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MÍDIA E FELICIDADE, UMA LEITURA PSICANALÍTICA

Reparem que é uma resposta belíssima. Mais do que uma resposta, é uma interpretação, ou seja, é algo que faz parte da lógica e da dinâmica de uma análise. Não se pode pegar essa resposta e colocá-la na capa de um livro de auto-ajuda e distribuí-la pelo mundo como uma “receita de felicidade”: seja um infeliz ordinário! É que essa transformação de uma miséria neurótica em uma infelicidade banal é fruto de um trabalho. Trabalho de análise. Trabalho singular, particular, não universal, não válido para todos. A cada um, sua própria e específica infelicidade banal. Como diz Tolstói em Ana Karênina, “todas as famílias felizes se parecem ; cada família infeliz é infeliz à sua maneira” (Tolstói , 1982, p. 11) . Freud está dizendo ao sujeito para não esperar sentado. Não ficar esperando a felicidade voltar. Ele convida o sujeito a fazer uma travessia. Ele convida o sujeito a parar de ficar olhando para si mesmo e passar do olhar para a fala, para a palavra. Ele está convidando a sujeito a sair da frente do lago (Narciso) e prestar mais atenção a Eco, ao eco do Outro12. Vocês sabem que Narciso, por não dar bola a ninguém, acaba condenado pela deusa Nêmesis a amar sua própria imagem refletida no lago, sem dali poder sair, sequer para se alimentar. Ora, a resposta de Freud indica essa travessia de passar de sentado a caminhante. A sair do silêncio para soltar sua voz nessa estrada da análise. Soltar sua voz mesmo que exista uma vontade de se matar. A vida na voz contra a morte do sonho, a morte da esperança. Sair da miséria...mas não para a riqueza. Freud não é neoliberal – ele não acredita no engodo do “sucesso”, na ilusão do “self made-man” [homem que se faz por si mesmo], no aconselhamento da “felicidade ao alcance da mão”, no conto-da-carochinha do “desenvolvimento de competências”, para esse tipo de finalidade13. O sujeito não é neurótico porque é incompetente. Ele é neurótico por tentar domesticar o indomesticável de suas pulsões, de seu desejo, de seu inconsciente. Ele é neurótico por tentar controlar, tentar dominar, tentar regrar o incontrolável, o incontornável, o ilimitável. Ele achar que é incompetente faz parte de sua miséria neurótica. Se sai da miséria da neurose através de um trabalho de desidentificação do indivíduo dessa unidade tão falsa da consciência de si próprio.14 Fazer com o braço seu viver não significa transformar a miséria em riqueza, a riqueza do ser feliz. Significa isso: fazer com o braço algo, fazer com as pernas um caminho, fazer com os buracos do corpo um percurso. Fazer uma escolha. E escolher significa perder algo, abrir mão de algo. Em um dos trechos mais belos do livro “Felicidade” de Darrin McMahon, o autor diz o seguinte sobre a representação da felicidade na de que é grande o ganho se conseguirmos transformar sua miséria histérica numa infelicidade banal. Com a vida psíquica restabelecida, você poderá se defender melhor do destino”. (FREUD, 1987, p. 309). 12 A história de Eco e Narciso é contada por Ovídio em Metamorfoses (São Paulo: Madras, 2003, pp. 61-65). “Outro” é um conceito que Lacan apresenta como sendo um lugar em que “ a questão de sua existência coloca-se para o sujeito” (LACAN, 1998, p. 555) , “isto é: de sua sexualidade e de seu desejo, de sua procriação e de sua filiação, de sua existência e de sua morte, do destino que terá sido o seu, enfim. Outro, portanto: um lugar de questionamento do sujeito. Poderia ser uma versão lacaniana do conceito de Inconsciente.” (fonte: Luiz Eduardo Prado de Oliveira in “O conceito de Outro e a abordagem das psicoses”, disponível no sítio http://www.pradodeoliveira.com/br/outro.html (acesso em: 26 de agosto de 2008). ������������������������������������������������������������������������������������������������������������������ Dany-Robert Dufour discute essas questões no magnífico “A Arte de Reduzir as Cabeças – Sobre a Nova Servidão na Sociedade Ultraliberal” (Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005). 14 Sobre o conceito de “desidentificação”, indico o artigo “Acerca de la Desidentificación” de Willy Baranger, Néstor Goldstein e Raquel Zak de Goldstein in Artesanías Psicoanalíticas (Buenos Aires: Kargieman, 1994).

124 | COMUNICAÇÃO - REFLEXÕES, EXPERIÊNCIAS, ENSINO |Curitiba | v. 2| n.2|p.121-140| 1° Semestre 2009


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