Campos de desabrigados

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34 Campos de Desabrigados – a continuidade do desastre

entidade dos pobres em si mesmos, mas as formas institucionais que eles assumem numa dada sociedade num momento específico de sua história. Essa sociologia da pobreza, em realidade, é uma sociologia dos laços sociais”. Um exemplo pode ser obtido em Karl Polanyi (2000 apud IVO, 2008) quando, ao fazer uma recuperação histórica da sociedade inglesa, constata que, enquanto no século XVI os pobres representavam um “perigo” para a sociedade, no final do século XVII eles representavam uma carga de impostos. Isso porque, desde o século XVII, o princípio do “interesse” transformou-se no ordenador natural da sociabilidade humana (...) Ele se funda numa representação geral do mundo de natureza utilitarista10 pela qual os vínculos humanos não resultam mais da crença religiosa comum, mas da constituição das relações ambíguas dos múltiplos interesses individuais (...) desde que sejam fontes de utilidade e objeto de cálculo (IVO, 2008, p. 44).

Para Ivo (2008), essa ideia de utilidade passa a se constituir como um princípio estruturante da cultura e da política das sociedades burguesas ocidentais, não se constituindo apenas como uma doutrina ou ideologia, mas se referindo às estruturas fundamentais das sociedades ocidentais que articulam tal princípio e ideologia às suas práticas. Essas práticas não se restringem a fenômenos econômicos, mas abarcam dimensões sociais e políticas de caráter coletivo, incluindo as práticas do próprio Estado. Isto é, o “utilitarismo” pode aparecer como um conjunto de dispositivos estruturados que racionaliza, sistematiza, planeja e administra, servindo como norteador para a formulação de direitos e benefícios sociais engendrados com base nas forças do mercado e do capital, definindo, por exemplo, os “gastos sociais” com os pobres que já convivem estruturalmente com vulnerabilidades, mas que, em interação com a intensificação dos eventos extremos associados às chuvas sobre determinadas áreas suscetíveis a deslizamentos e enchentes, acabam ficando desabrigados, exigindo mais “gastos sociais”. Assim, a partir dessa ideia de utilidade, o mundo da pobreza é construído no registro da carência e da impotência, no qual não se trata de garantir direitos mas de atender a necessidades (cf. TELLES, 1999), que, muitas vezes, assumem, nas falas de agentes de defesa civil, a pecha de benefícios que os desabrigados recebem no abrigo temporário, ou seja, os desabrigados são representados não como “cidadãos”, mas como “necessitados”. 10. Segundo Ivo (2008), o utilitarismo constitui-se em uma doutrina que se expandiu no século XVIII e XIX. Foi um termo inventado por Bentham e reinventado por Stuart Mills. O eixo central dessa “doutrina” centra-se sobre o papel do interesse na ordem social e na mudança social.


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