IHU On Line - Revista do Instituto Humanitas Unisinos (n. 410 - 2012)

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mercadoria não equivale a seu preço, mas explica um conjunto de relações de exploração, do mesmo modo o lixo não é somente essa montanha malcheirosa que está nos aterros, mas é uma relação. A diferença entre a mercadoria e o lixo é que o que tem valor positivo permanece no patrimônio das pessoas, sob o direito de propriedade, e o que se torna desagradável é descartado como lixo. Mas a relação social é a mesma: apropriação em um caso e desapropriação em outro. A propriedade é um direito que permite ao dominus excluir erga omnes a todo o resto da sociedade, do uso e gozo de sua coisa. Ao contrário, o lixo é uma “desapropriação” de algo que até agora tinha um dono, e uma vez que obteve seu lucro, quando sua coisa passa a ter valor negativo, descarrega esse passivo econômico ou ambiental no resto da sociedade, ou seja, no ambiente. O coletivo social se faz responsável, através do Estado, de gerir estes passivos, garantindo, desse modo, que os ativos fiquem apropriados por uma minoria. Esta maneira de ver o lixo como relação de desapropriação, contrária e complementar à relação de propriedade, pode se estender a todas as relações de contaminação. Porque a contaminação tanto da água e do ar como da terra sempre implica a presença de resíduos que tenham sido desapropriados em um bem coletivo que é o ambiente. IHU On-Line – Em que medida o lixo é utilizado como recurso de poder? Raúl Néstor Alvarez – Mais do que um recurso, o lixo é poder. Porque o poder não é uma coisa que se toma ou se deixa. É um aspecto das relações sociais. E no lixo circula, entre outras coisas, relações de poder. O lixo procede do exercício desigual do poder; o reproduz. O Estado, ao gerir o lixo, garante a apropriação privada de lucro à socialização de perdas mediante a coerção. Os mendigos, por isso, geralmente têm sido perseguidos. Aqui em Buenos Aires, o princi-

“Lixo é o contrário necessário da ordem e da limpeza. E esta ordem, tanto doméstica como social, necessita da ideia de lixo para poder funcionar” pal aterro, o Norte III da CEMASE, é custodiado pela polícia armada, como se se tratasse de um tesouro. Os catadores, ao resgatar objetos do lixo, estão rompendo a lógica de poder e da apropriação/desapropriação do lixo. Por isso são discriminados, perseguidos, reprimidos, marginalizados. Além disso, em torno do reaproveitamento do lixo também se montam redes de aproveitamento econômico, que implicam exploração e relações de poder. Mas isso não foge às demais relações de poder que se dão no território social da marginalidade. O uso do lixo como “recurso” de poder é nítido quando o Estado dificulta ou nega aos catadores o acesso a seu material de trabalho. Mas também a prisão usa a privação da liberdade como um recurso de poder, do mesmo modo que o fazem os demais aparatos do Estado em seu trato com os setores subalternos. IHU On-Line – Como você chegou à conclusão de que o lixo é o que há de mais rico? Raúl Néstor Alvarez – A frase do título do livro não é minha, mas de um catador de Villa Lanzone, Buenos Aires. Uma vez fomos com uma equipe da Universidad de General Sarmiento a uma assembleia de um projeto social de reciclagem. Ali propusemos

aos catadores que em seu trabalho cotidiano, além de luvas, usassem máscara para tapar a boca e o nariz. Era uma ideia exótica, totalmente alheia ao modo de trabalho habitual dos trabalhadores do lixo, que não somente não se adoentam nem tem nojo do lixo, como também tem feito dele seu meio de vida e de alimentação. Por isso, um jovem irreverente, parado em uma montanha de lixo ao fundo do galpão onde nos reuníamos, gritou: “para que vamos usar máscara se o lixo é o que há de mais rico?”. Referia-se ao duplo caráter do lixo: é rico porque se pode comer, e dele se pode extrair valor ao recuperá-lo. IHU On-Line – Como resolver o problema do lixo em nossas sociedades se considerarmos que o capital é regido pela lógica da escassez? Raúl Néstor Alvarez – A pergunta excede o que posso dizer a partir da etnografia que venho realizando. Mas creio que o caminho é desandar a lógica capitalista do lixo, empregar critérios ambientais para seu manejo, avançar na reciclagem usando mão de obra intensiva de quem atualmente se ocupa dele, que são os mendigos e catadores, valendo-se de lógicas não tecnológicas, mas cidadãs, de organização e decisão. O lixo é uma questão de empoderamento popular e cidadão. É uma questão política. Não pode ser deixado nas mãos tão somente de engenheiros e adminis

Leia mais... >> O sítio do IHU publicou recentemente uma entrevista com Raúl Alvarez sobre o tema. Confira: • Lixo, Estado e propriedade, publicada em 18-10-2012, disponível em http://bit.ly/RWasTC

SÃO LEOPOLDO, 3 DE DEZEMBRO DE 2012 | EDIÇÃO 410


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