista que pensa o gesto de manuscrever “tal qual o traço, registro, performance, memória, apagamento.” Lucenne copia coisas escritas e guardadas, cartas trocadas com alguém que partiu, em gaze e carbono. Vai formando, com toda essa leveza, um livro-registro de memórias. Palavras são agora imagens, em azul carbono, impressas na transparência da gaze, quase efêmeras. As cartas, “pequenos arquivos de afeto”, serão compartilhadas com desconhecidos, postadas no Correio como exercício de arte e escrita, de memória e pesquisa, de construção e reconstrução. O que faz sentido, no entanto, é a concretização de uma ideia, a dinamização do escrever. As marcas impressas a fundo no papel, sem tinta, como cicatrizes na pele, e as palavras estampa24
das em inocente veste de criança encontram seus significados na natureza da escrita. Lucenne Cruz constrói livros a partir de memórias, de acervos afetivos e gavetas de guardados. Cartas, narrativas possíveis, gravuras em metal, tudo constitui matéria que vai sendo costurada através dos anos. “O tempo é uma grande ficção da escrita”, nos diz a artista. E ao passar, o tempo deixa marcas, histórias e grafismos no corpo. Só a memória é capaz de ler tais escritos. Só os sentidos podem perceber as diversas camadas de narrativas que se sobrepõem. Reprodução e cópias, matrizes e originais são conceitos que povoam a arte de Lucenne. Em seus trabalhos destacam-se as formas simples, primordiais, em comunhão estreita com as palavras.
lucenne cruz, alguns sobrescritos
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lucenne cruz, cartas a serem enviadas ao término da exposição, um copo de anil, isto era uma palavra indefinida. 26
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Rafael Adorján Para acompanhar Adorján em seus “exercícios para esquecer” é reciso caminhar firme confiando na força, no saber. Cada passo nessa corrida é a possibilidade de deixar para trás “reminiscências” que se quer esquecer. “Só penso que para esquecer eu prefiro correr” confessa o artista que questiona em sua obra o esquecimento como força plástica. Lembrar muitas vezes dói, machuca a alma e paralisa o pensamento. Movimentar o corpo sem tréguas, esvaziando a mente, talvez seja uma maneira de abandonar memórias indesejáveis na próxima curva da estrada, atrás das árvores e moitas pelo caminho. E quando a bruma densa surgir à frente, deixar que nela se misture a névoa dos pensamentos para que possa surgir daí uma nova força livre do peso do que é passado. Correr sempre mais rápido para mais rapidamente esquecer. Rafael Adorján trata com muita delicadeza, em seu vídeo, questões de memória e apagamento. A luz e a nitidez das imagens sugerem essas ambivalências, dão corpo a sentimentos e expressam uma atitude de abertura, sem medos, diante do novo e do inesperado. “Religare”, série de fotografias feitas por Adorján durante seu período de convivência com a comunidade 28
do Vale do Matutu, município de Aiuruoca, sul de Minas Gerais, é fruto de sua jornada intensa construindo relações com pessoas e lugares que mantém ali uma ligação com o a doutrina do Santo Daime. “Religare” significa ligar, juntar, unir. Uma re-ligação do homem com a natureza e consigo mesmo, num caminho espiritual cercado de fortes experiências e sensações. As imagens de Rafael Adorján, mais do que um documentário fotográfico da vida local e das manifestações religiosas, são um mergulho confiante e respeitoso nos caminhos de uma doutrina de origem brasileira, considerada patrimônio imaterial de nossa cultura. Seguir por essas trilhas é refletir sobre lugares, objetos e práticas, questionando saberes e sistemas. Se para Rafael a intenção foi apresentar a comunidade e seus espaços de celebração, para o observador atento fica a forte sensação de que por trás de tantos cenários existe a indiscutível presença do homem, seu criador. “Religare” apresenta imagens que falam do que existe de mais profundo no ser humano, suas crenças e convicções. A narrativa do artista encontra-se marcada profundamente pelas experiências vivenciadas, pelo aprendizado, pelo entendimento da completa integração com a natureza.
Rafael Adorján, “Correr” frames de video
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Rafael Adorján, série Religare
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Ursula Tautz Apresenta na mostra “Reminiscências” uma vídeoinstalação, “Sobre saudades (sem lembranças) para Televisores ou Saudações a Nam June Paik” e uma montagem fotográfica, “Uma Palavra”. Na vídeoinstalação, como um tributo a Paik, Ursula revisita os conceitos do artista sul-coreano frequentemente creditado pela descoberta e criação da vídeoarte: “a vídeoarte imita a natureza, não em sua massificação ou em seu aspecto físico, mas na sua estrutura temporal, na sua irreversibilidade...”. A obra da artista nos faz refletir sobre novas possibilidades de uso dos meios tecnológicos e principalmente sobre cultura de massa e da utilização mais elaborada e libertadora desses veículos. Ao criar formas alternativas de expressão, Ursula toma como base a própria tecnologia que impacta nossas vidas, transformando não apenas as imagens, mas o próprio aparelho televisor em arte, incorporando-o à sua escultura. A relação Homem/Máquina é grande inspiração no nosso cotidiano midiático, eletrônico, 32
digital e globalizado. Os televisores que a artista utiliza em sua obra reproduzem o vídeo familiar “Sobre saudades Sem lembranças”, com imagens e sons imprecisos, narrativa pouco coerente, mas envoltos numa atmosfera onde sonho e realidade se misturam. O tema do vídeo - uma viagem afetiva à terra de origem, as reminiscências e saudades - ameniza a frieza das estantes de aço, da luz azulada e da tecnologia. “Uma palavra”, montagem fotográfica, questiona o uso da palavra e do poder sem justificativas para cometer atrocidades. Atingir o ser humano no seu espaço mais íntimo, a sua casa, destruindo, saqueando, bombardeando, devastando ou incendiando é algo que abala nossas crenças e certezas, difundindo o medo, a incerteza e a fragilidade. Ursula Tautz pesquisa extensivamente as relações que envolvem o habitar e o pertencer. Sua obra revela o cuidado com que trata de temas envolvendo raízes, lembranças e legados.
Ursula Tautz, sobre saudades(sem lembranças) para TV ou saudações a Nam June Paik / Uma palavra
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Ursula Tautz, Uma palavra
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