Valeu Agosto 2015

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editorial “A varanda era o lugar onde a casa mais vivia, onde a casa era mais mundo. Nesse universo de contraste entre raças, línguas e culturas, a varanda era onde a casa e a rua conversavam, onde os vizinhos se tornavam família e os outros se tornavam menos estranhos. A varanda era assim uma espécie de facebook sem internet. Com a vantagem de os rostos e as vozes serem reais. Nesse tempo, as pessoas ainda tinham corpo. E a casa tinha raiz na terra onde sujávamos as mãos e limpávamos a alma.”

as individuais que foram, são e devem continuar a ser, as casas dos colonos fundadores do Vale do Itajaí. Casas que foram lares, com história e com estórias para contar, ao contrário das impessoais muralhas de cimento sem jardim, onde nos habituámos a apenas pernoitar, diariamente, por uns pares de horas.

A defesa da integridade cultural da região passa, obrigatoriamente, pela recuperação e preservação do seu patrimônio arquitetônico. Reabilitar as casas dos colonos fundadores das cidades do Vale é essencial para garantir Excerto de “Quando me fiz escritor?” Mia Couto in a manutenção da identidade histórica das gerações vindouras e para devolver à paisagem o seu diferencial Granta Portugal nº4 mais importante, condição única ao desenvolvimento Do que mais me recordo era de que a casa tinha alma. do turismo regional. Cheiros, sons, movimento e uma permanente desarrumação inerente às casas com vida. Livros largados despre- Na maioria dos países europeus foram instituídos proocupadamente sobre sofás, com os cantos das folhas gramas de recuperação do patrimônio histórico ardobrados, marcando o término da última leitura; cartas quitetônico como forma de preservar uma memória abertas (será que ainda alguém recebe cartas que não que não pode nem deve ser esquecida, sob pena de apasejam de bancos?), esquecidas sobre as cômodas; jor- gar a identidade das próprias nações. Porém, percebennais dobrados sobre a mesa, manchados aqui e ali por do que não basta recuperar sem entregar vida aos esgotículas de café escuro; casacos atirados para cima das paços, foram definidos incentivos sociais para permitir cadeiras de canto; mesas redondas cobertas de moldu- que jovens viessem habitar essas casas históricas, enras de prata com retratos de rostos familiares amarelecidos tregando-lhes novas estórias, entregando-lhes alma, enpelo tempo; xícaras abandonadas em velhos contadores tregando-lhes vida, garantia essencial para a sua eternização. de pau santo; um suavíssimo perfume de alfazema pe- Saibamos copiar o que é bom. los corredores; um roupão perdido há muito por trás da porta do banheiro; o ranger da janela da sala de jantar e Numa época de imediatismo, de pessoas sem corpo, de uma interminável azáfama na cozinha. Lá fora, o cheiro amizades medidas pelos “gostos” colocados nos posts a terra remexida, misturado com o aroma intenso das das redes sociais, de partilhas de imagens, sem parflores e das frutas amadurecidas. Crianças largadas às tilhas de vida e de emoções, é fundamental resgatar a suas brincadeiras, fazendo bolos de areia, subindo às memória de um tempo em que as coisas não eram asárvores, rolando alegremente na grama ainda úmida do sim. Em que as casas tinham alma, as pessoas tinham orvalho noturno, acompanhando, encantadas, carreiros corpo, as emoções tinham rosto e a vida fazia mais sende formigas ou surpreendendo-se, aqui e ali, com o can- tido. Essa é a proposta da 4ª Edição da Valeu. Sem saudosisto dos pardais. Do que mais me recordo era de que a casa tinha alma. mos, nem falsos moralismo, apenas com a consciência De que a casa era o meu mundo. O meu país. A minha de que preservar o passado é a única forma de encarar, Pátria. Foi essa memória de infância enraizada no meu com coerência, um futuro melhor. subconsciente, que me fez transformar as muitas casas em que vivi desde a meninice, em novos lares, em novos por João Moreira países, em novas pátrias, enriquecidas com pedacinhos de cada uma das pátrias que fui deixando para trás. É de casas que falamos nesta edição da Valeu. Das casas que fizeram a história desta pequena Pátria ao sul, integrada na gigantesca Pátria brasileira. Das casas que, mais do que memórias , devem ser a imagem viva e vivida das origens ancestrais de uma tradição cultural própria e que merece ser preservada. Por isso decidimos resgatar a história e as imagens das pequenas pátri-

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