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2010 JUL

NR 06

PERIFERIAS 05 José Saramago in memoriam Em 1982 é editado Memo- estrito, adquirem uma nova rial do Convento que alcança significação por se tornarem um êxito que ultrapassa fron- relevantes as forças mateteiras e torna conhecido José riais que fazem a História. Por Saramago, então com 60 mostrar os indivíduos agindo anos, à escala internacional. à base dos seus dramas pesAntes, entre outros, já tinha soais, dos seus interesses e escrito Levantado do Chão conflitos de classe. Essa insubordinação con(1980) e Viagem a Portugal (1981), dois livros fundamen- tra a história oficial, que já tais na sua obra. Nessas três existia em Levantado do Chão obras inscreve-se o dispo- ou Memorial do Convento, sitivo narrativo que torna a continua no Ano da Morte de Ricardo Reis, História do escrita de Saramago impar. Uma mesma frase é parti- Cerco de Lisboa, O Evangelho lhada por diversos persona- segundo Jesus Cristo e será retomada com gens, incluindo o novo enquanarrador. A consO que nunca dramento na trução sintáctica Viagem do é reconstruída se perde é uma deElefante o u por uma pon- purada sagacidade e m Caim o tuação, de vír- que se plasma num seu último gula flutuante, discurso literário romance. que subverte as de uma criatividaEntre o regras gramátiEvangelho e cas para se sub- de fulgurante, sem meter ao ritmo nunca a literatura se a Viagem, o dispositivo s o c i a l d a l i n - subordinar à polítinarrativo de guagem. As nar- ca, mas sem deixar Saramago rativas são cons- de ser política. inflecte a partruídas a partir t i r d e Jande uma observação profunda da condi- gada de Pedra. A trama dos ção humana, de uma pers- romances e/ou novelas pectiva histórica que ques- centra-se e, contraditoriaEstátua do escritor, em Azinhaga do Ribeiro, sua terra natal tiona ideologicamente o que mente, dilui-se no questionar a historiografia oficial dá por o presente. É o que sucede portuguesa alargou a estrada midos, da justiça social e da adquirido. Desloca o centro em Todos os Nomes, Ensaio da sua inesgotável beleza, paz, sempre com lúcida milida acção para um colectivo, sobre a Cegueira, Ensaio sobre ganhou uma fama mundial tância comunista. José Saramago, um escrique não tinha. tipificado em personagens, a Lucidez ou as J u s t a m e n t e tor que só no último terço que emergem de uma mul- Intermitências A trama dos d i s t i n g u i d o da sua vida é reconhecido, tidão anónima que, assim, da Morte. com o Nobel vê alguns dos seus romanO que nunca romances e/ou fica nomeada. Os Mauda Literatura, ces entrarem para o cânone Tempo, Baltasar Sete-Sóis, se perde é uma novelas centra-se e, e m 1 9 9 8 , o da literatura mundial. Fazem Blimunda, o sr. José, Joana depurada saga- contraditoriamente, discurso de parte dos livros que a humaCarda, Joaquim Sassa e tan- cidade que se dilui-se no questioaceitação do nidade deve necessariatos outros que ganham iden- plasma num disnar o presente. prémio anun- mente conhecer, deve ler tidade para melhor repre- curso literário de cia a inten- com urgência para enconsentarem o todo, de onde uma criatividade sobressaem sem nunca a fulgurante, sem nunca a lite- ção de tornar mais conhe- trar, para aprofundar a sua ratura se subordinar à polí- cido Portugal e a literatura dimensão. Apesar disso, ele se subtraírem. Os episódios ocorridos e tica, mas sem deixar de ser de língua portuguesa, mas nunca deixou de ser um também o de dar mais visi- escritor fundamente enrairegistados pela realidade, política. Com Saramago, a língua bilidade às causas dos opri- zado na sua pátria. Viagem no seu sentido mais plano e

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a Portugal é uma frondosa sementeira onde se colhem os saberes que irá espalhar pela sua ficção. Um livro de expandido amor pelas terras lusitanas que deveria estar nas estantes de todos os portugueses. Haveria um dia, há sempre um dia, em que se deixa de estar, em que não se escrevem mais romances, nem mais se confraterniza com os amigos, nem se cruza uma esquina do acaso para apertar a mão de um desconhecido que não nos conhece, mas nos leu. Nesse dia começa a caminhada para a nuvem habitada por outros escritores, igualmente notáveis, a quem a memória atira para um progressivo esquecimento que nem o Nobel conquistado consegue proteger. Não podemos deixar que esses dias se aproximem de José Saramago, com ele outros resgataremos. Não podemos deixar que o nevoeiro comece a invadir essa escrita plantada num território político e social que é nosso e que proporciona a todos o sublime prazer da leitura que lavra o pensamento, tornando-o mais fecundo. José Saramago continuará a ser lido nas sete partidas do mundo, enquanto o mundo for mundo, para glória da literatura e de Portugal. Obrigado José Saramago pelos livros que escreveste para todos nós. Obrigado pelo orgulho que sentimos em sermos da mesma pátria. Um obrigado, mais íntimo e pessoal, por termos sido amigos e camaradas. Mais, muito mais que muitos outros alguma vez foram, e que partilhámos com tantos outros. Manuel Augusto Araújo


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